Introdução
Em 25 de abril de 2024 celebramos os 50 anos da revolução civil-militar que restituiu a democracia em Portugal. A Celeste Martins Caeiro devemos o gesto que eternizou o movimento bélico predominantemente masculino como a “Revolução dos Cravos”, simbolicamente feminina. Aquele singelo aceno de distribuir flores aos soldados marcou para sempre a presença das mulheres trabalhadoras na história da revolução democrática portuguesa.1
Inspirados nesse evento histórico, objetivamos realizar uma sociologia das ausências e das emergências das mulheres no movimento sindical português a partir das memórias de operárias e sindicalistas que testemunharam o movimento revolucionário de 1974.
Expandir o presente e contrair o futuro são os principais movimentos do processo de transição de uma racionalidade ocidental para uma racionalidade cosmopolita, proposta por Boaventura de Sousa Santos (2002). Para expandir o presente, a sua proposição é uma sociologia das ausências; para contrair o futuro, a sua aposta é uma sociologia das emergências. Segundo Santos (ibidem), esse duplo movimento de expansão do presente e contração do futuro é imprescindível para a valorização das experiências sociais desperdiçadas pela razão indolente da ciência moderna.2
Adicionalmente à sociologia das ausências e à sociologia das emergências, Santos (2002, 2007) também propõe um processo de tradução epistemológico intercultural passível de criar inteligibilidades mútuas entre diferentes tipos de experiências possíveis e disponíveis, sobretudo aquelas invisíveis à luz do conhecimento eurocêntrico: vivências culturais, políticas e sociais que integram um todo cosmopolita ocultado pelo imperativo totalizante e determinista da ciência ocidental.3
A contribuição fundamental da sociologia das ausências é demonstrar que “o que não existe” é, na verdade, produzido como “não existente” ou, mais precisamente, “como uma alternativa não-credível ao que existe” (Santos, 2002: 246). Assim, seu principal objetivo é converter ausências artificiais em presenças reais; para tanto, é imprescindível a interação com pluralidades, saberes e expectativas desperdiçadas pelas formas de conhecimento hegemônicas.
A sociologia das emergências, por sua vez, consiste em uma crítica epistemológica à concepção linear do tempo, ao progresso infinito e distante, ao crescimento constante e irrefreável. Nessa perspectiva, enquanto a sociologia das ausências é “a investigação das alternativas que cabem no horizonte das possibilidades concretas” (ibidem: 256), a sociologia das emergências refere-se fundamentalmente ao campo das expectativas possíveis e latentes.
No presente artigo, argumentamos que, entre a diversidade de experiências e vivências desperdiçadas pela monocultura científica eurocêntrica e androcêntrica, o desperdício dos saberes e das práticas femininas no campo dos estudos do trabalho, ainda hoje, constitui um objeto de reflexão demandante de uma sociologia das ausências e das emergências.
Neste sentido, consideramos que a crítica epistemológica de Santos (2022) ao pretenso universalismo científico ocidental também converge para as reflexões feministas de Donna Haraway, quando esta autora afirma que, para alcançar um saber científico, é preciso uma visão corporificada específica e particular, ou seja, um saber localizado, sem a pretensão de transcendência de limites e responsabilidades: “Desmascaramos as doutrinas de objetividade porque elas ameaçavam nosso nascente sentimento de subjetividade e atuação histórica coletiva e nossas versões ‘corporificadas’ de verdade” (2009 [1988]: 13).
Por conseguinte, nosso problema de pesquisa é compreender como se constituiu um sujeito coletivo feminino no movimento sindical português pós-Revolução dos Cravos capaz de, por um lado, construir uma agenda política que expandiu o presente, no sentido de incorporar e corporificar no ambiente sindical as experiências e vivências femininas que eram desperdiçadas pelos sindicatos; e, por outro, contrair o futuro, no sentido de incorporar e corporificar as questões de gênero em uma agenda laboral predominantemente orientada pelas questões de classe.
A investigação empírica foi realizada por meio de levantamento bibliográfico, pesquisa documental, consulta de depoimentos e entrevistas semiestruturadas, com intuito de identificar e analisar: i) o lugar reprodutivo e produtivo da mulher durante o salazarismo; ii) os principais enfrentamentos trabalhistas ao longo do período autoritário, com foco nas lutas relacionadas com o trabalho feminino; iii) a participação feminina no movimento sindical durante os anos finais do Estado Novo; iv) os principais debates sindicais com participação feminina na transição do regime autoritário para o democrático; v) o papel ocupado por operárias e sindicalistas no processo de retomada da democracia em Portugal.
É digno de nota que as entrevistas foram referenciadas na abordagem metodológica da História Oral, que busca sobretudo uma relação ética entre entrevistadores e entrevistados, na reconstituição dos acontecimentos históricos e sociais em referência (Menezes, 2010; Portelli, 2019). Ao todo, foram realizadas seis entrevistas com militantes sindicais que testemunharam os primeiros anos da transição política do regime autoritário para o regime democrático, em meados dos anos 1970.4 A seleção das sindicalistas, por sua vez, foi orientada pelo método nomeado “bola de neve”, que se vale de uma cadeia de referências pessoais indicadas pelas próprias entrevistadas, no que se refere ao tema central das entrevistas (Biernacki e Waldorf, 1981; Vinuto, 2014).
Por fim, também foram selecionados e analisados depoimentos de operárias e sindicalistas disponíveis nos acervos documentais (físicos e digitais) do Centro de Arquivo e Documentação da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses - Intersindical Nacional (CAD - CGTP-IN) e do Centro de Documentação e Informação da Universidade Popular do Porto (CDI-UPP).
1. A fabricação da subalternidade feminina no Estado Novo
Historicamente, entre os grupos sociais oprimidos, as mulheres se encontram na base inferior da pirâmide opressiva, suportando o peso da violência física e psicológica das hierarquias de gênero (D’Arthuys, 1976; Scott, 1986). Neste sentido, conforme observam Pamela Peres Cabreira (2020a, 2020b) bem como Virgínia Baptista e Paulo Marques Alves (2019), a compreensão do conceito de gênero é de fundamental importância para o questionamento das perspectivas tradicionais sobre o mundo do trabalho e para a ampliação da própria História.
Em Portugal, como em outras sociedades patriarcais, os alicerces do Estado autoritário foram erigidos na subordinação da sociedade ao Estado, do trabalho ao capital, das mulheres aos homens. Esta última relação de subalternidade, que nos interessa particularmente, foi assegurada na própria Constituição de 1933,5 a partir do estabelecimento de uma exceção normativa na aplicação do princípio formal da igualdade jurídica:
A igualdade perante a lei envolve o direito de ser provido nos cargos públicos, conforme a capacidade ou serviços prestados, e a negação de qualquer privilégio de nascimento, nobreza, título nobiliárquico, sexo, ou condição social, salvas, quanto à mulher, as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família, e, quanto aos encargos ou vantagens dos cidadãos, as impostas pela diversidade das circunstâncias ou pela natureza das coisas. (Artigo 5.o, parágrafo único; grifo nosso)
A referida exceção tornou-se o princípio fundamental da institucionalização da desigualdade de gênero na sociedade portuguesa, até o advento da Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974. Assim, no que se refere ao arcabouço constitucional que regula as relações de gênero, o salazarismo representou o retorno das mulheres ao enquadramento jurídico do período pré-republicano (URAP, 2021).
Confinada ideologicamente ao ambiente doméstico, a “fada do lar” deveria, em todos os seus afazeres, submeter-se ao comando do “chefe de família”. Neste sentido, o resgate salazarista do Artigo 1185.º, Secção VIII, do Código Civil Português, de 1 de julho de 1867, era absolutamente claro, no sentido de afirmar que à mulher cabia “prestar obediência ao marido”.6
À mulher casada não restava sequer a privacidade das suas correspondências pessoais, as quais poderiam a qualquer momento ser legalmente abertas pelo marido, tal como previa o Artigo 461.º, parágrafo 1.o, do Código Penal Português, de 16 de setembro de 1886: “a disposição deste artigo não é aplicável aos maridos [...] quanto às cartas ou papéis de suas mulheres, filhos ou menores que se acharem debaixo da sua autoridade” (grifo nosso).7
Na esfera do trabalho, a mulher estava igualmente subjugada aos imperativos patriarcais. Assim, ainda que legalmente não necessitasse de autorização do cônjuge para assinar um contrato laboral, este poderia rescindir a qualquer momento o vínculo empregatício da esposa. Em outras situações, quando a política da empresa não permitia que casais trabalhassem juntos, a prática comum era a demissão da mulher.
Na origem de todos estes códigos legais opressivos das relações de gênero estava a concepção estado-novista da família “como base primária da educação, da disciplina e harmonia social, e como fundamento de toda a ordem política” (Constituição de 1933, Artigo 11.o).8
De acordo com essa representação política e ideológica, que coloca a família no centro da provisão do bem-estar individual e social, o papel primordial da mulher era reprodutivo e apenas excepcionalmente produtivo.9 Contudo, parafraseando Santos (2007), na prática havia uma “linha abissal” entre a realidade das mulheres trabalhadoras portuguesas e o conceito de mulher idealizado - mas não realizado - pelo regime salazarista.
Neste sentido, a inserção feminina na esfera do trabalho durante o Estado Novo precisa ser compreendida como inerente a um marco institucional autoritário patriarcal que, de um lado, impunha severas limitações e obstáculos à busca de autonomia econômica, política e social por parte das mulheres e, por outro, as submetia a um severo regime de opressão política e exploração econômica.10
Nas próximas seções deste texto realizamos uma análise da trajetória familiar, profissional e sindical de mulheres que sofreram esse duplo processo de opressão política e exploração econômica, mas que, ainda assim, foram capazes de se constituírem como agentes políticos e sociais de processos emancipatórios, combatendo e superando a herança salazarista nas relações familiares, trabalhistas e sindicais.
2. A família como o lugar invisível da mulher
Em Portugal, assim como em outros países que configuram o chamado Modelo Social do Sul (Espanha, Grécia, Itália), a família assume o papel central na provisão do bem-estar social dos indivíduos. Internamente à família, por sua vez, a mulher exerce o papel de principal provedora dos cuidados parentais. Como vimos anteriormente, essa centralidade da figura feminina na vida doméstica foi romanticamente representada no imagético salazarista da “fada do lar”.
Sílvia Portugal (2000: 81) registrou com acurácia que “as relações que se estabelecem entre Estado, família, comunidade e mercado são fundamentais para perceber o perfil político-ideológico do Estado”. No que se refere especificamente à construção ideológica corporativa do Estado Novo, podemos acrescentar que o agregado familiar era considerado a própria célula mater da comunidade política.
No plano das relações domésticas, assim como o Estado autoritário - e, em larga medida, como um espelho deste -, o grupo familiar também tinha o seu líder supremo. Ao “chefe de família” cabia a direção de todos os negócios domésticos e o comando inquestionável das mulheres, filhos e agregados. À mulher, por sua vez, cabia garantir a reprodução da vida doméstica. No entanto, ao receber essa “honrada” função, não deveria exercê-la com autonomia, mas subordinando-se às ideias e vontades do marido.
Assim, tal como em outras sociedades patriarcais, as mulheres portuguesas nasciam com uma herança maldita: o legado do trabalho invisível, do trabalho que nunca acaba, do trabalho não pago, do trabalho doméstico, naturalizado como única alternativa e idealizado como única vocação. Esta herança era transmitida de mãe para filha e desde muito cedo as meninas apreendiam que aquele era o seu destino. O pai trabalha, a mãe cuida. Um cuidar que, na esfera doméstica, não era trabalho, mas a representação ideológica de uma missão, vocação, “fado”.
Contudo, não obstante o discurso de familiarização do feminino, o Estado português nunca se empenhou efetivamente na “desmercadorização” da mulher (Portugal, 2008: 15). Pelo contrário, o trabalho invisível (reprodutivo) tornou-se uma preparação para o trabalho visível (produtivo). Desde muito cedo - aos 10, 11, 12 anos - as mulheres já se dirigiam para o trabalho em outras casas, nos campos, nas fábricas e, por vezes, no próprio Estado.
O aprendizado e a disciplina das tarefas domésticas em seus próprios lares se convertiam em habilidades e competências bem-vindas, mas não bem pagas, para o trabalho assalariado fora de casa. A exemplo da experiência de vida da carquejeira Palmira de Sousa, que começou a trabalhar aos 10 anos, apanhando carqueja na beira do rio com a mãe. Trabalho exaustivo, repetitivo, mal remunerado, em condições precárias: “Andavam 11 mulheres na carqueja. Não tinha horário de trabalho, trabalhava até à noite e mesmo de noite”.11
Direitos sociais, contratos trabalhistas, condições dignas de trabalho eram “inexistências” na realidade dessas mulheres, conforme também relata Esmeralda Joaquina Faria Mendes, que iniciou sua vida laboral aos 14 anos, em uma confeitaria: “Entrava às 8 horas e saía às 18 horas. Tinha uma hora para o almoço. Não tinha contrato, não tinha férias, mas naquela altura quem falava nisso?”.12
Generalizada em toda a sociedade, a exploração do trabalho feminino infantil não se restringia ao comércio informal e às fábricas, pois se estendia também às escolas, igrejas e outras instituições públicas e privadas. Maria Gonçalves Ferreira, aos 11 anos, realizava trabalhos braçais na própria escola. Cumpria uma jornada das sete da manhã à meia noite, para garantir a continuidade dos estudos em troca de limpeza das salas de aula e das camaratas e serviços de cozinha: “O contrato foi feito para eu ter aulas, continuar o segundo ano. Só que ao fim de seis meses eu não tinha ido a uma única aula”.13
Estes depoimentos são representativos de toda uma geração de mulheres trabalhadoras que viveram sob o Estado Novo e experimentaram condições de vida dramaticamente distintas daquelas romantizadas pelo salazarismo. Experiências e vivências desperdiçadas na construção ideológica da “fada do lar”. Ausências socialmente construídas de forma metódica pela opressão política autoritária, que relegava essas mulheres, ainda crianças, à superexploração econômica da sua força de trabalho ou à pura e simples exclusão social.
A história repete-se em depoimentos consultados e entrevistas concedidas em Coimbra, Leiria, Lisboa, Marinha Grande, Porto, São João da Madeira e na região do Alentejo.14 A infância pobre, a dupla jornada, os baixos salários, os contratos “sem descontos”, a condições precárias de trabalho nas “casas brasonadas”, nos campos ou nas fábricas.
Há experiências de classe semelhantes registradas em importantes obras sobre as condições de vida dos trabalhadores e das trabalhadoras no período anterior à Revolução dos Cravos, desde pesquisas acadêmicas como os livros Entre a fábrica e a comunidade (Estanque, 2000) e Proteção e direitos das mulheres trabalhadoras em Portugal (Baptista, 2016) a produções ficcionais como Memória e vida de tempos de Abril (Maurício, 2016), entre tantas outras.
De fato, como também observa Portugal (2008: 10), diferentemente das trajetórias de construção do modelo de Estado de bem-estar social verificadas em outros países da Europa continental, o Estado autoritário português impôs à sociedade civil, notadamente às famílias portuguesas, a obrigação de “criar seus próprios sistemas sociais de apoio”. Imposição particularmente penosa para as mulheres, duplamente obrigadas ao trabalho, reprodutivo na esfera doméstica e produtivo na esfera do mercado.
Na próxima seção deste artigo, abordamos a insurgência feminina contra as condições econômicas, políticas e sociais (inclusive sindicais) completamente desfavoráveis no que se refere às relações de gênero durante a vigência do salazarismo.
2. O trabalho como espaço de insurgência
A sociologia das ausências e a sociologia das emergências também constituem uma sociologia das insurgências. Trata-se, neste sentido, de um referencial teórico metodológico que compreende uma “ecologia dos saberes”, elaborada coletivamente a partir da resistência ativa de grupos sociais invisibilizados e subalternizados a diferentes formas de exploração econômica e opressão política (Gomes e Carvalho, 2020; Grosfoguel, 2011; Santos, 2006).
Durante o Estado Novo, a ideologia salazarista construiu uma representação do feminino limitado ao espaço doméstico, à família, ao marido, aos filhos. Contudo, essa construção ideológica estava em flagrante contraste com a efetiva condição de vida das mulheres trabalhadoras, operárias urbanas ou agrícolas que, longe da mítica figura da “fada do lar”, desdobravam-se em exaustivas jornadas de trabalhos produtivos e reprodutivos.
Assim, já nos seus primeiros empregos, em sua grande maioria precários, essas mulheres conscientizavam-se do tratamento desigual que recebiam, ora por serem crianças, ora por serem mulheres. E, ao lado de homens igualmente explorados, ou mesmo liderando esses, insurgiram-se contra as suas insalubres condições de vida e trabalho. Parafraseando o título da obra de Danièle Kergoat (2018): “Lutar, dizem elas...”
Neste ponto, é importante ressaltar que a extrema violência física e psicológica da ditadura do Estado Novo contra os seus opositores não conseguiu sufocar as lutas operárias e camponesas. Trabalhadoras do campo e da cidade tomaram parte em centenas de mobilizações realizadas em todo o país, durante a vigência do salazarismo, especialmente naqueles setores econômicos com expressiva presença feminina, como a indústria corticeira, conserveira, têxtil, vidreira, entre outras.15
Às mulheres coube ainda não apenas estar ao lado dos seus companheiros na luta por melhores condições de vida e trabalho, mas também proteger a vida daqueles que estavam presos ou foragidos e, na ausência destes, sustentar suas próprias famílias. Assim, o “cuidar doméstico” apregoado pela ideologia salazarista converteu-se em um “cuidar político” que se opunha ao próprio regime autoritário.
Na década de 1940, diante da escassez de produtos alimentícios básicos, como pão e azeite, camponesas e operárias estiveram à frente dos principais movimentos pelo fim dos aumentos dos preços, fim dos despedimentos, aumento dos salários e pela paz. Ao lado de bandeiras mais gerais, como o slogan “Temos fome, queremos comer”, as mobilizações camponesas e operárias dessa década também contemplavam demandas trabalhistas objetivas, como o aumento dos salários, a redução da jornada de trabalho, o fim das demissões, o fim do atraso nos pagamentos, o fim do endividamento das famílias e a ampliação da idade máxima para as crianças frequentarem a creche (URAP, 2021).
Em todas essas manifestações, operários e operárias, camponeses e camponesas, enfrentaram juntos a violência do governo e dos patrões, de um lado, e a indiferença da igreja e dos sindicatos, de outro. Na década seguinte, em maio de 1954, o assassinato da camponesa Catarina Eufémia, em uma marcha de trabalhadores agrícolas, tornou-se o maior símbolo da resistência das mulheres trabalhadoras ao salazarismo: “Há um lado feminino na luta contra o fascismo” (ibidem).
No crescente setor industrial, o enfrentamento dos trabalhadores chapeleiros, corticeiros, sapateiros, vidreiros e do vestuário ao regime salazarista não foi menos intenso, especialmente em setores industriais com forte presença feminina, em categorias em que as mulheres constituíam a maioria dos empregados, ou seja, nos postos de trabalho de menor qualificação e, consequentemente, de menor remuneração.
Em larga medida, as reivindicações ocorriam em torno de direitos humanos fundamentais, como o fim dos maus tratos, castigos físicos, atrasos nos pagamentos, descontos abusivos ou da intensificação da jornada de trabalho. Destacam-se ainda, tanto entre os trabalhadores urbanos como rurais, a mobilização para que os sindicatos oficiais se posicionassem diante das reivindicações e mobilizações trabalhistas (URAP, 2021).
São essas e tantas outras as histórias de resistência da classe trabalhadora portuguesa à exploração econômica e à opressão política imposta pelo Estado Novo, sobretudo em relação aos trabalhadores mais pobres. Em todas essas lutas, a insurgência das mulheres foi de fundamental importância no confronto ao governo autoritário e ao empresariado urbano e rural. Podemos, portanto, afirmar que também houve um lado feminino operário na luta contra o fascismo.16
Toda essa mobilização feminina é demandante de uma abordagem epistemológica que reconheça a relevância da luta emancipatória das mulheres no processo de redemocratização e na retomada do sindicalismo em meados da década de 1970. Para além da fabricada invisibilidade doméstica, as mulheres portuguesas protagonizaram um importante movimento de insurgências individuais e coletivas que deve ser objeto de uma sociologia igualmente insurgente. Foram movimentos visíveis e invisíveis, marcados por resistências e concessões, avanços e retrocessos, conquistas e derrotas de uma longa trajetória de luta política e social contra o patriarcado nas suas mais diferentes formas de manifestação familiar, religiosa, patronal, sindical e governamental.
Em síntese, a sociologia das ausências e das emergências, enquanto sociologia das insurgências, privilegia em sua análise os saberes insurgentes produzidos nas lutas sociais por sujeitos políticos historicamente invisibilizados e subalternizados, entre eles, sem dúvida alguma, as lutas protagonizadas pelas mulheres trabalhadoras devem ocupar um papel central nos estudos de uma sociologia do trabalho igualmente insurgente.
3. A emergência do feminino no movimento sindical
Desde os primórdios da organização sindical, as mulheres sofreram e ainda sofrem os efeitos da exclusão, da segregação e da sub-representação. Por esse mesmo motivo, em muitos países, passaram a se auto-organizar dentro e fora dos sindicatos e, consequentemente, a serem percebidas como uma possível ameaça ao poder masculino predominante nas entidades sindicais (Crain, 1993; Ferreira, 2002; Ledwith, 2012; Saffioti, 2013).
No caso português, práticas governamentais, empresariais e sindicais - em flagrante contradição com a crescente inserção feminina na esfera do trabalho (Ferreira, 1998) - impuseram às mulheres “linhas abissais” entre a sua condição de trabalhadoras e a sua participação na vida sindical. O fato é que até à Revolução dos Cravos - e mesmo depois dela, como demonstram Virgínia Ferreira (2002) e Paulo Marques Alves (2017) -, os sindicatos excluíam sistematicamente as mulheres das suas fileiras e do próprio mercado de trabalho.17
Nessa perspectiva analítica, o Estado autoritário e o aparato sindical convergiram na prática econômica, política e social de exclusão, segregação e sub-representação feminina. Em nome da “defesa da maternidade e do interesse da nação”, de um lado, e dos trabalhos que pela “sua natureza pertenciam aos homens”, de outro, foi criado todo um arcabouço jurídico-institucional para restringir, ou até mesmo proibir, a presença das mulheres em determinados postos de trabalho dos setores público e privado.18
Assim como os seus congêneres no continente europeu, o sindicalismo português nasceu como uma associação de trabalhadores predominantemente masculina, que legitimava em suas bandeiras reivindicatórias, sobretudo salariais, práticas discriminatórias em relação ao sexo feminino.19 A discriminação sofrida pelas mulheres na esfera do trabalho produtivo e do próprio sindicalismo, por sua vez, acabou por desencadear um tipo de atuação que teve como consequência aprofundar as desigualdades entre homens e mulheres, em relação aos salários, às condições de trabalho e, principalmente, à própria militância sindical.
Segundo Alves (2017), dois tipos de argumentos sustentavam as medidas discriminatórias no interior do sindicalismo em relação às trabalhadoras. O primeiro tinha um caráter paternalista e sustentava o dever masculino de proteger as mulheres das péssimas condições de trabalho e da superexploração econômica. O segundo alegava a incapacidade das mulheres para o exercício das atividades profissionais qualificadas e a suposta inferioridade do seu trabalho, a qual, não obstante, contribuiria para o rebaixamento dos salários pagos aos homens.
Contudo, os obstáculos econômicos, políticos e sociais erguidos para dificultar e inviabilizar a participação feminina na esfera do trabalho não foram suficientes para conter a emergência das mulheres na vida e na organização sindical. A crescente participação feminina no mercado de trabalho e a sua consequente organização sindical foi registrada, por exemplo, no depoimento da enfermeira Maria Augusta de Sousa, que abordou a importância do ativismo das mulheres nas organizações de base dos trabalhadores portugueses no período da Guerra Colonial: “Da parte feminina, a situação era mais estável e, portanto, normalmente tínhamos ali uma forma de desenvolvimento do movimento bastante mais estável do que da parte masculina”.20
Com a expansão da participação feminina no mercado de trabalho, não tardou para que essa presença também se transformasse em uma emergência das mulheres na vida sindical. As péssimas condições de trabalho, os baixos salários, o assédio da chefia predominantemente masculina, mesmos nos setores econômicos mais feminizados, constituíram fatores estruturais que impulsionaram a organização feminina, primeiro no local de trabalho e, posteriormente, nas entidades sindicais.
Neste ponto é importante registrar que, embora invisibilizadas na literatura sindical e nas próprias publicações oficiais dos sindicatos, as mulheres participaram ativamente do processo de retomada das entidades associativas de classe e na formação das novas direções. Em diversos setores estiveram ao lado dos homens - ou mesmo à frente deles, em posições de liderança - em debates cruciais para a reconfiguração do sindicalismo português no pós-1974, como as discussões sobre as eleições sindicais, a organização vertical ou horizontal das entidades, a unidade ou pluralidade sindical, e a relação dos sindicatos com os partidos políticos e com as centrais sindicais (CGTP-IN, 2014).
Não obstante, seria um equívoco compreender o processo de participação feminina no pós-Revolução do Cravos como um desenvolvimento progressivo e harmonioso de inclusão das mulheres na vida sindical. O depoimento concedido por Maria Emília Reis Castro ao CAD - CGTP-IN é um testemunho revelador dos desafios enfrentados pelas sindicalistas para assumirem a direção das suas entidades. Na constituição da primeira direção do sindicato dos vestuários no pós-Revolução dos Cravos, as mulheres precisaram afirmar a sua autonomia para além das orientações políticas e ideológicas predominantemente masculinas do movimento sindical: “Eu disse assim: ‘Então, vocês vêm dar ordens à gente? A gente não vai fazer eleições? Não, desculpem, nós fazemos eleições. Desculpem lá, isto é independente dos partidos, nós fazemos eleições’”.21
Igualmente importante foi a participação das mulheres na acirrada disputa em torno da direção do Sindicato dos Químicos de Lisboa no pós-25 de Abril de 1974, tal como registrado no depoimento de Maria do Carmo Tavares: “havia muitas mulheres envolvidas nesta luta, principalmente as mulheres da Knorr, que deram muitos contributos; gente da Lever; mulheres da Transcodan; a Antónia, que trazia um conjunto de mulheres do sector da indústria plástica”.22
Portanto, para além de um imaginário romantizado da emancipação feminina no pós-1974, esses depoimentos revelam uma intensa luta das mulheres trabalhadoras para se afirmarem no mundo sindical. Em entrevista que nos foi concedida sobre os primeiros anos da Revolução dos Cravos, a sindicalista vidreira Antónia23 observa que se tratava de um período em que, não obstante todos os avanços políticos e sindicais, ainda predominava o “machismo”.
Percebe-se, portanto, que, se por um lado, o movimento revolucionário de 1974 significou maior abertura para a participação democrática em diversas dimensões da sociedade portuguesa - principalmente para os militantes políticos e sindicais do sexo masculino -, por outro, ainda havia muitos desafios a serem superados para que as mulheres pudessem emergir efetivamente como lideranças políticas e sindicais.
Neste ponto, é digno de nota que, ao longo das entrevistas realizadas em nossa pesquisa de campo, a persistência da cultura patriarcal nas entidades sindicais foi apontada como uma das principais causas limitadoras da expansão da participação feminina no movimento sindical, mesmo em setores em que as mulheres já estavam há muito tempo em cargos dirigentes dos sindicatos.
Dirigentes sindicais, como Joana,24 relataram, por exemplo, episódios em que militantes de base precisavam esconder dos maridos sua participação nas atividades dos sindicatos. Referindo-se a episódios semelhantes, Acácia,25 por sua vez, ressalta que não bastava abrir as portas dos sindicatos para as mulheres: era preciso garantir condições objetivas para sua participação política.
Na mesma linha de argumentação, apontando para os fatores estruturais que ainda limitam a participação sindical das mulheres, Inês26 complementa: “Eu insisto, é também as condições materiais e objetivas nas empresas, na sociedade, nos apoios à família que não permitem que a mulher tenha a mesma disponibilidade”.
Em larga medida, esses depoimentos corroboram os achados de pesquisa de Portugal (2008: 26), que afirma que o modelo de proteção social familista predominante na sociedade portuguesa “tem custos elevados para as mulheres”. Conforme observa a autora, a divisão sexual do trabalho não pode ser entendida apenas em termos meramente econômicos; é preciso também destacar a sua dimensão social e simbólica.
O fato é que, mesmo nos sindicatos, foi naturalizada a ideia de que o cuidado doméstico é uma responsabilidade da mulher. Consequentemente, naturalizaram-se, também, as desigualdades de gênero no ativismo sindical e, sobretudo, na composição dos cargos de mando, os quais exigem um tempo de dedicação incompatível com a responsabilidade do trabalho doméstico que as mulheres sindicalistas continuam a exercer ou a serem responsáveis por supervisionar (e quando delegados a outrem, na maioria das vezes, são-no a uma outra mulher da sua própria rede familiar).
Nas palavras de Josefina, uma eminente liderança da CGTP-IN, em entrevista que nos concedeu:
As mulheres em Portugal são a maioria, são a maioria dos trabalhadores sindicalizados e são a maioria dos delegados sindicais que existem nas estruturas filiadas da CGTP, portanto, faz todo o sentido que as mulheres assumam as tarefas e funções de maior responsabilidade. É um percurso que se está ainda a fazer. Sabemos todos que não é fácil, até porque ainda temos uma sociedade muito machista, em que as mulheres têm o papel que continua a ser colocado de terem funções com mais peso em casa. Portanto, conciliar isto é sempre mais difícil.27
Assim, podemos concluir que os achados de Portugal (2008), no que se refere à repartição das responsabilidades domésticas entre homens e mulheres da classe trabalhadora, também são aplicáveis às mulheres sindicalistas, quais sejam: i) a desigualdade sexual na repartição das tarefas e das responsabilidades e ii) a importância das redes femininas de relações sociais.
No tocante a este último ponto, se as redes de relações femininas são importantes para as mulheres trabalhadoras em geral, elas assumem uma importância primordial para as mulheres sindicalistas. São as mães, sogras, tias, irmãs que, na maioria das vezes, são acionadas de forma permanente ou alternadas por aquelas que precisam se dedicar à atividade sindical, sobretudo, quando essa atividade se estende além da jornada normal de trabalho.
Em síntese, no que se refere à partilha das responsabilidades domésticas, assim como ocorre com a maioria das trabalhadoras, as mulheres sindicalistas estão igualmente sujeitas ao mesmo padrão patriarcal de reprodução da vida familiar: “As famílias em que existe uma distribuição equitativa do trabalho e do tempo são as excepções que confirmam a regra: a mãe faz, o pai ajuda” (Portugal, 2008: 26).
Considerações finais
Passados 20 anos da contundente crítica de Santos (2002) à racionalidade dualista da ciência moderna, a qual, de forma sistemática, produz o outro como não existente, podemos dizer que ainda predomina uma abordagem essencialmente androcêntrica nos estudos sindicais, isto é, um longo processo político e epistemológico de produção da não-existência da militância sindical feminina: a outra como não existente.
A constatação desse fato por si só justificaria a necessidade de uma sociologia das ausências aplicada ao desperdício das experiências e saberes femininos nos estudos sindicais. Justificaria também a urgência de uma sociologia das emergências para a compreensão dos novos desafios enfrentados pelos sindicatos como instituições representativas dos trabalhadores e das trabalhadoras, ou seja, organizações laborais que também contemplem a construção de um futuro interseccional no qual as questões de classe e gênero se constituam como “zonas de contatos” para a emergência de um novo modelo de sindicalismo.28
Neste artigo, procuramos problematizar a formação da mulher como sujeito individual e coletivo do sindicalismo português. Ao longo de mais de 40 anos, o Estado Novo produziu a subordinação e a invisibilidade do feminino como uma das suas principais realizações ideológicas. Não obstante, nesse mesmo período, as mulheres participaram ativamente da vida social e política do país. No caso das mulheres trabalhadoras, foram centenas de registros de manifestações, paralisações e greves em que tiveram presença significativa, em muitas delas assumindo a própria liderança desses movimentos (CGTP-IN, 2014; OMC, 1994).
A agitação trabalhista do período também teve repercussão sobre a atividade sindical. Os sindicatos oficiais do salazarismo foram constantemente desafiados a assumirem as reivindicações por melhores salários e condições de trabalho. As mulheres estiveram igualmente presentes na pressão por um sindicalismo mais combativo, sobretudo nas categorias com maior presença feminina, como conserveiras, corticeiras, têxteis, vidreiras, entre outras profissões.
Esse movimento intensificou-se com a Revolução dos Cravos, quando as mulheres também participaram de forma ativa do processo de retomada das entidades sindicais e dos principais debates em que se envolveram os sindicalistas no período: as eleições sindicais, a organização vertical ou horizontal das entidades, a unidade ou pluralidade sindical, a relação dos sindicatos com os partidos políticos e as centrais sindicais.
Um dos principais achados desta pesquisa aponta para uma questão aparentemente elementar para a emergência das mulheres trabalhadoras como lideranças sindicais: a partilha das responsabilidades domésticas. Foi consensual entre as entrevistadas que, assim como ocorre no âmbito profissional, as possibilidades de ascensão das mulheres no âmbito sindical também são condicionadas pelas responsabilidades dos cuidados da casa e da família.
Em todas as entrevistas foi mencionado que o esforço e a dedicação das mulheres ao sindicalismo estão sempre em tensão com as responsabilidades domésticas que assumem, mesmo depois de todos os avanços dos direitos trabalhistas e previdenciários das últimas décadas - o que também parece ser um contrassenso, tendo em conta todas as conquistas registradas no que se refere à participação política e sindical das mulheres portuguesas desde o século passado.
Em síntese, ainda hoje, depois de tantas lutas e conquistas no campo econômico, político e social, o invisível trabalho reprodutivo continua sendo um dos principais fatores da “reprodução” das iniquidades entre homens e mulheres, não apenas no mercado de trabalho, mas também no próprio movimento sindical, que se propõe lutar contra essas desigualdades. Não por acaso, conforme alerta Bila Sorj (2021), vem aumentando as linhas de pesquisas em torno do trabalho do cuidado (care work) como uma dimensão fundamental da vida social e, consequentemente, um novo desafio para a sociologia do trabalho e para os estudos sindicais.
Declaração de conflitos de interesse
Os autores declaram não existir quaisquer conflitos de interesse.
Financiamento
Este artigo foi realizado com o apoio financeiro e técnico da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 - e com bolsa de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Brasil (CNPq).
Agradecimentos
Agradecemos à equipa editorial e pareceristas da Revista Crítica de Ciências Sociais as valiosas críticas e sugestões para o aprimoramento da primeira versão deste texto. Somos igualmente gratos a Elísio Estanque pela supervisão de pesquisa de investigador visitante no Centro de Estudos Sociais e a Hermes Costa pela orientação de tese de doutorado que motivaram a escrita deste trabalho. Por fim, agradecemos a todas as sindicalistas entrevistadas e às entidades civis que disponibilizaram acesso aos depoimentos registrados neste artigo.