Introdução
O despovoamento de áreas rurais de países europeus continua a ser um grave problema para o almejado desenvolvimento sustentável e os propósitos de coesão territorial da União Europeia (Ferrão, 2004). O fenómeno do despovoamento está associado a um alto nível de envelhecimento da população e a uma fraca dinâmica económica e riscos ambientais, e pela falta de gestão de terras e florestas, o que provoca perdas de biodiversidade e amplia os riscos climáticos (González Díaz et al., 2018).
O conjunto desses aspetos sociais, económicos e ambientais caracteriza também o rural de baixa densidade (Baptista, 2006) ou a chamada periferia interior (De Toni et al., 2021). Em Portugal, o ritmo de despovoamento das áreas do interior continua em ascensão (INE, 2017: 80). Nas áreas de terras comunitárias, designadas por baldios, localizadas principalmente e em maior número em territórios rurais do norte e centro de Portugal, o despovoamento impacta a sobrevivência humana e o equilíbrio ecológico (Silva et al., 2018: 66). No entanto, contradizendo essa tendência, um conjunto de baldios tem apresentado alguma dinâmica de desenvolvimento territorial e de cuidado ambiental a partir de iniciativas comunitárias, a exemplo da estratégia de agrupamento de baldios, analisada de seguida.
Com o propósito de perceber as condições do despovoamento e do desenvolvimento dos territórios baldios de Portugal, apresentam-se neste artigo esses conceitos enquadrados com os elementos obtidos a partir do trabalho no terreno. Dessa forma, pretende-se agregar valor científico pela sua relevância para a “aplicação ao mundo real” (Wee e Banister, 2016), na medida em que o presente estudo reflete uma visão geral sobre casos sustentados por um conjunto de artigos científicos e sobre um recorte da realidade de baldios observados em visita técnica, atividade promovida pela Federação Nacional dos Baldios (BALADI).
Assim, de forma específica, pretende-se responder às seguintes questões: é possível criar dinâmicas de desenvolvimento em territórios rurais em despovoamento? Em caso afirmativo, quais são os processos que podem contribuir para o desenvolvimento desse tipo de território? Para essas questões, a secção 2 procura apontar algumas pistas e soluções de políticas públicas, a partir de estudos e investigações no âmbito europeu. Sobre as terras comunitárias, questiona-se a relação particular entre baldios, processos de desenvolvimento, despovoamento e baixa densidade. Desta forma, pretende-se obter uma perceção das políticas públicas relacionadas com os baldios, não entrando, contudo, em questões relativas ao funcionamento dos seus órgãos diretivos ou aos processos de participação comunitária. Como forma de buscar respostas a estas questões, a secção 3 indica os contornos da situação dos baldios portugueses. Assim, confrontando a leitura, as entrevistas e as observações no terreno, nas secções 4 e 5 visa-se perceber o movimento e a dinâmica das comunidades de baldios de Mondim de Basto em resposta aos problemas enfrentados no território.
1. Métodos e materiais
A investigação aqui apresentada parte da leitura de um conjunto de artigos publicados em revistas científicas indexadas na plataforma Scopus (Zhu e Liu, 2020) e com datas de publicação posteriores ao ano de 2019. A procura dos textos partiu das palavras-chaves “território”, “rural”, “despovoamento”, “baixa densidade”, combinadas com os termos “desenvolvimento”, “terra comunitária”, “terra comum” e “baldio”.
Com os textos selecionados por acoplamento bibliográfico (Zupic e Čater, 2015), foi possível vislumbrar um quadro conceptual e um raciocínio indutivo (Imenda, 2014) para tentar entender as dinâmicas territoriais e sociais, construindo, assim, um quadro panorâmico mais ampliado sobre diferentes realidades (ver Quadro 1). Para a construção desta pesquisa foram ainda identificados capítulos de livros, publicações e outros documentos relacionados com os fenómenos do despovoamento e do desenvolvimento rural, bem como sobre a história e a configuração institucional dos baldios portugueses.
O trabalho de campo foi realizado no contexto dos baldios de Mondim de Basto, no norte de Portugal, por meio de entrevistas formais abertas e de observação participante (Caria, 2018). Em primeiro lugar, a partir de entrevistas e anotações em diário sobre reuniões com gestores e técnicos da BALADI, em sua sede no concelho de Vila Real, procurou-se o entendimento do contexto e das propostas de ação da estratégia de agrupamento de baldios - política que será analisada posteriormente no item 3.1. Em segundo lugar, foram registadas informações a partir de participação em visita técnica no terreno organizada pela BALADI, ocorrida durante todo o dia de 19 de junho de 2021, quando foram conhecidas as ações de gestão florestal executadas em cinco baldios do concelho de Mondim de Basto. Esta atividade possibilitou o estabelecimento de conversas com os dirigentes locais de baldios e seus compartes.1
Os cinco baldios formam o Agrupamento de Baldios de Mondim de Basto (ABMB), cujo concelho tem uma área de 17 200 hectares e conta com uma população de 6410 pessoas, conforme dados dos Censos 2021 do Instituto Nacional de Estatística. Tendo em conta que aquando dos Censos 2011 a população era de 7493 pessoas, houve uma perda populacional de 14,4% em 10 anos.
O ABMB é constituído por cinco comunidades locais, com a participação de 640 compartes, compreendendo: Vilarinho, com 256 compartes; Pardelhas, com 56; Campanhó, com 80; Tejão, com 98; e Paradança, Ponte de Ôlo e Carrazedo, com 150 compartes, soma que corresponde a quase 10% da população do município. O ABMB possui uma área de 4123 hectares, o que corresponde a quase um quarto da área do concelho, o que pode ser observado num mapa no site da BALADI.2
Posteriormente à visita ao terreno, foi realizada uma entrevista com a presidente da Câmara Municipal de Mondim de Basto, para perceber o envolvimento da autarquia com os baldios. Foram ainda recolhidos e analisados relatórios fornecidos pela BALADI com dados sobre o processo de implantação da política de agrupamento de baldios naquele território que, de acordo com Dallabrida et al. (2021), se constitui como referência territorial fundamental para esta investigação.
2. Um olhar sobre o despovoamento na Europa e em Portugal
O despovoamento de regiões do interior e de áreas rurais de países europeus constitui-se, desde o século passado, como fenómeno social, económico e ambiental mediado por relações de poder, conhecimento e estrutura de propriedade (Ferrão, 2018), o que gerou uma desvalorização do modo de vida rural e a ascensão das áreas urbanas industrializadas (Baptista, 2010: 161). Esta dinâmica foi impulsionada a partir das duas guerras mundiais no século xx (Telbisz et al., 2020) e teve por consequência um ritmo de produção e um consumo exacerbados, frutos das ideologias da globalização (Santos, 2001: 24-25). Este movimento global trouxe como resultado o atual quadro de crise ambiental e o impulsionamento do desequilíbrio demográfico territorial, como pode ser observado na Europa e, especificamente, em Portugal, com o abandono do interior e a concentração populacional nos centros urbanos.
Em Portugal, esse contexto foi ainda agravado pela estatização de grandes áreas de terras no interior do país, principalmente as áreas de terras comunitárias que foram ocupadas pelo Estado para florestação a partir dos anos 1930, condição que também contribuiu para o despovoamento desses territórios rurais (Brouwer, 1999). Facto semelhante de florestação e expulsão forçada da população ocorreu na Galiza, região noroeste da Espanha, no início da ditadura franquista. Nessa região, as comunidades possuem também terras comunitárias, denominadas por Montes Veciñais en Man Común (Copena Rodríguez, 2020: 90), sendo que a situação de conflito pelo uso da terra, entre os interesses comunitários e os interesses estatais e privados, continua presente, seja pelo desentendimento da forma de gestão da terra com o Estado, seja pelo uso empresarial de espaços agrícolas sem a remuneração esperada pelas comunidades (Gómez-Vázquez et al., 2009).
Atualmente, as zonas rurais espanholas são conhecidas por “Espanha vazia” (Llorent-Bedmar et al., 2021), devido ao êxodo em massa de jovens para as cidades bem como ao sentimento de desenraizamento, o que representa a principal ameaça à sustentabilidade rural. Trata-se de um fenómeno que gera baixa taxa de natalidade nas zonas rurais, também chamado de “ultraperiferia demográfica”, e que se refere a uma realidade que não está localizada em partes remotas do mundo, mas a algumas dezenas de quilómetros de grandes cidades ou de capitais (García-Casarejos e Sáez-Pérez, 2020; Kluza, 2020).
Na Itália, essas áreas, designadas por “periferias internas”, correspondem a mais de 60% do território nacional e a 23% da população total (De Toni et al., 2021), sendo caracterizadas pela baixa acessibilidade a serviços básicos como educação, saúde e mobilidade, condições que levam os seus habitantes a abandonar as terras (Dolton-Thornton, 2021). Com o impacto das mudanças do processo produtivo no meio rural, “a interação das forças locais e regionais produz um desequilíbrio ecológico-económico”, como afirmam Quaranta et al. (2020: 2391; tradução dos autores).
Situação semelhante ocorre em Portugal, onde 7% da população do território continental ocupa 60% da sua área, com uma média inferior a 13 habitantes por quilómetro quadrado, conforme Baptista (2006: 86), que caracteriza esse cenário como “rural de baixa densidade”, um território que ainda apresenta alguma “coloração” agrícola, dependendo os que nele habitam mais de subsídios e de outras formas de rendimentos do que do trabalho dos habitantes na terra.
No mesmo sentido, o fluxo migratório também é observado por Telbisz et al. (2020) em Užice, região central da Sérvia, onde a deslocação da população das montanhas em direção aos vales está intimamente relacionada com a reestruturação da economia, condicionada pelas melhores condições de trabalho e pela garantia de escola para os filhos nas áreas urbanas.
2.1. Território e desenvolvimento
O conceito de desenvolvimento está vinculado a dimensões complexas sobre questões ambientais, sociais e económicas, na perspetiva do “desenvolvimento sustentável”, termo cunhado em 1987 pela Organização da Nações Unidas3 no âmbito do debate da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, movimento que promoveu “novo fôlego ao pensamento do desenvolvimento” segundo Cazella (2008).
A complexidade da sociedade contemporânea remete para a visão sobre o desenvolvimento em múltiplas escalas, desde o global - da sociedade informacional (Castells, 2002: 57) - até ao local, em pequenas comunidades, onde o território pode ser entendido não apenas pelo seu recorte geográfico, mas, sobretudo, como “uma fração de espaço historicamente construída através das inter-relações dos atores sociais, econômicos e institucionais que atuam neste âmbito espacial, apropriada a partir de relações de poder”, como afirma Dallabrida (2014: 19).
O território compreende “atores, interações, poderes, capacidade e iniciativas - condição própria e lugar específico nas ordens (e nas desordens) societais”, aponta Reis (2005: 53). Para que o processo de desenvolvimento tenha êxito, pressupõe-se que a comunidade local tenha uma efetiva participação na definição dos seus objetivos (Cazella, 2008). Cazella (ibidem: 20) refere também que o Estado pode contribuir para os objetivos comunitários, contrabalançando os diferentes interesses existentes na sociedade e “os efeitos desestruturantes da lógica de mercado”.
O Estado, por meio de aplicação de políticas e programas destinados aos territórios de baixa densidade, deveria identificar as condições diferenciadas de cada localidade, como afirma Kluza (2020), pois a adoção de políticas uniformes para diferentes territórios rurais não é apropriada, concorda Maric et al. (2020). Perceber com profundidade as potencialidades e limitações de cada periferia interna é crucial para a aplicação de políticas de desenvolvimento (De Toni et al., 2021), a fim de encontrar os melhores caminhos para a sustentabilidade de cada território (Fantechi et al., 2020).
2.2. Políticas e programas para o desenvolvimento de territórios em despovoamento
O subprograma Ligações Entre Acções de Desenvolvimento da Economia Rural (LEADER) da União Europeia e o Programa de Desenvolvimento Rural (PRODER) ao qual pertence - ambos inseridos na Política Agrícola Comum (PAC) - são analisados por Trigueros e Prieto (2020), após 25 anos de execução na região de Terras de Campos, em Castela e Leão, Espanha. Os autores apontam a eficiência dos programas continuados, principalmente através da atuação dos Grupos de Ação Local, agentes fundamentais para manter a dinâmica social no território. Porém, destacam a necessidade de que esses programas tenham maior ênfase não só em resultados quantitativos, mas, principalmente, em resultados subjetivos e qualitativos que possam impactar positivamente o território, como as ações que geram empoderamento e participação social.
Investigação semelhante sobre a aplicação dos projetos LEADER, em Badajoz, Espanha, é realizada por Miranda García et al. (2019), que destacam que as ações empreendidas não são suficientes para enfrentar os problemas demográficos, principalmente nos municípios mais pequenos. Da mesma forma, os projetos LEADER aplicados especificamente ao turismo em Valência, Espanha, não são suficientes para enfrentar o avanço do despovoamento, conforme concluem Osorio-Acosta et al. (2019). De acordo com as investigações, as limitações dos projetos LEADER impedem o pleno desenvolvimento do turismo rural, sobretudo quando as localidades são mais distantes dos grandes centros urbanos e das capitais, conforme constatam também os estudos de Masot e Rodríguez (2020) na Estremadura, Espanha, e de Ibanescu et al. (2020) na Roménia.
De modo geral, para o período de 2021-2027, Dolton-Thornton (2021) refere a necessidade de a PAC ter uma estratégia mais específica e adaptada ao contexto dos territórios de baixa densidade. O autor aponta os riscos de a PAC ser focalizada de modo extremo e homogéneo numa única perspetiva - seja a do produtivismo, do neoliberalismo, do multifuncionalismo ou da restauração de ecossistemas -, e não em políticas que procurem ser adequadas ao local.
Outras políticas públicas universais, a exemplo da educação básica, precisam de ser corrigidas e reforçadas, de forma a promover o sentido de pertença e de apoio aos jovens na fixação em territórios de baixa densidade, conforme aponta o estudo sobre escolas rurais realizado por Llorent-Bedmar et al. (2021). Esse estudo expõe a fragilidade do regime de contratação de professores na região de montanhas da Serra Celtibérica espanhola, indicando a importância de priorizar a alocação de professores que queiram ficar naquela região e evitar a sua rotatividade constante.
Do mesmo modo, a política pública de implantação de internet de alta velocidade é outro grande instrumento potencialmente positivo para os territórios de baixa densidade. A investigação de Lehtonen (2020) na Finlândia sobre a infraestrutura que permite o acesso à internet, durante o período 2010 a 2018, revelou que o investimento em banda larga reduziu o despovoamento nas áreas rurais e que a infraestrutura disponível teve impacto nas decisões de instalação de empresas e residências. Em investigação semelhante sobre 71 municípios do interior de Valência, Espanha, Ruiz-Martínez e Esparcia (2020) afirmam a necessidade do acesso à internet como serviço básico, a exemplo dos serviços de água ou luz, bem como a promoção de formação para o uso dos recursos tecnológicos nas comunidades rurais, de forma que o comércio eletrónico e o teletrabalho possam fazer parte da dinâmica social e económica.
3. A condição de territórios com baldios em Portugal
Para uma análise sobre a condição dos baldios portugueses e do seu processo de despovoamento, torna-se necessário uma perceção histórica referente a três períodos distintos, conforme indicam Lopes et al. (2013): o período da Monarquia Constitucional e da Primeira República, o período da Ditadura Militar e do Estado Novo e o período decorrente da Revolução de 25 de Abril.
O primeiro período acontece entre 1834 e 1926, quando da ascensão dos ideais liberais e da promoção de processos de privatização capitalista, o que acarretou em perdas significativas de terras comunitárias para os interesses privados (Miranda, 2018: 4).
O segundo período é referente à Ditadura Militar e ao Estado Novo, entre 1926 e 1974, quando Salazar ocupou os baldios por meio do Plano de Povoamento Florestal de 1938 (Skulska et al., 2020). Nesse período, foi reconhecida pelo governo a existência de mais de 400 mil hectares de áreas de baldio, e foi também implementada a política da Junta de Colonização Interna para formação de colónias agrícolas, que visava a melhoria da produção e a ocupação de muitas terras de baldio (Lopes et al., 2017). Com estes processos, a maior parte dos habitantes, que dependia dos baldios para a retirada de lenha e dos matos e para apascentar o gado, foi impedida de os usar. Como resultado, considerando a pequena escala dos agricultores envolvidos no processo estatal de colonização, o uso de áreas de baldio para a florestação bem como a apropriação de baldios por juntas de freguesias (Rego e Skulska, 2019: 77), surgiram conflitos ligados ao acesso à terra e registou-se a inviabilidade de permanência das populações nos territórios, originando o seu abandono (Baptista, 2010: 14).
O terceiro e atual período acontece a partir de 1974, após a Revolução Democrática, quando os baldios foram devolvidos às comunidades locais, ação definida pelos Decretos-Leis n.º 39/76 e n.º 40/76,4 que “estabeleceram mecanismos e modalidades de restituição dos baldios aos povos com direito a eles” (Bica et al., 2018: 4). Posteriormente, com a adesão de Portugal à União Europeia, em 1986, houve mudanças das políticas para a agricultura e para o meio rural, nomeadamente através da implementação da PAC (Viegas, 2020: 121-123).
Os episódios que elencamos, dos quais se destacam os ataques sofridos pelas comunidades de baldios sobre as suas propriedades coletivas por meio das políticas de Estado, somados às mudanças produtivas do capitalismo com a forte desvalorização do meio rural e dos modos tradicionais da agricultura (Baptista, 1994), revelam o presente diagnóstico de abandono do interior do país e, consequentemente, dos baldios.
De qualquer forma, mesmo com o amplo processo de despovoamento dos baldios, existe um conjunto de possibilidades para a ocupação sustentável dessas terras e para a geração de iniciativas a partir de recursos endógenos, conforme os resultados de estudos sobre o Valor Económico Total das florestas dos baldios portugueses, que apresentam uma importância económica potencial na ordem de 69,4 milhões de euros por ano - valor a que se chega tendo em consideração produtos lenhosos e não lenhosos, atividades de caça e pesca, de recreio, produção de resinas e mel, bem como pela regulação da água, da biodiversidade e o sequestro de carbono, considerando que atualmente se reconhece a existência de mais de 500 mil hectares de terras de baldio (Lopes, 2018: 94-95).
Concomitante às possibilidades económicas, há em Portugal um movimento organizado dos baldios, com mais de 40 anos, que engloba diversas organizações regionais e nacionais que promovem ações de articulação e mobilização dos territórios e das comunidades de compartes, com vista à gestão e governança territorial (Carvalho, 2018: 22-24), fomentando um “desenvolvimento centrado nas pessoas e nas comunidades” (Cristóvão, 2006: 115).
Atualmente, a autonomia comunitária sobre o uso da terra pelos compartes foi ratificada pela nova Lei dos Baldios n.º 75/2017,5 no artigo 7.º, que os define e os reafirma enquanto titulares dos baldios, aqueles que, segundo os usos e costumes, são reconhecidos pelas comunidades locais e pelas assembleias de compartes (Bica et al., 2018: 59). No entanto, as ameaças aos baldios continuam tendo em conta o valor económico dessas terras, que correspondem a 5% do território nacional continental de Portugal e que concentram aproximadamente 14% das florestas do país.6 Exemplo disso é o facto de que diferentes propostas de lei têm sido apresentadas na Assembleia da República (como a do Grupo Parlamentar PSD e do CDS-PP em 20147), prevendo a mudança no estatuto destas terras em benefício de interesses privados (Silva et al., 2018: 67). Ainda assim, a resistência pela autonomia e a defesa do território comunitário continuam, o que pode ser observado no terreno, a partir da implementação da política e estratégia de agrupamento de baldios, conforme será abordado de seguida.
3.1. A política de agrupamento de baldios
De acordo com o Decreto-Lei n.º 39/76, artigo 9.º, a gestão dos baldios acontece por meio de um Conselho Diretivo e de uma Comissão de Fiscalização, órgãos eleitos em Assembleia de Compartes (ou seja, pelos titulares que têm direito ao usufruto do baldio e são reconhecidos e registados em assembleia). A gestão individual dos baldios pode ser realizada de duas formas: autónoma, por autogestão, ou por cogestão com o Estado. A forma autónoma compreende uma gestão dos baldios diretamente pelos compartes e seus órgãos de direção e fiscalização. A forma de cogestão implica um relacionamento com o Estado - atualmente por meio do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) -, que define o plano de utilização do baldio, inclusive com a partilha, entre comunidade e ICNF, de eventuais ganhos com a comercialização de produtos lenhosos.
Com a Lei dos Baldios n.º 75/2017, artigo 33, um novo regime administrativo pode ser aplicado, denominado “agrupamento de baldios”. Trata-se de uma estratégia de governança que possibilita uma nova forma de administração conjunta da terra comum, podendo os baldios constituir e integrar associações e cooperativas entre si ou com outras entidades do setor social (Bica et al., 2018: 87).
Esta nova modalidade de gestão dos baldios de forma agrupada possibilita que três ou mais baldios se juntem para promover uma gestão comum e compartilhada. Cada baldio com interesse em participar deve aprovar tal decisão na Assembleia de Compartes, para dar sequência ao processo de agrupamento. Dessa forma, cada agrupamento de baldios deve constituir-se formalmente como associação, definir o seu estatuto e o seu regulamento interno (BALADI, 2019a). O objetivo do agrupamento de baldios é o de promover a sustentabilidade social, económica e ambiental das áreas comunitárias, possibilitando gerar sinergia e ganhos de economia de escala, considerando tratar-se de uma área maior do que as individuais (BALADI, 2019b).
4. Resultados e apontamentos
De acordo com os documentos analisados, o estabelecimento e a formalização dos agrupamentos de baldios, como no caso de Mondim de Basto, é organizado por intermédio de projetos elaborados pela BALADI e pela Forestis - Associação Florestal de Portugal, com recursos financeiros do ICNF, oriundos do Fundo Florestal Permanente. Com esse propósito, em parceria com o ICNF, cada entidade apoiou o desenvolvimento de dez agrupamentos de baldios.
A parceria entre a BALADI e o ICNF, no período de 2019 a 2022, envolveu 55 unidades de baldios que formaram 10 agrupamentos, o que corresponde a mais de 56 mil hectares de área territorial (dos quais, mais de 48 mil em área florestal). Os territórios desses agrupamentos pertencem a seis distritos portugueses, nomeadamente: Braga, Castelo Branco, Coimbra, Guarda, Porto e Vila Real (sendo que é neste último que se localiza o concelho de Mondim de Basto). Entre os baldios em processo de agrupamento, 21 são administrados de forma autónoma e 34 estão sob o regime de cogestão com o Estado.
As terras comunitárias do ABMB são todas autogeridas, inclusive o Baldio de Tejão, que antes da instituição do ABMB era organizado em cogestão com o ICNF. Com a estratégia de agrupamento de baldios, as comunidades obtiveram um reforço dos apoios técnico, associativo e jurídico, o que resultou em maior cuidado e investimento na floresta.
De acordo com as declarações dos técnicos da BALADI, em conversas prévias à visita no terreno, a constituição do ABMB também permitiu a elaboração de planos de gestão florestal, o levantamento rigoroso dos seus limites, o registo nas finanças, entre outras ações de melhoria da gestão e governança do território. Foram disso exemplo a execução de fogo controlado para a renovação de pastagem e a criação de faixas de rede secundária, bem como a implementação de projetos de arborização e de aproveitamento da regeneração natural, e ainda a abertura de novos caminhos no interior da floresta - o que foi possível observar na visita técnica aos cinco baldios.
Também de acordo com a informação fornecida pelos técnicos da BALADI, por meio da articulação de outros projetos e financiamentos do Fundo Florestal Permanente, o ABMB investiu nas florestas dos baldios o valor de 1,245 milhão de euros, tendo sido aplicados 128 mil euros em recursos das próprias comunidades, o que garantiu que 830 hectares fossem tratados. A floresta do ABMB é composta por quase 80% de pinheiro-bravo, árvore que tem um ciclo de vida superior a 40 anos, desde o plantio até ao corte final.
As fontes de receita do ABMB são oriundas do parque eólico, da resina e do material lenhoso. Entre 2019 e 2021, a comercialização de madeira de uma área de 65 hectares gerou 215 mil euros para os cofres comunitários. Conforme as projeções apresentadas pela direção do ABMB, em reunião de encerramento da visita técnica, o conjunto de florestas sob a sua gestão pode representar ao longo dos próximos 20 anos um valor económico na ordem de 32 milhões de euros.
A partir das informações obtidas em reuniões, em observações no terreno e na sequência da entrevista com a presidente da Câmara Municipal de Mondim de Basto, ficou patente que o ABMB - que em conjunto com a BALADI promove e executa a gestão de uma área de mais de 22% do concelho - é um ator estratégico para a gestão social, económica e ambiental daquele território. As estruturas comunitárias e associativas são também reconhecidas pelos atores governamentais como fundamentais para o desenvolvimento do território, de acordo com os dirigentes da Câmara Municipal local e dos representantes do ICNF, conforme as declarações expressas na reunião final da visita técnica.
Outro fator importante que observámos aquando das conversas com os dirigentes e com os compartes dos baldios visitados é que, do ponto de vista socioeconómico, há uma singularidade entre as cinco comunidades, considerando que os compartes desenvolvem multiatividades nas áreas silvo-agro-pastoril. Além da gestão das suas florestas, produzem mel e criam caprinos e ovinos - a exemplo de produtores da comunidade de Pardelhas -, o que demonstra o cuidado, a importância e a valorização das culturas tradicionais de montanha que atribuem os compartes locais.
5. Discussão
É possível perceber que o despovoamento se constitui como um dos problemas centrais e complexos dos territórios de baixa densidade por toda a Europa. No entanto, o despovoamento e a fraca dinâmica económica, bem como o envelhecimento daí decorrente, não são consequências de fenómenos naturais, mas sim resultados de decisões de poderes públicos ou privados, sobre a ecologia, a comunidade e a economia (Ferrão, 2018). As decisões e as políticas muitas vezes exclusivamente baseadas na competitividade (Santos, 2001: 23), para o aumento da rentabilidade do capital, provocam a degradação de grandes áreas territoriais e trazem consequências nefastas ao meio ambiente e às pessoas. Por um lado, pela sobre-exploração através da agricultura ou pecuária intensivas e de monoculturas - a exemplo do que acontece no sul de Portugal, com a perda crescente do montado e do sobreiro tradicionais, substituídos pela criação de gado (Pinto-Correia et al., 2013: 14). Por outro, a falta de investimentos em programas e projetos nos territórios de baixa densidade, ou a sua má distribuição, trazem como consequência maior o abandono territorial, os constantes incêndios florestais, a desertificação e erosão de terras, principalmente no norte do país (Cordovil, 2021: 22).
Viabilizar o acesso a serviços públicos, como nas áreas da educação e saúde, é fundamental para evitar as limitações que condicionam a exclusão social e a necessidade de mobilidade (Camarero e Oliva, 2019). A falta de serviços locais sujeita as pessoas à deslocação para cidades ou para núcleos urbanos maiores de forma a satisfazer as necessidades sociais e económicas (Sheludkov et al., 2020). Da mesma forma, a possibilidade de promover a fixação de jovens locais bem como a transição de jovens oriundos do meio urbano depende da disponibilidade de serviços básicos e da melhoria de acesso à internet, condições que podem potencializar a revitalização local e o desenvolvimento de atividades não agrícolas (Mickovic et al., 2020), como também fortalecer a agricultura e a pecuária, atividades vistas como alternativa de desenvolvimento de regiões periféricas (Kołoszko-Chomentowska e Zdziarstek, 2019).
Por outro lado, o despovoamento ocorre não só pela falta de serviços básicos como também se aprofunda por meio de políticas públicas estatais e de investimentos privados que não refletem as necessidades locais - mas são apenas motivados por interesses políticos e económicos externos. Um exemplo disso é o que acontece com a PAC que inclui critérios e medidas que, muitas vezes, não atendem às condições regionais ou territoriais específicas (Segrelles, 2017), privilegiando a aplicação de recursos para rentabilizar explorações empresariais, em detrimento do apoio a investimentos em explorações de pequena escala e de produção familiar. Como resultado, em Portugal, mais de 40% dos pequenos agricultores não têm acesso à PAC e a sua distribuição é desigual entre os territórios, a exemplo da região sul de Portugal que recebe mais de dois terços dos subsídios e investimentos (Cordovil, 2021: 27). Assim, é na região do Alentejo, sul de Portugal, onde se concentra o maior número de explorações empresariais de grande dimensão que, em última instância, não necessitaria de recursos públicos para viabilizar os seus negócios privados (Viegas, 2020: 163).
Reverter o processo de despovoamento e avançar para a possibilidade de um desenvolvimento mais sustentável de regiões rurais e do interior dos países europeus e transformar essas “zonas perdedoras” (Mickovic et al., 2020), vítimas de uma crise territorial que se manifesta em problema demográfico, exige políticas públicas específicas para cada território. A atual situação de abandono requer políticas e programas que promovam e estimulem o investimento em processos produtivos que possam gerar uma gestão mais eficaz do território, estabelecendo uma dinâmica de produtores ativos (Santos et al., 2021), com a ocupação produtiva das terras - o que inclusivamente poderia contribuir para a redução do risco de incêndios florestais nas áreas rurais em despovoamento. Democratizar o acesso de agricultores produtores de pequena escala bem como promover a equidade territorial dos subsídios da PAC podem ser outros passos decisivos para o caso português e, por consequência, uma mais-valia para as populações que vivem dos baldios.
Os baldios são áreas sensíveis para a promoção de um desenvolvimento mais sustentável de toda a região em que se inserem, seja pelo vínculo social, como berço cultural e económico de um passado recente, seja pelas questões ambientais, a exemplo de serem espaços naturais de fauna e flora nativas, bem como de nascentes de diversos rios e cursos de água, vitais para a sobrevivência humana e o equilíbrio ecológico. Como consequência, centenas de baldios fazem parte de áreas de conservação da Rede Natura 2000, a exemplo do Parque Nacional da Peneda-Gerês, dos Parques Naturais do Alvão e da Serra da Estrela, entre outros.8 Contudo, os baldios contam com áreas propícias para o desenvolvimento produtivo, a exemplo da região norte, onde a Superfície Agrícola Utilizável (SAU) em terras comunitárias representa 37,8% no Entre Douro e Minho e 11,1% em Trás-os-Montes (INE, 2021: 23).
Mesmo com a disponibilidade de terras agricultáveis e de pastagens, entre outros recursos naturais, os baldios sofrem todas as consequências do despovoamento, ao mesmo tempo que suas comunidades têm de lidar com a falta de pessoas e de políticas públicas para viabilizar a gestão do território e para garantir a preservação das suas terras, que têm características de acesso aberto (Beltrán Tapia, 2015) por não existirem cercas ou muros. Tal condição permite a exploração por terceiros, que muitas vezes destroem as áreas de baldio, seja através do turismo sem cuidado com o ambiente (Luz, 2017), seja através de crimes ambientais com a extração ilegal das riquezas naturais como plantas, pedras ou outros bens naturais (Serra et al., 2017). Assim, manter um ambiente de desenvolvimento equilibrado e produtivo tanto na agricultura como na pecuária e na silvicultura - ou mais especificamente na sua paisagem - torna-se um desafio constante aos compartes dos baldios portugueses.
O ABMB, aqui analisado, representa uma amostra restrita sobre a realidade das terras comunitárias portuguesas, considerando o inquérito realizado no ano de 2000 que identificou 820 baldios nas regiões centro e norte com centenas de comunidades a usufruírem dessas terras (Baptista, 2010: 27), bem como por um estudo mais recente que identificou 664 Planos de Utilização dos Baldios homologados pelo ICNF em 2018 (Skulska et al., 2020). No entanto, a perceção e a organização de informação atualizada e mais completa sobre a realidade das terras comunitárias portuguesas ainda precisa de ser devidamente desenvolvida. Tal imposição consta na Lei dos Baldios n.º 75/2017, artigo 9.º, que prevê a organização pelo governo dos dados e informações sobre os baldios portugueses, com inscrição em plataforma eletrónica e de acesso público - plataforma essa que até à data de redação deste artigo ainda não está disponível.
No entanto, apesar de todas as restrições e condições adversas aqui discutidas, confirma-se que é possível criar dinâmicas de desenvolvimento em territórios rurais em situação de despovoamento, a exemplo do que pôde ser observado no ABMB e que responde às questões iniciais deste artigo. Os processos combinados de investimento público - como a política de agrupamento de baldios empreendida pelo ICNF em articulação institucional com a BALADI para o fortalecimento da gestão pelos compartes das suas terras comunitárias - promovem um resultado positivo de interação comunitária entre os baldios, o que resulta numa relação particular e combinada de política pública e de articulação institucional e impulsiona os compartes para a tomada de decisões coletivas de cuidado com a floresta e de defesa do território.
Assim, a construção de políticas públicas e programas que visem alcançar uma mudança substancial nos territórios desfavorecidos é essencial para uma transformação sustentável. Abordagens políticas e investimentos necessários a cada local - que possam partir não das limitações territoriais e humanas, mas sim dos recursos e capacidades que cada território e comunidade possuem - podem gerar desenvolvimento local e promover a qualidade de vida das pessoas, bem como diminuir a exclusão social (Barca et al., 2012).
Conclusão
O presente artigo trouxe um olhar alargado sobre a condição de territórios europeus interiores e rurais, caracterizados pelo despovoamento, envelhecimento e fraca dinâmica económica. Com este estudo, percebe-se a necessidade de aplicação de políticas públicas direcionadas ao processo produtivo dos territórios, bem como de ampliação de acesso a serviços públicos universais de acordo com as necessidades locais, para despertar o interesse e viabilizar a permanência de jovens nesses territórios - sendo que muitos deles estão atualmente em marcha para a extinção.
Este artigo também apontou que o desenvolvimento dos territórios de baixa densidade e em despovoamento, entre os quais os baldios portugueses, dependem de ações que promovam o fortalecimento comunitário, de forma a ampliar a autonomia e a governança democrática do território, a exemplo do estudo aqui apresentado sobre a estratégia de agrupamento de baldios. Abordagens políticas dessa natureza reafirmam a lógica comunitária, que tem o potencial de favorecer a conservação de recursos e de patrimónios locais, empregando racionalidades comunitárias e processos decisórios e não apenas um foco economicista e convencional (Copena Rodríguez, 2020: 91).
Assim, percebe-se que as mesmas características e necessidades dos territórios de baixa densidade estão contidas nas áreas portuguesas de propriedade comunitária, onde a procura acrescida por apoios e políticas públicas de gestão é fundamental para a manutenção, preservação e desenvolvimento desses territórios, tal como vem sendo implementado no ABMB por meio de um programa apoiado pelo ICNF.
A experiência do ABMB responde positivamente às questões colocadas para esta investigação: é, sim, possível a geração de processos de desenvolvimento de territórios em despovoamento, processos esses fundados em movimentos comunitários participativos, por meio de programas e políticas públicas promovidos pela articulação institucional entre os órgãos de Estado e as organizações sociais e comunitárias.
Contudo, o panorama vislumbrado através desta investigação mostra que, para que haja um efetivo desenvolvimento sustentável e uma coesão territorial tão cara à União Europeia, torna-se necessário que os problemas dos territórios de baixa densidade e em despovoamento sejam de facto equacionados e resolvidos. O acesso mais democrático e a aplicação mais equitativa entre os territórios rurais sobre os recursos e subsídios da PAC precisam de ser revistos para o próximo quadro plurianual financeiro 2023/2027, que soma, na Europa, 387 mil milhões de euros, dos quais aproximadamente 10 mil milhões de euros para Portugal. Trata-se de recursos públicos que poderiam contribuir favoravelmente para um melhor aproveitamento produtivo de territórios rurais em abandono quase completo e mitigar os incêndios florestais e outras catástrofes ambientais, por meio de uma ocupação planeada e induzida do território.
Por fim, este estudo deixa em aberto um conjunto de questões que podem ser temas de futuras investigações, tais como a perceção e análise crítica de políticas públicas territoriais relacionadas com as práticas de trabalho e vivência dos compartes, bem como a realização de novos estudos de casos em territórios de baixa densidade e em despovoamento que demonstrem a viabilidade de um desenvolvimento mais sustentável, tendo a ação comunitária como elemento central.
Financiamento
Os autores não receberam apoio financeiro para a investigação, autoria e/ou publicação deste artigo.
Agradecimentos
Agradecemos ao corpo diretivo e técnico da Federação Nacional dos Baldios (BALADI) pela colaboração e pelo apoio durante a realização desta investigação. Um agradecimento especial aos dirigentes do Agrupamento de Baldios de Mondim de Basto, pelas conversas e interações. Agradecimentos também à equipa editorial da Revista Crítica de Ciências Sociais, pelo acolhimento e publicação deste artigo sobre um tema tão importante na história de Portugal e que pode ajudar a pensar o futuro dos baldios. Agradecemos muito a Ana Sofia Veloso, pela dedicação e cuidado com a revisão do texto, tendo-o tornado mais claro e qualificado.