Introdução
Se é verdade que as humanidades vivem numa “crise permanente”,1 não é menos verdade que os debates atuais sobre o seu estatuto repetem as questões já debatidas na Alemanha do século xix (Reitter e Wellmon, 2021). As humanidades modernas, enquanto formas de conhecimento disciplinar institucionalizadas nas universidades alemãs e americanas no final do século xix e início do século xx, bem como as narrativas que as definiram e legitimaram, visaram compensar as falhas históricas, conceptuais e morais identificadas pelas elites alemãs no final do século xix face à ascendência das ciências naturais. No contexto histórico, aliás, a luta pela imposição da autoridade cultural da ciência mediante desqualificação de outras formas culturais (Nunes, 1999) não é incompatível com a alegação de que a ciência precisa, hoje, mais do que nunca, do contributo das artes e das humanidades (Dirks, 2022).
A crise permanente das humanidades é também uma repetição discursiva. Apesar das perdas catastróficas de vidas humanas causadas pelas grandes guerras, pelos genocídios e pelo colonialismo, a verdade é que o discurso das humanidades modernas, tal como foi proposto na Alemanha, e depois nos Estados Unidos da América (EUA), tem mantido uma notável estabilidade, pontuando crises nas quais a legitimidade cultural e epistémica das humanidades foi ameaçada pelo capitalismo, pela industrialização, pela tecnologia ou pelas ciências. As crises das humanidades integram naturalmente a estrutura da universidade, pelo que a tão propalada crise atual é mais uma crise que se repete porque a sociedade moderna, desta vez, desprezou o que na vida é realmente importante, porque as universidades são geridas como empresas e porque os professores subscrevem teorias que encorajam uma hostilidade em relação às artes e à literatura (Reitter e Wellmon, 2021).
1. Democracia e humanidades
“Les Trente Glorieuses”2 é uma expressão correspondente a um período do pós-Segunda Guerra Mundial em que a Europa e os EUA assistiram à ascensão de um “Estado ético” (Collier, 2019). Foi a “Idade de Ouro” do capitalismo, um período histórico caracterizado por uma melhoria da qualidade de vida e uma preocupação com o bem comum. Mas o crescimento económico deste período teve como reverso uma maior complexidade na economia e um fosso crescente entre quem estudou e não estudou (Rodrigues, 2021). Neste contexto, o bem comum cedeu lugar à competição e ao individualismo. Nos países ocidentais, depois de 1980, o aumento das desigualdades sacrificou os estratos sociais que haviam conseguido empregos no setor industrial. Os processos de automatização e a perda de representatividade política vieram transformar esses trabalhadores em “vencidos”, que viram emergir um grupo de “vencedores” com salários mais elevados e mais adaptados à economia do conhecimento. Esta polarização criou duas sociedades num mesmo território, com percursos educativos e culturas diferentes, colocando em risco a dignidade e os sentimentos de pertença daqueles que passaram a não contar para as novas configurações sociais e políticas das sociedades ocidentais.
Para David Goodhart (2020), estas sociedades premiaram o “cérebro” e prejudicaram os trabalhos associados à “mão” e ao “coração”, retirando-lhes significado e dignidade. Ora, uma sociedade democrática precisa das aptidões cognitivas associadas à economia do conhecimento, mas carece, igualmente, da perícia dos artesãos, dos comerciantes, e da inteligência emocional dos que se dedicam à arte de cuidar. No entanto, o etos do serviço e do dever que aparecia dantes associado a tantos ofícios e profissões parece ter sido substituído por uma espécie de liderança moral das pessoas com mais instrução académica, comprometendo a dignidade do trabalho e obliterando as aspirações de reconhecimento e de bem comum.
A Europa e os EUA estão hoje confrontados com uma generalização do protesto político. Está em causa o poder social, uma nova luta de classes envolvendo os governos, a economia e a cultura (Lind, 2020). A ausência de reconhecimento, a atomização social e o ressentimento passaram a caracterizar o comportamento das classes vencidas, com manifestações epidémicas de perturbação mental, de que são exemplo as “mortes de desespero” nos EUA. Na verdade, a recente epidemia de mortes causadas por suicídios, overdoses e álcool resultou de um colapso das estruturas de apoio social tradicionais e afetou sobretudo os americanos brancos da classe trabalhadora, com 45 a 54 anos de idade, muitos deles divorciados, sem as ligações fraternais de um sindicato ou do local de trabalho, a viver em zonas rurais, desprovidos de qualquer grau académico. Para Anne Case e Angus Deaton (2020), as “mortes de desespero” refletiram uma perda lenta e progressiva de um certo modo de vida para a classe trabalhadora branca, menos instruída. Os americanos que ficaram para trás durante quatro décadas de globalização e desigualdade crescente sofreram mais do que uma estagnação dos salários; sentiram uma crescente obsolescência, uma vergonha internalizada e potenciada pela exclusão social e económica.
Nos EUA, as perdas acumuladas ao longo de décadas não resultaram apenas das desigualdades sociais crescentes. Foram também perdas morais e culturais, relacionadas com a necessidade de estima e valorização sociais. Um grau académico transformou-se no principal instrumento para um emprego respeitável e uma vida decente, favorecendo um preconceito credencial que rebaixou os menos instruídos, sacrificando o reconhecimento social a que tinham direito. Para Michael Sandel (2020), a humildade não é o forte dos “vencedores” no atual clima económico e social. Os “vencidos” sentem-se tentados pelo protesto populista ao notarem que as elites olham ostensivamente para baixo quando olham para eles. Para Daniel Markovits (2019), a competência e a ética de um trabalho honesto deixaram de assegurar um emprego. Os trabalhadores da classe média sofrem com experiências de discriminação num mercado de trabalho que parece privilegiar, cada vez mais, o currículo universitário e a educação superior.
Muitas pessoas sentem que a sua voz não conta. Sentem-se desapontadas pelo contrato social que a vida lhes ofereceu. Nos EUA, na Europa, na China e na Índia, quatro em cada cinco pessoas acreditam que “o sistema” não as beneficia (Shafik, 2021). Muitas sentem-se abandonadas e votam de acordo com o seu estado emocional, por terem ficado para trás, por se sentirem estranhas na sua própria terra. Na verdade, os sentimentos são importantes no espaço público por alimentarem uma visão do mundo que resiste aos argumentos baseados na ciência ou na opinião dos especialistas. Para um espírito racionalista, tal como refere William Davies (2019), o progresso significa apenas mais, mais vida, mais prosperidade. Esta é uma perspetiva fria da história, um olhar despersonalizado sobre o modo como o presente melhorou, face ao passado. Em termos individuais, é um voto de desprezo pela “consciência prática” da tradição fenomenológica (Inglis e Thorpe, 2012). Afinal, as emoções são respostas a condições sociais, alimentando narrativas coletivas com causas e consequências, atribuindo culpas e propondo soluções. Mas algumas emoções saturam negativamente a vida pública, penalizando a evidência e o interesse comum. O medo e o ressentimento, por exemplo, nunca foram eliminados. Na sociedade israelita, e não apenas por razões históricas associadas ao Holocausto, o medo e a mobilização política do ressentimento, bem como o recurso à vitimização, integram uma psicologia coletiva sujeita à constante perceção de ameaça existencial (Illouz, 2023). Os sentimentos de repugnância,3 por sua vez, refletem uma emoção política responsável por uma barreira impermeável entre grupos sociais através de uma divisória puro/impuro, potenciando fenómenos de distanciamento e radicalização política. Estas três emoções coletivas ofuscam a divisão, a hostilidade e a desconfiança que semeiam, uma vez que são suplantadas por um sentimento adicional que une as pessoas em redor de um coletivo imaginário. O orgulho nacional, a lealdade e o amor à pátria israelita revestem-se de um caráter exclusivo, convergindo em manifestações de patriotismo autoritário. Num período histórico em que os sentimentos ganham visibilidade pública global, com a discussão política saturada de estruturas afetivas, devemos reconhecer a “ascensão do afetivismo” nas ciências sociais e humanas, na medida em que as emoções são mesmo fenómenos sociais fundamentais, infiltrando os processos de socialização (Dukes et al., 2021) e justificando os conceitos de “corazonar” ou “aquecimento da razão”, contra o sofrimento injusto, a favor de uma justiça global (Santos, 2020). Devemos fazer o escrutínio crítico das emoções populistas que corroem o interior das sociedades democráticas como bichos no interior da maçã, sabendo que todas estas emoções, no seu conjunto, criam espaços imaginários, carregados de projeções e cenários emocionais que promovem uma interpretação paranóide da vida política e social (Illouz, 2023).
A democracia está em crise, com crepúsculo anunciado (Applebaum, 2020). Este é o século da solidão, com sentimentos de destituição e isolamento, exclusão e privação (Hertz, 2021). Em muitos países europeus, os cidadãos não acreditam que os representantes eleitos dêem prioridade ao interesse público. Muitos não parecem comprometidos com a democracia liberal; outros parecem complacentes perante alternativas autoritárias; e muitos movimentos políticos não parecem concordar com a importância de regras básicas da democracia (Mounk, 2018). Nas sociedades ocidentais vivemos num tempo de aparente degradação democrática, um processo que alegadamente resulta da convergência sinérgica de três eixos principais (Taylor, 2022). Primeiro, um declínio na “eficácia cidadã”, com as pessoas comuns a acharem que não têm qualquer poder em relação às elites; segundo, um recurso a práticas de exclusão, refletindo um medo do outro, colocando pessoas e grupos nas margens, com viciosas atribuições de culpa e uma falsa moralização dirigida a “cidadãos de segunda”; terceiro, uma frequência crescente dos fenómenos de polarização, com estridência emocional, fragmentando as comunidades e potenciando antagonismos irredutíveis em nome das identidades de grupo, políticas ou ideológicas.
Deixámos de convergir nos espaços de convívio depois do horário de trabalho. Reduzimos as interações face a face e os benefícios da vida em comunidade, permitindo a instalação da apatia e da animosidade. Abandonámos as narrativas que ofereciam significado e orientação às nossas vidas, mergulhados numa abundância de informação que preenche os espaços vazios e se transforma, eventualmente, em teorias de conspiração (Han, 2022). Vamos para casa e ficamos a consultar os emails, a olhar para os ecrãs dos tablets, dos computadores ou da televisão, escondidos em “bolhas”, horas a fio, a alimentar a “síndrome das pessoas como eu”4 (Yates, 2021). As redes sociais online não toleram espaço para a escuta refletida, para a compreensão mútua, abusando de algoritmos que ateiam a competição e o conflito, causando experiências de humilhação pública e acelerando processos de polarização emocional, política e ideológica, em palcos digitais propícios ao raciocínio motivado (Coleman, 2021). A democracia degenerou em infocracia. Não nos escutamos uns aos outros porque a comunicação digital, uma comunicação sem comunidade, anula as possibilidades de escuta (Han, 2022). As pessoas lamentam a erosão dos relacionamentos baseados nos princípios do respeito básico e do reconhecimento mútuo. A civilidade e a transparência sofrem graves danos com a segmentação provocada pela ecologia mediática (Calhoun et al., 2022). A comunicação digital contribui para a erosão da confiança nas instituições, disseminando o ódio e o populismo (Lorenz-Spreen et al., 2023). As redes sociais online potenciam a erosão do capital social, com enfraquecimento das instituições e das histórias comuns, partilhadas, que caracterizam a vida nas sociedades saudáveis (Haidt, 2022).
Um livro recente sugere que a crise da democracia não é bem uma crise da democracia e defende, no lugar de uma pretensa crise, uma explosão de iliberalismo e uma perda de controlo sobre os fluxos informativos (Gershberg e Illing, 2022). A esta luz, o designado “paradoxo da democracia” consiste numa cultura de comunicação livre cuja abertura convida à subversão a partir do seu interior. Dada a mencionada ausência de controlo, somos confrontados com o maior desafio estrutural alguma vez colocado à democracia: uma sociedade verdadeiramente aberta. Uma vez que as instituições democráticas foram fragilizadas pela tecnologia digital, a democracia confunde-se com uma sociedade aberta caótica. Na ausência de constrangimentos discursivos, a tecnologia digital mudou tudo, permitindo a qualquer pessoa dizer ou escrever o que quiser, assim como ser convencida de tudo e do seu contrário. Se as democracias são definidas pelas suas culturas de comunicação, se uma democracia é construída por cidadãos que decidem, coletivamente, o que deve ser feito, então os modos através dos quais se convencem uns aos outros determina quase tudo o que vem a seguir. Neste sentido, a persuasão, e não a verdade, é a variável chave numa sociedade democrática. Aquilo em que as pessoas acreditam é mais importante do que a verdade, porque aquilo que as pessoas fazem no mundo resulta, em parte, das suas crenças. Ora, os meios de informação têm a sua própria ontologia, uma particular construção da realidade que orienta a nossa forma de ser e estar com os outros. E também decidem, com a sua epistemologia própria, aquilo que devemos valorizar, praticando vieses e distorções que influenciam, através de um repetido exercício de persuasão, o caminho que fazemos para chegar ao significado das coisas. Nenhum sistema democrático é imune às imperfeições da comunicação. Mas o exercício da persuasão é a consequência natural da liberdade de expressão numa sociedade democrática.
No contexto comunicativo das sociedades ocidentais, muitas pessoas sentem-se impossibilitadas de conseguir “boas vidas”. As comunidades sentem-se incapazes de prever o futuro, tolhidas por poderes distantes, pelas características impessoais dos mercados. E os debates públicos não conseguem o equilíbrio construtivo do consenso, antes incentivam algumas pessoas a querer silenciar os seus opositores, denunciando uma ameaça corrosiva à saúde da democracia através de uma comunicação pobre e rude (Applebaum, 2020). Confirma-se assim a “irracionalidade comunicativa” do momento atual, uma evidência nefasta que não pede um aperfeiçoamento legislativo, nem reformas institucionais, nem a escolha de políticos mais virtuosos, mas, acima de tudo, pede um maior envolvimento participativo dos cidadãos na melhoria da qualidade da comunicação pública (Gershberg e Illing, 2022).
A melhoria da comunicação é essencial à confiança entre as pessoas, à confiança entre as pessoas e os seus governos. Mas desde há algum tempo que as democracias liberais convivem com uma aparente quebra de confiança entre governos e governados. No início da pandemia de COVID-19, eram manifestas doses elevadas de frustração e protestos antipolíticos. Talvez o cinismo, a quebra de confiança, a revolta e a apatia que infiltravam os processos e as instituições políticas em muitas democracias liberais, antes da pandemia, tenham orientado o modo como as estruturas democráticas foram avaliadas na resposta à crise pandémica (Flinders, 2020). Desde os equipamentos de proteção individual aos ventiladores, das falhas de comunicação ao desespero da economia, da falta de camas à exaustão dos profissionais de saúde, do fecho das escolas ao comportamento da polícia, do trabalho de planeamento ao programa nacional de vacinação, todos os argumentos se transformaram em pretextos de arremesso crítico às medidas decretadas pelos governos. As atribuições de culpa, no contexto pandémico, eram tão previsíveis como um aumento da natalidade5 e da violência doméstica.
2. Humanidades e virtudes democráticas
A democracia é um conceito télico, definida por ideais que nunca poderão ser completamente satisfeitos (Gershberg e Illing, 2022; Taylor, 2022). Mas as humanidades podem contribuir para o seu aperfeiçoamento, expressando uma genuína tolerância pela diferença, contestando deliberações autocráticas (Bleakley, 2015), estimulando uma capacidade para sermos “cidadãos do mundo” (Nussbaum, 2010). As humanidades encerram um valor intrínseco, promovem a tolerância e a coesão social, favorecem o desenvolvimento pessoal, estimulam a fruição estética e o pensamento crítico (Holm et al., 2015), legitimando as palavras proferidas pelo Professor Henrique Leitão, Prémio Pessoa em 2014: “Uma sociedade que subvalorize a literatura, a história, a filosofia, as artes, não está certamente a caminhar numa direção muito segura”.6 Talvez a ideia das humanidades tenha de ser reconstruída para além das “duas culturas”, como utopia, recuperando vetores essenciais da tradição humanista e assegurando um futuro que contrarie o citado regime de “crise permanente” (Ribeiro, 2002). Mas o contributo das humanidades para o processo educativo é um convite aos estudantes para se melhorarem a si próprios (Adler, 2020), sabendo-se que precisam de ouvir diferentes vozes e diferentes modos de enunciação (Feijó e Tamen, 2017). Se muitos dos problemas que hoje afetam as sociedades ocidentais podem ser encarados, pelo menos em parte, como falhas da virtude cívica, podemos presumir que um programa de educação em ciências e artes liberais, com uma longa tradição histórica,7 deve contribuir para a formação de bons cidadãos, valorizando as virtudes que constituem, em si mesmas, o potencial cívico da educação liberal.8
É claro que a importância das virtudes cívicas não deve ser exagerada. Mas isto não retira importância aos modos como os cidadãos participam em processos democráticos que implicam, desde logo, alguns valores fundamentais: a liberdade, a igualdade, o bem-comum, a legitimação dos governos eleitos e a participação popular (Dekker, 2023). Primeiro, as pessoas são livres, decidindo por si próprias os modos como querem viver, de acordo com as regras da comunidade. Segundo, todos os cidadãos têm igual valia, ou seja, todos devem ser tratados de igual modo. Terceiro, as decisões devem ser tomadas com base no interesse comum. Quarto, estas decisões devem ser consideradas como legítimas, ou seja, os cidadãos devem aceitar genericamente as regras prescritas, na presunção de que favorecem o bem comum. Quinto, a democracia acredita que o cumprimento dos valores precedentes só pode ser realizado à custa de uma participação universal, direta ou indireta, no processo de governação. Todos estes valores devem ser projetados numa conversação democrática. Ou seja, todos os participantes devem considerar o outro como sendo livre e igual; devem aceitar que o outro pode ter diferentes interesses e opiniões; devem consentir que estas diferenças são importantes para a conversação; e devem conversar com a ambição de tomar decisões a favor do bem comum. Em suma, o objetivo da conversação democrática exige que os participantes tomem boas decisões para a comunidade através de uma troca de perspetivas que pressupõe um processo colaborativo, um caminho de descoberta através do qual cidadãos livres e iguais influenciam as suas sociedades (ibidem).
Não obstante as objeções democráticas e académicas, existe uma longa tradição segundo a qual o ensino superior deve desempenhar um papel na formação das virtudes cívicas (Dekker, 2023; Nussbaum, 2010). Primeiro, uma educação liberal na universidade deve valorizar as vantagens de uma mente aberta, de uma atitude de humildade e tolerância que ajuda os estudantes a evitar o egocentrismo e a reconhecer as possibilidades de erro, sobretudo quando o seu currículo tem uma natureza multidisciplinar. Esta é talvez a virtude mais necessária a uma conversação democrática, contrariando os exercícios de antagonismo e persuasão coerciva. Segundo, deve animar a independência de pensamento, uma atitude de escrutínio crítico, libertadora, na medida em que possa expor o caráter falacioso de muitas verdades autoevidentes através de uma pedagogia ativa, centrada no estudante. Esta é uma virtude cívica crucial por ser uma condição necessária à liberdade. Terceiro, uma educação liberal deve alimentar o sentido do eu, uma certa identidade e liberdade de escolha curricular, as preferências dos estudantes, bem como a consciência dos seus recursos e fragilidades, os seus interesses e visões sobre os problemas sociais. Esta virtude significa ter um ponto de vista pessoal, fundamentado, uma opinião própria que facilita a conversação democrática. Quarto, os estudantes devem possuir um sentido do outro, ou seja, compreender as suas perspetivas, valores culturais e circunstâncias. Esta virtude é facilitada quando eles têm origens culturais diversas, beneficiando de uma interação que é promovida dentro e fora da sala de aulas. Quinto, os estudantes devem aprender a arte do compromisso nos trabalhos de grupo e no convívio através de um processo colaborativo. A essência deste compromisso consiste numa negociação tolerante entre diferentes opiniões para se construir uma conclusão conjunta. Sexto, devem ter um conhecimento de questões sociais, uma atenção particular aos problemas da sociedade, locais e globais, incluindo as alterações climáticas, as desigualdades sociais, os problemas de saúde pública, as migrações, etc. Este conhecimento pode ser acessível mediante frequência de várias disciplinas de ciências sociais e humanidades e constitui um valioso contributo para as conversações democráticas, a partir das seis virtudes atrás referidas. Assim, por exemplo, os estudantes que cursam medicina estudam apenas medicina, mas os estudantes que estudem medicina no âmbito de um programa de ciências e artes liberais ficarão expostos a uma formação curricular mais ampla. Ter um conhecimento de questões sociais é aquilo que permite a uma pessoa olhar para as diferentes perspetivas com uma mente aberta e independente, desenvolver a sua própria perspetiva sobre essas questões, compreender as perspetivas dos outros e, em última análise, chegar a um compromisso. Finalmente, a educação liberal deve promover um sentido de democracia, um desejo de trabalhar para o bem comum, estimulando a participação no processo democrático e a dedicação ao interesse coletivo. Esta é talvez a virtude de aquisição mais difícil, porque não são muitas as pessoas disponíveis para dedicar o seu tempo ao serviço da comunidade, aceitando compromissos em nome do interesse comum. Mas uma educação liberal pode contribuir para este objetivo ao centrar a sua atenção na comunidade académica, valorizando as relações humanas e as interações entre estudantes, dentro e fora da universidade.
A educação liberal não reivindica o monopólio do ensino das virtudes cívicas. Nem todos os licenciados em ciências e artes liberais são bons cidadãos. E também não existe uma relação causal, empírica, entre educação liberal e virtude cívica. Mas as universidades não deveriam continuar a oferecer programas curriculares apenas com o objetivo de transmitir conhecimentos e assegurar empregos, na medida em que a valorização social do emprego como fim último, se não único, da educação universitária, revela uma aspiração social pobre (Feijó e Tamen, 2017). A universidade deve igualmente reforçar o seu papel histórico na potenciação da capacidade das pessoas para viverem em conjunto, estimulando as conversações democráticas.
3. Humanidades médicas e educação médica
O sucesso da medicina moderna e a comercialização da saúde, ao longo dos últimos 50 anos, causaram uma desumanização na prestação de cuidados. Esta evidência legitima hoje a importância acrescida das “humanidades médicas”, um movimento que emergiu nos anos 1960 em protesto contra a influência dominante do imperativo tecnológico (Carson, 2007; Cole et al., 2015). Entre outros motivos, as culturas institucionais constituem hoje uma ameaça não apenas à saúde dos médicos e dos docentes, mas também dos estudantes de medicina, na medida em que a neoliberalização da academia intensificou os volumes de trabalho, “obrigando” os alunos a internalizar uma lógica de capital humano, ou seja, uma necessidade constante de competirem entre si para aumentarem o seu valor de mercado (Perisic, 2021).
Não ignorando uma ambiguidade conceptual que resulta da confluência de diferentes narrativas em sucessivos contextos históricos (Brody, 2011), as humanidades médicas refletem uma abordagem inter e multidisciplinar da medicina a partir das humanidades e das ciências sociais, explorando contextos, experiências subjetivas, conceitos e questões críticas, apoiando a formação de uma identidade profissional e tentando, afinal, uma melhor compreensão da saúde e da doença (Reiff-Pasarew, 2022). Tratando-se de um campo inter e multidisciplinar, as humanidades médicas mostram interesse pelos contextos sociais, recorrendo à história e antropologia para melhor compreenderem as dimensões temporais e culturais da medicina. O estudo da história mostra-nos que uma glorificação ostensiva do passado apresenta a medicina, erroneamente, como uma instituição que beneficiou sempre as pessoas e as populações (Olding et al., 2022). A antropologia, por sua vez, aplica os métodos tradicionais da investigação ao estudo da vida humana e respetivos contextos, com uma visão holista e a preocupação habitual com a experiência e ponto de vista do outro (Singer e Baer, 2012). Dado o interesse pela experiência subjetiva, as humanidades médicas recorrem à literatura para uma melhor compreensão do que é ser/estar doente, por exemplo através da poesia ou do romance. A leitura é uma forma de exercer a hospitalidade e um livro é uma casa de afetos, um espaço de hospitalidade (André e Pousada, 2021). As dimensões espaciais e temporais das obras literárias exibem os contextos da ação e oferecem um testemunho cronológico das relações interpessoais. Os conflitos familiares, as origens da culpa, as evasões, a vergonha, o ciúme, o amor, as frustrações e as mágoas, tudo isto é matéria de literatura e ilumina a capacidade de compreender melhor a génese e a persistência do mal-estar pessoal e social, no contexto clínico (Furst, 2003). A leitura de Bernardo Soares, no Livro do desassossego, ou as cartas de Fernando Pessoa a Mário de Sá-Carneiro, ajudam-nos a compreender a fenomenologia do tédio e da depressão, a confluência sofrida do mal-estar físico e psicológico. Os trabalhos de Marcel Proust (À la recherche du temps perdu), Gustave Flaubert (Madame Bovary) ou Jane Austen (Sense and Sensibility) convocam também a literatura (e a história) ao iluminarem a experiência psicossomática de uma “literatura de sensibilidade”, característica da época vitoriana (Quartilho, 2016).
As humanidades médicas interessam-se também por questões críticas e conceptuais, com aproximações à filosofia. O conhecimento médico que resulta das ciências biológicas, embora indispensável, é insuficiente para a prática da medicina clínica. É preciso mais. A prática médica precisa de uma epidemiologia crítica; precisa de valorizar os princípios dialéticos da determinação social da saúde e a violência estrutural, na medida em que os padrões sociais de distribuição das doenças e o aumento das desigualdades na saúde devem ser identificados no body politic num espaço exógeno aos corpos/organismos (Breihl, 2021; Krieger, 2021); e precisa das humanidades médicas, de uma perspetiva integradora que beneficie das suas reflexões conceptuais e existenciais (Chiapperino e Boniolo, 2014). Martin Heidegger (1889-1976) alertou para os perigos do “cientismo”, uma visão do mundo orientada pelo desejo de colocar todas as questões e expor todas as respostas segundo o paradigma científico, excluindo alternativas (apudPiemonte, 2018). A ciência é uma instituição humana indispensável. Mas tal não deve significar uma imunidade à crítica, um desprezo arrogante pela complexidade, pela dissonância construtiva ou por visões alternativas que valorizem o contexto moral, social e político da investigação e prática científicas (Clegg, 2022).
Os pensadores iluministas do século xviii defenderam a ideia de que a razão é a fonte primária do conhecimento. Particularmente na ciência, o caminho seguro deveria fazer-se através do olhar objetivo da razão. Mas, no século xvii, existiam já diferentes conceções do conhecimento. Em particular, as do italiano Giambattista Vico (1668-1744), para quem a adoção da matemática como modelo de todo o conhecimento era pouco adequado à compreensão da vida humana (Cole et al., 2015). Para Vico, era vital o conhecimento das pessoas sobre as pessoas, um motivo pelo qual protagonizou apelos a uma scienza nuova que desse prioridade à compreensão e interpretação do comportamento humano (Wierzbicka, 2011).
As humanidades médicas interessam-se, finalmente, pela formação de uma identidade profissional, por um projeto educativo que cultive a autorreflexão e o empenho no bem-estar do outro, contrariando a aparente erosão ética que caracteriza, ironicamente, os anos de formação clínica (Hojat et al., 2009). Talvez a cultura hospitalar favoreça uma maturação profissional que desvaloriza o esforço introspetivo e a humildade, alimentando um “currículo escondido” que “ensina” o egoísmo sob o disfarce de uma devoção idealizada aos superiores interesses dos doentes (Coulehan, 2010). Assim, a formação da identidade profissional deve implicar um processo de socialização e transformação progressiva do estudante num profissional de saúde eticamente vigilante, reflexivo, resiliente e socialmente interventivo (Wald, 2015).
As humanidades médicas não são uma panaceia para as limitações do ensino médico. Mas oferecem histórias, imagens, formas de olhar e compreender. Na tradição de John Dewey (1859-1952), contribuem para a resolução de problemas difíceis porque alimentam a autonomia necessária a um estilo de “pensamento reflexivo”, crítico e independente (Haber, 2020). Baseadas numa tradição filosófica de pensamento meditador, focadas na educação da imaginação moral e abertas ao inquantificável, contestam o caráter ubíquo do pensamento calculador em medicina, dispensam as explicações técnicas para compreender ou acreditar, e garantem, afinal, uma aproximação mais eficaz e empática à experiência subjetiva (Piemonte, 2018).
4. Mal-estar na academia. Meritocracia e burnout
Tal como foi referido, as culturas institucionais são um potencial fator de mal-estar na academia. Não obstante os excessos da psicologia e psiquiatria diagnósticas (Horwitz, 2002), o stress, a exaustão e o burnout são termos comuns quando falamos de estudantes e professores universitários. Numa perspetiva sociológica, o burnout pode bem refletir não uma sobrecarga de trabalho, ou uma “depressão clínica”, mas antes um “colapso dos eixos de ressonância” nas relações entre a pessoa e os seus mundos (Rosa, 2019).
Para o sociólogo Alain Ehrenberg (2017), temos hoje a autonomia para sermos o que quisermos ser. Mas esta autonomia tem um preço elevado, na medida em que os nossos valores mais queridos, a nossa liberdade e capacidade de escolha, o nosso desenvolvimento e promoção pessoais, podem originar fracassos que se transformam numa penosa questão de responsabilidade individual. O mal-estar social, neste sentido, deve ser entendido em função de um progressivo enfraquecimento dos laços sociais, obrigando cada vez mais o indivíduo a depender de si próprio, da sua subjetividade, das suas capacidades de automotivação e autocontrolo. Deste modo, a subjetivização do trabalho implica uma pressão acrescida sobre o trabalhador, uma vez que ele tem a obrigação de ser criativo, autêntico, empático, motivado e responsável. A liberdade que temos diz-nos que tudo é possível. Mas a realidade diz-nos que muito pouco é realmente possível. Todos queremos ser excecionais, mas a maioria de nós descobre que não é assim. E quando o reconhecemos, afinal, entramos em modo de colapso. Ficamos exaustos. De acordo com Arthur Kleinman (2006), existe uma ansiedade enervante que é criada pelos limites da nossa capacidade para controlar os nossos pequenos mundos locais. Paradoxalmente, a nossa capacidade para tornar algo controlável dá origem a sentimentos de impotência na nossa relação com o mundo, na medida em que este se tornou cada vez mais incontrolável, imprevisível e incerto (Rosa, 2020). Evitar a exaustão e o burnout significa reconhecer a impossibilidade de controlo absoluto das condições de trabalho e a natureza contingente dos contextos que prometem a realização profissional (Neckel e Wagner, 2017; Quartilho e Becker, no prelo).
O burnout pode (e deve) ser considerado como um problema de gestão que requer alterações na organização do trabalho, um problema nas relações com os colegas e as hierarquias. Pode refletir uma imersão forçada no trabalho burocrático, um sacrifício da vida pessoal, uma ausência de reconhecimento, uma dissonância de valores e objetivos, uma atividade não gratificante, uma crescente compressão temporal, uma perceção recorrente de injustiça e ausência de controlo. Mas pode também denunciar incivilidade9 e humilhação nas relações interpessoais, com experiências que violam a dignidade do outro (Leiter e Wintle, 2021). Em qualquer instituição e/ou organização, as relações interpessoais são uma causa potencial de desigualdades no acesso ao respeito e aos recursos, na medida em que as organizações são estruturadas por distinções entre categorias. Ou seja, o estatuto e as hierarquias produzidas pelo processo de categorização reforçam as reivindicações de alguns e fragilizam os argumentos de outros, proporcionando práticas de exclusão social entre categorias e condicionando o acesso aos recursos da organização (Tomaskovic-Devey e Avent-Holt, 2019).
Os professores também habitam num mundo de estatutos e hierarquias e tendem a ser transformados em coisas que podem ser medidas, vítimas de uma competição local baseada na quantificação e sujeitos a regimes de vigilância e avaliação que visam premiar quem ganha e castigar quem perde (Monbiot, 2017). Os processos de quantificação tendem a sacrificar a história e o contexto, potenciando a falsificação parcial de situações particulares e introduzindo uma simplificação abusiva à custa de uma anulação das narrativas individuais, uma remoção ostensiva dos lugares e percursos biográficos. Além do mais, a atual onda quantificadora enfraquece a capacidade de as pessoas se governarem a si próprias e contribui, eventualmente, para que outros se interessem menos pelas suas perspetivas e experiências (Newfield, 2022).
A pretensão de uma objetividade neutra expõe uma ameaça de perigo iminente. As avaliações de performance têm um efeito transformador, alterando o modo como as pessoas encaram o trabalho, a instituição, o modo como se relacionam com colegas e consigo próprias. Os professores transformam-se em académicos atomizados no mercado competitivo da educação superior, medindo constantemente a sua performance num sistema labiríntico cuja lógica chega a parecer desprovida de sentido. Os procedimentos de avaliação aumentam o volume de trabalho e geram uma potencial insegurança entre os professores, criando a sensação de que não trabalham o suficiente, ameaçando a sua liberdade académica e contribuindo, em parte, para a prevalência aumentada de burnout no meio universitário (Shore e Wright, 2020). A cultura de avaliação é apresentada como uma solução universal para os problemas do ensino superior e as agências avaliadoras surgem como mediadoras informadas, capazes de gerir os constrangimentos institucionais, ao passo que os objetos avaliados, os professores, assumem o papel de maus atores potenciais que devem reconhecer a sua responsabilidade através de uma participação ativa na cultura de avaliação (Steffen, 2022). Esta avaliação é geralmente anónima, feita à distância, e estabelece uma necessidade imperiosa de gerar informação, de responder aos inquéritos, mesmo quando não há nada a acrescentar (Collini, 2017). O veredicto da avaliação anónima adquiriu um estatuto especial nos processos de tomada de decisão. Mas será que a universidade deve mesmo confiar em decisões tomadas com base em veredictos que resultam de uma avaliação anónima? Não é verdade que a trajetória da anonimidade na academia enfraquece o diálogo e a comunicação pública, privilegiando uma interação distante, secreta, unilateral, paramétrica? Ao permitirem que a avaliação anónima seja um intermediário privilegiado, os académicos assumem uma postura passiva e abdicam da sua liberdade de pensar (Borghi, 2022).
Neste contexto avaliativo, os académicos são ainda alvos potenciais de uma ética meritocrática que promove a húbris entre os que ganham e alimenta as perceções de humilhação e ressentimento entre os que ficam para trás (Sandel, 2020). Ou seja, o regime meritocrático exerce uma tirania dupla. Entre os que ficam por cima, causa ansiedade e alimenta um perfecionismo desgastante, uma húbris que pode disfarçar uma baixa autoestima. Entre os que ficam para trás, o mesmo regime impõe um eventual sentimento de desmoralização e fracasso. O próprio mérito, nestas condições, não representa uma excelência genuína, mas antes um disfarce construído para racionalizar uma injusta distribuição de vantagens (Markovits, 2019). No lugar do reconhecimento democrático de um igual valor para todos os cidadãos, a meritocracia sugere que uns valem mais do que outros, arriscando premiar o Brotgelehrte e penalizar o “espírito filosófico”.10 Privilegia as elites, que olham para os seus estatutos e as vantagens acumuladas como reflexo dos seus méritos. Mas retira poder a todos os outros, ao dissimular as diferenças nos pontos de partida e no apoio ao sucesso individual, desprezando a solidariedade com os menos afortunados, sujeitos ao ressentimento e à “violência simbólica”, sugerindo que merecem a sua sorte ou, pior, que é deles a responsabilidade da posição inferior que ocupam na hierarquia social (Calhoun e Taylor, 2022). Tal como escreveu Michael Sandel (2020), está em causa uma corrosão da sensibilidade cívica, na medida em que as perceções de autossuficiência potenciam a dificuldade em aprender a humildade, em cuidar do bem comum. Obviamente, o contexto social e político não é indiferente a estes processos. A sociedade neoliberal, talhada para o sucesso individual, faz com que as pessoas se responsabilizem pelo seu quinhão e se envergonhem pelos seus fracassos, sem questionarem o sistema em que vivem e trabalham (Han, 2017).
Conclusão
Defender que a democracia precisa das humanidades pode constituir um exagero. Sabemos que a preservação e o reforço do estatuto das humanidades na educação médica requer evidência empírica. Não estamos certos de que os estudantes expostos ao ensino das humanidades possam vir a ser melhores médicos (Ousager e Johannessen, 2010). De igual modo, é verdade que uma educação liberal não garante civilidade e melhores cidadãos. Mas uma comunidade que acolha o esforço intelectual das humanidades é uma comunidade que promove a reflexão crítica, a boa comunicação, a aproximação empática ao outro e a compreensão do mundo, a tolerância e o respeito pela verdade, o comportamento ético e democrático - sabendo-se que a democracia, em última análise, é construída pelos cidadãos e pelas suas atividades de persuasão, com ou sem formação em humanidades, uma democracia que exige o encontro de pessoas diferentes em espaços comuns (Drees, 2021; Sandel, 2020). Tal como no mito de Sísifo, a democracia é um desafio permanente que nos exige a tarefa de empurrar o pedregulho, colina acima, sabendo que aquilo que a democracia é, em qualquer momento, depende do nosso esforço e persistência nos atos que praticamos para a sua renovação e recriação (Gershberg e Illing, 2022).
A medicina e a universidade precisam de um olhar crítico sobre o cientismo e a natureza moralmente estéril de muita investigação produzida, precisam de um questionamento dos padrões utilitários que governam o sucesso académico e empobrecem as capacidades de compreensão social. A medicina deve acolher uma paridade epistémica entre as disciplinas quantitativas e qualitativas e deve prescrever a humildade como uma virtude profissional do médico, disponível para aceitar as suas limitações, recusando sinais de arrogância, sendo honesto perante os erros, cultivando a discrição e regulando os seus interesses pessoais em favor dos superiores interesses dos doentes e da comunidade. A universidade precisa de um debate sobre o que é importante e não pode ser contado, sobre os efeitos negativos da cultura de avaliação anónima e dos processos de quantificação na academia. A universidade precisa de uma relação profícua entre as ciências e as humanidades, evitando o confinamento curricular num único domínio do saber e tolerando a noção socrática de que “uma vida não examinada não merece ser vivida”. Tudo isto clama pela continuação de um projeto que se confunde com a educação de virtudes cívicas na universidade, com o valor intrínseco das humanidades e com o esforço comum de aperfeiçoamento da democracia.
Declaração de conflitos de interesse
A autora e os autores declaram não existir quaisquer conflitos de interesse.
Financiamento
O autor Manuel Quartilho e a autora Joana Becker não receberam apoio financeiro para a investigação, autoria e/ou publicação deste artigo. O autor Carlos Carona colaborou neste trabalho no âmbito de uma bolsa de investigação no Centro de Investigação em Neuropsicologia e Intervenção Cognitivo-Comportamental (CINEICC) da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, financiada através de fundos nacionais (PIDDAC) pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P./MCTES (UIDB/PSI/00730/2020).