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Tourism & Management Studies
versão impressa ISSN 2182-8458
TMStudies vol.9 no.2 Faro jul. 2013
O papel dos fatores do contexto relacional na transferência de conhecimento tecnológico: um estudo de caso em uma organização pública de pesquisa agropecuária
The role of the relational context factors in the technological knowledge transfer: a case study of a public sector agribusiness research organization
José Márcio de Castro1, Liliane de Oliveira Guimarães2, Daniela Martins Diniz3
1Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Instituto de Ciências Econômicas e Administrativas, Programa de Pós-Graduação em Administração, Av. Itaú 525 - Bairro Dom Cabral. CEP. 30.535-012, Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil; josemarcio@pucminas.br
2Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Instituto de Ciências Econômicas e Administrativas, Programa de Pós-Graduação em Administração, Departamento de Administração do Instituto de Ciências Econômicas e Gerenciais, Av. Itaú 525 Bairro Dom Cabral. CEP. 30.535-012, Belo Horizonte Minas Gerais Brasil; lilianeog@pucminas.br
3Fundação Dom Cabral, Núcleo de Desenvolvimento de Liderança e Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, CEP. 34000-000 Nova Lima Minas Gerais, Brasil; danieladiniz.apoioapesquisa@fdc.org.br
RESUMO
Nas últimas duas décadas, a transferência de conhecimento ganhou reconhecimento em razão da sua relevância para a inovação e competitividade das firmas. Embora com significativos avanços, a literatura decorrente deste esforço de pesquisa tem, em muitos casos, adotado uma perspectiva unidimensional e, não raro, tem negligenciado a complexidade do processo, tratando-o, muitas vezes, como um ato de transmissão de conhecimento. A partir de uma revisão crítica dessa literatura, este artigo tem por objetivo compreender e analisar o papel dos fatores do contexto relacional na transferência de conhecimento interfirmas. Para tanto, foi realizado uma pesquisa de natureza qualitativa com base em um estudo de caso único na maior organização pública de pesquisa agropecuária brasileira. Os resultados apontam que os fatores de contexto relacional, especificamente, a qualidade do relacionamento e a distância cultural, exercem uma influência significativa no processo de transferência de conhecimento interfirmas, e no caso estudado, de forma negativa.
Palavras-chave: Transferência de conhecimento interfirmas, qualidade do relacionamento, distância cultural, inovação e agronegócio.
ABSTRACT
During the past two decades, knowledge transfer has been acknowledged because of its relevance for innovation and competitiveness of firms. Although there have been enormous advances in the research on this topic, the literature has, to a certain degree, adopted a single dimensional perspective and, as a result, has neglected the complexity of this process by frequently considering it as an event of knowledge transfer. Based on a critical literature review, this article aims to understand and analyze the role of relational context factors in the process of inter-firm knowledge transfer. To do so, we constructed a single qualitative case of a public sector agribusiness research organization. The results show that the relational context factors, in particular the quality of the relationship and the cultural distance, exert a significant influence upon the process of inter-firm knowledge transfer. In the case presented here, this influence is suggested to be negative.
Keywords: Inter-firm knowledge transfer, quality of relationship, cultural distance, innovation and agribusiness.
1. Introdução
Nas últimas décadas, a transferência de conhecimento interfirmas tem sido destaque na agenda de pesquisas quando se constatou tratar-se de um dos processos fundamentais para a organização gerar inovações e alcançar competitividade (Easterby-Smith, Lyles, & Tsang, 2008; Pérez-Nordtvedt, Kedia, Datta, & Rasheed, 2008). Desde então, vários autores tem se dedicado à investigação de diversos aspectos ligados a transferência, especialmente, das variáveis que podem estimular ou inibir a troca de conhecimento entre as organizações (Bresman, Birkinshaw, & Nobel, 1999; Easterby-Smith et al., 2008; Szulanski, 1996; Van Wijk, Jansen, & Lyles, 2008).
Entretanto, a literatura resultante desse esforço de pesquisa tem adotado uma perspectiva unidimensional (a esse respeito, ver, por exemplo, Pérez-Nordtvedt et al., 2008) para o estudo dos fatores que influenciam no processo de transferência e, além disso, o entendimento dos contextos e fatores que influenciam na transferência é ainda muito limitado, o que sinaliza que novos esforços de pesquisa são necessários (Szulanski, 1996, 2000).
O propósito deste artigo é compreender e analisar o papel dos fatores do contexto relacional no processo de transferência de conhecimento entre uma instituição de pesquisa pública e as firmas licenciadas. Isso implicou examinar a dinâmica de relacionamento estabelecido entre a fonte e a receptora, sobretudo em termos da qualidade do relacionamento e da distância cultural entre as partes.
Utilizando como referencial teórico uma revisão crítica da literatura sobre transferência, o estudo caracteriza-se como uma pesquisa de natureza qualitativa com base num estudo de caso (Eisenhardt, 1989; Yin, 2005) realizado em um dos centros de pesquisa da maior organização pública nacional de pesquisa agropecuária.
Uma primeira contribuição do artigo foi uma compreensão mais aprofundada do papel dos fatores de contexto relacional no processo de transferência. Além disso, o artigo buscou adotar uma perspectiva multidimensional ao examinar vários fatores simultaneamente.
Para além dessa introdução, o artigo está estruturado em quatro seções. Na primeira foi apresentada uma revisão da literatura que enfatizou a influência dos fatores do contexto relacional no processo de transferência, bem como a interrelação destas variáveis com o contexto organizacional tanto da fonte como da receptora. Na seqüência, discutiram-se os procedimentos metodológicos da pesquisa. Na terceira parte são apresentadas e analisadas as evidências encontradas na investigação empírica, por fim, discutem-se as principais conclusões e contribuições do estudo.
2. Revisão da literatura
2.1. Fatores intervenientes no processo de transferência de conhecimento interfirmas
A transferência de conhecimento interfirmas é um processo interativo e dinâmico no qual os atores organizacionais seja um time, uma unidade ou uma firma trocam, recebem e aplicam conhecimentos externos de modo a gerar inovações e aprimorar o desempenho organizacional. Além disso, é um processo pelo qual uma organização está constantemente aprendendo por meio da experiência da outra e modificando seu comportamento a partir das novas rotinas e capacidades adquiridas (Argote & Ingram, 2000; Easterby-Smith et al., 2008; Van Wijk et al., 2008).
Diversas razões explicam a importância da transferência como fonte de inovação e competitividade para as firmas (Szulanski, 1996, 2000; Pérez-Nordtvedt et al., 2008; Van Wijk et al., 2008). Primeiro, porque é um processo que possibilita à organização adquirir e aplicar o conhecimento externo e obter um desempenho superior. Em segundo, a transferência permite que mesmo firmas com limitados recursos para desenvolvimento interno de P&D (Pesquisa e Desenvolvimento) alcancem vantagem competitiva pela aquisição contínua de conhecimentos externos (Szulanski, 1996; Argote & Ingram, 2000; Van Wijk et al., 2008).
Entretanto, a transferência está entre os mais problemáticos arranjos organizacionais, dado que o processo envolve além da aquisição do conhecimento externo, a sua transformação, aplicação e incorporação nas rotinas organizacionais, atividades estas bastante complexas (Zahra & George, 2002). Além disso, como implica na conexão de, no mínimo, duas entidades, pressupõe que barreiras organizacionais e relacionais sejam suprimidas para que a transferência ocorra de forma eficaz (Szulanski, 1996, 2000; Easterby-Smith et al., 2008). Nesta perspectiva, considerando-se o contexto relacional, os fatores relevantes são a qualidade do relacionamento e a distância cultural entre as partes (Szulanski, 1996, 2000; Argote, Mc-Evily, Reagans, 2003).
A qualidade do relacionamento diz respeito ao grau em que a relação entre a fonte e a receptora é estreita e pautada por confiança. Portanto, dois indicadores são fundamentais para se avaliar o relacionamento: a integração social e a confiança (Gupta & Govindarajan, 2000; Pérez-Nordtvedt et al., 2008). Em primeiro, a integração social entre as partes na transferência indica que as organizações trabalham de forma cooperativa e próxima, se comunicam com freqüência e, ainda, compartilham um conjunto de objetivos e valores comuns. Isso cria um ambiente favorável à circulação de experiências entre as firmas. (Szulanski, 1996, 2000; Argote et al., 2003; Becerra, Lunnan, & Huemer, 2008; Easterby-Smith et al., 2008; Pérez-Nordtvedt et al., 2008).
A confiança, por sua vez, é um indicador da qualidade do relacionamento, pois quanto maior a percepção de confiabilidade num parceiro maior a disposição para interagir com ele e mais colaborativa tende a ser a relação entre as partes. Na ausência de confiança as firmas podem simplesmente se recusarem a compartilhar os seus conhecimentos críticos devido ao receio de perderem competitividade com a transferência de seu know-how (Becerra et al., 2008; Easterby-Smith et al., 2008; Gupta & Govindarajan, 2000).
Portanto, quanto maior o nível de integração social e de confiança entre as partes, melhor é o relacionamento entre elas e maior tende a ser o fluxo de conhecimento compartilhado na relação entre a fonte e a receptora (Szulanski, 1996; 2000; Argote et al., 2003; Easterby-Smith et al., 2008; Pérez-Nordtvedt et al., 2008).
Para a transferência de conhecimento, a qualidade do relacionamento tem uma influência significativa como discutido por Pérez-Nordtvedt et al. (2008). Quando as organizações desenvolvem um relacionamento próximo e de confiança é provável que elas estejam mais dispostas a compartilhar conhecimentos e, assim, a transferência tende a ocorrer de forma mais rápida (velocidade). Vínculos sociais fortes também incentivam a combinação de recursos para a transferência o que gera redução dos custos do processo (economia) (Argote & Ingram, 2000; Argote et al., 2003; Jansen, Van den Bosch, & Volberda, 2005; Pérez-Nordtvedt et al., 2008).
A qualidade do relacionamento também contribui para a eficácia da transferência medida em termos de compreensão e utilidade do conhecimento (Pérez-Nordtvedt et al., 2008) pois possibilita que as organizações criem uma linguagem comum e minimizem as diferenças culturais facilitando a compreensão e aplicação do conhecimento externo pela firma receptora (Argote & Ingram, 2000; Argote et al., 2003; Jansen et al., 2005; Pérez-Nordtvedt et al., 2008).
A literatura aponta, ainda, que a qualidade do relacionamento tem uma influência direta na motivação das firmas na transferência. De maneira geral, quanto mais próximo e pautado por confiança for o relacionamento entre as partes, mais disposição haverá entre as organizações para a transferência do saber (Szulanski, 1996, 2000; Jasimuddin, 2007). Por conseguinte, a ausência de motivação tem efeitos negativos no processo de transferência. Do lado da fonte pode inviabilizar, previamente, o início do compartilhamento e romper com a parceria entre as partes ou mesmo inibir a transferência de conhecimentos tácitos associados à determinada tecnologia, dificultando a plena exploração do conhecimento pela receptora (Argote et al., 2003; Easterby-Smith et al., 2008). De maneira análoga, se uma receptora está muito motivada para adquirir um conhecimento externo, ela estará muito mais preparada para compreender tal conhecimento (Simonin, 1999) e, por conseguinte, tal motivação está associada à eficiência da transferência de conhecimento (Pérez-Nordtvedt et al., 2008).
O segundo fator é a distância cultural entre a fonte e a receptora. Trata-se de uma variável do contexto relacional, pois o que se analisa é a cultura de uma organização em relação à outra, isto é, o grau em que os elementos culturais das firmas são compatíveis ou divergem entre si (Cummings & Teng, 2003). Entendendo-se a cultura como um conjunto de valores, regras e hábitos que constituem a realidade de uma comunidade social (Choo, 2006), a interação de organizações com culturas diferentes num processo de transferência pode gerar um ambiente de divergências e impactar negativamente o desempenho do processo. Estes conflitos decorrem, dentre outros aspectos, da dificuldade dos atores sociais em se comunicar, compreender o comportamento e a linguagem dos indivíduos de outras firmas podendo levar à falta de colaboração e integração entre as partes (Cummings & Teng, 2003; Bjorkman, Stahl, & Vaara, 2007; Yakhlef, 2007; Easterby-Smith et al., 2008).
Entretanto, a compatibilidade cultural das organizações facilita a comunicação entre os indivíduos, minimiza os possíveis ruídos neste processo, torna as ações humanas legítimas e compreensíveis e ainda, permite uma abordagem convergente na transferência (Cummings & Teng, 2003; Argote & Ingram, 2000). Nesses termos, quando a cultura das firmas é compatível o fluxo de conhecimento entre as partes tende a fluir com mais facilidade e, em decorrência, o processo de transferência tende a ser mais bem sucedido (Cummings & Teng, 2003; Yakhlef, 2007; Easterby-Smith et al., 2008). Entretanto, como apontado por Smilor e Gibson (1991) quanto maior a distância cultural entre as partes mais difícil é a transferência de conhecimento.
2.2. Modelo teórico da pesquisa
De maneira geral, quanto mais próximo e pautado por confiança for o relacionamento entre as partes, mais boa vontade haverá entre as firmas para a transferência do saber (Szulanski, 1996, 2000; Jasimuddin, 2007). Por outro lado, um relacionamento árduo pode gerar, por parte da receptora, uma percepção de que o conhecimento externo é pouco relevante e que não há uma relação de compromisso e solidariedade entre as partes reduzindo, pois, a motivação para absorver e aplicar o conhecimento externo e comprometer o processo de transferência de conhecimento (Szulanski, 1996, 2000).
Do lado da fonte, um relacionamento distante e sem confiança reduz, também, a motivação para a transferência, na medida em que amplia o seu receio em compartilhar os conhecimentos críticos e perder o domínio sobre estes recursos (Szulanski, 1996; 2000; De Tienne, Dyer, Hoopes, & Harris, 2004). Portanto, para que a fonte esteja disposta a transferir o seu know-how é fundamental que as partes desenvolvam um relacionamento caracterizado por um elevado nível de confiança e de integração social. (Gupta & Govindarajan, 2000; Becerra et al., 2008; Easterby-Smith et al., 2008). Portanto, a qualidade do relacionamento pode influenciar na eficiência e eficácia da transferência de conhecimento (Pérez-Nordtvedt et al., 2008) atuando como uma variável moderadora nos efeitos da motivação para a transferência.
Em termos de distância cultural, Easterby-Smith, Lyles e Tsang (2008) argumentam que quando as firmas buscam construir uma relação intensa e de confiança, as barreiras culturais tendem a ser atenuadas. Portanto, para efeitos de compreensão do modelo, a qualidade do relacionamento atua, também, como uma variável moderadora que pode atenuar os efeitos da distância cultural e favorecer a transferência de conhecimento.
3. Metodologia de pesquisa
Com o objetivo de compreender o papel dos fatores do contexto relacional no processo de transferência de conhecimento entre uma instituição de pesquisa publica e firmas licenciadas, optou-se por uma pesquisa de natureza qualitativa com o uso do método de estudo de caso (Bonoma, 1985; Eisenhardt, 1989; Yin, 2005). Trata-se de uma estratégia adequada de investigação posto que a transferência é um tema recente e ainda existe pouca convergência em relação a vários aspectos da teoria (Bonoma, 1985; Yin, 2005).
O objeto empírico desta pesquisa é um dos centros de pesquisa de uma instituição pública brasileira de pesquisa agropecuária, cuja missão é viabilizar soluções de pesquisa, desenvolvimento e inovação com ênfase na cultura de milho e sorgo para a sustentabilidade da agricultura brasileira, cuja principal atividade consiste na pesquisa e geração de novas sementes de milho e sorgo em quantidade limitada.
O processo de transferência de conhecimentos gerados pela instituição de pesquisa para as firmas licenciadas consiste num caso crítico, pois é a maior instituição pública de pesquisa agropecuária brasileira e com ampla experiência em processos de transferência. A instituição já utilizou diversos modelos de transferência de suas tecnologias para o setor produtivo e há evidências históricas de dificuldades neste processo.
Esta pesquisa utilizou entrevistas em profundidade, documentos e notas de campo na coleta de dados (Eisenhardt, 1989; Yin, 2005). Foi realizado um total de treze entrevistas em profundidade, sendo onze com os colaboradores da instituição de pesquisa e duas com representantes de firmas licenciadas. Dentre outras questões, buscaram-se evidências sobre as interações estabelecidas entre a instituição de pesquisa e as licenciadas, especialmente, em termos de qualidade do relacionamento e diferenças culturais.
Após a conclusão da etapa de entrevistas, foi feito ainda um painel de apresentação das evidências com os informantes-chave para validar os resultados encontrados conferindo, assim, maior rigor e confiabilidade na pesquisa. (Eisenhardt, 1989). Em relação aos documentos, foram consultados diversos planos, relatórios gerenciais, material de divulgação e o website da instituição.
Para o exame dos dados coletados, foi empregada a análise de conteúdo em que o pesquisador busca compreender profundamente o texto, examinar as suas várias dimensões e construir inferências a partir dele (Bardin, 1994; Bauer & Gaskell, 2002). Para facilitar este exame, foram estabelecidas categorias de análise com base na literatura. Assim, os dados obtidos foram organizados de acordo com tais categorias facilitando, deste modo, a interpretação e codificação dos dados (Eisenhardt, 1989; Bardin, 1994).
Com isso, foi possível também comparar a percepção de diferentes atores acerca de um mesmo fator, bem como realizar a triangulação de fontes de evidências, isto é, confrontar os dados obtidos a partir de diferentes fontes de evidências conferindo maior confiabilidade e qualidade nos resultados de pesquisa. Essa técnica de articular múltiplas fontes de evidências para a análise de um mesmo fenômeno é um dos tipos de triangulação utilizados nessa pesquisa (Eisenhardt, 1989; Jick, 1979).
4. Discussão dos resultados
A instituição pública de pesquisa agropecuária aqui tomada como caso de pesquisa já passou, desde a sua criação em 1975, por diversos modelos de transferência de tecnologia ao longo do tempo. Um primeiro modelo, conhecido como franquia vegetal, durou de 1988 até aproximadamente 1998. Posteriormente, vigorou um modelo de editais públicos para a oferta de cultivares para as firmas no mercado. Este modelo durou até o ano de 2007. A fase seguinte que durou até 2010 é conhecida como licenciamento, sendo a oferta de cultivares feita por meio de editais públicos, mas, diferentemente da fase anterior, esta tinha uma entidade (uma fundação) que passou a coordenar as diversas firmas interessadas nas tecnologias da instituição de pesquisa (Entrevistas 1 e 13).
Ao longo da sua trajetória, ou seja, em todos os modelos já experimentados para a transferência de tecnologia, os dados sugerem que a instituição de pesquisa enfrenta algumas dificuldades mais ou menos recorrentes, a saber: (i) uma heterogeneidade muito elevada de firmas, o que incluía desde firmas com pouca experiência na multiplicação e comercialização de sementes para o usuário final a firmas com elevadas capacidades internas de melhoramento genético, isto é, mais avançadas em termos tecnológicos; (ii) inexistência de qualquer tipo de exclusividade, isto é, todos os tipos de sementes são licenciados para todas as firmas, o que gera insatisfação pelas dificuldades de diferenciação entre elas e, no limite, lançava-as em uma guerra de preços interminável, posto que a semente a ser multiplicada e comercializada era a mesma; e, (iii) ausência de oferta de tecnologias mais avançadas, como por exemplo, as sementes transgênicas (Entrevistas 1 e 13).
Dado esse contexto, em relação ao fator distância cultural há evidências de divergências culturais significativas entre a instituição de pesquisa e as firmas privadas, posto que, de um lado, a instituição de pesquisa, pela sua natureza pública, trabalha condicionada por uma série de legislações e regulamentações e, por outro, as firmas licenciadas tem autonomia administrativa e, assim, as suas ações e decisões tendem a ser mais ágeis (Entrevista 1, 2, 4, 6, 11, 12). Além disso, a gestão das entidades privadas tem um forte viés econômico-financeiro, o que diverge da abordagem da instituição de pesquisa em diversas situações em que esta prioriza o interesse social em detrimento do aspecto econômico. Estas diferenças podem gerar dificuldades de entendimentos entre as partes e dificultar o processo de transferência tecnológica
A maioria dos profissionais da instituição de pesquisa reconhece que as exigências impostas pelo governo geram enrijecimento e falta de autonomia na atuação da instituição e que essas condições dificultam a condução das atividades de P&D, que requerem uma estrutura flexível e sem barreiras à inovação. Entretanto, há aqueles que alegam que, em algumas situações, a pressão das firmas licenciadas não tem fundamento, uma vez que a geração de novas cultivares é um processo complexo com uma série de atividades que demandam tempo e, por isso, as demandas por sementes não podem ser atendidas prontamente como as firmas desejam. Não obstante, ainda é um desafio fazer com que a iniciativa privada entenda o ponto de vista da instituição de pesquisa.
Dentre as limitações que a instituição de pesquisa enfrenta decorrentes de seu caráter público e questionadas pela iniciativa privada merecem destaque: (i) o relacionamento com as firmas licenciadas fica condicionado àquilo que está preconizado na legislação pública e, portanto, há um aspecto formal limitante nesta relação; (ii) sendo um processo de oferta pública, não há possibilidade de a instituição de pesquisa selecionar as firmas que podem ou não adquirir as suas sementes de modo a excluir aquelas menos capacitadas para explorar tais tecnologias, (iii) ausência de oferta de tecnologias exclusivas para determinadas firmas; (iv) necessidade de atender a pesquisas demandadas pelo governo que, muitas vezes, não geram retorno financeiro e/ou são pouco interessantes do ponto de vista da iniciativa privada (Entrevista 1 e 6).
Muitas vezes, para cumprir o seu papel social, a instituição de pesquisa investe, também, no desenvolvimento de tecnologias para a agricultura familiar e em tecnologias de baixo investimento (Entrevista 6). Para algumas das firmas licenciadas mais desenvolvidas tecnologicamente essa dispersão de foco é um desperdício de recursos, gerando atrasos no desenvolvimento de tecnologias mais avançadas (por exemplo, sementes transgênicas), o que tem suscitado críticas à atuação da instituição de pesquisa (Entrevista 12).
Por fim, em termos de diferenças culturais, é importante salientar que há uma percepção por parte das licenciadas de que a instituição de pesquisa não possui visão mercadológica, característica esta muito presente e importante na iniciativa privada (Entrevista 1, 11, 12), o que remete à alegação de que a instituição de pesquisa desenvolve tecnologias e serviços que não atendem as necessidades do mercado.
Em síntese, a instituição de pesquisa como entidade pública tem uma série de limitações que não são compreendidas e aceitas pela iniciativa privada gerando profundas divergências culturais entre as partes. Desse modo, as diferenças culturais tendem a dificultar o compartilhamento de conhecimentos entre a instituição de pesquisa e as licenciadas, o que pode levar à falta de colaboração entre as partes (Cummings & Teng, 2003; Yakhlef, 2007; Easterby-Smith et al., 2008).
Em relação à qualidade do relacionamento há evidências de uma fraca integração social entre as partes, bem como um clima de desconfiança nessa relação. Isto pode ser evidenciado nas seguintes situações: (i) a ênfase da instituição de pesquisa nos aspectos formais do relacionamento; (ii) a interação unidirecional, pouco personalizada e infreqüente entre as partes; (iii) a existência de vários interlocutores na instituição de pesquisa tornando o relacionamento com as firmas licenciadas fragmentado e complexo; (iv) a participação das firmas licenciadas em atividades conjuntas e na P&D tem sido pouco significativa.
Em relação ao primeiro aspecto, uma característica do relacionamento entre a instituição de pesquisa e as licenciadas é a sua natureza formal decorrente, em parte, do caráter público da primeira. Isso significa que a instituição de pesquisa põe uma ênfase maior aos canais e mecanismos formais do relacionamento diferentemente das licenciadas que preferem recorrer a fontes informais. As atividades conjuntas previstas no convênio assinado entre as partes, no modelo de transferência de tecnologia que vigora desde 2008, por exemplo, servem para tratar de questões meramente formais e, em função disso, não parecem ser suficientes para tornar a relação entre as partes mais próxima e pautada por confiança (Entrevista 1 e 10).
Além da formalização, observou-se que a interação e a comunicação da instituição com as licenciadas são infreqüentes, unidirecionais e pouco personalizadas. Boa parte dos entrevistados afirmou, por exemplo, que tem contato pessoal com as licenciadas uma ou duas vezes ao ano, o que impossibilita uma ampla integração social e a troca de experiências entre as partes. Como esse envolvimento entre a instituição de pesquisa e as licenciadas é baixo, as firmas participam de poucas decisões durante as atividades de P&D prejudicando o relacionamento entre as partes e, em decorrência, o processo de transferência tecnológica (Entrevistas 1, 2, 3 e 6).
Soma-se a isto, a existência de vários interlocutores na instituição de pesquisa tornando o relacionamento bastante complexo. Para as questões associadas à tecnologia em si, as licenciadas se comunicam com o centro de pesquisa, pois possuem confiança nos pesquisadores. Por outro lado, o relacionamento comercial é feito com a área de negócios da instituição de pesquisa e, por fim, existe um intermediário nesta relação, isto é, uma entidade que congrega as firmas aptas a licenciar as tecnologias da instituição de pesquisa. Então, as firmas possuem três interlocutores para assuntos diferentes e isso cria uma série de problemas, o que contribui para um relacionamento complexo e distante. Em inúmeras circunstâncias, por exemplo, o licenciado não sabe com quem se comunicar para sanar algum problema ou buscar informações (Entrevista 1).
Existe, ainda, uma zona de atrito entre a área de negócios da instituição de pesquisa e as licenciadas (Entrevista 1, 4) com ausência de um clima de colaboração e de confiança entre estes atores. Em parte, isso se deve à forma de cobrança de royalties que vem desde o modelo de franquia (1988-1998) e que parece ter desgastado esse relacionamento (Entrevista 4). Um dos colaboradores de uma das firmas licenciadas compartilha com esses fatos e confirma que o relacionamento das licenciadas com a área comercial da instituição é infreqüente, conflituoso e permeado por desconfiança (Entrevista 11).
Finalmente, o envolvimento das licenciadas nas atividades conjuntas e no P&D da instituição de pesquisa é bastante reduzido. Poucas licenciadas tem se mostrado interessadas em pegar os materiais para testes em campos próprios, mesmo com a previsão formal de participação destas firmas em uma etapa da P&D (unidades de observação) (Entrevistas 1, 3 e 10). Isso parece decorrer, dentre outras razões, de algum desconhecimento por parte das licenciadas da importância destas atividades para a posterior utilização do conhecimento externo (Entrevista 7), ou mesmo, por não considerarem as tecnologias oferecidas como atrativas. Portanto, a interação e a comunicação entre a fonte e receptoras que poderiam ser incrementadas em função desta participação não estão ocorrendo.
Além do baixo envolvimento na P&D da instituição de pesquisa, quando da ocorrência de participação nos testes em campos próprios, eram poucas as firmas que contribuíam efetivamente no processo de comunicar à instituição de pesquisa sobre o desempenho dos materiais (Entrevista 1, 3, 10). Essas informações acabam virando segredo industrial das licenciadas que desejam mantê-las sob seu domínio para evitar que os concorrentes saibam, por exemplo, quais doenças surgiram no momento do plantio ou quais materiais apresentaram bom desempenho (Entrevista 10). Então, até o presente momento não há um retorno sistemático de informações sobre o desempenho das tecnologias para a instituição de pesquisa.
Ou seja, a lógica continua igual, a cultivar gerada pela P&D da instituição é idêntica à semente adquirida pelo usuário final havendo, portanto, pouca interferência das firmas licenciadas no desenvolvimento da tecnologia (Entrevista 1, 2, 3, 4 e 10). Por outro lado, a instituição de pesquisa não tem buscado interagir, se comunicar e assegurar o retorno destas informações (Entrevista 1 e 4) o que dificulta ainda mais a transferência reversa de conhecimento, além de acentuar a fraca integração social entre as partes. Em decorrência disso, a instituição de pesquisa detecta os problemas com os materiais (sementes) num período posterior ao que as firmas já observaram e, muitas vezes, a partir de outras fontes, como a própria mídia (Entrevista 4).
Então, em termos de relacionamento entre a instituição de pesquisa e as firmas licenciadas pode-se inferir que ele é caracterizado pela fraca conexão social e elevada desconfiança. Isso possivelmente tem dificultado o compartilhamento de conhecimento entre as partes, como constatado a partir da literatura (Szulanski, 1996; 2000; Argote et al., 2003; Easterby-Smith et al., 2008; Pérez-Nordtvedt et al., 2008; Van Wijk et al., 2008).
Retomando, agora, o modelo de pesquisa proposto, o que se observa a partir da análise de dados é que o relacionamento entre as partes é árduo. E, uma vez que o relacionamento entre a instituição de pesquisa e as licenciadas é caracterizado pela fraca conexão social e elevado nível de desconfiança em decorrência, dentre outras razoes, pela ênfase da instituição de pesquisa nos aspectos formais do relacionamento, da ausência de mecanismos de interação e socialização e da existência de vários interlocutores na instituição de pesquisa tornando a interação com a instituição fragmentada e complexa (Entrevistas 1, 3 e 4), tais dificuldades parecem gerar uma falta de comprometimento das licenciadas na parceria, o que pode estar refletido na reduzida participação e envolvimento em projetos conjuntos com a instituição de pesquisa. Existe pouca motivação, portanto, das firmas para ampliar o relacionamento e intensificar as atividades de transferência com a instituição de pesquisa e em função disso, a relação entre as partes acaba se limitando à perspectiva comercial, isto é, à entrega das sementes e à formalização contratual. Ou seja, o relacionamento distante entre a instituição de pesquisa e as licenciadas contribui para reduzir a motivação destas na transferência de conhecimento.
Por outro lado, constatou-se também que a qualidade do relacionamento afeta a motivação da fonte. Embora existam diversas razões que justifiquem um elevado nível de motivação da instituição de pesquisa para participar da transferência, como o alinhamento deste processo com a sua missão, há evidências de um receio por parte da instituição do uso ilícito de seu material genético pelas licenciadas (Entrevista 1 e 3). Esta preocupação existe, pois não há uma relação de confiança entre as partes e com isso, a motivação da instituição de pesquisa na transferência tende a ser menor. Tal situação revela, portanto, uma influência da qualidade do relacionamento na disposição (motivação) da fonte em compartilhar seus conhecimentos críticos. Posto dessa forma, se de maneira geral, a qualidade do relacionamento pode aumentar a motivação das partes envolvidas, no caso estudado há evidências de que as dificuldades de relacionamento entre a fonte e as receptoras tem influenciado negativamente na motivação e potencializado as dificuldades no processo de transferência de conhecimento.
Além disso, como o relacionamento é distante, formal, permeado por interações infreqüentes e, muitas vezes, conflituoso, isso parece influenciar a alargar ainda mais a distância e as diferenças culturais entre as organizações envolvidas na transferência. Ou seja, novamente, há evidências de que a dificuldade de relacionamento entre a instituição de pesquisa e as firmas licenciadas tem potencializado conflitos que acentuam ainda mais o problema da distância cultural existente entre as partes.
5. Conclusão
Baseando-se na perspectiva teórica da transferência de conhecimento interfirmas, este artigo buscou analisar o papel dos fatores do contexto relacional no processo de transferência de conhecimento entre uma instituição de pesquisa pública e as firmas licenciadas.
Um primeiro resultado diz respeito à existência de uma fraca integração social e ausência de confiança na relação entre fonte e a receptora, o que dificulta significativamente a transferência de conhecimento entre as partes. Dentre as razões que podem explicar esta relação árdua, merecem destaque a comunicação pouco personalizada utilizada pela instituição de pesquisa e a existência de vários interlocutores na instituição de pesquisa tornando o relacionamento entre as partes fragmentado e complexo.
Essa fraca integração social e a desconfiança existente na relação entre a instituição de pesquisa e as licenciadas reduzem a motivação das receptoras para adquirir e explorar as tecnologias da fonte e, por outro lado, diminui a disposição da instituição de pesquisa para compartilhar os seus conhecimentos críticos. Esse resultado é convergente com a literatura que aponta a qualidade do relacionamento como uma variável relevante para a transferência ao influenciar na motivação das firmas (Szulanski, 1996, 2000; Easterby-Smith et al., 2008; Pérez-Nordtvedt et al., 2008).
Um segundo resultado diz respeito à elevada distância cultural entre instituição de pesquisa e as firmas receptoras. Tais diferenças estão relacionadas com pressupostos e objetivos diferentes entre a fonte e a receptora Esse resultado é convergente com alguns estudos que apontam a distância cultural tende a dificultar o fluxo de conhecimentos colocando barreiras, portanto, ao processo de transferência (Cummings & Teng, 2003; Easterby-Smith et al., 2008). Entretanto, se a qualidade do relacionamento pode moderar os efeitos da distância cultural, as dificuldades de relacionamento encontradas no caso estudado, contribuem para alargar ainda mais tais divergências de valores e crenças entre as partes e colocar barreiras à transferência de conhecimento.
Tendo em vista o propósito deste artigo pode-se afirmar que uma primeira contribuição teórica foi aprofundar a compreensão de como a qualidade do relacionamento entre partes atua estimulando ou inibindo o fluxo de compartilhamento entre fonte e receptora. No caso estudado, a qualidade do relacionamento que é fraca contribui para inibir a motivação das partes e para elevar ainda mais a percepção de distância cultural, dificultando a transferência de conhecimento.
Em segundo, a pesquisa adotou uma perspectiva multidimensional isto é, procurou examinar o problema da transferência a partir de alguns fatores que concorrem para explicar um mesmo fenômeno. Neste caso, tomaram-se as variáveis distância cultural e motivação das partes, por um lado e, qualidade do relacionamento, por outro, bem como os efeitos destas sobre a transferência de conhecimento. Tal abordagem é relevante na medida em que boa parte das pesquisas sobre o tema parte de uma perspectiva unidimensional sem considerar, portanto, que diversos fatores atuam conjuntamente e influenciam no desempenho do processo (Pérez-Nordtvedt et al., 2008).
Do ponto de vista empírico, a compreensão do processo de transferência e das variáveis que o afetam pode contribuir para que a instituição e as firmas licenciadas possam aprimorar o compartilhamento de conhecimento, uma vez que são evidentes as dificuldades existentes no processo.
A despeito das contribuições teóricas e empíricas deste artigo, algumas limitações devem ser destacadas. Uma primeira é que, embora o caso estudado seja crítico, trata-se de um caso único. A utilização de casos múltiplos poderia conferir maior robustez ao estudo ao permitir comparações e análises das semelhanças e diferenças entre casos investigados (Eisenhardt, 1989; Yin, 2005). Além disso, um maior número de entrevistas junto às firmas licenciadas poderia elucidar melhor o problema da qualidade do relacionamento, da motivação e da distância cultural entre as firmas envolvidas.
Agradecimentos
Agradecemos à FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais) pelo apoio financeiro à pesquisa que deu origem a este artigo.
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Processo de aprovação do artigo:
Recebido: 03 junho 2012
Accepted: 15 maio 2013