Introdução
Descemos do ônibus em um salto, o motorista arranca levantando poeira da beira da estrada, do outro lado da faixa está a maldita casa. Um jovem muito magro e de cabeça raspada caminha quase se arrastando pela cerca que fecha a frente do pátio do lugar. Estranha cena essa. Na minha memória, o rapaz parece correr em câmera lenta, tudo acontece muito devagar. O tempo perde velocidade lá dentro? Ficamos à frente do portão durante um tempo, ninguém nos atende, não há campainha nem interfone. Alguns moradores se aproximam para conversar. Pedimos ajuda para um dos moradores, que animado sai em disparada avisar um funcionário de nossa chegada. O portão abre, somos cercados por curiosos que nos cumprimentam, nos abraçam, nos beijam, nos contam histórias. (Diário de campo, 29/08/2018).
Iniciamos as entrevistas. Uma das primeiras a serem convidadas para participar é Flávia1, uma mulher de 35 anos, que faz um esforço para se manter imóvel, mas as mãos tremem muito. Ela fica envergonhada e pede desculpas, nos explica que os remédios a deixam assim, sem conseguir parar de tremer. A entrevista acontece tranquilamente, até o momento da fatídica pergunta (sempre ela): Flávia, você sabe por que está aqui? Ela para por um segundo, o olhar fica um pouco distante, mas logo responde. “Eu não sei… estava no hospital, minha filha tinha nascido, e quando fui sair de lá, ao invés de me levarem para casa, o motorista me trouxe para cá. Acho que ele se enganou, mas parece que agora vão vir me buscar”. Faz três anos que Flávia está internada neste estabelecimento. (Diário de campo, 12/09/2018).
Luís entra na sala desconfiado, nos cumprimentamos, ele senta e fica com a cabeça baixa. Luís tem um olhar triste, mas um jeito de falar tranquilo. Ele nos conta um pouco da sua vida, do trabalho no garimpo, de um filho que teve e que a mãe não quis reconhecê-lo como pai na certidão do menino. Quando perguntamos por que ele está ali, novamente o olhar triste. “Eu estava deprimido, fumei maconha, e me trouxeram para cá. A médica disse que foi por causa da maconha. Mas eu acho que não tem nada a ver, né? Internar uma pessoa por causa disso?”. Luís está há 11 anos institucionalizado. Em meio a outras perguntas da entrevista, Luís nos fala: “Sabe, se eu pudesse, eu gostaria de voltar para minha casa, voltar a trabalhar no garimpo, eu tenho saudades de lá”. Nesse momento Luís suspira, como quem se depara com a tristeza do desencontro entre o desejo e a realidade concreta. Aquele suspiro me atinge em cheio, sinto tristeza e vergonha por ajudar a resgatar essa memória. Mais uma vez, fico pensando como deve ser aniquilador se manter lúcido em um lugar como esse. O manicômio é uma máquina moedora de desejos (Diário de campo, 26/09/2018).
Como narrar experiências de um lugar sem nome? O que é que algo inominável nos diz? São questões como essas que reverberam nos gélidos corredores dos estabelecimentos de internação psiquiátrica, sejam eles hospitais psiquiátricos remanescentes, comunidades terapêuticas ou outros espaços de internação que mimetizam e atualizam os antigos manicômios. O que insiste em pesar na atmosfera destes lugares, e que se faz sentir no corpo de quem adentra estes estabelecimentos, é o silêncio. Um silêncio que demarca o peso da força que a institucionalização promove de esvaziamento destas existências, a ausência de intensidade que estes espaços promovem, um amorfismo institucional que explicita seu maior efeito: o de vidas desperdiçadas.
Vidas que são como se não tivessem existido, vidas que só sobrevivem do choque com um poder que não quis senão aniquilá-las, ou pelo menos apagá-las, vidas que só nos retornam pelo efeito de múltiplos acasos, eis aí as infâmias das quais eu quis, aqui, juntar alguns restos. (Foucault, 1975/2006, p. 207)
Ao ser despedaçado pela experiência do encontro com aqueles que seguem sendo apagados pelo poder (a)normalizante, a tarefa do pesquisador parece ser juntar os próprios cacos para seguir denunciando a existência destas vidas. Com todo o constrangimento e consternação que a tarefa promove, cumpre-nos encarar o fato de que a lógica manicomial e seus equipamentos mais inescrupulosos jamais foram superados. Aqui apresentamos sua faceta mais terrível, aonde ela se manifesta da forma mais viva possível.
A tarefa de escrever mobilizados por estas histórias convoca-nos a escrever desde a questão deleuziana acerca da tarefa da escrita do que não sabemos ou sabemos mal (Pelbart, 1989). É na extremidade de nosso próprio saber, que se encontra no limiar entre a sabedoria e a ignorância, que somos capazes de transformar o reconhecimento de “um” em “outro”. Não se trata de uma escrita em que pretendemos ser ou substituir o outro. É preciso buscar estabelecer este lugar em que a produção cognoscente é sempre parcial, inacabada, incompleta. No caso da escrita sobre vidas institucionalizadas, sempre pela ausência do outro.
Esta escrita procura juntar-se ao outro, a partir de conexões parciais (Haraway, 1995), desafio complexo na medida em que o marcador social da loucura se apresenta como limite determinante na invalidação do discurso do sujeito dito louco. Desta forma, não se pretende revelar supostas verdades acerca das experiências de violência sobre corpos manicomializados. Pelo contrário, a aposta é na produção de reverberações sobre a frágil racionalidade que sustenta as práticas dos “normais” que, na prática, revelam a irracionalidade da violência sobre a diferença.
Este texto parte da experiência de produção de uma investigação realizada junto a Residenciais Terapêuticos Privados do município de Passo Fundo, região norte do Rio Grande do Sul. Trata-se da realização de um censo entre 2017 e 2019 intitulado “Censo sociodemográfico, jurídico e de saúde dos usuários-moradores dos Residenciais Terapêuticos Privados de Passo Fundo/RS” (Dalmolin et al., 2021). Este censo, demandado pela Segunda Promotoria Especializada de Passo Fundo/RS e realizado pela Universidade de Passo Fundo, teve como objetivo realizar um mapeamento que permitisse conhecer a situação sociodemográfica, jurídica e de saúde dos usuários-moradores dos referidos estabelecimentos neste município em seus aspectos clínicos e psicossociais. No tempo em que o censo foi produzido, estes estabelecimentos não possuíam um nome técnico, o que por si só já sinalizava a sua incompatibilidade com os pressupostos da reforma psiquiátrica. Porém, em 2019, a Secretaria Estadual da Saúde do Rio Grande do Sul, tensionada pelo Ministério Público do estado, publica a Portaria n.º 265/2019, na qual institui a regulamentação do funcionamento dos “Serviços Residenciais Terapêuticos Privados do Estado do Rio Grande do Sul”.2
Os dados produzidos a partir deste censo foram sistematizados com base em algumas ferramentas, tais como entrevistas junto aos internos desses residenciais, trabalhadores e casualmente proprietários desses estabelecimentos. Além disso, foram produzidos diários de campo, dos quais foram retirados os excertos que abrem este artigo e que eventualmente serão resgatados, trazendo vivências registradas pelo primeiro autor desse artigo, que trabalhou como pesquisador-recenseador ao longo do levantamento de dados.3
A produção deste censo entra em consonância com duas importantes experiências relacionadas que nomearemos, a partir daqui, como estabelecimentos manicomiais contemporâneos. O Relatório de Inspeção Nacional dos Hospitais Psiquiátricos no Brasil, realizado no ano de 2018 e publicado em 2020 - produzido em parceria pelo Conselho Federal de Psicologia, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Procuraria Federal dos Direitos do Cidadão e Ministério Público Federal -, apresenta dados contundentes relacionados à realidade manicomial desses espaços (Conselho Federal de Psicologia et al., 2020).
Da mesma forma, relatos muito semelhantes são encontrados no Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, realizado no ano de 2017 e publicado em 2018, produzido em parceria pelo Conselho Federal de Psicologia, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e Ministério Público Federal (Conselho Federal de Psicologia et al., 2018). Estes estabelecimentos devem ser compreendidos também como herdeiros dos hospícios por resgatarem práticas absolutamente características dos espaços asilares, agora com o foco na internação de pessoas que fazem uso problemático (ou não) de álcool e outras drogas.
Tais estabelecimentos possuem um caráter eminentemente incompatível com os preceitos da reforma psiquiátrica brasileira, que violam de forma evidente os direitos garantidos pela Lei n.º 10.216/20114 às “pessoas portadoras de transtornos mentais”, seus familiares ou responsáveis. Este ensaio tem como ponto de partida a realidade manicomial contemporânea, os tensionamentos em meio a uma reforma psiquiátrica que, mais de 20 anos depois de sua aprovação, segue resistindo a constantes ataques e forças contrarreformistas, e das (nem tão) novas formas de fabricar loucura.
Procuramos desde aí explicitar modos de produção de loucura na atualidade, sinalizando a íntima relação entre a lógica manicomial e o controle e extermínio de existências marcadas pela diferença. A montagem do argumento deste ensaio é apresentado em cinco seções. Na primeira, sinalizamos como o reconhecimento dos “loucos comedores de sabão” favorece a produção de vidas não passíveis de luto, ou seja, de vidas cujas perdas não vão ser lamentadas porque nunca foram vividas (Butler, 2009/2017). Na seção subsequente, demonstramos que este esforço desumanizador favorece o discurso contrarreformista contemporâneo no campo da saúde mental, intensificados sobre os recentes governos de extrema direita no Brasil. Na terceira seção, identificamos o exemplo mais contundente desta desumanização no campo da saúde mental, que é o da “zumbificação” dos usuários de drogas a partir do discurso da periculosidade e da necessidade de segregação. Na seção seguinte, identificamos o enquadramento do louco como um inimigo interno, que pela característica de seus atos, deverá ser submetido a determinados procedimentos de punição e/ou expiação de seus atos. Evidencia-se aqui o papel central das Comunidades Terapêuticas5 como tecnologia de submissão destes sujeitos reconhecidos como inimigos. Por fim, a última seção evidencia o caráter central dos marcadores “classe”, “raça” e “gênero” como determinantes na produção do louco, revelando este aspecto central para a reinvenção da luta antimanicomial, tarefa historicamente negligenciada na discussão da área da saúde mental.
1. Os comedores de sabão
Nos estabelecimentos de longa permanência estudados, o poder disciplinar manicomial opera praticamente sem barreira alguma, na condição ambígua descrita por Goffman (1961/2015) de uma instituição que se apresenta com uma finalidade, mas que realiza um fim totalmente diferente. Trata-se da defasagem - em seu sentido foucaultiano (Foucault, 1972/2010) -, ou seja, o desencontro entre o plano do saber estabelecido da instituição psiquiátrica e as práticas institucionais que insistem em se presentificar em nosso tempo.
Durante as entrevistas com trabalhadores de uma das casas em que realizamos o censo, ouvimos várias vezes o argumento da incapacidade de os sujeitos ali internados viverem uma vida “normal”, por “não possuírem autonomia” suficiente. Em certa ocasião, uma pessoa que administra um destes estabelecimentos afirmou que “o discurso da reforma psiquiátrica é muito bonito, mas como seria possível garantir a autonomia de pacientes que quando conseguem escapar do monitoramento dos funcionários acabam comendo sabão?” (Diário de campo, 20/09/2018). Esta interrogação evidencia a sobreposição implícita de outras interrogações direcionadas aos trabalhadores de saúde mental que defendem o cuidado em liberdade.
Nas semanas seguintes a esta conversa, entrevistamos o morador que possuía a referida dieta infame. Ele, sem saber que havíamos ouvido sobre o ocorrido, nos relata que está na clínica por problemas com o abuso de álcool, e que por vezes é muito difícil suportar a abstinência. “Tomei sabonete líquido achando que era álcool em gel” (Diário de campo, 25/09/2018), nos conta o interno sorrindo, com uma expressão um pouco travessa e levemente constrangida.
Para Butler (2009/2017), o modo como reagimos à dor do outro e como construímos críticas morais ou elaboramos análises políticas sempre depende de um campo de realidade perceptível previamente estabelecido. O campo de realidade perceptível estabelece uma noção do humano reconhecível, que se formulará e se reiterará. Este reconhecimento do humano estará em contraposição àquilo que não será percebido como tal, sendo, portanto, uma representação não humana, perturbando o que é potencialmente reconhecido como humano.
Deste modo, os enquadramentos estabelecidos em relação ao que é ou não humano remetem a normas mais amplas que determinaram o que é uma vida passível ou não de luto (Butler, 2009/2017). A produção destes enquadramentos passa por um conjunto de composições imagéticas. No contexto dos manicômios, vale lembrar do impacto gerado pelas primeiras imagens fotografadas e divulgadas publicamente (pelo fotógrafo Luiz Alfredo, da revista O Cruzeiro, em 1961)6 e as primeiras cenas filmadas do Hospital Colônia de Barbacena, Minas Gerais (por Helvécio Ratton, para o seu documentário intitulado Em nome da razão, lançado em 1979)7. Embora tais imagens e cenas não tenham sido suficientes para que medidas mais significativas fossem tomadas em relação à condição dos internos desse hospital, estas foram alguns dos primeiros trabalhos brasileiros capazes de romper o pacto de silêncio em relação aos manicômios (Arbex, 2015).
Tamanha ruptura se dá justamente pelo contraste entre o discurso psiquiátrico, que afirmava o hospital psiquiátrico como lugar ideal para o tratamento dos doentes mentais, e a realidade nua e crua de negligência, violência e abandono destes espaços. A experiência manicomial só foi possível com esta mudança de enquadramento, que desloca o espaço manicomial do lugar de cuidado para “a sucursal do inferno”, título escolhido para dar nome à reportagem que apresentou as fotografias de Luiz Alfredo. O fotógrafo conta, em conversa registrada no livro de Daniela Arbex sobre o Hospital Colônia de Barbacena, que quando voltou à redação após a visita ao manicômio desabafou com seu chefe, afirmando que “aquilo não é um acidente, mas um assassinato em massa. Só precisei clicar a máquina, porque o horror estava ali” (tal como citado em Arbex, 2015, p. 172).
Sontag (2003) argumenta que apresentar as cenas de um inferno não retira necessariamente as pessoas da condição alienadora, tampouco amaina as suas chamas. Porém, esta ação é capaz de forçar o reconhecimento, ampliar a consciência do sofrimento produzido pela crueldade humana no mundo que partilhamos.
É assim com o personagem de Kalil Gibran (1918/2019), que conta como se tornou louco. A história narra que, ao perceber que suas máscaras foram roubadas, o sujeito corre desesperadamente pelas ruas atrás do ladrão. Na medida em que se dá conta de que, pela primeira vez, sente a luz do sol atingir diretamente seu rosto, abre mão das máscaras, tornando-se assim louco. O louco abre mão das máscaras e assume sua loucura na medida que reconhece que encontrou liberdade na sua solidão e segurança em não ser compreendido. Outro personagem marcante pelo seu caráter misterioso, fugidio, que inspira ao mesmo tempo admiração, pena e receio é o louco do Cati, homônimo da obra de Dyonélio Machado (1942/2003). Na história, este personagem de uma só palavra (Cati), tem como principal característica o pavor da ideia de ser preso, o que suscita inúmeras teorias do que haveria produzido esse trauma no personagem, embora o autor nunca nos revele as reais motivações. O que se destaca, como que em oposição ao pavor do cárcere, é justamente seu amor pela liberdade, fator preponderante para a admiração despendida ao dito louco.
Esta estratégia de reconhecimento do louco como um desviante da normalidade está concatenada com o modo como modernamente a experiência da loucura foi enquadrada. Pelbart (1989) descreveu este reconhecimento da loucura a partir de dois movimentos distintos e complementares. Por um lado, a loucura é pensada como uma involução, uma espécie de estágio precoce da condição civilizada, ou uma espécie de infância da condição humana em suas dimensões psíquica, moral e social. Por outro lado, a loucura também seria uma espécie de estágio terminal da humanidade, o fruto degenerado da civilização, a consequência dos seus males. É desta forma que o mais primitivo e decadente se encontra na loucura e, na medida em que é reconhecida como tal, formula-se a “exigência” da medida drástica da segregação.
São histórias, comuns aqueles que adentram no campo do cuidado em saúde mental, como as do louco que atacou o funcionário desprevenido e que, por isso, “nunca se deve dar as costas para o paciente” (Diário de campo, 15/09/2018), conforme as insistentes recomendações que recebíamos ao adentrar as instituições psiquiátricas para realizar o censo.
Para Goffman (1961/2015), tais elucubrações funcionam como um mecanismo de amenização da condição de perpetrador da tarefa manicomial. Na medida em que desumanizamos o sujeito que temos a tarefa de encarcerar, restringindo sua liberdade e autonomia ao máximo, menos o reconhecemos como um igual.
Butler (2009/2017) refere um mecanismo semelhante ao identificar as vidas que não são passíveis de luto. Para uma vida poder ser sacrificada sem culpa, é preciso que antes os sujeitos que são alvo desta força destrutiva tenham sido desumanizados, ao ponto de serem reconhecidos pela sua diferença. Destaca-se aqui que embora Butler mantenha um diálogo importante com a psicanálise, aqui o luto é reclamado não como experiência psicológica constitutiva da experiência humana, mas sim como fator de reconhecimento de humanidade em si.
É também aquilo que Mbembe (2003/2018) definirá como a base da necropolítica. O trabalho da morte como política, que não somente e/ou necessariamente emana do Estado, ficciona um inimigo, que legitimará políticas de inimizade. O inimigo produzido, por sua vez, legitima um estado de exceção e relações de inimizade, normatizando o direito de segregar e matar, mesmo que se trate aqui de um inimigo interno.
Este inimigo não é produzido, por óbvio, de forma aleatória. O caráter discriminatório de diferentes grupos sociais é reproduzido na concepção de loucura moderna. Passos (2020) sinaliza que a violência institucional - e aqui podemos pensar especificamente na violência da estigmatização de determinadas experiências a partir da noção de loucura - sempre esteve marcada pela diferença em relação à concepção de um sujeito universal moderno. Aquilo que difere do homem branco, hétero, cisnormativo e patriarcal, será mais facilmente reconhecido como anormal, o que exigirá mecanismos institucionais de contenção destes corpos desviantes.
Os sujeitos marcados pela desrazão serão reconhecidos enquanto vidas sem “sustentação ontológica” e, por uma questão de segurança em relação a eles mesmos e/ou de terceiros, os seus destinos será o da manicomialização. A ausência de “sustentação ontológica” foi denunciada por Fanon (1953-1956/2019) como parte constituinte do reconhecimento do negro na perspectiva do branco. Em sua prática enquanto psiquiatra, Fanon sinalizou de forma contundente a relação entre o caráter racista da psiquiatria francesa sobre a visão do negro, bem como do argelino, outro estrangeiro “inimigo” a ser controlado ou exterminado.
É a partir destes procedimentos que se precariza a condição desses sujeitos, na medida em que o que se reconhece nessas vidas é a ausência de capacidade racional, de autocuidado, de qualquer capacidade de prática emancipatória em saúde mental, justamente para justificar a necessidade da segregação.
Mais do que isso, estas práticas de desumanização do louco incorporam a defesa das práticas de cuidado em liberdade em saúde mental como parte deste “delírio”. Defender o direito à liberdade destes “loucos perigosos” - comedores de sabão - é enquadrado como irresponsabilidade e negação da suposta realidade acerca da condição destes sujeitos. Por óbvio, este discurso reforça o movimento contrarreformista no campo da saúde mental.
2. Contrarreforma
A produção discursiva até aqui mencionada funciona em paralelo também como uma estratégia de anulação do discurso antimanicomialista. Se os comedores de sabão não possuem sustentação ontológica, o discurso antimanicomial não teria sustentação e, por isso, é reconhecido nesta perspectiva como irrealizável e idealista, distante da concretude e crueza da prática cotidiana nestes estabelecimentos.
A aprovação da Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.216/2001) em 6 de abril de 2001 foi um marco significativo para a luta antimanicomial no Brasil. Após 12 anos de tramitação no Congresso Nacional mediante um forte tensionamento político antirreformista, esta legislação foi aprovada. Porém, este tensionamento, agora contrarreformista, nunca deixou de existir. Já em 2006, a Associação Brasileira de Psiquiatria e outros órgãos de representação da categoria médica lançaram um documento intitulado “Diretrizes para um Modelo de Assistência Integral em Saúde Mental no Brasil” (Associação Brasileira de Psiquiatria et al., 2006), que entregaram ao Senado Federal. Nesse documento argumenta-se que após a implementação da lei da reforma psiquiátrica, as portarias que a sucederam, com vistas a viabilizar a implementação dos serviços substitutivos, nomeados como “modelo Capscêntrico”, teriam um teor “antipsiquiátrico” e guardariam interesses ideológicos, econômicos e anticientíficos.
Como continuidade e fortalecimento deste tipo de argumentação e distorções estrategicamente utilizadas por gestores da ultradireita e de corporações profissionais elitizadas, os governos de Michel Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro (2019-2022), de forma contínua e articulada com as forças conservadoras no campo médico-psiquiátrico, procuraram operar um processo de desmonte das bases consolidadas da reforma psiquiátrica no país.
Este desmonte se deu a partir de um desfinanciamento dos serviços que compõem a Rede de Atenção Psicossocial, desde a atenção básica até aos serviços de atendimento especializados. Em contrapartida, ampliou-se o investimento e oferta de internações em hospitais psiquiátricos, ao mesmo tempo em que se reduziu o cadastramento de Centros de Atendimento Psicossocial (Delgado, 2019).
Outra estratégia utilizada por estes governos foi a publicação de uma série de documentos legais que desregulamentaram as orientações técnicas do cuidado em liberdade. Estas portarias (Portarias n.º 1.482/2016, n.º 3.588/2017, Lei 13.840/2019)8 guardam em comum este interesse de reorientar as ações em saúde mental para o modelo hospitalocêntrico e centrados na figura do médico psiquiatra (Onocko-Campos, 2019).
Não por acaso, no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, assumidamente ultraconservador, foi publicada a Nota Técnica n.º 11/2019 do Ministério da Saúde,9 que apresentava aquilo que foi nomeado como “Nova Política de Saúde Mental”. Neste documento é apresentada uma crítica genérica à “ideologia” presente na então vigente Política de Saúde Mental, que agora seria substituída por uma visão “científica” (Delgado, 2019).
Em que pese o fato de que no atual governo de Luís Inácio “Lula” da Silva a gestão do Ministério da Saúde de Nísia Trindade Lima tenha revogado parte importante dos decretos dos últimos anos, outras pautas seguem estanques ou retroagindo. É o caso das Comunidades Terapêuticas que, aparentemente por questões de governabilidade, têm recebido anuência do governo federal para seguirem estruturando-se como apêndice das políticas públicas do Estado.
Para Butler (2009/2017), é possível identificarmos constantemente práticas que possuem por finalidade o gerenciamento da precariedade. De acordo com esta autora, partimos sempre de uma condição precária, que exige a necessária aliança coletiva dos corpos em prol da manutenção da vida (Butler, 2015/2018). Porém, os discursos produzidos em relação a certas vidas permitirão a potencialização da precariedade dessas mesmas vidas.
A precariedade, portanto, diz respeito à “situação politicamente induzida na qual determinadas populações sofrem as consequências da deterioração de redes de apoio sociais e econômicas mais do que outras” (Butler, 2015/2018, p. 40). Tal processo promove condições diferenciais de exposição ao dano, ao risco de violências e à própria morte.
Mais uma vez, é necessário sinalizar que os grupos que serão expostos a estas condições serão aqueles que têm tido suas existências menorizadas historicamente. A lógica colonial que não encontra descontinuidade no território brasileiro segue produzindo zonas de não reconhecimento, de não-ser, na qual pessoas negras, indígenas e outros grupos marcados socialmente pela diferença são expostos a uma série de violências (Passos, 2020).
3. Zumbificando sujeitos
O impacto desta produção e precariedade pode ser facilmente evidenciado nas campanhas midiáticas proibicionistas em relação às drogas ilícitas, que apresentam de forma caricata e maximizada o caráter automaticamente destrutivo destas substâncias. A melhor definição possível dessa produção de precariedade midiática é a da relação comumente realizada em discursos proibicionistas entre usuários de crack e zumbis. Este enquadramento, que já foi utilizado em uma campanha publicitária financiada pela Associação Parceria Contra Drogas (cf. ZombieAOrigem, 2013), apresenta os usuários de crack como mortos-vivos gerados pela dependência do uso da droga. Flavio Waiteman, então vice-presidente de criação da agência de publicidade Master Roma Waiteman, afirmou à revista Exame que a criação desta publicidade teve o objetivo de informar sobre as armadilhas do crack em uma “linguagem apreciada por adolescentes” (Exame, 2013).
A figura cinematográfica e do universo pop conhecida como “morto-vivo” ou “zumbi” refere-se a uma pessoa morta que volta à vida. Os zumbis não falam, não possuem memória da vida prévia, afetos ou quaisquer sinais de afinidades. De acordo com Oloff (tal como citado em Stettler, 2021, p. 73), a princípio existem três momentos históricos na composição da figura do zumbi. O primeiro momento remonta à existência de lendas folclóricas do sistema colonial de plantation, especialmente no Haiti (Stettler, 2021). Aqui se faz evidente a racialidade contida no deslocamento do zumbi de seu lugar cultural de origem. A compreensão binária entre o civilizado e o primitivo segue sendo instrumentalizada pelo racismo, permanecendo constitutiva do imaginário vigente e amparada nas relações de racialização coloniais. (Segato, 2021).
O segundo momento deste deslocamento diz respeito a uma apropriação por parte de escritores estadunidenses deste folclore, integrando este personagem no imaginário das pessoas no início do século xx. E por fim, o terceiro momento marca a popularização dos zumbis, especialmente a partir do cinema e das revistas em quadrinhos (Stettler, 2021).
O zumbi terá uma característica distinta de outras figuras, tais como o lobisomem e o vampiro, pois trata-se de um “novo monstro para um novo mundo” (Bishop tal como citado em Stettler, 2021, p. 73). Uma pessoa é “zumbificada” quando perde agência, controle, consciência de sua condição e vive como autômato. Os zumbis são o emblema do declínio da vida ocidental. Embora estas histórias costumeiramente retratem uma crítica ao capitalismo e à sociedade do consumo (Stettler, 2021), podemos facilmente compreender a relação estabelecida entre esta figura e a condição dos usuários de crack no imaginário da população em geral.
Não é difícil resgatar elementos gerais do imaginário pop em relação aos mortos-vivos. Qualquer pessoa que tenha um conhecimento mínimo de algumas destas histórias na literatura, no cinema ou nos quadrinhos sabe quais são as regras básicas para se lidar com mortos-vivos. Em primeiro lugar, mortos-vivos não são passíveis de serem salvos ou recuperados. Uma vez zumbi, o destino deste sujeito é perambular em busca de seu alimento, que é carne humana fresca. Mais do que isso, o destino daqueles que tentam humanizar o morto-vivo nestas histórias é sempre a morte. Outra regra básica é de que o morto-vivo é o inimigo. Para sobreviver ao apocalipse zumbi - que sempre é apresentado nas histórias como uma repentina epidemia - é preciso manter-se a uma distância segura, pois basta uma mordida para que a vítima se transforme também em um morto-vivo. E, por fim, sabe-se que é sempre perigoso buscar manter os mortos-vivos presos, pois eventualmente estes podem fugir e voltarem a ameaçar os sobreviventes. Assim, o caminho mais seguro é sempre atingir os zumbis na cabeça (como é mostrado na série de quadrinhos The Walking Dead; cf. Kirkman et al., 2013). É provável que não seja coincidência o fascínio do ex-delegado e ex-governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel com “tiros na cabecinha”, demonstrado em uma entrevista que concedeu ao jornal O Estado de S. Paulo (Pennafort, 2018). Trata-se, afinal, da aplicação da mesma lógica desumanizadora que aspira exterminar sem luto a vida dos “inimigos” das “pessoas de bem”.
Fanon (1953-1956/2019) nos fornece pistas interessantes para contrapor esta compreensão desumanizadora do usuário de crack como zumbi, justamente ao analisar as relações colonialistas em seu tempo. Para ele, na medida em que os sujeitos-alvo do colonialismo são deslegitimados da sua experiência e da possibilidade de exercício de cidadania, acabam reunindo uma série de condições que os tornam doentes. Sem a experiência da família, do amor, das relações humanas e a comunhão da coletividade, o colonizado se encontrará consigo mesmo de uma forma patológica. Assim, segundo Fanon, o norte-africano se sentiu esgotado, esvaziado de vida, esteve corpo a corpo com a morte, ou, vivenciando a morte para além da morte, uma morte em vida. Para Fausto (2014), a metáfora do zumbi é popularizada também pela experiência subjetiva que o hemisfério norte do globo produziu como uma forma de antever o seu próprio evento de extinção. O imaginário da epidemia zumbi cria uma certa reversão desta relação em que se reconhecem como civilização em relação a outros povos não-humanos e/ou sub-humanos. Em certa medida, o fascínio pelos zumbis e seu uso no contexto do reconhecimento dos usuários de crack parece também formar uma linha que divide aqueles que sucumbiram à depravação moral contemporânea e aos usos dos prazeres efêmeros, que promovem uma vida hedonista e de desencontro com os valores cristãos e capitalistas, grandes balizadores do Ocidente.
4. O louco enquanto inimigo interno
A relação entre Justiça e questões relacionadas à saúde mental traz consigo um processo histórico significativo. Castel (1978/1991) aponta que, na França, antes do processo de transferência da responsabilidade acerca da tutela do louco para a Medicina, era a Justiça e o Executivo que assumiam a demanda de internação dos sujeitos. Foi através das Lettres de cachet (determinação redigida pelo rei ou seus ministros) que se autorizou a sequestração do louco. Esta demanda era muito comum, avalia-se que em dez solicitações de sequestração nove eram dessa natureza. Em sua maioria, as solicitações partiam dos próprios familiares, o que guarda semelhança com a característica da internação compulsória contemporânea.
Tal dinâmica, entretanto, suscitava tensionamentos entre os poderes do rei, da Justiça, da família e dos próprios eclesiásticos, que muitas vezes negociavam diretamente com familiares a entrega dos seus entes para estabelecimentos vinculados à igreja (Castel, 1978/1991). Com a Revolução Francesa e o fim do Antigo Regime, esta relação se transformou, tendo ocorrido uma separação de responsabilidades por parte dos agentes sociais, bem como da natureza das demandas de institucionalização.
Foucault (1973/2002) analisou o modelo de lei penal implementado a partir do século xix que definiria a caracterização do procedimento penal no contexto das sociedades disciplinares. Para o autor, há uma transição que denota um deslocamento do crime como uma falta à lei natural, moral ou religiosa para uma ruptura com a lei. Desta forma, a lei civil, estabelecida no interior de uma sociedade específica, é que determina quais práticas caracterizam uma ruptura com a lei e, por conta disso, carecem de punição. Uma segunda característica desta reorganização é que as leis buscam representar aquilo que é útil para a sociedade. Assim, o que é repreensivo e compreendido como infração é aquilo que é nocivo à sociedade. E, por fim, o terceiro aspecto, derivado dos anteriores, é que o crime é aquilo que danifica a sociedade, produzindo dano social, perturbação ou incômodo para determinada sociedade (Foucault, 1973/2002).
O criminoso, portanto, é um inimigo social, aquele que em termos rousseaunianos rompeu o pacto social, tornando-se assim um inimigo interno. Esta definição seria absolutamente nova na história da teoria criminal e penal em seu tempo. Desta forma, o criminoso não deve mais ser punido, mas é o dano causado por ele que deve ser reparado (Foucault, 1973/2002).
É possível identificarmos uma série de aproximações com a noção de Justiça, crime e reparação em relação ao modo como o reconhecimento das pessoas que recorrem ao álcool e outras drogas é enquadrado. Este enquadramento do “morto vivo”, especialmente voltado para aquelas pessoas que se encontram em situação de rua, traz consigo discursos que argumentam pela necessidade da internação compulsória, seja por uma questão de saúde, como também por uma questão de segurança pública.
O Relatório da Inspeção Nacional de Comunidades Terapêuticas publicado pelo Conselho Federal de Psicologia (Conselho Federal de Psicologia et al., 2018) sistematizou uma série de características dos estabelecimentos visitados que podem auxiliar na compreensão destas aproximações, identificadas aqui entre as práticas de punição/reparação destinadas aos criminosos na Lei Penal moderna e o tratamento proposto a usuários de álcool e outras drogas em Comunidades Terapêuticas. A primeira é o exílio que a internação em Comunidades Terapêuticas promove, mesmo que de forma temporária. A princípio, trata-se de uma questão de saúde mental, e é justamente por conta disso que o exílio deve se justificar em termos terapêuticos e não punitivos, mesmo que na dinâmica de organização destes estabelecimentos essa diferença não esteja explícita. A segunda aproximação é a da exclusão moral, psicológica e social, na qual parte do “processo terapêutico” dos internos das Comunidades Terapêuticas se dá a partir da prática confessional (Conselho Federal de Psicologia et al., 2018). No âmbito desta prática, os sujeitos enclausurados precisam admitir sua doença e as consequências morais e sociais da mesma, e ainda toda a culpa decorrente desta experiência como parte do tratamento. A relação entre doença, responsabilização e culpa evidencia a condição paradoxal de reconhecimento/enquadramento dos internos por parte dos “cuidadores” destes estabelecimentos e, mais do que isso, de um imaginário que permeia boa parte da sociedade e do próprio campo da saúde mental.
Ainda que as pessoas estejam internadas por uma questão de saúde mental, e que as práticas realizadas neste contexto sejam justificadas como estratégias de cuidado, é muito comum ouvir relatos e denúncias de trabalho em situação análoga à escravidão no contexto das Comunidades Terapêuticas (Conselho Federal de Psicologia et al., 2018). Nestes casos, o trabalho forçado não se configura diretamente como um modo de reparar os danos cometidos à sociedade, como no contexto da punição aos criminosos, mas se justifica enquanto laborterapia, ou seja, a ideia de que o trabalho pode ocupar uma função terapêutica na experiência de sofrimento de pessoas internadas em estabelecimentos manicomiais - processo que acompanha a história dos hospitais psiquiátricos.
Mbembe (2016/2017) compreende que o sujeito universal e o seu paradigma de conhecimento tendo por referencial a compreensão do colonizador que remete para referências de humanidade, civilidade e moralidade, demanda a construção de mecanismos de destituição da humanidade do “outro”. Para isso, tais conhecimentos operam mecanismos de autopreservação permanentes às custas dos alvos apontados como inimigos.
Fanon (1953-1956/2019), que era psiquiatra, constatou que o louco é o sujeito que se enquadra como um estranho para a sociedade e que, por isso, esta mesma comunidade decide livrar-se deste elemento anárquico. Desta forma, a internação é a rejeição, a exclusão do enfermo desta mesma sociedade. Por sua vez, é exigido ao psiquiatra que torne o sujeito novamente apto para ser integrado na sociedade. Desta forma, o psiquiatra funciona como um auxiliar da polícia, já que protege a sociedade destes sujeitos. De fato, é possível afirmarmos esta expectativa policialesca por um lado, e reparadora - aos moldes dos alienistas - por outro, para todo o campo psi. De qualquer modo, o que se destaca nesta dinâmica é o enquadramento das pessoas com transtornos mentais como inimigos a serem controlados ou eliminados.
5. A cor, o gênero e a origem do louco-inimigo
Faz-se importante ressaltar também alguns aspectos que evidenciam o atravessamento de raça, gênero e classe no que se refere ao debate e à implementação de políticas relacionadas a drogas no Brasil. Primeiramente, é importante que se diga que existe no país uma certa forma velada de pena de morte para alguns. De 2003 a 2014, o número de brancos mortos por arma de fogo caiu, enquanto o número de negros mortos aumentou (Conceição & Pereira, 2019).
Esse índice foi impactado especialmente pela aprovação da denominada Lei de Drogas (Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006),10 que a princípio fora aprovada com a intenção de diferenciar o porte do tráfico de drogas, mas que acabou gerando um impacto demasiadamente negativo. Isto porque em seu artigo 28, inciso 2.º, a legislação deixa a cargo do juiz definir a caracterização de porte ou tráfico de droga, considerando o contexto, ou seja, atendendo à quantidade da substância encontrada, o local e as condições em que o flagrante foi realizado, bem como os antecedentes do sujeito e a sua conduta.
Entre 2000 e 2018, o número de homens encarcerados no país subiu 220% (Neves, 2019). Em 2005, as pessoas encarceradas por tráfico de droga representavam 9% da população carcerária, em 2014, essa porcentagem aumentou para 28% e, já em 2019, a porcentagem chegou a 32,6% (Moreira, 2019). Outros dados impactantes indicam que 62% dos presos por tráfico exerciam atividade remunerada no momento de sua prisão, 94,3% não pertenciam a facção criminosa e 97% não portavam armas; e ainda que 77% dos acusados não possuíam mais de 100 gramas de maconha quando do flagrante e 14% possuíam menos de 10 gramas (Conceição & Pereira, 2019).
O histórico acerca do modo como o Estado brasileiro tratou a questão das drogas demonstra o quanto o atravessamento da criminalização de pobreza e da população negra sempre esteve presente nesta seara. Foi em 1921 que o código criminal brasileiro passou a utilizar o termo “entorpecente” para estabelecer drogas como o ópio e a cocaína enquanto substâncias proibidas. Já em 1932, a partir de um novo decreto (n.º 20.930),11 um rol de diversas substâncias também seria enquadrado como entorpecentes. As pessoas que não possuíssem prescrição médica para tais substâncias poderiam ser enquadradas como infratoras toxicômanas, quando declarado por laudo médico. Nestes casos, a pena criminal seria substituída por um “tratamento em local adequado” (Conceição & Pereira, 2019).
Em uma entrevista realizada durante o censo, um homem pardo, de 35 anos, nos conta que o evento que desencadeou sua internação foi ter sido visto no intervalo de seu trabalho fumando maconha. O seu chefe condicionou sua continuidade a um tratamento, que por sua vez se desdobrou em uma internação que já durava há cerca de cinco anos quando realizamos a entrevista.
Não há descontinuidade na história das políticas voltadas a drogas e o atravessamento de raça. A questão das drogas sempre esteve vinculada à experiência da população negra e ao caráter persecutório do Estado em relação a estas pessoas, de modo que o suposto interesse em regular o uso destas substâncias tem servido historicamente para controlar, reprimir e exterminar pessoas negras. É preciso, portanto, assumir o sucesso completo do proibicionismo no que se refere à sua intencionalidade de provocar um genocídio da população negra brasileira (Conceição & Pereira, 2019, pp. 120, 125).
No que se refere ao atravessamento de gênero, é importante dizer que a ampliação da porcentagem de mulheres encarceradas entre 2000 e 2018 foi de 665%. Assim, em 2018 eram mais de 40 mil mulheres encarceradas, sendo que 67% eram negras e cerca de 50% tinham entre 18 e 29 anos (Neves, 2019).
Tais dados revelam a atualidade da teoria da degenerescência, na medida em que se apresenta enquanto tendência dos corpos marcados pela diferença uma suposta compulsão ao selvagem, ao ilícito, ao repugnante, ao anormal. Estes sujeitos, que trazem em seu corpo as marcas da diferença em relação à subjetivação do sujeito dito universal, têm a sua condição de estrangeiro reificada. Ao estrangeiro, o tratamento é sempre sob a égide da política da inimizade (Mbembe, 2016/2017): a repressão, o cárcere ou a morte.
Além disso, o discurso punitivista ainda bastante comum na opinião pública, que reconhece a morte como reparação possível para determinados crimes, permeia o espectro do enquadramento das pessoas que fazem uso problemático de álcool e de outras drogas. Mesmo que exista ainda um certo constrangimento em posicionar-se dessa forma, a produção do imaginário do usuário de drogas como morto-vivo denota uma pista de que há um certo entendimento da irreversibilidade da condição desses sujeitos.
Considerações finais
E é assim que o circuito se encerra e retroalimenta a inércia social cultural em relação à loucura. Sob a perspectiva manicomial, aqueles que defendem a autonomia e a liberdade como premissa fundamental da produção de saúde mental são tão alienados da suposta realidade concreta e irreconciliável da loucura perigosa e inacessível quanto os próprios sujeitos ditos irrecuperáveis. Por vias diferentes, a produção discursiva manicomial opera processos muito semelhantes de alienação dos “lunáticos”, sejam eles os pacientes destes estabelecimentos psiquiátricos, sejam aqueles que defendem o cuidado digno e em liberdade.
Nós, comedores de sabão, cada um ao seu modo, somos incontroláveis e incorrigíveis. Eis a história que aqueles que continuam a defender a existência dos manicômios insistem em nos contar. Este discurso é parte componente de um certo gerenciamento de produção de precariedade das vidas manicomializadas não passíveis de luto, reafirmando práticas de segregação física, fazendo viver o manicômio materialmente como “recurso terapêutico”. Acima de tudo, o discurso manicomialista alimenta e se retroalimenta do desejo do manicômio em nós.
O tensionamento no campo da saúde mental sinaliza a necessidade de revitalizarmos a luta antimanicomial, reconhecendo suas facetas contemporâneas, seja do ponto de vista da denúncia dos espaços que reproduzem os manicômios em nosso tempo e suas práticas, mas também no modo que estes seguem fabricando a loucura a partir de determinados dispositivos manicomiais. É preciso, para além disso, reinventarmos nossas práticas, reestruturarmos os espaços e os recursos de cuidado em liberdade, para que possamos efetivamente afirmar a liberdade como premissa inegociável do cuidado em saúde mental.
Declaração de conflitos de interesse
O autor e a autora declaram não existir quaisquer conflitos de interesse.
Financiamento
A autora Simone Mainieri Paulon possui uma bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
Declaração de ética
Por tratar-se de pesquisa realizada com seres humanos, o projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Passo Fundo (UPF), do Rio Grande do Sul, sendo aprovado sob parecer n.º 2.092.340. Todos os indivíduos tiveram seus nomes preservados e a segurança dos dados foi garantida por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e do Termo de Compromisso de Utilização de Dados.