Introdução : o trabalho, a Revolução e as suas margens
A democracia portuguesa tem a marca genética da Revolução. Pondo fim à “crise agónica” do regime colonial-fascista, o golpe militar de 25 de abril de 1974 fez rebentar uma “panela de pressão” e abriu portas à “explosão revolucionária” de 1974-1975 (Rosas, 2022, p. 40). Um dia depois do golpe, a 26 de abril, a Intersindical emitiu um comunicado em que expunha as suas reivindicações perante o novo contexto: liberdade sindical, aumentos salariais, instituição de um salário mínimo nacional, redução do horário de trabalho semanal para as 40 horas em cinco dias, reintegração de trabalhadores despedidos abusivamente, liberdade de associação, direito à greve, administração da previdência pelos trabalhadores (Nunes, 2011, pp. 188-189). Com exceção das 40 horas (que só seriam consagradas como regra geral em 1996) e da administração da previdência exclusivamente pelos trabalhadores (que nunca ocorreu), o essencial daquelas exigências seria alcançado muito rapidamente, em processos de conflito e/ou de negociação coletiva, antes mesmo de serem institucionalizadas na lei pelo novo poder político.
Logo a seguir ao golpe militar, trabalhadores organizados ocuparam as sedes das corporações, das caixas de previdência, de sindicatos com direções afetas ao regime fascista, elegendo comissões provisórias com vista a transformar aquelas estruturas em organizações de classe com uma outra orientação. Nas semanas seguintes ao 25 de Abril, perante a perceção generalizada de uma relação de forças radicalmente nova, obtiveram-se direitos, em vários setores, por via da negociação. No contrato dos metalúrgicos ou dos trabalhadores rurais, em empresas como a Siderurgia Nacional, a Sacor ou a Sorefame. Noutros casos - como na Carris, Metro de Lisboa, Correios de Portugal (CTT), Telefones de Lisboa e Porto (TLP), no setor das minas e da pesca, mas também em indústrias de material eletrónico como a Applied Magnetics ou de relógios como a Timex - teve lugar um surto grevista após o 1.º de Maio de 1974, no qual às reivindicações salariais se juntavam exigências de igualdade entre homens e mulheres, criação de creches ou saneamento de pessoas ligadas ao anterior regime (Noronha & Trindade, 2019, pp. 50-53). Em muitas empresas, constituíram-se Comissões de Trabalhadores e ocuparam-se as instalações (Suárez, 2023).
Nesse mês de maio, o horário de trabalho foi reduzido na metalurgia e na metalomecânica, por acordo bilateral, passando das 48 para as 45 horas. Na Pão de Açúcar, à época a maior empresa de retalho, a redução foi para as 40 horas. Até ao final de 1974, diferentes convenções coletivas instituíram, muito antes da lei geral ou da Constituinte, direitos como os 30 dias de férias, o subsídio de férias e de Natal, o dia e meio ou os dois dias de descanso, o aumento do número de feriados, a proibição de despedimentos sem justa causa ou o direito a indemnizações (Almeida et al., 2020, p. 208).
Entre o 11 de Março e o 25 de Novembro de 1975, o processo revolucionário evoluiu para uma agenda “declaradamente socialista” (Loff, 2022, p. 76). Movimentos de trabalhadores lançaram-se na reivindicação e no exercício do controlo operário. Mantiveram-se empresas em laboração, perante o êxodo ou a fuga dos patrões, denunciando-se a “sabotagem económica”. Multiplicaram-se experiências de autogestão, legitimadas pelas credenciais dadas para o efeito às Comissões de Trabalhadores pelo Ministério do Trabalho, sobretudo em empresas mais pequenas. Avançou-se no saneamento dos administradores. Um movimento de ocupação de terras expandiu-se, sobretudo a partir de janeiro de 1975, a cerca de um milhão de hectares (Piçarra, 2020). A partir do 11 de Março, estas práticas que punham em causa o regime de propriedade e a estrutura das relações de classe foram acompanhadas por decisões governamentais. Procedeu-se à expropriação de herdades rurais do sul e à nacionalização dos setores-chave da economia, designadamente os que estavam nas mãos dos sete maiores grupos económicos portugueses que tinham prosperado “à sombra do pacto entre ditadura e capital” (Loff, 2002, pp. 77-79), dotando o Estado português de um setor produtivo significativo, que incluía a banca, o setor petrolífero, os transportes, os serviços portuários, o aço, a energia elétrica, os cimentos, as celuloses, os tabacos, o vidro, a indústria extrativa, a química pesada, a cerveja, a construção naval, a agricultura, a rádio e a televisão. Entre o final de maio de 1974 e a aprovação da Constituição, em 1976, multiplicaram-se diplomas que consagraram legalmente uma relação de forças favorável ao trabalho e aos sindicatos: instituição do salário mínimo, duplicação do abono de família, criação da pensão social, estabelecimento de um valor para as pensões mínimas, unicidade sindical, restrição do conceito de justa causa em matéria de despedimento.
A Constituição de 1976, aprovada depois do Processo Revolucionário em Curso - PREC e do 25 de Novembro de 1975, seria o resultado, não sem contradições, dessa intensa explosão revolucionária. Para além de elementos essenciais de organização democrática do Estado e dos direitos políticos, ela consagrou orientações económicas como a “apropriação colectiva dos principais meios de produção”, a irreversibilidade das nacionalizações, a Reforma Agrária ou a “eliminação dos latifúndios”.1 No texto constitucional, foi também inscrito um amplo leque de direitos laborais: “o direito ao trabalho”, a proibição dos despedimentos sem justa causa, a obrigação de o Estado estabelecer e atualizar não só o “salário mínimo” mas também o “salário máximo”, o direito de as Comissões de Trabalhadores exercerem “o controlo de gestão nas empresas”, a liberdade sindical, o direito à contratação coletiva, o direito à greve, a proibição do lockout, o apoio do Estado às “experiências de autogestão” ou o direito universal à segurança social.
O processo revolucionário e a nova Constituição puseram fim às guerras coloniais e consagraram o desmantelamento do Estado Novo, as liberdades individuais e coletivas, lançando, também no campo do trabalho, as bases de uma nova sociedade. E todavia, o processo e as transformações profundas que atravessaram o mundo do trabalho não podem, com esta distância, ser pensadas sem atender, paralelamente a essa mudança radical, a outras quatro circunstâncias: 1) às permanências de estruturas de poder no campo da produção e da reprodução, emergentes do capitalismo, do patriarcado e da colonialidade,2 que mesmo o processo revolucionário seria incapaz de fazer desabar completamente, incluindo nas instâncias do poder político; 2) aos grupos de trabalhadores que, no decurso desse processo, não dispuseram dos recursos e da voz coletiva para que as dinâmicas de redistribuição e reconhecimento que se seguiram ao 25 de Abril também os abrangessem; 3) aos hiatos entre as promessas inscritas na ordem jurídica relativamente a uma democracia laboral e o seu adiamento na prática das relações sociais; 4) à posterior desconstrução dessas promessas, designadamente no quadro de um amplo e estrutural movimento internacional de precarização, através do qual se foi exigindo aos governos nacionais, sobretudo a partir década de 1980, a decomposição da legislação protetora do trabalho e se foi exortando para a redução dos níveis de segurança das relações laborais e dos custos do emprego, a partir de uma retórica de “flexibilização” dos “mercados de trabalho” tidos, cada vez mais, como excessivamente “rígidos” (Antunes, 2008).
Na explosão democrática do período revolucionário, nem todos os segmentos do mundo do trabalho participaram da mesma forma nas lutas coletivas, nos mecanismos de organização e de representação, nem tiveram o mesmo reconhecimento de direitos na esfera normativa. Pense-se, por exemplo, em todas as atividades profissionais não declaradas, exercidas à margem da cobertura legal, regulamentar ou convencional e no conjunto dos trabalhadores informais e migrantes sem estatuto de cidadania (inclusive, mas não só, pelos obstáculos no acesso à nacionalidade), atirados para o outro lado do muro do contrato social, também no momento em que este surgia como promessa de justiça. Pense-se, ainda, no caso das trabalhadoras do serviço doméstico, menorizadas do ponto de vista social, económico, político e legislativo, mesmo depois da Revolução, e que só em 1980 veriam o seu trabalho enquadrado por um diploma legal de natureza laboral e não pelo Código Civil de 1867. Quando, em 1974, se instituiu o salário mínimo (DL 217/74); quando, em 1975, se criou o subsídio de desemprego (DL 169-D/75) ou se aprovou o regime legal dos despedimentos (DL 372-A/75); ou quando, em 1976, se aprovou a legislação sobre direito a férias, feriados e faltas (DL 874/76), as trabalhadoras domésticas remuneradas mantiveram sempre o mesmo estatuto de segregação legislativa que as excluiu de todas estas normas e direitos, reproduzindo-se no campo do emprego assalariado as divisões sexuais que estruturam o patriarcado e desvalorizaram historicamente o trabalho feminino na esfera da reprodução.
Na consideração do momento fundacional da nossa democracia e do que se lhe seguiu, há que refletir criticamente sobre o peso de desigualdades que nem o campo da mobilização social nem a esfera sociojurídica foram capazes de eliminar. Para alguns grupos sociais, o conjunto de promessas e de direitos que tiveram consagração na lei geral e na constituição nunca se realizaram. Esses hiatos não anulam o efeito extraordinário da transformação revolucionária, das conquistas convencionais e legais e das garantias constitucionais. Mas recordam-nos o quanto os processos laborais extravasam a dimensão da regulação jurídico-política, dependendo da conjuntura económica e da distribuição do poder social. Com efeito, as relações de trabalho não podem ser percebidas, nomeadamente num país da semiperiferia mundial, sem tomar em consideração as persistentes desarticulações e descoincidências entre o Estado formal e a realidade da não aplicação da lei, da sua aplicação seletiva ou da sua instrumentalização por grupos sociais com mais poder (Santos, 1985, 1993), revelando a discrepância entre comportamentos prescritos e efetivos e entre um Estado formalmente sólido mas na prática frágil e inconsequente em muitas das suas funções.
Finalmente, revisitar as “promessas de Abril” no campo do trabalho é também reconhecer que as suas condições institucionais e jurídicas de possibilidade começaram, em muitos casos, a ser desmanteladas antes mesmo de terem sido completamente concretizadas. Inicialmente, através da não aplicação das disposições constitucionais e legais e da falta de empenhamento político para as cumprir (Santos, 1993). Posteriormente, por intervenções externas com subsequentes mudanças legislativas para alterar essas disposições e orientações socioeconómicas. Mas também por escolhas de política económica, pela fragmentação e desmantelamento das unidades produtivas, pela dinâmica de privatização de bens e serviços, pela inação perante fenómenos evidentes de transgressão legal e por um crescente movimento de deslaboralização das relações de trabalho (Leite, 2013) que assume novas facetas na era da digitalização (Degryse, 2016).
Neste texto, analisaremos a evolução da regulação sociojurídica do trabalho no pós-25 de Abril, tomando como referência fontes documentais, estatísticas, diplomas legais e bibliografia disponível, identificando transformações na estrutura do emprego e caracterizando seis períodos distintos, entre 1976 e 2022, do enquadramento normativo e político das relações laborais em Portugal. Num segundo momento, procuramos sistematizar, a partir da análise anterior, o que julgamos serem as seis principais vias de fragilização do estatuto do trabalho na sociedade portuguesa do último meio século. Esse diagnóstico pretende ser um elemento para a reflexão necessária sobre as margens do mundo do trabalho e a marginalização do trabalho no perímetro da democracia.
1. Disputas e evolução da regulação sociojurídica do trabalho: uma visão diacrónica
Nos quase 50 anos que decorreram desde o 25 de abril de 1974, Portugal transformou-se profundamente, aproximando-se, nas décadas seguintes à Revolução de Abril, das tendências europeias em indicadores sociodemográficos e em áreas como a saúde, os perfis de escolaridade, as estruturas familiares ou o acesso a bens de consumo (Almeida et al., 2007). Mas o país confrontou-se também com a globalização capitalista tendo um Estado-providência frágil, desigualdades persistentes e “inconsistências institucionais” relevantes (Pinto & Pereira, 2006). O domínio das políticas de emprego e da regulação laboral viveu a tensão entre o projeto que resultou do 25 de Abril e as tendências e pressões neoliberais que o puseram à prova. Entre o tempo da Revolução e o presente, o país tem assistido - e também resistido - à erosão de garantias constitucionais, à multiplicação de modalidades precárias de emprego e de novas formas de informalidade laboral e a múltiplos processos de fragilização do estatuto do trabalho na sociedade.
Em menos de meio século, passou-se de um país rural e agrícola para um país de serviços - o setor terciário correspondia, em 2021, a 72,3% da atividade económica, tendo mais que duplicado face a 1974, de acordo com os Censos do INE (PORDATA, 2023). Este fenómeno está associado à expansão dos serviços públicos, à concentração populacional nas grandes áreas metropolitanas e, designadamente nos últimos 25 anos, ao aumento de profissionais intelectuais e técnicos (que quase quadruplicaram), mas também ao crescimento do trabalho pouco qualificado nos serviços (designadamente serviços pessoais, de proteção e segurança, comércio, alojamento e restauração) e à contínua diminuição do trabalho agrícola e do chamado “trabalho manual” (com uma quebra particular dos agricultores e trabalhadores qualificados da agricultura, da pesca e da floresta, bem como dos trabalhadores qualificados da indústria, construção e artífices), conforme indicam as Estatísticas do Emprego relativas à composição da população empregada por profissão principal (INE, 2024; PORDATA).
De entre as alterações estruturais da composição da força de trabalho, sobressaem ainda a consolidação da feminização do emprego, que se intensificou a partir da década de 1970 (as mulheres eram 39% da população ativa em 1974, e 50% em 2023); o aumento geral das qualificações (a população ativa com o ensino superior em 2023 era de 32%, rondando os 4% em 1981); o duplo envelhecimento, acompanhado pelo prolongamento da vida laboral em função do aumento da idade legal de reforma (o escalão etário dos 55-64 anos rondava os 10% em 1974 e atingiu os 19,7% em 2023); e o aumento vertiginoso da população estrangeira residente, incluindo a imigração laboralmente induzida - que de 32 mil pessoas em 1974 passou para 782 mil em 2022 (Gonçalves, 2021; INE, 2024; Oliveira, 2023).
Estas transformações não explicam, por si só, o que mudou no estatuto do trabalho. O retrato diacrónico de momentos-chave da evolução da ordem jurídica do trabalho, onde se disputam conceções sobre os seus sentidos e lugar, aliado à identificação de algumas escolhas e tendências de política económica, é essencial para pensar a realidade presente no confronto com as “promessas” da Revolução. É o que faremos de seguida, relacionando tendências e transformações com os diferentes blocos políticos no poder e com a capacidade de os intervenientes no sistema de relações laborais fazerem (ou não) valer as suas agendas no espaço do Estado-nação (referencial do conflito social e principal instância política de decisões submetidas ao escrutínio democrático), tendo ainda em conta fatores internacionais que o condicionam fortemente.
1.1. A “normalização democrática” e o FMI: readaptação social e desvalorização do trabalho
A rutura político-jurídica da Revolução de 1974, onde se afirma o projeto constitucional que pretendia “abrir caminho para uma sociedade socialista”, faz dos direitos no trabalho uma componente essencial da democracia. Com o 25 de Abril, reconheceram-se os atores institucionais que exprimiam (e ainda exprimem) a autonomia do trabalho organizado, mudaram-se vários aspetos da lei geral, atribuiu-se centralidade à contratação coletiva e o Estado assumiu um papel fundamental na mediação, regulação e fiscalização do cumprimento dos direitos laborais. A proporção do trabalho no rendimento nacional obteve valores inéditos, abeirando-se dos 60% em 1975, em resultado de uma relação de forças claramente desfavorável ao patronato que fez os salários reais aumentarem entre 21% e 25% (Louçã, 2020, p. 172).
Contudo, logo em 1977, o país é objeto de uma primeira intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI), que se prolonga pelos dois primeiros governos constitucionais - chefiados pelo Partido Socialista (PS) e pelo PS em conjunto com o Centro Democrático Social (CDS) - e ainda por um governo de iniciativa presidencial. Com as condicionalidades impostas pela assistência financeira e o respetivo “programa de ajustamento” inauguraram-se políticas de austeridade: desvalorização interna da moeda, subida dos juros, abertura comercial, redução do consumo e perdas salariais. Foi neste período que surgiram também as primeiras medidas de flexibilização da regulação do trabalho, com a aprovação em 1978 da lei dos contratos a prazo. Entre finais de 1976 e 1986, data da adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE), o país é objeto de uma segunda intervenção do FMI (em 1983), com uma nova desvalorização de salários (que terão caído 15%), o fim da unicidade sindical (a União Geral de Trabalhadores - UGT surge em 1978), a criação do Conselho Permanente de Concertação Social (em 1984) e o início da quebra no índice de sindicalização (de 60,8% em 1978 passou para 44,6% em 1985; cf. Sousa, 2011), motivada, entre outros fatores, pelo desmantelamento de concentrações industriais, pelo encerramento e fragmentação de grandes unidades produtivas, pela destruição de alguns setores do aparelho produtivo, além dos despedimentos e da precarização do trabalho.
O programa estabelecido pelo Governo junto do FMI apontava como objetivo “moderar os custos do trabalho” e “dar maior flexibilidade à utilização da mão-de-obra” (Lopes & Nunes, 1983, p. 9), que se materializou, por exemplo, nas alterações às condições de cessação do contrato de trabalho ou na aprovação do lay-off. Em 1983 iniciou-se também a abertura do setor financeiro à atividade privada, vedado por lei desde 1977. Em meados dos anos 1980, o aumento do desemprego ocorreu a par da substituição de empregos permanentes por empregos precários e os processos de descentralização produtiva multiplicaram a subcontratação e o trabalho domiciliário, numa lógica que permitiu reduzir custos e riscos para as empresas. A par do crescimento do trabalho domiciliário - profundamente feminizado e particularmente incidente nas indústrias do têxtil, vestuário e calçado do norte do país -, cresceu também o trabalho clandestino, nomeadamente na construção civil e nas obras públicas, e o trabalho infantil permaneceu como um fenómeno com expressão relevante (CGTP-IN, 1989; Silva, 2000).
1.2. A integração europeia e a modernização neoliberal
Um segundo período da regulação sociojurídica do trabalho pode ser balizado entre a adesão à CEE e as duas maiorias absolutas de Cavaco Silva (governos do Partido Social Democrata - PSD), entre 1986 e 1995. Ao nível europeu, a gramática da competitividade, da flexibilidade e da redução dos custos salariais definiram a agenda, num contexto de liberalização dos movimentos de capitais, do trabalho e dos centros de produção. Em Portugal assistiu-se a profundas transformações económicas, legislativas e da relação de forças. Abriu-se o caminho às privatizações, com a segunda revisão constitucional (em 1989, com os votos do PSD, PS e CDS) que pôs fim ao princípio da irreversibilidade das nacionalizações e com a lei-quadro das privatizações (em 1990). O processo consolidou a recomposição da burguesia após o “grande susto” do 25 de Abril (Costa et al., 2010). Do ponto de vista da regulação laboral, abriram-se várias frentes de precarização: permitiu-se a criação das empresas de trabalho temporário e ampliaram-se as cláusulas que autorizavam o recurso à contratação a termo (1989); aprovou-se o despedimento por inadaptação, alargou-se o período experimental e regulou-se o trabalho em comissão de serviço (1991); foi revista a lei da greve, remetendo para o governo a determinação e organização dos serviços mínimos e alargando os prazos de pré-aviso (1992); o regime geral de segurança social alargou a utilização dos “recibos verdes” (1993), dando início a um processo que, em menos de uma década, iria fazer destes um fenómeno central do mundo do trabalho. Na Administração Pública, surgiram os “tarefeiros” (pessoas com contratos de tarefa que pressupõem a execução de trabalhos de natureza excecional e sem subordinação hierárquica, mas que em muitos casos exercem funções permanentes). Foi também um período de encerramento de empresas e decréscimo da capacidade produtiva na metalurgia pesada, no material ferroviário circulante, nos estaleiros navais - nestes setores onde cresceu o trabalho temporário, a base de recrutamento era essencialmente composta por jovens à procura do primeiro emprego e desempregados (CGTP-IN, 1989, pp. 14-16). A segunda maioria de Cavaco Silva foi marcada pelo progressivo desmantelamento das Unidades Coletivas de Produção (de mais de 500 restavam menos de 50 em 1995), por uma vaga de despedimentos em grandes empresas (com as dificuldades impostas pela liberalização do comércio internacional) e pelo aumento do número de desempregados.
Em contrapartida, foram introduzidas na agenda política preocupações de outra natureza: aumenta a escolaridade obrigatória; é ativado um plano de combate ao Trabalho Infantil; expandem-se os órgãos de fiscalização das relações laborais - o Instituto de Desenvolvimento e Inspeção das Condições de Trabalho é criado em 1993; o Acordo Económico e Social do final de 1990 estabelece uma redução gradual do período normal de trabalho para as 40 horas, a alcançar em 1995; institui-se o 14.º mês para os reformados. O afluxo financeiro oriundo dos fundos comunitários envolveu também o movimento sindical, chamado a organizar, gerir e executar ações de formação profissional financiadas pelo dinheiro vindo da CEE (Nunes, 2020). É nessa primeira metade de 1990 que as duas centrais sindicais estabelecem relações pela primeira vez e que a Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP) assume os seus lugares na Comissão Permanente de Concertação Social.
1.3. O trabalho num mercado liberalizado: flexibilidade com mais proteção social
O período que sucedeu ao cavaquismo correspondeu aos governos chefiados por Guterres em maioria relativa do PS. A política económica sintonizou-se com a estratégia europeia marcada pelas orientações que viriam a constar no Tratado de Amesterdão, assinado em 1997: aumento da competitividade pela flexibilização do trabalho, prioridade ao controlo e à diminuição dos défices dos Estados. A partir de 1998, com a adesão à moeda única, e a introdução do euro em 2002, a política monetária passou a ser definida pelo Banco Central Europeu (BCE) e pelas regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento.
Os mandatos de Guterres aceleraram as privatizações, num total de 37 empresas, incluindo a Brisa e a Portugal Telecom. Ao mesmo tempo, houve uma alteração de orientação quanto à contratação coletiva, que foi revalorizada e cresceu em abrangência, e às políticas de proteção social, que foram objeto de um reforço orçamental. Criou-se o Rendimento Mínimo Garantido, reforçou-se a proteção no desemprego, na velhice, na doença e na invalidez. Em vários domínios, assinaram-se acordos de concertação social que, pela primeira vez, foram subscritos também pela CGTP: sobre emprego e formação e sobre redução e sinistralidade laboral (em fevereiro de 2001) e sobre proteção social (em novembro do mesmo ano), incluindo a questão da segurança social pública e a sua sustentabilidade.
Do ponto de vista laboral, o aumento da percentagem dos contratos não permanentes no total dos contratos em Portugal prosseguiu (de cerca de 10% em 1995 para cerca de 20% em 2001; cf. Dray, 2016, p. 6). Mas o Estado procurou dar exemplos em direção contrária, nomeadamente com um processo especial de “regularização da situação jurídica daqueles que ao longo dos últimos anos foram sendo admitidos irregularmente, através dos chamados ‘recibos verdes’, para satisfação de necessidades permanentes dos serviços públicos”, aprovado em 1997 (DL 195/97). Ao mesmo tempo, alterou-se o regime do emprego público, passando a prever-se o contrato individual de trabalho.
Um dos diplomas mais simbólicos deste período foi o da redução do horário de trabalho para as 40 horas semanais. A sua aprovação, em 1996, e posterior aplicação foi atribulada, com disputas em torno da flexibilização dos horários e polivalência de funções, e uma polémica sobre a contagem ou não do tempo de pausa para o período máximo de trabalho, que só terminaria em 1998, vingando a consideração das pausas como parte integrante do horário de trabalho (Lei 73/98).
1.4. A consolidação de uma sociedade precária
Entre 2002 e 2011 viveu-se um quarto período da governação do trabalho, cuja marca legal foi a aprovação do Código do Trabalho de 2003 (Lei 99/2003) por uma maioria PSD-CDS/PP. No diploma, consagraram-se transformações que perduram até hoje e continuam a suscitar acesos debates: entre outras, a caducidade das convenções coletivas de trabalho que deu lugar a vazios convencionais e se assumiu como um instrumento central de desequilíbrio das relações coletivas de trabalho, e ainda a eliminação do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador (Lima, 2017). O diploma, que motivou a convocação de uma greve geral (o que não acontecia desde 1988), incluía ainda, por exemplo, o alargamento dos contratos a termo até seis anos, a redução das compensações por cessação de contrato ou a alteração do horário noturno (que passou a ser considerado a partir das 22 horas). O governo chefiado por Durão Barroso prosseguiu o programa de privatizações (nomeadamente com a venda da rede fixa da Portugal Telecom), aprovou uma nova lei da segurança social (que alterou as regras do acesso à pensão de velhice), empresarializou hospitais públicos e, com consequências materiais e força simbólica, substituiu o Rendimento Mínimo Garantido pelo Rendimento Social de Inserção.
Em 2008, depois das iniciativas do Livro Branco e do Livro Verde sobre as Relações Laborais e de um debate público marcado pela agenda da flexigurança, uma nova maioria, agora do PS, aprovou alterações ao Código de Trabalho que confirmaram, entre outras matérias, o retraimento do princípio do tratamento mais favorável (apenas salvaguardado num determinado leque de matérias) e da caducidade das convenções coletivas e instituíram o banco de horas e mecanismos de simplificação do processo para os despedimentos individuais. Simultaneamente, adotaram-se medidas com o objetivo de contrariar o prolongamento dos contratos a termo certo, cujo limite voltou aos três anos, bem como incentivos à contratação sem termo, através da possibilidade de diminuir em 1% a Taxa Social Única das entidades empregadoras. Os debates políticos desse ano são marcados pelo tema da precariedade, designadamente contratos a prazo, “falsos recibos verdes” e proteção social dos intermitentes.
No campo das mobilizações sociolaborais, este período assistiu à emergência de um conjunto de organizações autónomas de trabalhadores precários em resposta ao esgotamento de estratégias sindicais eficazes perante a flexibilização e a multiplicação de estatutos contratuais; à ausência de contratos de trabalho mesmo em contextos de trabalho subordinado; à ausência de tradição sindical em profissões liberais que sofreram processos de assalariamento; à ausência de reconhecimento, pelo universo sindical, de determinadas atividades como sendo trabalho; e à ausência de priorização de determinados grupos sociais como sendo suscetíveis de representação sindical e alvos potenciais de recrutamento (Soeiro, 2015, pp. 190-200).
1.5. O regime da austeridade
A partir de 2011 acentuou-se uma “reconfiguração neoliberal do regime de emprego e de relações laborais” (Lima, 2014), com duas vertentes: por um lado, a desvalorização dos salários, das condições de trabalho, da proteção assegurada pelas convenções coletivas, a facilitação do despedimento e a redução da proteção no desemprego; e, por outro, uma estratégia que passou pela erosão da negociação sectorial e da cobertura das convenções. Do ponto de vista da política económica, existiu uma radicalização da agenda neoliberal, tendo como resultado a compressão da procura e do poder de compra, a recessão, a descida de salários, o acréscimo de assimetrias na relação laboral, a redução da capacidade produtiva e o aumento das desigualdades (Reis, 2014, pp. 15-18). A alteração não foi apenas quantitativa, de grau ou intensidade, mas introduziu uma nova lógica política e sociológica, assente em ruturas violentas que se legitimaram pela invocação de um “estado de emergência” que exigiria sacrifícios em nome do bem comum e no qual o direito do trabalho se reduziu “a mais um fator de troca visando a obtenção de apoios financeiros” (Ferreira, 2014, pp. 29, 48). A combinação de atores eleitos (o Governo) e não eleitos (a Troika, constituída pelo FMI, BCE e Comissão Europeia), o recurso a um direito de exceção e a uma forma de governação baseada no medo caracteriza a “sociedade da austeridade” (Ferreira, 2012), instalada pela tripla via da privatização dos bens públicos, da individualização dos riscos sociais e da mercadorização da vida social.
No domínio especificamente laboral, o Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica, assinado em maio de 2011 entre o Governo português e a Troika, previa a facilitação do despedimento e a redução subsequente das indemnizações, a revisão das regras de contratação coletiva, a redução do pagamento pela prestação de horas extraordinárias e o compromisso de suspender o aumento do Salário Mínimo Nacional, a menos que houvesse retoma económica. O documento determinava ainda uma estratégia de “desvalorização fiscal” com o objetivo de conseguir, através da redução da fiscalidade aplicável às empresas, os efeitos económicos de uma desvalorização cambial (Abreu et al., 2013, p. 71). Um acordo de concertação social, de janeiro de 2012, veio a incluir grande parte destas intenções, concretizadas entre 2011 e 2013: cortes salariais da Função Pública e, para todos os trabalhadores, corte de 50% no subsídio de Natal de 2011, supressão para os assalariados de entidades públicas e para os pensionistas dos subsídios de férias e de Natal nos anos seguintes (o que suscitou oposição do Tribunal Constitucional, que declarou a medida inconstitucional, tendo esta vigorado apenas em 2012), eliminação das promoções e progressão nas carreiras, redução das compensações por despedimento e facilitação das regras do mesmo, redução de três dias de férias e de quatro feriados, ampliação do banco de horas, redução da duração do subsídio de desemprego e desvalorização dos sindicatos na contratação coletiva (Leite et al., 2014).
As alterações ao Código de Trabalho (Lei 23/2012) operaram uma desvalorização económica e social dos trabalhadores sem precedentes. De acordo com os cálculos de Leite et al. (2014), estas resultaram numa vantagem para os empregadores estimada, por defeito, entre os 2,1 e 2,5 mil milhões de euros. Para além dos efeitos na regulação do trabalho, a austeridade teve consequências fundas na população ativa, com a perda de 191,4 mil empregos entre 2011 e 2014 e uma vaga de emigração, envolvendo mais de 350 mil pessoas só para destinos europeus (cf. Góis & Marques, 2018).
Um novo ciclo de ação coletiva, entre 2011 e 2014, produziu alguns dos maiores protestos a que Portugal assistiu desde o 25 de Abril e quatro greves gerais (Estanque et al., 2013; Lima & Artiles, 2014). Protagonizado por uma “galáxia antiausteritária”, articularam-se associações, organizações sindicais e partidárias, coletivos e iniciativas forjando uma aliança de oposição à austeridade, através de plataformas com uma duração efémera (Plataforma 15 de Outubro e Que se lixe a Troika), mas com grande poder de convocatória. Na contramão da precarização, e fruto da pressão do protesto social, as organizações de precários conseguiram suscitar, em contraciclo, uma alteração pontual da legislação laboral: a Lei 63/2013, aprovada em julho desse ano na sequência de uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos, que instituiu mecanismos de combate aos “falsos recibos verdes” (cf. Soeiro, 2015).
1.6. Recuperação de direitos sob um padrão de desequilíbrio
A partir de 2015, verificou-se uma recuperação económica, embora moderada. O aumento das exportações e o crescimento do turismo (com o correspondente aumento do emprego nas atividades de alojamento e restauração) deram um contributo decisivo. No final do ano, uma alteração política leva o PS ao Governo, suportado num acordo parlamentar, pela primeira vez, com os partidos à esquerda: Bloco de Esquerda, Partido Comunista Português e Os Verdes. A “geringonça”, como ficou conhecida a solução política de então, trouxe, sob o mote da “recuperação de rendimentos”, uma série de reversões em contraponto à política de austeridade. No campo da regulação laboral, as medidas imediatas mais simbólicas foram a reposição dos quatro feriados eliminados no período anterior e um compromisso para a subida anual do salário mínimo nacional (20% na legislatura). No âmbito da proteção do desemprego, pôs-se fim ao corte de 10% no subsídio ao fim de seis meses e à obrigação de apresentação quinzenal, dispositivo de controlo tido como inútil e humilhante.
No período entre 2015 a 2019, estabeleceu-se ainda o Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública e no Setor Empresarial do Estado, um processo longo, com aplicação muito desigual nos diferentes setores da Administração Pública, mas que levou ao reconhecimento do vínculo efetivo de cerca de 20 mil trabalhadores, que desempenhavam necessidades permanentes através de “falsos recibos verdes”, contratos a termo, contratos de emprego-inserção, estágios ou de empresas privadas de colocação de mão de obra ou de outsourcing.
Novos enquadramentos legislativos foram aprovados em matérias como o assédio no trabalho, a transmissão de estabelecimento ou o combate ao trabalho forçado. No final da legislatura, o Governo apresentou uma proposta de lei - submetida à concertação social e objeto de acordo (com exceção da CGTP) - com um conjunto de alterações à lei laboral, entre as quais a redução da duração dos contratos a prazo, a redução do número máximo de renovações dos contratos de trabalho temporário, mas também a duplicação do período experimental para trabalhadores à procura do primeiro emprego e para desempregados de longa duração. Outras matérias, provenientes de alterações legais de ciclos anteriores, mantiveram-se inalteradas. Entre as que suscitaram maior debate e confrontos políticos encontram-se as normas relativas à caducidade das convenções coletivas, o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador e as regras dos despedimentos (nomeadamente o valor das compensações).
Neste período, houve uma expressiva recuperação do emprego, que acelerou em relação a 2015. Entre esse ano e 2019, a taxa de desemprego dos jovens (15-24 anos) passou para metade e o número de desempregados de longa duração diminuiu em dois terços (Gonçalves, 2021). A recuperação de mais de meio milhão de empregos (com o correspondente aumento da população empregada) não significou, contudo, uma mudança no padrão do emprego nem uma recuperação face à intensa desvalorização salarial iniciada em 2010 (Dray, 2016), com os salários a crescer abaixo da produtividade. Para isso, terá contribuído o facto de uma parcela importante do emprego criado pertencer a setores de atividade, como o alojamento e a restauração, caracterizados pela rotatividade do emprego, salários baixos, informalidade e poucas qualificações exigidas. Entre os trabalhadores por conta de outrem, 22% continuavam, em 2018, com um contrato a termo certo e quase metade dos novos contratos registados no Fundo de Garantia do Trabalho eram contratos a prazo. O precariado (que inclui ainda “falsos recibos verdes”, trabalhadores temporários e informais) não diminuiu substancialmente em número. O peso dos salários no PIB também não sofreu uma grande variação: de 43,63% em 2015, alcança 45,29% em 2019 (DataLABOR & INE, 2023). Ou seja, a distribuição da riqueza entre o capital e o trabalho manteve-se relativamente estável.
Já com um novo governo de maioria absoluta do PS, foi aprovado, em 2023, um extenso pacote de alterações à legislação do trabalho, designadamente na sequência do Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho (Moreira & Dray, 2022). Entre as matérias reguladas, destaca-se uma nova presunção de laboralidade para enquadrar o trabalho em plataformas digitais, pequenos ajustes na lei do serviço doméstico, novos mecanismos que alargam a arbitragem e o perímetro da contratação coletiva e limitam o recurso ao outsourcing em certas circunstâncias.
2. As múltiplas vias da fragilização do estatuto do trabalho na sociedade portuguesa
Tendo em conta este percurso desde o 25 de Abril, é necessário constatar que a regulação do trabalho atual é simultaneamente uma herança da Revolução e uma rutura com ela. Herança, na medida em que alguns dos preceitos constitucionais consagrados desde 1976 foram sendo pilares de construção de lutas sociais, entraves a uma fragilização mais acentuada do mundo do trabalho, instrumentos de resistência à precarização e referências simbólicas de aspirações de justiça no trabalho. Herança, ainda, no sentido em que as últimas décadas assistiram a alguns progressos sociais e regulatórios em áreas mais incipientes, sobretudo no campo da proteção social. Mas também rutura em relação ao 25 de Abril e ao seu legado, na medida em que Portugal tem vivido, nos últimos 45 anos, um processo acentuado de desconstrução de enquadramentos protetores do estatuto do trabalho, que não foi, como procurámos demonstrar, estruturalmente invertido. O quadro normativo das relações laborais que temos foi-se legitimando, em parte, contra a própria memória do período revolucionário, do seu legado constitucional e das suas práticas de mobilização.
Acresce que parece haver um número cada vez maior de trabalhadores que vão sendo atirados para o “outro lado do muro” do direito do trabalho (Amado, 2023), designadamente trabalhadores precários, informais e imigrantes. Contam-se dentro deste contingente, por exemplo, os trabalhadores da agricultura intensiva em Odemira ou da apanha ilegal de amêijoa no Tejo; os trabalhadores de novo tipo da era digital, com os motoristas e estafetas das plataformas digitais à cabeça; mas também segmentos qualificados dos “desemprecários” e das classes médias empobrecidas (Soeiro, 2015). O crescimento destas situações de precariedade, ainda que dê origem a novas formas de mobilização, não é acompanhado por um recrudescimento da filiação sindical, configurando um contexto hostil à organização coletiva. Na sequência do olhar diacrónico anterior, procuraremos de seguida sistematizar e caracterizar as principais vias de precarização e fragilização do trabalho na sociedade portuguesa.
2.1. Produtos juslaborais de insecuritização
Como se conclui da análise anterior, um dos principais mecanismos de fragilização do estatuto de emprego foi a inscrição na lei de inúmeras e crescentes modalidades de emprego não permanente. Os seus produtos juslaborais mais relevantes são o período experimental (que vem sofrendo uma extensão desde os anos 1990), os contratos a prazo e a ampliação dos seus fundamentos, os contratos de trabalho temporário e os contratos de muito curta duração. Na análise das formas precárias de emprego, há que somar ainda o trabalho a tempo parcial involuntário e formas de enquadramento da atividade que, tendo regulação legal, estão fora do âmbito das leis do trabalho, como as bolsas de investigação. São modalidades legais potencialmente precárias, às quais corresponde uma menor proteção jurídica e social, seja pela possibilidade mais ampla de cessação do contrato, seja pelo estatuto rebaixado em termos do enquadramento na segurança social (por exemplo, não dando acesso a subsídio de desemprego em caso de extinção da relação de trabalho, como acontece com bolsas ou no período experimental).
A essas figuras vêm-se somando modalidades de precarização assistida pelo Estado através de políticas públicas como os chamados “programas ocupacionais”, que enquadram a realização de “trabalho socialmente necessário” por parte de grupos considerados vulneráveis (desempregados, pessoas com deficiência, ex-reclusos ou vítimas de violência doméstica). Nestas modalidades, a prestação de trabalho faz-se contra o recebimento do subsídio de desemprego, a que se soma uma bolsa mensal complementar (em 2023, no valor de 96 euros mensais) ou, no caso de pessoas que não sejam beneficiárias de prestação de desemprego, de uma “bolsa de ocupação mensal” no valor do indexante dos apoios sociais (em 2023, cerca de 480 euros). Devem ainda ser considerados os estágios profissionais financiados pelo Estado, com duração de nove meses não prorrogáveis (o que implica a inexistência de período de garantia para aceder à proteção de desemprego) e aos quais não corresponde um contrato de trabalho - mas sim uma outra modalidade legal, o contrato de estágio, cujo enquadramento legal foi recentemente alterado - nem um salário, mas antes uma bolsa de estágio.
2.2. Os “usos alternativos” da lei
A transgressão da lei laboral tem particular relevância no caso português, por serem comuns os “usos alternativos do direito”, a descoincidência entre normas legais e práticas sociais, a simulação e fraude à lei, a manipulação dos enquadramentos legais e os processos de mercadorização e de “aplicação seletiva” do direito por parte dos empregadores (Ferreira, 2012, 2019). Uma prática comum é a utilização indevida dos contratos a prazo ou dos contratos de trabalho temporário muito para além dos fundamentos que a lei prevê, enquadrando necessidades permanentes através de figuras contratuais não permanentes, frequentemente com grande rotatividade. O recurso indevido à prestação de serviços (os chamados “falsos recibos verdes”) dissimulando relações de trabalho subordinado que são enquadradas com estatutos laborais de trabalho independente, tem como consequência a não aplicação das regras gerais da lei do trabalho e a responsabilização do trabalhador pelo conjunto dos descontos para a segurança social (exceto nos casos em que exista dependência económica, situação em que há uma certa repartição de contribuições). É uma das facetas mais visíveis do precariado em Portugal, tendo originado inúmeras mobilizações coletivas, debate público e intervenção legislativa, sobretudo a partir de 2008.
2.3. Trabalho informal, trabalho clandestino e trabalho não remunerado
Calcula-se que o peso da economia não registada em Portugal tenha vindo a crescer de forma significativa: se na década de 1970 rondava os 10%, corresponderia em 2022 a 34% (Afonso, 2023), de acordo com algumas estimativas. A informalização das relações de trabalho profissional, com grande peso em vários setores, desde o serviço doméstico ao turismo, da hotelaria à construção civil, configura uma relação salarial em que não existe formalização de contrato nem descontos para os sistemas de proteção social. Mesmo se, por vezes, complementa relações formais de emprego, esta é uma faceta da precarização.
No passado, os debates em torno do trabalho infantil e do trabalho ao domicílio tiveram centralidade na agenda sindical e política. Atualmente, o trabalho clandestino, isto é, aquele que não é apenas informal mas se baseia num estatuto de cidadania mais frágil, ou mesmo na ausência de regularização da cidadania de trabalhadores migrantes, tem emergido no espaço público por conta de fenómenos relacionados com a exploração agrícola intensiva, por exemplo. A presença cada vez maior de trabalhadores migrantes em setores como o serviço doméstico, os cuidados, as limpezas, a restauração e o alojamento dão novo relevo ao fenómeno.
Já a ausência de reconhecimento de certas atividades como trabalho, mais raramente objeto de estudo pela sociologia, engendra também formas de expropriação de trabalho não remunerado que assentam em representações sobre o que é e o que não é trabalho, criando formas de dependência e subordinação (no caso das famílias, dependência dos membros que têm trabalho remunerado) e vulnerabilidade económica. Para além de todo o volume de cuidados informais que dependem do trabalho não remunerado, sobretudo de mulheres, há outros mecanismos de expropriação de trabalho não pago que se têm ampliado. É o caso dos concursos de ideias, através dos quais o trabalho de conceção de um determinado projeto ou objeto é exercido de forma gratuita, sendo depois apropriado pela entidade promotora; ou formas de voluntariado não remunerado em contextos ambíguos onde existe uma retribuição simbólica, associada ao caráter lúdico ou prestigiante das atividades desenvolvidas e ao capital simbólico das instituições em que elas são desempenhadas (por exemplo, festivais de cinema, instituições culturais de relevo), mas que serve para preencher necessidades permanentes das instituições através de um trabalho mais ou menos qualificado a custo zero ou próximo disso.
2.4. A vulnerabilidade à concorrência e a precarização pela gestão económica
A exposição da economia à concorrência internacional e à divisão internacional do trabalho é também uma fonte de fragilização do trabalho, instabilizando os seus vínculos jurídicos pela possibilidade da deslocalização da produção, do desmantelamento ou da fragmentação das unidades produtivas. Com um tecido produtivo fragmentado, pouco qualificado e sobreendividado, os principais grupos económicos a apostarem em atividades de natureza rentista, uma população com qualificações abaixo da média europeia, um endividamento externo crescente e uma escassa capacidade de concorrência internacional (Abreu et al., 2013, p. 140), as características e escolhas da economia portuguesa contribuíram nas últimas décadas para a degradação do trabalho.
Por outro lado, a precarização do trabalho tem operado pela externalização de serviços e pela intermediação laboral, assente em três técnicas principais de gestão empresarial: i) outsourcing ou terceirização, através da qual uma determinada atividade passa a ser prestada por uma empresa externa, subcontratada, e no espaço da empresa utilizadora passam a coexistir trabalhadores com diferentes estatutos, empregadores, enquadramentos laborais e sem uma representação coletiva unificada; ii) a fragmentação empresarial em unidades económicas distintas, por vezes do mesmo grupo, escapando à aplicação de instrumentos de regulamentação coletiva existentes; e iii) o recurso à subcontratação como fornecimento de mão de obra, utilizando indevidamente empresas prestadoras de serviços para fornecer trabalhadores à empresa utilizadora.
Trata-se de uma precariedade associada a estratégias de gestão; ao ciclo de vida da empresa (cerca de 150 mil morrem em cada ano); à flexibilização não apenas da temporalidade do trabalho mas também do seu espaço (precariedade via deslocalização); às debilidades de uma estrutura empresarial constituída por muitas empresas (1437 mil em 2022), muito pequenas (63,5% empregavam apenas um a quatro trabalhadores, em 2022; cf. GEP, 2023, p. 21) e pouco sólidas financeiramente; à fragmentação de unidades produtivas (como sucedeu em empresas privatizadas entre 1990 e 2005).
2.5. A deslaboralização pela “emprecarização”
Um dos mecanismos de fragilização do trabalho que mais se tem desenvolvido, adquirindo novas modalidades na era digital, é a deslaboralização das relações de trabalho (Leite, 2013), através de imaginativas engenharias contratuais. Estas transformam relações de subordinação jurídica em contratos entre iguais, celebrado por duas organizações empresariais (Amado, 2023), subjetivando-se a empresa através do fenómeno dos “emprecários” (trabalhadores precários que são formalmente empresários por conta própria) e que atiram trabalhadores para fora do perímetro do direito do trabalho (Lorusso, 2019; Silva, 2022; Soeiro, 2015).
Este processo ocorre por duas vias. A prestação de serviços através do trabalho independente, que é atravessada por condições materiais de remuneração e autonomia muito diferenciadas, mas que em Portugal redunda frequentemente na situação dos “falsos recibos verdes”. E o enquadramento dos trabalhadores através de figuras jurídicas empresariais (nomeadamente os “empresários em nome individual” e as “empresas unipessoais”, ou o chamado “estabelecimento individual de responsabilidade limitada”), estimuladas por regimes fiscais e de segurança social menos onerosos que os do trabalho independente (e muito mais onerosos para o trabalhador que o contrato de trabalho por conta de outrem), que permitem às empresas escapar às responsabilidades empregatícias e à corresponsabilização contributiva.
A plataformização do trabalho (Srnicek, 2016), ou “uberização” como é também conhecido o fenómeno, radicaliza o processo, introduzindo uma grande transformação nos modos de organizar, regular, controlar e gerir o trabalho. Neste “modelo de negócio” não existem responsabilidades laborais por parte das empresas detentoras das aplicações, vinga o modelo de crowdsourcing (Howe, 2006) que supõe que as empresas são meras mediadoras entre consumidores e “prestadores de serviços”. Assim, não se aplicam a lei geral do trabalho, os mecanismos de proteção social nem os instrumentos de relações coletivas de trabalho, desprotegendo por completo um contingente de trabalhadores que, em Portugal, se calcula ser superior a 80 mil pessoas, com propensão de crescimento na Europa nos próximos anos (Costa et al., 2022).
2.6. A debilitação da contratação coletiva
A sociedade portuguesa tem sido caracterizada pela heterogeneidade das normas laborais, pela performatividade do diálogo social, pela fraca institucionalização das formas de resolução dos conflitos no trabalho, pelo bloqueamento progressivo da negociação coletiva e pela manutenção, em vários territórios, de modelos de gestão de natureza despótica (Ferreira & Costa, 1998/1999; Dornelas, 2010). A debilitação da contratação coletiva tem operado por três vias: i) através de normas legais, que permitem a caducidade unilateral das convenções, a degradação dos conteúdos dos acordos pela possibilidade de normas menos favoráveis que a lei geral e o estímulo aos free riders (que transformam um direito coletivo num menu de escolha individual); ii) com a exclusão do acesso de um número crescente de trabalhadores a mecanismos de voz coletiva e às formas instituídas de representação dos trabalhadores, colocando-os à margem do perímetro de representação de uma comissão de trabalhadores, de um sindicato e dos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho; e iii) através da precarização dos vínculos, com a multiplicação de estatutos contratuais e a deslaborização de relações de trabalho, tornando difícil e arriscada a participação coletiva e desarticulando solidariedades construídas a partir do espaço do trabalho.
Esta fragilização das relações coletivas de trabalho exprime-se em alguns indicadores. Por exemplo, no número de trabalhadores sindicalizados (de 1487 mil em 1978 para 615 mil em 2019) ou na taxa de cobertura das convenções coletivas revistas (cerca de 30% em 2018, quando era mais de 60% uma década antes) (cf. Lima & Naumann, 2023). Por outro lado, a substituição da negociação bilateral pelo espaço da concertação social tem sido acompanhada por uma governamentalização da agenda desta e sofre de significativas entorses, designadamente pelos mecanismos de exclusão de alguns atores e pela distorção do sistema de representatividade de cada parte (Hespanha et al., 2017, p. 399).
Nota conclusiva: a democracia laboral e os muros dos direitos do trabalho
Nos anos que se seguiram à Revolução, a construção da democracia foi enquadrada por uma hegemonia que fazia com que mesmo forças hoje situadas mais à direita do espectro político afirmassem então que “não há verdadeira democracia sem socialismo, nem socialismo autêntico sem democracia” (PPD, 1974, p. 13). A Constituição de 1976 foi a expressão máxima, do ponto de vista normativo, da relação de forças saída do processo revolucionário. O estatuto dado ao trabalho era central no projeto democráctico e os trabalhadores assalariados conquistaram uma proporção do rendimento nacional maior do que alguma vez tiveram. As décadas que se seguiram foram, todavia, de intensas transformações. Com momentos de tensão, inflexão e movimentos contraditórios, operou-se uma progressiva desconstrução do estatuto económico e sociojurídico do trabalho, reproduzindo-se e acentuando-se desequilíbrios estruturais na distribuição do rendimento e multiplicando-se as vias de precarização e fragilização laboral.
Nos últimos 50 anos, a configuração e o perfil do emprego em Portugal sofreram transformações estruturais, marcadas pela terciarização da atividade económica, pela feminização da população ativa, pelo aumento de qualificações e pelo crescimento vertiginoso da população estrangeira empregada. Do ponto de vista da regulação do trabalho, multiplicaram-se mecanismos de desconstrução de quadros normativos protetores do emprego, através de produtos juslaborais de insecuritização, de usos alternativos da lei, da clandestinização e não remuneração do trabalho, da vulnerabilidade às flutuações do mercado, da deslaboralização de um conjunto crescente de atividades e da debilitação da contratação coletiva. Temos, assim, uma exclusão de vastos contingentes do mundo do trabalho das “promessas de Abril”, seja pelo regresso de formas pré-contratuais de enquadramento laboral (os subalternos atirados para o exterior da cidadania laboral), seja pela inclusão em modalidades contratuais de emprego precário (os subalternos do interior do direito do trabalho). Estes fenómenos põem em causa dimensões centrais da democracia no trabalho: a autonomia, concretizada na negociação coletiva; o direito à representação; a capacidade de participação; a possibilidade de influência nas decisões que determinam a vida laboral (Eurofound, 2023).
Se aceitarmos, com Supiot (2022), que os três pilares da justiça social são os serviços públicos, a segurança social e o direito do trabalho, impõe-se um olhar crítico para o estado da democracia laboral em Portugal, na medida em que a desconstrução de direitos e proteções do trabalho comprimem e diminuem o perímetro da própria democracia política. Com efeito, a atual dinâmica de fragilização do estatuto do trabalho na sociedade portuguesa - com o ressurgimento de laços de dominação, de “cadeias de irresponsabilidade” e de mecanismos de mercantilização de todas as atividades e da própria natureza - confronta-nos com a necessidade de pensar a ação coletiva e as políticas de desprecarização, reincrustando a economia na sociedade e combatendo a ampliação do número de cidadãos que ficam nas margens ou do “outro lado do muro” do direito do trabalho.