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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.131 Coimbra set. 2023  Epub 30-Set-2023

https://doi.org/10.4000/rccs.14759 

Artigos

Transgressão e limites: intercetar as alternativas de género na vida social

Transgression and Limits: Intercepting Gender Alternatives in Social Life

Transgression et limites : intercepter les alternatives de genre dans la vie sociale

1 Centro Interdisciplinar de Estudos de Género, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal, saramerlini@iscsp.ulisboa.pt


RESUMO

Partindo de uma análise crítica da transgressão de género, demonstramos a aplicabilidade do constructo transgressão/limite na análise da vida social. A apresentação de três possibilidades analíticas patentes nos eventos biográficos que introduziram disrupções ou desequilíbrios no curso de vida de uma subamostra de pessoas não binárias - i.e., que não se identificam exclusivamente com a feminilidade ou a masculinidade - a residir em Portugal e no Reino Unido, permite-nos discutir as fundações do género e a sua relação com o poder. Avançamos com uma proposta que permite compreender e explicar a realidade social de uma forma mais robusta através da apreensão de dois factos sociais: transgredir e limitar. Identificamos as premissas inerentes a esta abordagem e concluímos com quatro linhas de aprofundamento, passíveis de desenvolvimento na análise de outras esferas da vida em sociedade.

Palavras-chave: desvio; limites; questões de género; transgressão; vida social

ABSTRACT

Starting from a critical analysis of gender transgression, we demonstrate the applicability of the transgres-sion/limit nexus in the analysis of social life. The presentation of three analytical possibilities, visible in the biographical events that introduced disruptions or imbalances in the life course of a sub-sample of interviews of non-binary people - i.e., who do not identify exclusively with femininity or masculinity - living in Portu-gal and in the United Kingdom, allows us to discuss the foundations of gender and its relationship with power. We advance a proposal that enables us to understand and explain social reality in a more solid way by addressing two social facts: to transgress and to limit. We identify the essential premises in this approach and conclude with four deepening lines, which can be further developed in the analysis of other spheres of social life.

Keywords: deviance; gender issues; limits; social life; transgression

RÉSUMÉ

En partant d’une analyse critique de la transgression du genre, nous démontrons l’applicabilité du lien trans-gression/limite dans l’analyse de la vie sociale. La présentation de trois possibilités analytiques évidentes dans les événements biographiques qui ont introduit des perturbations ou des déséquilibres dans le parcours de vie d’un sous-échantillon de personnes non binaires - c’est-à-dire qui ne s’identifient pas exclusivement à la féminité ou à la masculinité - vivant au Portugal et au Royaume-Uni, nous permet de discuter des fondements du genre et de sa relation avec le pouvoir. Nous avançons une proposition qui nous permet de comprendre et d’expliquer la réalité sociale de manière plus robuste à travers l’appréhension de deux faits sociaux : transgresser et limiter. Nous identifions les prémisses essentielles de cette approche et concluons avec quatre lignes d’approfondissement, qui peu-vent être développées dans l’analyse d’autres sphères de la vie en société.

Mots-clés : déviance; questions de genre; limites; transgression; vie sociale

Introdução

A exceção à regra é importante, possivelmente mais importante do que a regra em si. Judith Butler (2021 [2020]: 51)

O problema da ordem ocupa os debates na teoria social, pelo menos desde o século xvii, quando Thomas Hobbes escreveu Leviatã (2009 [1651]) e desenvolveu um argumento sobre a teoria do contrato social, em que ficou célebre o seu paradoxo entre obediência e proteção (Butler, 2021; Pires, 2012). Naquela altura, a necessidade de obedecer a uma autoridade para ter segurança sobrepunha-se à liberdade de agir e à hipotética necessidade de revolução. Ainda que a influência desta obra ultrapasse o âmbito deste artigo, Leviatã mantém-se como um pilar estruturante das ideias que tendemos a associar à liberdade dos atos ditos individuais, definidos como imprevisíveis e diametralmente distintos de expectativas coletivas e mutuamente partilhadas. Representa um mote no desenvolvimento do prisma que temos aprofundado nos últimos anos, que possibilita uma outra análise da vida social, centrada no diálogo entre a transgressão e o limite.

Seguimos, em linha com Edgar Morin (2005 [2004]), o princípio dialógico que pensa a complexidade da vida social tendo em conta as múltiplas alternativas coexistentes à legitimação, sem pressupor a sua exclusão. Através desta abordagem (Dosse, 1997 [1992]; Levine, 2018), procuramos avançar no debate de modo a superar “velhas” dualidades como segurança e liberdade, constrangimento e ação, ordem e caos.

Para ilustrar as três possibilidades analíticas patentes na aplicação do constructo transgressão/limite, partimos dos resultados empíricos encontrados na investigação realizada.1

Tomamos como objeto de estudo os discursos e as vidas não binárias, não para tipificar os modos ideais como o género pode e/ou deve ser praticado (legítima ou ilegitimamente) mas sim para avançar com uma análise crítica das consequências dos limites genderizados na vida social. Este é um dos contributos possíveis no âmbito dos estudos de género, feministas e sobre as mulheres (Pereira, 2023) que toma o género como uma estrutura, na medida em que o género é concretizado através de um conjunto de práticas e os seus arranjos materiais (Merlini, 2019).

Os dados primários deste estudo foram recolhidos entre 2015 e 2017. Partindo de uma amostra de 65 entrevistas a pessoas que se autoidentificavam como transgénero, a residir em Portugal e no Reino Unido, extraiu-se uma subamostra de 19 pessoas que não se identificavam exclusivamente como femininas ou masculinas. Ou seja, todos os casos em que a trajetória de género (ibidem) pressupunha uma alternativa à “migração” de género, designadamente um percurso transgressivo de “oscilação”, de “negação”, de “transcendência” (Ekins e King, 1999, 2006) ou de “aproximação” (Merlini, 2020).

Demonstramos a aplicabilidade da ferramenta heurística transgressão/limite através de uma análise dos eventos narrados pelas pessoas não binárias que introduziram disrupções ou desequilíbrios no seu curso de vida. Conjugando a análise performativa (Butler, 1988, 2008 [1986]; Lloyd, 2015; Reed, 2013) com a análise crítica de narrativas (McNay, 1999a; Souto-Manning, 2014), aprofundamos os eventos biográficos recolhidos e ilustramos as experiências da transgressão narradas na primeira pessoa. Aceitando que se tratam de perspetivas particulares sobre acontecimentos específicos, a descrição e a iterabilidade (i.e., o carácter reiterado) destes eventos elucida, todavia, o diálogo transgressão/limite nas práticas de género.

Os episódios transgressivos narrados por cada participante surgem, de forma resumida, nas três primeiras secções do texto. Para evitar qualquer identificação potencial foram atribuídos pseudónimos e modificados os dados pessoais facilmente reconhecíveis. Em cada evento indicamos o pseudónimo, o ano de nascimento e o país de residência da pessoa entrevistada, mantendo-nos, obviamente, fiéis à sequência e descrição narrativa salientada por cada participante. Foram respeitados os pronomes pessoais solicitados por cada participante, recorrendo-se, entre outros, ao sistema “Ile” da linguagem de género inclusiva neutra ou não binária portuguesa (Merlini, 2020: 13-14). As expressões assinaladas entre aspas retas remetem, no caso das entrevistas em língua portuguesa, para a clarificação do respetivo significado e, no caso da língua inglesa, referem-se à contextualização ou mesmo aos termos usados, permitindo revelar a opção de tradução feita. Realizámos a tradução dos originais em inglês, tendo procurado respeitar o sentido mais próximo do significado contextual quando não existia um termo equivalente direto na língua portuguesa.

Como veremos adiante, questionar os tabus e limitações em que o género se funda permite-nos compreender melhor as relações complexas e intricadas das lógicas de dominação e das suas alternativas produtivas. A partir da demonstração desta possibilidade epistemológica dos processos e relações sociais (in)conformistas (ou não modais), concluímos com uma discussão das premissas teóricas e das questões emergentes, passíveis de aprofundamento para outros domínios da vida social e de orientação futura desta proposta.

1. Transgressão de género como revelação da alternativa

A transgressão pode ser considerada como uma revelação dos limites sociais (Cresswell, 1996; Stallybrass e White, 1986). É um processo que permite revelar a doxa, os esquemas de representação e as práticas normativas (e normalizadas) que tendem a governar os modos de ser e os tornar inteligíveis (limitados) socialmente. Considerando as abordagens ao conceito de transgressão na estética (Arte/Literatura) e na Filosofia, esta possibilidade analítica desconstrói os limites e mostra os caminhos do poder-saber (Foucault, 1981). Constitui-se como uma ferramenta para conhecer, um dispositivo que parte do excesso para revelar a alternativa.

Neste domínio, destacam-se dois episódios biográficos que ilustram como o diálogo entre transgressão/limite é revelador dos bastidores das “fachadas das estruturas sociais” (Nunes, 2001: 810) que reproduzem o género.

“Ela não se despediu...” (Xuxa, 1956, Portugal): para Xuxa, a arte do cross-dressing (CD) foi um processo de aprendizagem e desenvolvimento que amadureceu ao longo de muitos anos. Faz parte de grupos CD e organiza eventos que são participados por casais de “admiradores”. Conta-nos sobre o momento em que se sentiu validada na sua capacidade de transformação, quando estava no bar e se ausentou para se ir descaracterizar, voltando depois para reencontrar os casais:

[...] eu, como estou agora, e fui ter com eles outra vez. E encostei-me a eles no balcão, cheguei perto deles e continuei a falar. Eles olharam para mim... e afastaram-se. “Mas que raio?!” Olhei para a [nome], a moça do bar que estava do lado do balcão, e ela riu, riu, que ela conhecia-me, e começou a rir, a rir, e eu não percebi. E eu voltei a chegar-me perto dos casais e eles afastaram-se outra vez. E nisto, um dos casais perguntou à rapariga, “olha, a [Xuxa], foi-se embora? Ela não se despediu!”.

Esta revelação (parcialmente) pública da pertença não binária de género, da não exclusividade a quem só conhecia Xuxa na sua performance feminina destapa a ambivalência e plasticidade do desempenho do género. É no momento da descoincidência das grelhas interpretativas, do estranhamento das expectativas sociais de género, que observamos as suas possibilidades alternativas naquele contexto específico de interação.

“Não houve reconhecimento” (Lou, 1972, Reino Unido): para Lou, o maior obstáculo ao reconhecimento das pessoas não binárias é uma dupla ausência, tanto de “scripts” alternativos como de uma “consciência histórica” das existências não binárias, o que resulta frequentemente na pressão para corresponder a “rótulos”, para se “conformar” às narrativas e à exclusão mesmo nos contextos tidos como mais seguros e acolhedores. Numa ocasião em que participava de um grupo de apoio a pessoas transgénero masculinas, sentiu-se rejeitado/a por não ter realizado uma mastectomia, constituindo a sua corporalidade um fator de menor aceitação:

Há toda uma narrativa de positividade em torno da permissão e da afirmação explícita de que se querem estar nus/nuas, por favor, façam-no [if you want to be naked do please be so]. [...] Não se tratava de eu ter demasiada vergonha, de eu ter demasiado embaraço para me despir e verem o meu corpo, mas sim de “não me sinto bem-vindo/a a participar [I don’t feel welcome to join in]”. [...] A certa altura, eu fui e sentei-me junto do grupo [at the edge of the group] e assim, mas todos eles prosseguiram e ninguém moveu o corpo para me incluir. A linguagem corporal deles não mudou e não houve reconhecimento [acknowledgement]. Ninguém foi abertamente ou verbalmente rude, mas em todas as outras formas eu senti-me excluído/a. [...] eu não sei se eu tivesse tirado as minhas roupas a minha presença teria sido mais bem-vinda, mas aquele grupo em particular foi muito... quase um “somos homens agora”, portanto quase rebaixar o outro lado [letting the side down].

Lou foi alvo de vários episódios de discriminação ao longo da vida, por ser uma pessoa negra, bissexual e não binária. Mas conta-nos que o binarismo experienciado nesta ocasião foi decisivo para a sua definição de pertença ao género. Lou optou por se afastar do grupo, considerando que ainda há muito por desconstruir sobre a masculinidade e os significados associados à identificação “transgénero”. Para si, a valorização da “humanidade das pessoas” e a necessidade de discutir as “intersecionalidades” tornou-se ainda mais evidente.

Estes dois episódios permitem identificar os excessos que complementam a norma. Apontam para os processos pelos quais a ordenação e demarcação binária de género obscurece e previne as suas alternativas. Ao invés de essencializar e padronizar os desvios face às normas, de relativizar e normalizar os limites sociais (“quebrados”), estes atos revelam como transgredir constitui o limite, os modos como o atravessa e excede.

2. Transgressão de género como arma ou instrumento (des)construtivo

A par de uma revelação dos limites sociais, a transgressão pode ser analisada como um instrumento para a ação ou como uma arma. A perspetiva de transgredir como um meio para contrariar as formas dominantes de viver e pensar socialmente foi sendo promovida em diferentes contextos intelectuais e políticos (Merlini, 2019: 19-22) e é neste âmbito que a associação da transgressão ao progresso ganha maior importância (Jenks, 2003; Nagel, 2017). Precisamente porque a transgressão representa um desafio estrutural à contingência radical e à ordenação social (ou arquitetura) continuamente “performada” da humanidade, o “outro” excluído está sempre presente (Roberts-Hughes, 2017). Logo, mais do que um mecanismo progressista, a transgressão como arma é um resultado. Ou seja, a relação de alteridade entre determinadas formas de ordenação e as suas alternativas compreende-se melhor pelo saldo (explícito ou implícito) entre: a contenção (prevenção) e o excesso (ameaça) das fronteiras sociais. E esta construção das fronteiras é necessariamente precária porque não controla completamente os seus efeitos.

Para ilustrar a força da transgressão de género como “gatilho potencial”, destacam-se dois episódios biográficos contrastantes que demonstram como o “resultado” pode tanto reforçar como pode alterar o limite com o qual dialoga.

“Somos tantes” (Micha, 1987, Portugal): a experiência não binária foi vivida por Micha desde tenra idade. Durante muito tempo, relata-nos que não tinha uma linguagem, um modelo ou uma moldura para enquadrar o que sentia. À medida que as suas diferenças de trajetória de género foram fazendo sentido e que encontrou ferramentas para se explicar, conclui que o género é como um “mapa” que descreve as “rotas” e os “monumentos”, que é algo que se “escolheu mostrar”:

Então, o género para mim é isso, nós mostramos homem e mulher, mas isso não é realidade, é apenas uma forma de mostrar a realidade e é incompleta. Então, quanto mais eu falo, quanto mais eu digo “eu realmente não me identifico como mulher, eu sinto-me no meio, eu não me relaciono com os estereótipos” e as pessoas dizem “Yeah, eu também, eu nunca me senti assim” e tu ficas “A sério? Tu também? Então porque é que não fazes nada sobre isso? Porque é que fazes de conta [pretend] que estás nesse binário?” Eu gostaria que todes iles [all of them] dissessem “Isso é tudo mentira! Nós somos tantes [so many]!” [Risos].

Estes “reconhecimentos” da não binariedade, nos momentos em que revela a sua identidade de género a outras pessoas, representam ocasiões de emancipação para Micha, porque afirma o seu self e é aceite por significantes. Uma microrresistência, que implica Micha diretamente na luta pela visibilidade e inclusão, ao fomentar transformações nas relações de género. Esta possibilidade não nomeada só emerge quando se afirma, quando destapa um horizonte que antes estava latente.

“Vivo com alguma tensão” (Jim, 1976, Reino Unido): desde os 25 anos que Jim se autoidentificava como “masculino” quanto ao seu género. Quando foi entrevistado aos 40 anos, assumia-se então como “trans-masculino e/ou não binário masculino”. Embora seja líder de uma organização de apoio a pessoas transgénero e deseje afirmar a sua identidade de género de um modo visível e aberto - “ocupar um espaço” que seja mais não binário, como diz - conta-nos que “tem” de separar os contextos em que revela a sua identificação. Ao longo da sua trajetória de género, Jim sentiu a necessidade de se aproximar da masculinidade e considera que é frequentemente percebido pelas outras pessoas como um homem heterossexual, especialmente por viver com a sua esposa e crianças.

[...] vivo com alguma tensão, na verdade, porque existem algumas pessoas que são bastante importantes e que não sabem que sou trans. A escola, obviamente com o facto de ter de negociar a vida escolar [having to negotiate school life] é um espaço interessante, porque quero que eles saibam que sou trans. E eu disse-lhes que sou trans... É cedo para a escola saber o que isso realmente significa e como isso terá impacto na educação das minhas crianças [schooling my children] e da turma em que estão e coisas assim. Dizem aos seus amigos [friends] que o seu pai era uma menina e todas as outras crianças pensam que é hilariante e não é verdade, obviamente, porque não é possível. Há ali trabalho a fazer. Mas porque dirijo uma organização, não lhes enfiei isso pela garganta abaixo [rammed it down their throat], por isso sou um recurso, se o quiserem, mas não vos vou vender coisas sobre inclusão trans, apesar de ser isso que fazemos. Trata-se de uma abordagem suave [soft].

Esta “tensão” associada ao reconhecimento de Jim como transgénero é experienciada como um dilema e, simultaneamente, como uma oportunidade pedagógica. Numa lógica reconciliadora e adaptativa da sua transgressão de género aos contextos que frequenta (on a need to know basis), para Jim estes episódios de revelação e perceção proporcionam-lhe maior visibilidade e respeito. Entende, aliás, que as possibilidades de transformação do binário e da “masculinidade hegemónica” residem sobretudo na “feminização da masculinidade”. Contudo, o carácter contextual, versátil e contingente das suas transgressões condicionam-no frequentemente a desempenhar e afirmar de modo consistente a masculinidade.

Micha e Jim estão “conscientes” que o espaço dos possíveis, nas suas experiências de género, é quotidianamente limitado e estruturado através de linhas circunscritas e previsivelmente dicotómicas. A sua ação transgressiva tem efeitos “afirmativos” sobre esses limites, mas sobretudo com consequências para quem transgride, i.e., para si e não em si (Merlini, 2020).

O potencial de transformação reside, portanto, na alteridade formada entre o excesso e a prevenção da fronteira, desencadeando possibilidades e responsabilizando quem as afirma, implicando o binarismo, mas sem o afetar completamente, visto que a sua reprodução resiste à tentativa de refazer o limite social. O diálogo constante entre o limite (causa) e a transgressão (resultado) não implicam apenas uma temporalidade variável, sugerem também uma relação com dimensões espaciais e estruturais (potencialmente estruturantes). É, por isso, importante salientar que a transgressão como arma refaz necessariamente novos limites e novas ameaças. Para isso, precisamos de nos interrogar em que medida este(s) espaço(s) possível(eis) - o que de potencial apresenta uma transgressão - se reconfigura(m), transpõe(m) e circunscreve(m) como horizonte a cumprir.

3. Transgressão de género como projeto de reconstrução do limite, a resistência da alternativa

Uma análise atenta da transgressão tem de incluir a revelação do poder-saber (Foucault, 1981) e da ordem (hegemónica); o seu potencial desencadeado ou passível de instrumentalização; e, também, a ideia de projeto alternativo de reconstrução. Nesta última aceção, transgredir constitui-se como um problema moral (axiológico e patológico).2

Neste domínio, o conceito de transgressão tem sido central para disciplinas como a Criminologia, a Psicologia do Desenvolvimento, a Psicopatologia, a Medicina ou o Direito. Assume tendencialmente o sentido de “infração” e de “pequena ofensa”, tornando-se sobretudo um objeto de medição e da definição de prescrições que visam a manutenção da ordem e a normalização dos comportamentos. As modalidades de conduta humana e os modos como a transgressão deve ser interpretada a partir de conceções morais ganham aqui maior relevância, centrando-se no incumprimento de modelos valorativos, fortemente influenciados pelo ethos humanista judaico-cristão e pela idealização do “pecado” (Foucault, 1981; Lemert e Gillian, 1982).

Precisamente porque existem diferentes agendas e contributos em torno deste conceito, estes usos específicos da transgressão requerem um enfoque no reforço da norma e na procura de contenção dos seus excessos. Não podemos descurar a sua relação (estrutural, espacial e temporal) com os limites sociais, nem as implicações éticas subjacentes. Seja para promover uma determinada forma de vida (e de convivência) seja para reforçar ou pôr em prática a moral (legítima), a transgressão tem de ser abordada também como uma agenda a concretizar, com diferentes interesses e articulações.

Os dois episódios biográficos abaixo são demonstrativos desta possibilidade analítica por evidenciarem as hipóteses de reconstrução dos limites sociais, aquilo que se pode designar como a resistência da alternativa quando ocorre o diálogo transgressão/limite.

“Vou-me assumir desde o início” (Ana, 1997, Portugal): Ana foi alvo de experiências de demarcação da sua diferença de género ao longo de toda a sua vida. Fala-nos do seu processo, inacabado, de aceitação de si e de encontrar a linguagem para pensar o seu self. A sua visão “crítica” começou a ser mais aprofundada na adolescência, especialmente a partir dos 15 anos quando “descobriu” possibilidades alternativas de afirmação e pertença de género, além das binárias. Sofria bullying na escola secundária, por isso considera que a mudança de contexto educativo foi uma viragem importante:

[...] com os meus amigos sim, mas na escola nunca o fiz. Não tinha paciência e também o ano letivo ia acabar e já não ia estar ali, já não tinha que lidar com aquilo. E, entretanto, fui para a faculdade o ano passado [...] com a mentalidade de “vou-me assumir desde início” e é um sítio onde também ninguém me conhece e em que posso estar à vontade … [...] E, entretanto, ele [colega da faculdade] perguntou-me se eu preferia [Ana] e eu disse: “Sim, é o meu nome, etc.”. E ele comentou: “Já podias ter dito! Assim não te estávamos a chatear sempre com o nome pelo qual te chamamos…”. E, entretanto, não abordei essa questão com os outros - ele terá abordado - e foram-me perguntando: “Ah, tu preferes [Ana], certo?”. E eu disse sim e ok. E agora tratam-me todos por [Ana], tratam-me todos pelo nome feminino.

A integração num novo grupo, a aceitação por colegas e docentes, e a significativa tolerância percebida foram importantes para Ana. Estes momentos retratam uma maior afirmação e reconhecimento da sua pertença não binária. Para Ana, implicar-se na reconstrução do limite passa por promover a redefinição da linguagem e dos modos de codificação das pertenças de género, permitindo-lhe representar legitimamente a alternativa e demonstrá-la.

“Vou mencionar isso ao meu chefe” (Nelle, 1943, Reino Unido): para Nelle, as palavras podem ser veículos efetivos de mudança. Ao longo da sua trajetória assistiu a grandes mudanças, particularmente com a visibilidade e reconhecimento dos movimentos gay e lésbico no século xx. Sente-se por isso esperançada pelos sinais de “mudança histórica” que identifica no movimento transgénero. Com uma trajetória de género particularmente tardia, cuja maior afirmação ocorreu depois da reforma (aos 60 anos), Nelle é frequentemente alvo de tratamento diferenciado. Acha positivo quando as discriminações de género não ocorrem, mas entende que estas só irão acabar com um trabalho ativo para “mudar a sociedade”. Distingue entre as pessoas que discriminam “ativamente” e aquelas que questionam, que estão “genuinamente intrigadas [puzzled] com tudo isto”. Numa ocasião em que participou numa palestra, Nelle foi impedida pela vigilante de entrar na casa de banho:

[...] Ela disse “a não ser que se tenha um [certificado de reconhecimento de género], só pode ir à de deficientes”. Bem, eu disse “isso não é correto porque bloqueia [o WC] para pessoas deficientes”. Ela pediu-me desculpa, mas disse-me que “era isso que se tinha de fazer”. Então fui queixar-me à pessoa que tinha organizado esse evento, que eu conhecia, e ela foi tentar resolver as coisas [went off to try and sort things out]. [...] Eu disse [...] “só tem razões para implicar com as pessoas [pick people up on it] se elas se comportarem de forma inadequada na casa de banho”. [...] Ela disse “vou mencionar isso ao meu chefe” e o organizador fez uma queixa [...] nós recebemos um pedido de desculpas da parte deles.

Para Nelle este episódio foi muito importante para o fomento da mudança institucional e uma oportunidade pedagógica para transformar os limites sociais, particularmente porque impediu a prática da organização de vigiar o acesso das pessoas transgénero às casas de banho. Afirma que “muito da vida” passa por “negociar o seu lugar no mundo com outras pessoas”. Com a sua experiência de vida, salienta que “a mudança pode acontecer se trabalhares nisso”.

Para Ana e Nelle, os instrumentos de mudança do limite binário e da sujeição social ao binarismo são postos em prática através do diálogo e da negociação com o “outro” que questiona, que desconsidera ou que impede. O seu projeto de reconstrução dos limites das perceções, da tolerância e da aceitação de outras possibilidades de identificação e pertença ao género passa, portanto, pelo acionamento crítico da linguagem, pela demonstração da diferença e de outros modos de codificar o género nas interações sociais.

Esta demanda pela reconstrução não implica, porém, que a emancipação seja uma condição inerente, pois ainda que a progressividade possa ser alcançada, o seu principal efeito é a aproximação do limite social, o seu atravessamento. Neste domínio, ao contrário de uma normatização de um “novo” normal - patente nas “morais” que esvaziam e particularizam a normalidade através de uma espécie de universalização - as resistências alternativas têm, precisamente, de ser compreendidas a partir do que cruzam. Do que é contestado e de que modo essa contestação se associa a outras agendas, sejam elas marginais, subalternas ou dominantes.

A transgressão de género pode, assim, além do resultado de um limite ou da sua revelação, implicar uma via específica de (re)construção ética que nos permite (provisoriamente) assegurar ou abdicar de certos limites sociais. É, por isso, importante analisar em conjunto transgressão/limite, para compreender “como e quais verdades (se as houver) podem ser determinadas relativamente a que variações reais” (Lemert, 2003: 78; tradução própria). Precisamos conservar a insegurança que nos faz prevenir, sob pena de avançarmos irresponsável e inoportunamente para um abismo do qual não poderemos sair.3

O projeto epistemológico que toma a realidade ontológica e as suas lógicas estruturantes como “amorais” privilegia a coerência, em vez da correspondência ou da descontinuidade. Ou seja, a transgressão como projeto ocupa-se mais das ligações entre o que se inclui e exclui do legítimo do que com os graus de correspondência ou a celebração da contradição. E, para isso, precisamos de considerar o conjunto transgressão/limite como uma dualidade que dialoga e não como uma oposição.

4. Pensar o constructo transgressão/limite

Se formos fiéis à etimologia, transgredir implica atravessar, cruzar, não cumprir (Merlini, 2019). É um ato afirmativo e testemunhado, realizado por referência e na eminência do que foi estabelecido pela norma, regra, convenção, interdito, contrato, i.e., pelo que foi limitado socialmente. Já contido na velha máxima do movimento conhecido como Maio de 1968, que defendia ser proibido proibir, estava precisamente essa prática, da constituição de uma proibição, da limitação do limite social. Ao interagir com o ortodoxo, o diferendo torna-se a alternativa que “reabre no género o heterogéneo”, que rompe com o que antes estava unificado (Collin, 2008 [1989]: 46). Ao mesmo tempo que implica normativamente a sua desconstrução, oferece-se como reconstrução - paralela ou liminar. Este limite ilimitado é a fonte a partir da qual se (re)constroem novamente as linhas sociais que, por serem diferentes, parecem novas e reconfiguradas (Bourdieu, 1992; McNay, 1999b). Nesse sentido, mais do que estabelecer um novo conceito para observar a realidade coletiva, é preferível referirmo-nos ao nexo transgressão/limite.

Partimos da ideia de que as pré-configurações se estabelecem como uma configuração (Elias, 2002 [1989]) a ser ultrapassada e reconfigurada. No entanto, esta transformação não ocorre necessariamente pelo desejo ou pelos impulsos inatos - que tanto têm ocupado quem responsabiliza a pessoa transgressora ou coloca o ónus somente no plano individual e/ou no plano do inconsciente. É, antes, uma falha que ocorre porque está sempre contida no normativo, no expectante, nos efeitos de alteridade e reconhecimento dos processos sociais ou relacionais (Jenks, 2003, 2013; Roberts-Hughes, 2017).

Transgredir não corresponde nem representa o “oposto” da norma, mas sim o seu complemento, como uma espécie de raio ou trovão no meio da tempestade que não se conforma com modos dualistas de pensamento, precisamente porque fica “entre” ou “atravessa” o espaço dos possíveis (Bataille, 1987 [1957]; Foucault, 2009 [1994]).4

Por partir de premissas consistentes, este enfoque na mudança crítica poderá contribuir para a análise de outras esferas da vida social, especialmente quando o objetivo passa por desconstruir e compreender as relações de poder existentes, i.e., em falar a verdade ao poder (Patton, 2002 [1990]: 545). Procurámos demonstrá-lo a partir dos episódios biográficos de transgressão de género e inspirámo-nos na definição proposta na fase inicial de Foucault:

A transgressão não está, portanto, para o limite como o negro está para o branco, o proibido para o permitido, o exterior para o interior, o excluído para o espaço protegido da morada. Ela está mais ligada a ele por uma relação em espiral que nenhuma simples infração pode extinguir. Talvez alguma coisa como o relâmpago na noite que, desde tempos imemoriais, oferece um ser denso e negro ao que ela nega, o ilumina por dentro e de alto a baixo, deve-lhe, entretanto, sua viva claridade, sua singularidade dilacerante e ereta, perde-se no espaço que ela assinala com sua soberania e por fim se cala, tendo dado um nome ao obscuro. (Foucault, 2009: 33)

Esta proposta contribui para demonstrar empírica e teoricamente a necessidade de desviar o olhar de conceitos arcaicos e com pouco poder explicativo. Recorremos ao verbo pertencente à mesma família da palavra “desvio” de modo intencional, visto que o constructo transgressão/limite permite ultrapassar a insuficiência do desvio sociológico na descrição e explicação da realidade social (Aggleton, 1987; Miller et al., 2001).

Acautelando a subtileza associada ao processo de importar um conceito para a sociologia (Braidotti, 2008 [1990]), foi necessário aprofundá-lo, estabelecer o seu alcance e delimitar as suas fronteiras ontológicas e epistemológicas; testá-lo e perceber o que estamos a medir; descrever, explicar, compreender e avaliar a sua necessidade (Watt e van den Berg, 2002). Uma conceptualização passível de operacionalizar e compreender, mais rigorosamente, as fronteiras que as construções sociais tendem a produzir com frequência.

Neste sentido, o constructo transgressão/limite parte do pressuposto que as diferenças no modo como nos relacionamos com o mundo não são essenciais nem relativas, adotando uma forma de teorização nivelada (Fuchs, 2014; Lemert, 2003: 75). Apoia-se fundamentalmente na compreensão das relações de permanência e mudança de um determinado objeto de estudo, no (des)encontro e na inter-relação de dois factos sociais - transgredir e limitar - com outras facetas da vida social. Tendo por base o estudo prévio (Merlini, 2019), esta proposta foca-se na relação triádica limite-género-transgressão.

A partir de Butler (2021: 51) percebemos a importância que deve ser dada à exceção à regra, por ser possivelmente mais importante do que a regra em si. Defendemos que a espiral que resulta do diálogo entre transgressão/limite se baseia numa relação contingente que estrutura a coerência entre aquilo que inclui/contém e aquilo que exclui/excede. Portanto, distinguindo-se de uma contradição, a relação entre limite e transgressão desvenda a estrutura representativa das relações e o esforço empreendido para tornar os significados (e as morais) inteligíveis e socialmente coerentes. Tomá-la como um constructo beneficia a análise, porque ultrapassa a dedução fácil e simplista de que as transgressões são, em si mesmas, emancipatórias e/ou desviantes. Entendemos, aliás, que o seu carácter complementar tem maior importância, se quisermos compreender melhor as dinâmicas de legitimação e estruturação do que se pode e deve fazer em sociedade.

Em linha com Daniel Schubert (1995) a transgressão assume-se, portanto, como projeto científico, passível de expor a relação entre verdade e poder (Foucault, 1981). Uma análise crítica que contribui para tornar consciente a existência e a legitimidade das alternativas de linguagem e dos espaços ocupados por outras vozes (e fazeres). Enquanto ferramenta heurística de análise da vida social, o constructo transgressão/limite só faz sentido quando aplicado concretamente a um objeto de estudo.

Partindo de uma abordagem relacional e do paradigma das práticas sociais (Emirbayer 1997; Warde, 2014), avançamos com as premissas que se seguem.

1) Entre limite e transgressão há um intercâmbio mutuamente constitutivo:

1.1) ambos têm primazia na análise - são os resultados empíricos que nos permitem ver os graus de determinação existentes;

1.2) os valores emergentes da relação entre transgressão/limite são um ponto de chegada (e não de partida); é a partir da relação de alteridade e da aplicação concreta ao objeto de estudo que podemos ver as suas dimensões estrutural, temporal e espacial.

2) A relação entre a transformação e a permanência das transgressões/limites é sempre provisória (e não estática ou axiológica):

2.1) a relação entre transgressão e limite tanto se expande como se reforça através de processos sociais de ordenação e de demarcação particulares;

2.2) a continuidade/descontinuidade depende dos parâmetros de análise e do objeto de estudo;

2.3) os efeitos de absorção ou emergência de uma transgressão têm de ser interpretados segundo as (pré-)configurações e reconfigurações estabelecidas pelos limites sociais ao nível discursivo, distributivo e performativo.

No horizonte teórico que propomos, desenhamos a relação dialógica entre transgressão e limite numa espiral que se afasta do centro de um modo contínuo e se organiza através de dois processos principais - a demarcação (DEM) e a ordenação (ORD) das práticas - que estão interrelacionados por três modalidades específicas - fazer, desfazer e refazer. Tanto os processos como as modalidades são elementos da interdependência existente entre limitar e transgredir. Cada dimensão - estrutural, espacial e temporal - desta espiral compreende os três níveis de análise do poder em linha com Reed (2013): discursivo, distributivo e performativo.

O imaginário em que situamos a relação transgressão/limite apoia-se, portanto, numa lógica processual, no “reino ilimitado do Limite” (Foucault, 2009: 30), no desafio de compreender criticamente o diálogo social que circunscreve face a um objeto particular. Defendemos que é nesta relação de alteridade que podemos antever os resultados do diálogo entre transgressão/limite, as suas revelações e o seu potencial reconstrutivo. Deslocar a ideia de limite para um imaginário dialógico e crítico do horizonte transgressivo, contribui para repensar e conceber o humano, o outro, a diferença e o social através de um plano distinto.

5. A transgressão/limite na análise do género

Ainda que haja uma crescente problematização do conceito científico e das “categorias quotidianas” de género ao nível nacional e internacional (Pereira, 2023: 198), este permanece como uma lente fundamental para compreendermos os processos de regulação social e os efeitos do poder. A nossa proposta centra-se na relação mutuamente constitutiva que demarca o binário e o não binário de género e que ordena os sentidos das identidades de género, hierarquizando-os. Tal decorre do facto de todas as (im)possibilidades de (des)fazer e refazer o género socialmente se apoiarem em divisões dicotómicas e nos sistemas de classificação (tipológicos ou não), que reduzem e previnem as alternativas. Procurámos demonstrar - seguindo Connell (1987, 2009) e Pearse e Connell (2016) -, como é que as práticas cíclicas e divergentes se constituem mutuamente face à ordem de género, numa época histórica e em espaços específicos.

Em consonância com a proposta avançada, baseada nos episódios biográficos de transgressão de género, podemos agora considerar mais amplamente o diálogo estabelecido entre limite-género-transgressão.

Na dimensão estrutural, as posições distribuíram-se segundo performances que expressam e favorecem formações discursivas específicas (Foucault, 1981; Merlini, 2022). Estas formações discursivas emergiram de um campo de forças sociais complexas, cujas inter-relações nos permitem compreender os efeitos e a (re)produção das práticas sociais por entre as lógicas de dominação, conivência e subalternização. Por sua vez, na dimensão temporal, as narrativas refletiram a disseminação do poder e organizaram-se segundo um conjunto de eventos específicos e de trajetórias em relação às práticas de género legitimadas. Por último, na dimensão espacial, os campos em que se distribuíram as práticas de género estabeleceram as linhas (e os limites) sociais de reconhecimento e de inteligibilidade que possibilitam, ou não, uma pertença genderizada (ao binário ou a uma identificação atribuída).

Ao abordar a conexão amoral entre limite-género-transgressão, procurámos mostrar como as práticas sociais privilegiam, demarcam e ordenam as modalidades de (des)fazer e refazer o género. Este retrato, histórica e espacialmente situado, permite-nos assim questionar a legitimidade instituída e dominante. Uma melhor compreensão do que é valorizado e desvalorizado nos modos de fazer o género requer que se tomem esses valores como um ponto de chegada (e não como um ponto de partida). Dessa forma, considerámos como objeto os processos de demarcação e ordenação em que se fundamentam as práticas genderizadas; interrogámos a sua legitimidade e apontámos as alternativas, mostrando os diferentes matizes em que as diferenças se interligam com o poder; abordámos três possibilidades analíticas de compreensão das transgressões e limites sociais de género que emergiram do estudo das vidas e discursos não binários.

6. (I)limitar?

A crescente positivização do mundo torna-o pobre em estados de exceção. Byung-Chul Han (2014 [2010]: 41)

Defendemos que uma análise sociológica ou social (seja ela centrada em pessoas, grupos ou categorias sociais) não beneficia da lógica de pendor positivista implícita no estudo do desvio, que pressupõe o cumprimento da norma e do padrão. Pensar que os fenómenos e a realidade social são compostos por diferentes possibilidades e critérios permite-nos não só captar e apreender de modo mais rigoroso os processos e dinâmicas, como convergir na premissa de que os juízos e conclusões “morais” devem ser critérios analíticos a posteriori.

Os conceitos de transgressão e de desvio tendem a ser tomados como sinónimos ou equivalentes pela sua natureza aparentemente criativa e por pressuporem uma teorização relativista das normas e do normal. Porém, o processo social de atribuição e reconhecimento de um ato transgressivo não deve ser interpretado ou enquadrado nos mesmos moldes do que o ato desviante. Transgredir não está à margem nem antagoniza o limite. A transgressão está em relação estreita com o limite, faz o limite, não o quebra, porque é um ato que revela a norma, que é o seu resultado e que a (re)constrói. Enquanto o desvio só pode ser analisado face à ideia de uma normalidade ou padrão, a transgressão abre o leque de opções analíticas. Ao impulsionar a fundação dos limites, a transgressão constitui-se como parte do parâmetro e da escala padronizadora.

Por sua vez, existem também sobreposições nos modos como a transgressão e a liminaridade (Szakolczai, 2009) têm sido concebidas e usadas como ferramentas de análise da realidade social, mas estes conceitos não têm o mesmo potencial analítico. Ainda que confluam no carácter revelador e consequente da estruturação dos limites sociais, relacionam-se de modo distinto com estes e assumem significados diferentes. Enquanto a liminaridade está para o limite como um momento/espaço de suspensão, a transgressão interliga-se ao limite como um momento/espaço de manifestação. A transgressão resulta de um limite enquanto a liminaridade nos envia para um reajuste do limite, é a sua fusão e mistura. Ambos permitem compreender aspetos distintos dos processos de ordenação e demarcação dos limites sociais, da sua permanência e transformação. Mas na liminaridade o foco analítico centra-se nos efeitos ou impactos, no limbo, no desequilíbrio ou na suspensão provisória, pressupondo assim a análise da transformação do limite e não da sua permanência.

A transgressão é parte do constructo do limite e permite captar o dinamismo existente para lá das interrupções, por ser uma fração que concorre simultaneamente para fazer, desfazer e refazer os modos como ordenamos e demarcamos a realidade social. A crítica progressiva é uma componente necessária deste tipo de análise social, porque o ato transgressivo tanto pode resultar numa emancipação normativa como pode reforçar o referente normativo que intersecta.

Dar continuidade a esta proposta implica assim, em nosso entender, pelo menos quatro linhas distintas de aprofundamento. Em primeiro lugar, falta explorar a historicidade das relações normativas à luz do diálogo permanente com as transgressões, na transformação dos significados e processos sociais concretos e as suas relações de força. Em segundo lugar, atentar e reconhecer efetivamente com que limites e critérios circunscrevemos as transgressões sociais, de modo a empreender uma análise rigorosa e captar a sua relação amoral. Falta também, em terceiro lugar, indagar mais aprofundadamente sobre o lugar da tolerância coletiva e qual a sua relação com a doxa, a ignorância dos efeitos de regulação - aqui tomada no sentido de ausência de outros horizontes ou de condições interpretativas das alternativas. Por último, uma aplicação coerente deste constructo deve evitar cair na explicação óbvia e simplificadora das regras do jogo e/ou do recurso à metáfora estratégica para analisar os processos sociais de “regulação social” (Bicchieri e Muldoon, 2014; Burns e Flam, 2000 [1987]). Precisamente por existirem diversas especificações normativas, cujos critérios e interpretações sociais dependem dos contextos e interações, a metáfora lúdica e/ou tácita não é suficiente.

É importante avançar, passar de um paradigma de dominação para um paradigma mais fértil ou produtivo, capaz de apreender as diferentes configurações presentes na vida social. Sobretudo se quisermos pensar e captar o “poder-com” [power-with] (Pansardi e Bindi, 2021), os modos como o poder é conciliado em conjunto. Isso implica demonstrar rigorosamente os processos de hierarquização e ordenação dos limites sociais, conduzindo-nos à aceitação da inevitabilidade da falha e do incumprimento, bem como à apreensão rigorosa de um maior repertório dos estados de exceção (Han, 2014) existentes na vida social.

Declaração de conflitos de interesse

A autora declara não haver quaisquer conflitos de interesse.

Financiamento

Este artigo resulta da investigação de doutoramento realizada pela autora, desenvolvida no âmbito do projeto TRANSRIGHTS, coordenado pela Doutora Sofia Aboim e acolhido no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa), financiado pelo Conselho Europeu de Investigação no âmbito do Sétimo Programa-Quadro da União Europeia (FP7/2007-2013) / ERC Grant Agreement n.º 615594. Reflete apenas as opiniões da autora e a União Europeia não pode ser responsabilizada por qualquer uso que possa ser feito das informações nele contidas.

Agradecimentos

A autora agradece à equipa editorial e peer reviewers da Revista Crítica de Ciências Sociais bem como a Luís Xarez, Vasco Ramos e Tiago Carvalho pelos valiosos comentários a uma versão anterior deste texto e pelos diálogos que contribuíram para a sua melhoria. Está igualmente grata a Sofia Aboim pelo constante apoio e incentivo no desenvolvimento das ideias que se aprofundam no presente artigo.

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1 Este artigo resulta da investigação de doutoramento realizada pela autora (Merlini, 2019). A tese daí resultante apoiou-se numa estratégia metodológica de natureza qualitativa e comparativa de dois países, Portugal e Reino Unido, pioneiros no reconhecimento legal da identidade de género, através de uma análise documental e mediática dos discursos e de uma análise biográfica-interpretativa (Cohler e Hostetler, 2003; Wengraf, 2000). O estudo visou explorar como é que as circunstâncias socio-históricas se relacionam com as vidas individuais e particulares das pessoas não binárias e as condições de (re)produção do género no tempo e no espaço. O contributo aqui apresentado é um avanço e uma síntese original das ideias desenvolvidas previamente, nomeadamente em Merlini (2018, 2019, 2020, 2022).

2Apesar de neste subponto nos referirmos à ética em termos gerais, consideramos que a compreensão das diferenças intra e interdisciplinares da transgressão como problema moral beneficiará da distinção entre: meta-ética - fundações da ética e de como sabemos se algo é válido ou correto; ética aplicada - resposta a controvérsias particulares; e ética normativa - desenvolvimento dos princípios gerais da conduta certa ou “boa”, que pode ser virtuosa, deontológica, consequencialista, religiosa, etc. (Eckersley, 2008).

3Assumindo que não existe uma perspetiva impessoal nem um ponto de Arquimedes sob o qual as escolhas de uma determinada ética são avaliadas, importa referir que os aspetos eticamente relevantes das ações aqui consideradas remetem tanto para os motivos como para as consequências de uma determinada prática científica e seus princípios. Enquanto fontes e autoridades legítimas e legitimáveis, os contributos e conhecimentos científicos não são axiologicamente neutros. Contudo, devem ser responsáveis e (in)oportunos na crítica e abertura das alternativas possíveis. Ocupadas com o desenvolvimento e organização do social, caberá certamente às Ciências Sociais essa tarefa, como nos relembra Vandenberghe (2018). Falta considerar também as variantes “progressistas” e a instrumentalização da transgressão para a definição (e emancipação) de certos limites do “humano” em detrimento de outros. Defendemos por isso que a compreensão da moralidade e dos processos (objetivos e subjetivos) de norma-lização e norma-tivização deve partir epistemologicamente da análise da relação “amoral” entre transgressão/limite.

4Para uma discussão genealógica do conceito de transgressão e os seus potenciais analíticos consultar Jenks (2003, 2013), Roberts-Hughes (2017) e Merlini (2019).

Recebido: 29 de Novembro de 2022; Aceito: 20 de Julho de 2023

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