Quanta distância cabe em 50 anos? A pergunta contém uma das indagações mais cultivadas pelas ciências sociais e humanas e, muito particularmente, por uma certa historiografia clássica: a de saber quanto tempo necessitamos deixar transcorrer para que um evento se torne inteligível. Numa perspetiva de matriz positivista, quanto mais distante um acontecimento se encontra de quem o perscruta, mais seria objetivável. Postas as coisas deste modo, esquecemo-nos que história e memória não são domínios antagónicos, mas que antes se retroalimentam. E caímos também na tentação de examinar o passado à luz da cadência regular dos cronómetros. Acontece que os acontecimentos disruptivos - e mais ainda quando esses acontecimentos são revoluções - têm dinâmicas e produzem efeitos que baralham os próprios conceitos de distância e proximidade.
A revolução do 25 de Abril foi um processo histórico concreto, com um início e um fim. A democracia portuguesa é herdeira direta desses cerca de dois anos de lutas e conquistas populares que, de certa forma, a Constituição de abril de 1976 iria codificar. A história das últimas décadas pode ser vista como uma história da distância relativamente ao legado revolucionário, acentuada, em diferentes tempos e velocidades, com a afirmação da agenda neoliberal, a erosão dos serviços públicos, o recuo dos direitos do trabalho, o domínio comunicacional da direita, o (res)surgimento de tópicos saudosistas da ditadura e do colonialismo.
Mas ela foi também a história da persistência de “Abril” enquanto legado, material e discursivo, que continua a dar conteúdo à noção de democracia no país e a ser ciclicamente mobilizado em momentos de crise e de combate político e social. Foi assim nos 40 anos, em 2014, quando as grandoladas apareceram como forma de repúdio aos governantes que implementavam as medidas de austeridade acordadas com a Troika; foi assim em 2024, nos 50 anos, quando as ruas afirmaram a memória do 25 de Abril como projeto, depois do forte crescimento eleitoral das direitas e da extrema-direita.
Na história das reflexões intelectuais sobre o 25 de Abril, cabe ao Centro de Estudos Sociais (CES) um lugar relevante. Foi em 1984 que o Centro organizou o colóquio “Portugal 1974-1984. Dez anos de transformação social”, que visava examinar os impactos e as mudanças trazidas pela revolução nos domínios económicos, políticos, sociais e culturais, e cuja discussão seria posteriormente publicada nos números 18/19/20 da Revista Crítica de Ciências Sociais (RCCS). Foi ainda no quadro do colóquio que se criou o Centro de Documentação 25 de Abril, que se tornaria, desde então, numa referência incontornável na organização e no acesso ao material documental sobre as lutas antifascistas e anticoloniais e sobre as dinâmicas do período revolucionário.
Agora, 50 anos passados sobre o acontecimento que marcou a natureza da democracia portuguesa, o CES decidiu organizar um conjunto amplo de iniciativas para marcar essa data redonda, entre as quais se inclui a edição deste número da RCCS. Como dizemos no pequeno texto que guia essas iniciativas, o 25 de Abril é, simultaneamente, “resultado e contraponto de um século xx marcado pela longa vigência da ditadura, por fundas desigualdades, por trajetos de resistência política, por atavismos e processos de mudança em termos nacionais e internacionais, pela presença central do colonialismo e da guerra, e ainda pelo início do processo de descolonização levado a cabo pelos povos colonizados, de que resultariam as independências africanas. Perscrutar as marcas da revolução é proceder a um exercício que obriga a repensar desafios históricos tão atuais: do controlo democrático da economia a uma sociedade livre de racismo, machismo e de outras opressões”(cf. http://ces.uc.pt/pt/agenda-noticias/50-anos-de-abril).
É porque o 25 de Abril é história, mas é também uma promessa mobilizadora, que continua a interpelar o presente. É essa a medida da sua distância. Ou, se quisermos, da sua proximidade.