Introdução
O presente artigo apresenta uma experiência em abordagens plurais em um contexto escolar brasileiro. O foco principal é a maneira como as atividades propostas aos alunos e a vivência do contato com diferentes línguas e traços culturais despertaram e/ou reforçaram nos alunos pré-adolescentes o sentimento de abertura em relação à diversidade e o desejo de conhecer mais profundamente tal diversidade.
As reflexões que resultaram na teorização das abordagens plurais do ensino de línguas e culturas emergiram no contexto europeu, nos idos da década de 1990, a partir do início da estruturação da União Europeia - momento em que a livre circulação dos indivíduos desencadeou um delineamento mais marcadamente plurilíngue nos países da Europa (Candelier, 1995). Consequência natural da mobilidade intraeuropeia foi a formação de classes escolares em que crianças falantes nativas da língua do país conviviam cotidianamente com crianças alófonas, recém-chegadas, que traziam consigo uma ou mais línguas familiares e/ou do contexto social de que vieram. Essa nova configuração exigia novas práticas sociais e didáticas.
Diante de tal necessidade, pesquisadores e formadores de professores começam a se questionar sobre como ensinar a língua de escolarização e os conteúdos escolares a um público heterogêneo e com bagagens linguísticas diversas. Também foram levadas em consideração o fracasso escolar de determinados grupos de alunos, no que se referia à alfabetização e às línguas da escola (Caporale, 1989). Estudos em torno da observação das semelhanças entre as línguas parentes (como Dabène, 1975) começam a ser revisitados e ganham cada vez mais consistência: novas práticas são propostas e se tornam objeto de pesquisas em torno do que o Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas (QECR) chama, mais tarde, de “educação linguística geral” (Conselho da Europa, 2001). Abordaremos detalhadamente alguns aspectos dessa proposta de educação linguística na próxima seção.
Este artigo se estrutura em quatro partes principais: ele se inicia com um panorama teórico sobre as abordagens plurais utilizadas na prática pedagógica aqui retratada e sua inserção no contexto educacional brasileiro. Em seguida, é apresentado o projeto realizado junto aos alunos; a paisagem socioeconômica e linguísticas desses pré-adolescentes; e o principal instrumento de coleta de dados utilizado para a discussão apresentada neste artigo. Posteriormente, apresentam-se os resultados, organizados em categorias de análise. O artigo se encerra com uma síntese dos resultados e perspectivas de utilização das abordagens plurais no contexto brasileiro com vistas ao desenvolvimento de atitudes positivas face à diversidade linguística e cultural.
As abordagens plurais e o contexto brasileiro
A partir do contexto apresentado na Introdução deste texto, passamos à apresentação das abordagens plurais, que se opõem às abordagens singulares, e são definidas por Candelier (2003) nos seguintes termos:
Nós chamamos abordagens plurais a uma prática pedagógica na qual o aprendiz trabalha simultaneamente com várias línguas. (…) Inversamente, uma abordagem singular será uma prática em que o único objeto é uma língua e uma cultura particulares, tomada isoladamente. (Candelier, 2003, pp. 19-20)1
Esse tipo de abordagem permite a descoberta dos plurilinguismos individuais no seio de uma turma de alunos e, ao mesmo tempo, favorece a descoberta e a ampliação dos horizontes linguísticos desses mesmos alunos, quando eles entram em contato com outras línguas, presentes ou não em seu entorno, no ambiente escolar ou em outros espaços sociais.
Quatro práticas pedagógicas são consideradas abordagens plurais, a saber: a intercompreensão entre línguas parentes, o despertar para as línguas, a didática integrada e a abordagem intercultural (Candelier, 2008). Na prática pedagógica apresentada e analisada neste artigo, foram mobilizadas duas delas: a intercompreensão e o despertar para as línguas. Passaremos à sua apresentação, na subseção a seguir.
Intercompreensão e despertar para as línguas
A intercompreensão entre línguas parentes (doravante, IC) é entendida de diferentes maneiras, já que muitos autores se debruçaram sobre essa prática e buscaram apresentar um conceito para ela. Candelier (2003) a define como:
um trabalho paralelo sobre diversas línguas de uma mesma família, seja a família à qual pertence a língua materna do aprendiz (ou a língua da escola) ou da família de uma língua que ele já estudou. (Candelier, 2003, p. 20)2
Capucho afirma que a intercompreensão é “uma inovação que tem revolucionado a didática das línguas estrangeiras no decorrer das últimas três décadas” (Capucho, 2013, p. 19). Tal revolução se explica pela perspectiva como essa abordagem se propõe a olhar para as línguas: ela desfaz a hierarquia entre elas, colocando-as todas em pé de igualdade, bem como seus falantes; ela promove o desenvolvimento de competências em diversas línguas, inclusive valorizando de maneira especial o potencial da língua materna no processo de aprendizagem (Degache, 2003).
Todas essas construções individuais em torno das competências linguísticas se baseiam no paradigma que Dabène, em sua proposta inovadora de 1975, propõe-se a quebrar: as línguas historicamente sempre foram consideradas fechadas em si mesmas, estanques, separadas por muros e isso contribui para o fortalecimento do poder e dos sistemas de dominação (Blanchet, 2016), mas, como mostra Dabène, prejudica os processos educacionais e sociais das relações que os indivíduos estabelecem com as línguas (Dabène, 1997). Em suas observações sobre a aprendizagem de línguas românicas por falantes nativos de outras línguas românicas, Dabène (1975) propõe que esses muros sejam desconstruídos e que as semelhanças entre as línguas, no lugar de serem consideradas ameaças, fossem tratadas como ferramentas de auxílio ao processo de aprendizagem das novas línguas. A partir dessa proposta, inúmeras pesquisas foram realizadas no sentido de verificar as contribuições das semelhanças linguísticas quando exploradas de maneira positiva no processo de aprendizagem (Dabène, 1995; Malheiros Poulet, Degache, & Masperi, 1994; Masperi, 1992, entre outros). Mais adiante, novos trabalhos foram realizados e resultaram no desenvolvimento de materiais baseados em estratégias de intercompreensão, com o objetivo de auxiliar o aprendiz a ler em línguas que ele nunca estudou formalmente: EuRom5 (Bonvino, Caddéo, Vilaginès, & Pippa, 2011), EuroComRom (Klein & Stegmann, 2000), InterRom (Carullo, 2009), entre outros.
Jamet e Spiţă (2010) apontam que a intercompreensão pode ser vista sob três diferentes ângulos: como um atributo de cada pessoa, como um fenômeno de comunicação e como uma ação de fundamento didático. No presente estudo, a IC foi mobilizada enquanto ação de fundamento didático, com vistas ao desenvolvimento das competências individuais, fortalecendo o atributo de cada pessoa, no caso, os alunos participantes do projeto. Esta prática permitiu aos alunos o contato com uma grande diversidade de línguas, sem o objetivo de lhes ensinar a produzir (falar ou escrever) naquela língua. As propostas didáticas baseadas na IC proporcionam o desenvolvimento e o aprimoramento de ferramentas de compreensão: escrita ou oral, receptiva ou interativa (Ollivier, 2013), segundo os objetivos pretendidos pela prática no contexto educacional específico. Tais ferramentas se constituem de estratégias relativas à análise do léxico (palavras transparentes), à análise morfossintática, à leitura global do contexto de comunicação, entre outras.
No que se refere ao despertar para as línguas (éveil aux langues), esta prática foi proposta por E. Hawkins, na Inglaterra, nos anos 1980, sob a denominação de language awareness (Hawkins, 1984), e, posteriormente, passou a ser estudada por outros pesquisadores em diferentes países europeus, especialmente na França, na Suíça e na Alemanha e, então, passou a ser designada como éveil au langage (Dabène, 1992) e, finalmente, éveil aux langues, sua designação mais conhecida no mundo francófono. Nos trabalhos de language awareness realizados na Inglaterra, o objetivo principal da implementação dessa prática didática era lutar contra o fracasso escolar. M.-O. Maire-Sandoz (2008) destaca que, quando o despertar para as línguas começou a se desenvolver nos outros países europeus, a prática objetivava, principalmente, gerar, nos alunos, efeitos positivos em duas dimensões: atitudes relativas à abertura à diversidade linguística e cultural, bem como à motivação para a aprendizagem de línguas; e aptidões metalinguísticas, metacomunicativas e cognitivas, facilitando o acesso posterior às línguas (Candelier, 1998; Maire-Sandoz, 2008).
Na definição de M. Candelier (2000), o despertar para as línguas é a prática de atribuir uma função pedagógica a línguas que a escola não tem o objetivo de ensinar, e, principalmente, de fazê-lo simultaneamente com várias línguas. No contexto brasileiro, essa proposta de trabalho pode ser utilizada com foco nos dois objetivos apresentados acima: lutar contra o fracasso escolar e desenvolver nos alunos atitudes positivas e aptidões metalinguísticas.
Como se observa, tanto a intercompreensão entre línguas parentes como o despertar para as línguas são práticas que envolvem, simultaneamente, o contato com mais de uma língua e promovem, nesse contato, uma sensibilização linguística. O aprendiz pode, assim, ter contato e descobrir elementos com os quais nunca teve contato antes ou, ainda, trazer para a consciência elementos sobre os quais nunca jogou luz, apesar de confrontá-los em seu cotidiano. Neste último caso, estão em jogo aspectos da competência plurilíngue e pluricultural (Coste, Moore, & Zarate, 2009) e da consciência da identidade plurilíngue do indivíduo, muitas vezes apagada ou ignorada.
O CARAP e as competências desenvolvidas pelas abordagens plurais
A utilização das abordagens plurais nas práticas pedagógicas escolares estimula o desenvolvimento de conhecimentos, atitudes e aptidões (Savoirs, Savoir-être e Savoir-faire). Esses são os chamados “recursos internos” de que o aprendiz dispõe e para cujo desenvolvimento as abordagens plurais trazem grande contribuição. O Cadre de référence pour les approches plurielles des langues et cultures (Candelier et al., 2012) - CARAP - apresenta, dentro de cada um desses três domínios, seções que agrupam os recursos relacionados entre si.
Os dados deste trabalho e as reflexões que seguem as análises se baseiam diretamente no domínio das Atitudes, especificamente nas seções I e II, que tratam da “curiosidade (interesse)”, “valorização”, “disponibilidade”, “motivação”, “vontade” e “desejo” de se implicar em ações envolvendo outras línguas e culturas. Especificamente, encontramos os seguintes descritores de recursos que permitem a análise dos dados desta pesquisa:
A 3 Curiosidade / Interesse - por línguas / culturas / pessoas “estrangeiras” // contextos pluriculturais // a diversidade °linguística / cultural / humana do ambiente // a diversidade linguística / cultural / humana em geral [em si mesma]
A 3.2 Curiosidade pela descoberta do funcionamento das línguas / das culturas (/ a(s) sua(s) / as outras /)
A 5.3 Abertura às línguas / culturas
A 7 Disponibilidade / motivação em relação à diversidade / pluralidade linguística / cultural
A 7.5 Motivação para estudar / comparar o funcionamento das diferentes línguas {estruturas, vocabulário, sistemas de escrita…} / culturas
A 8.5 Desejo de descobrir outras línguas / outras culturas / outros povos (Candelier et al., 2012, pp. 38-43)3
Assim, tomando como norte esses descritores, trataremos aqui de manifestações e indícios de “desejo de busca pela alteridade”, uma vez que, no contexto escolar estudado, não há alunos falantes nativos de outras línguas. Assim, os alunos tiveram contato com a diversidade linguística principalmente por meio das músicas e textos escritos trabalhados em sala de aula e das línguas que a professora apresentou para eles, buscando simular situações reais de comunicação.
Diante desse panorama de possibilidades de desenvolvimento de recursos internos, é necessário buscar as abordagens plurais que mais atendem às necessidades identificadas no público ao qual é destinada a proposta pedagógica em foco. Como dito, para o presente trabalho foram selecionadas a intercompreensão e o despertar para as línguas, e o objetivo dessa escolha foi a ampliação linguística e cultural dos alunos, bem como o despertar de sua consciência para sua condição de indivíduo plurilíngue. Esta nos pareceu a escolha mais adequada para o contexto escolar em que a experiência foi realizada.
Veremos a seguir um panorama da inserção das abordagens plurais no Brasil, por meio das pesquisas realizadas na última década.
Pesquisas em abordagens plurais no Brasil
No contexto brasileiro, a abordagem plural que mais se destaca é a intercompreensão entre línguas parentes. A intercompreensão como prática didática foi objeto de inúmeras pesquisas na última década, com foco em diferentes contextos e aspectos da aprendizagem: línguas em contato, línguas indígenas, utilização das IC no âmbito do ensino de outras línguas, formação de professores de IC por meio da IC e o uso de plataformas de interação plurilíngue, entre outras. Os trabalhos foram realizados em contexto escolar e universitário.
O quadro 1 apresenta uma visão geral das pesquisas em intercompreensão no Brasil até 2020, organizadas segundo o público para o qual se voltaram e a inserção contextual de cada uma delas:
Meio escolar | Meio universitário | |
---|---|---|
. Educação infantil: IC receptiva (Pinheiro-Mariz & lira, 2017) . Ensino fundamental: IC e o desempenho em português LM (Souza, 2013); IC receptiva (Dautzenberg, 2016); Leitura literária (Lima, 2015) . Ensino médio: IC receptiva (Carola, 2015) . Educação de jovens e adultos: Leitura literária (Silva, J., 2017); Inglês (Oliveira, 2016) | . Sensibilização às línguas e culturas (Bezerra, 2016) Ensino plurilíngue e IC interativa (Silva, 2012; Moutinho, 2013; Erazo Muñoz, 2016) . IC receptiva (Miranda-Paulo, 2018) | |
Línguas em contato | IC em direção a uma língua-alvo4 | Impactos da IC |
. Línguas românicas e guarani (Félix, 2016) . Fronteira Brasil-França (Belrose, 2015) . Interações presenciais no cotidiano (Ferreira, L. S., 2010) | . Alemão (Reipschlager, 2017; Santos, G., 2013) . Espanhol (Bermudez, 2016; Izuibejeres, 2015) . Inglês (Oliveira, 2016; Santos, T., 2018) . Francês (Valente, 2015) | . Histórico da IC no Brasil e em Natal (Silva, A. C., 2017) . IC e política de ensino de línguas no Brasil (Ferreira, L. G., 2018) |
Fonte: Sarsur-Câmara, 2020, p. 92).
A fronteira entre as abordagens plurais muitas vezes não é clara, de forma que atividades de IC escrita podem funcionar, em certa medida, como uma sensibilização dos aprendizes para as línguas com as quais entram em contato, aproximando-se muito da abordagem de despertar para as línguas (éveil aux langues). Na terminologia de Degache e Garbarino (2017), essa é a função propedêutica da IC como prática didática. Ainda segundo os autores, a IC pode assumir também, entre outras, a função instrumental, que se apresenta quando os aprendizes são formados em IC por meio da prática da IC. Na pesquisa que deu origem ao presente trabalho, a IC se apresentou em suas funções propedêutica e instrumental.
O presente artigo é um recorte de uma pesquisa de doutorado e se insere no quadrante superior esquerdo do quadro 1: foi realizada em contexto escolar. Nesta pesquisa foi feita uma tentativa de delimitar a distinção entre as duas abordagens plurais, cada uma delas sendo o objeto central de uma das etapas do projeto proposto aos alunos. Entretanto, temos consciência de que, para alunos como o do contexto escolar em questão, cujo perfil linguístico será apresentado a seguir, a IC teve uma função clara de sensibilização para a diversidade linguística, além da função instrumental, citada acima.
Contexto linguístico e social dos participantes da pesquisa
Este artigo apresenta parte dos resultados de uma experiência escolar: trata-se de um público de Ensino Fundamental II, de idade 11-12 anos. Os alunos e suas famílias são oriundos de um contexto socioeconômico desfavorecido e são, em sua maioria, habitantes de um grande aglomerado urbano (“comunidade” ou “favela” brasileira) da cidade de Belo Horizonte, região Sudeste do país. As principais características socioeconômicas desse contexto é o baixo poder aquisitivo das famílias e o preconceito sofrido pela população da “favela”.
O contexto linguístico dos alunos é caracterizado pela presença constante do português, sua língua materna, que é, também, a língua de escolarização. Por meio da biografia linguística (Cuq, 2003) feita pelos alunos, é possível depreender outros elementos do perfil linguístico do grupo. Outras línguas presentes, em menor escala, são: o inglês e o espanhol, com que os alunos têm contato por meio de programas de televisão, filmes e músicas. Destaca-se a língua inglesa, cuja presença é mais significativa no contexto dos participantes da pesquisa, principalmente porque, no 6º ano do Ensino Fundamental (11-12 anos), o inglês começa a ser ensinado formalmente na escola. Outras línguas que aparecem em muito menor escala são o japonês e o mandarim. Alguns alunos têm contato com o japonês por meio de jogos eletrônicos. O mandarim, eles escutam no contato com comerciantes em algumas regiões da cidade.
O projeto “ler o mundo”5
O projeto “Ler o mundo” foi concebido com o objetivo central de promover a educação integral dos alunos, unindo os princípios das abordagens plurais a elementos de formação humana e de fortalecimento de uma autoimagem positiva.
Ele se desenvolveu em torno da temática central da Copa do Mundo FIFA 2018, evento internacional de grande projeção que serviu como ponte para a aproximação dos alunos com as línguas a serem trabalhadas no projeto. A temática da Copa do Mundo foi utilizada anteriormente também por Lima (2015), trabalho que serviu de inspiração para a proposta do projeto “Ler o mundo”. Ambas as experiências didáticas mostram como eventos esportivos de escala mundial, como também o são os Jogos Olímpicos, por exemplo, podem ser uma porta de entrada interessante e produtiva para o trabalho da educação linguística junto aos alunos no contexto escolar. Isso se explica pelo interesse pelo esporte por partes dos alunos e, sobretudo, pela maneira como a grande mídia trata esses eventos, mostrando imagens dos países participantes das competições, veiculando informações sobre eles e realizando entrevistas com os esportistas, locutores falantes de línguas diferentes do português, que é a língua mais presente na mídia brasileira.
O projeto foi organizado em seis etapas, com diferentes estruturas e objetivos:
Etapa 1: introdução e apresentação das regras de participação
Etapa 2: despertar para as línguas
Etapa 3: intercompreensão
Etapa 4: dar uma aula
Etapa 5: visitas
Etapa 6: Rodas de Conversa e encerramento
Desse conjunto, as etapas 2 e 3 serão objeto de apresentação mais detalhada abaixo. Destacam-se, na organização do projeto, as etapas 4 e 5, em que os alunos tiveram contato direto com falantes nativos de outras línguas diferentes do português: pessoas que vivem no Brasil há muitos anos e puderam apresentar para os alunos experiências linguísticas e culturais que viveram em seu país de origem e em outras regiões do planeta onde já estiveram (Etapa 5). Na Etapa 4 reside o elemento de maior interesse do aspecto humano e de formação integral que embasou a concepção do projeto: os alunos conceberam, prepararam e ministraram uma aula sobre uma das línguas com que eles tiveram contato no projeto “Ler o mundo” ao longo do ano. A aula foi ministrada para seus próprios professores das outras disciplinas e para outros alunos da escola que não participaram do projeto. As atividades das etapas 4 e 5 foram elementos relevantes na consciência e no fortalecimento da competência plurilíngue e intercultural dos alunos e do fortalecimento de sua autoestima (aspecto recorrente nos resultados de pesquisas sobre as abordagens plurais, como Buschle, Calvo Del Olmo, & Cunha, 2020; Miranda-Paulo, 2018; Oliveira, 2016; Pinheiro-Mariz & Lira, 2017; Silva, 2017; Souza, 2013, para citar algumas pesquisas realizadas no contexto brasileiro)6.
Dado o contexto de pouco contato com a diversidade linguística e o grande sentimento de baixa autoestima apresentado pelos alunos da escola em que o projeto foi realizado, eu, como professora responsável pelo projeto, com vistas a contribuir com a formação humana e integral dos alunos, propus como objetivos da Etapa 2 (despertar para as línguas/éveil aux langues):
Sensibilizar os alunos quanto à existência e a variedade das línguas do mundo (características, situação geográfica, semelhanças e diferenças, relações entre elas), no sentido da “educação linguística geral” (QECR - Conselho da Europa, 2001);
Preparar os alunos para a Etapa 3.
Esta etapa contou com a realização de atividades envolvendo os países participantes da Copa do Mundo 2018 e suas línguas, o manuseio e análise de mapas e de elementos constitutivos da história do Brasil que explicam o panorama linguísticos brasileiro atual. Nesta etapa também foi realizada a biografia linguística e foi trabalhada a noção de “família linguística”, em que os alunos compreenderam as relações entre o português e outras línguas da família românica, que foram objeto da Etapa 3.
E, como objetivos da Etapa 3 (intercompreensão), propus:
Favorecer o desenvolvimento de competências em diversas línguas (Degache, 2003), especificamente, o espanhol e o italiano;
Estimular nos alunos a construção do Sentimento de Autoeficácia, por meio da experiência ativa (Bandura, 1997).
Nesta etapa, os alunos leram, mobilizando as estratégias de intercompreensão receptiva escrita, textos de diferentes gêneros em línguas espanhola e italiana.
Diante do apresentado acima, fica clara a tentativa de distinção entre as duas abordagens plurais mobilizadas no projeto “Ler o mundo”, apesar de toda a etapa de intercompreensão também poder ser considerada um momento de sensibilização, já que é aí que acontece o contato direto e mais aprofundado com cada uma das línguas românicas trabalhadas, o espanhol e o italiano.
O projeto foi realizado junto a 41 alunos do 6º ano do Ensino Fundamental (idade 11-12 anos), ao longo do ano escolar de 2018. As aulas do projeto tinham 1 hora de duração e foram realizadas de fevereiro a outubro de 2018, totalizando 30 horas de duração. Os alunos participaram do projeto por meio de inscrição voluntária e o projeto não atribuiu pontuação às atividades, não interferindo diretamente na nota geral dos alunos ao final do ano letivo.
O projeto “Ler o mundo” foi realizado na escola em que eu trabalhava à época da realização da pesquisa e, diante da possibilidade de realizar uma atividade paralela às aulas regulares, propus essa atividade de educação linguística. Para sua realização, fiz pessoalmente a divulgação do projeto, no início do ano letivo, para as 4 turmas de 6º ano do Ensino Fundamental. Os alunos tinham consciência de que se ausentariam das aulas regulares para assistir às aulas do projeto e que essa atividade era voluntária e não atribuiria nota para sua avaliação escolar anual. A escola deu sua anuência e concordou com esse sistema de funcionamento.
Em 2018, o 6º ano contava com 120 alunos matriculados nessa escola. Desse universo, 82 alunos (69%) se inscreveram voluntariamente para participar do projeto “Ler o mundo” (no início do ano). Os alunos também tinham a possibilidade de se retirar definitivamente do projeto a qualquer momento. Dos 82 alunos inscritos, 41 se desligaram do projeto e 41 permaneceram até o final do ano.
Esses números são o primeiro indício de que os alunos já apresentavam interesse pela descoberta da diversidade linguística e cultural. Com a participação no projeto, esse interesse se confirma e é, em certa medida, reforçado pelas vivências e atividades propostas ao longo do ano. A análise dos dados apresentada neste artigo se baseia nas perguntas feitas pelos alunos ao longo do ano, ou seja: a exteriorização verbal da curiosidade e do interesse dos alunos pela diversidade linguística e cultural do mundo. O instrumento para a geração desses dados foi o “Estacionamento de perguntas”, apresentado a seguir.
O “estacionamento de perguntas”
Ao longo de todo o ano, os alunos contaram com um recurso de externalização de suas reflexões: tratava-se do “Estacionamento de perguntas”, em que eles podiam registrar perguntas, desde que elas se relacionassem ao projeto como um todo, às línguas e culturas do mundo ou a conhecimentos gerais.
Abaixo está apresentado o “Estacionamento de perguntas” (figura 1), um cartaz afixado na parede da sala de aula. Ele permaneceu afixado no mesmo local durante todo o ano e ficou à disposição dos alunos: eles podiam registrar suas perguntas, ler as perguntas dos colegas e as respostas dadas pela professora.
Este recurso foi muito bem utilizado pelos alunos ao longo do ano e transformou-se em um importante instrumento de geração de dados. Inserindo-se no âmbito de uma pesquisa-ação de natureza qualitativa e exploratória, o “Estacionamento de perguntas” pode ser caracterizado como um método de geração de dados linguísticos (segundo a classificação de Degache, 1990), por meio de elementos verbais (conforme a classificação de Flick, 2004), registrados de forma escrita pelos próprios alunos, autores das perguntas.
Ele se diferencia de outros instrumentos de geração de dados em pesquisa qualitativa por algumas de suas características próprias, como, por exemplo, o fato de ser um espaço de uso não-obrigatório pelos alunos participantes do projeto (e da pesquisa). Além de ser de uso voluntário, não havia restrições quanto à temática das perguntas a serem registradas, havia apenas a orientação “Escreva aqui sua pergunta (sobre o mundo ou outro assunto)”. A indicação “sobre o mundo ou outro assunto” visava ao estabelecimento de um objetivo para aquele instrumento, que era, então, um instrumento pedagógico e, posteriormente, se reconfigurou como um instrumento de geração de dados para a pesquisa.
Partindo da hipótese de que o projeto “Ler o mundo” despertaria o interesse e a curiosidade dos alunos por assuntos diversos, e sabendo que nem todos os alunos se sentem à vontade para expor suas dúvidas diante de toda a classe, o principal objetivo do “Estacionamento de perguntas” foi estimular que os alunos expressassem suas reflexões e questionamentos, em especial aqueles levantados a partir das discussões em torno das temáticas trabalhadas no projeto. O instrumento também se caracteriza por não ter limite de participação: um aluno poderia ou não registrar perguntas no “Estacionamento” ao longo do ano, e, se optasse por fazê-lo, não tinha nenhuma restrição de quantidade. Os alunos tinham a liberdade de registrar as perguntas de forma anônima, se assim o desejassem.
As respostas foram registradas pela professora, à medida que as perguntas eram feitas. As respostas não serão analisadas neste artigo, porque o foco da análise é o movimento dos alunos em direção à diversidade, e os indicadores desse movimento são as perguntas feitas por eles, independentemente do conteúdo das respostas dadas pela professora.
A seguir, passamos à apresentação detalhada das perguntas registradas pelos alunos ao longo do ano, seguida de uma análise dos tipos de perguntas, que estão organizadas em categorias temáticas. As categorias propostas emergiram dos dados analisados segundo o modelo de análise de conteúdo (Bardin, 2016), especialmente por meio da análise temática. Na seção a seguir, são apresentados os indícios que as perguntas carregam no sentido de expressar o “desejo (dos alunos) de busca pela alteridade” e confirmar os benefícios da prática das abordagens plurais para o desenvolvimento dos aprendizes enquanto atores sociais plurilíngues (Conselho da Europa, 2001).
Análise das perguntas
No total, foram registradas 44 perguntas no “Estacionamento de perguntas”. Elas foram classificadas em cinco categorias de análise. As perguntas se relacionavam às seguintes temáticas:
as línguas do mundo;
a relação da professora com as diferentes línguas;
a experiência da professora em outros países;
conhecimentos gerais;
perguntas pessoais para a professora.
Essas categorias foram propostas após observação e análise do conjunto completo das perguntas. As perguntas da categoria 1 giram em torno da diversidade linguística ou de aspectos linguísticos de determinadas línguas específicas. As da categoria 2 se interessam por compreender as experiências linguísticas da professora, seja em relação às línguas estudadas, seja em aspectos específicos de sua aprendizagem com cada uma das línguas. As da categoria 3, por sua vez, giram em torno das vivências internacionais e interculturais da professora. As da categoria 4 não se relacionam diretamente com elementos ligados às línguas, mas, sim, a elementos de cultura geral e conhecimento enciclopédico.
A análise que se segue foi feita sobre cada um dos quatro blocos de perguntas, separadamente, à exceção das perguntas pessoais para a professora, que não serão analisadas neste artigo.
Perguntas sobre as línguas do mundo
A primeira categoria apresenta 14 perguntas, que foram divididas em três subcategorias:
5 perguntas do tipo “quando vamos aprender a língua X?”;
5 perguntas sobre a situação geográfica da utilização das línguas;
4 perguntas oriundas de reflexão metalinguística.
O quadro 2 apresenta as perguntas sobre as línguas do mundo:
Subcategoria | Perguntas | ||||
---|---|---|---|---|---|
“quando vamos aprender a língua X?” | Que dia vamos aprender outras línguas? | E nois vai aprender outras línguas que dia? | Quais línguas vamos aprender? | Qual línguas vamos falar mais? | Que dia vamos aprender a falar a língua do Egito? |
situação geográfica da utilização das línguas | Que língua fala Madagascar? | Que língua fala o Egito? | Que língua fala a América Latina? | Que língua fala na: Ásia, África e Austrália? | Qual língua fala em Lesoto? |
resultado de reflexão metalingüística | Por que os árabes não falam “damito cosita”? | Por que os japoneses falam “sam” (primeiro/nome)? | Como os portugueses conversavam com os espanhóis se um falava português e o outro espanhol e como fizeram o Tratado (de Tordesilhas)? | (Como se diz) “como se chama” em alemão? |
Fonte: Elaborado pela autora.
As perguntas da primeira subcategoria são o indício mais claro do desejo dos alunos de aprender novas línguas. Além do desejo, também fica explícito o interesse, ambos se ligando diretamente às atitudes pretendidas com as abordagens plurais no contexto escolar. Os alunos não fazem distinção e não traçam limites para o seu desejo de aprender: querem saber “quais outras línguas” serão apresentadas a eles.
Sob esse prisma, os alunos se aproximam dos seguintes descritores de recursos do CARAP:
A 3 Curiosidade / Interesse - por °°°línguas / culturas / pessoas° “estrangeiras” // contextos pluriculturais // a diversidade °linguística / cultural / humana° do ambiente // a diversidade °linguística / cultural / humana° em geral (em si mesma)°°
A 7.5 Motivação para °estudar / comparar° o funcionamento das diferentes °línguas {estruturas, vocabulário, sistemas de escrita…} / culturas°
A 8.5 Desejo de descobrir °outras línguas / outras culturas / outros povos° (Candelier et al., 2012, pp. 38-43)7
Além desses aspectos, que se referem principalmente à postura dos alunos em direção à descoberta do outro, é possível interpretar essas perguntas como uma projeção de si mesmos: os alunos se sentem capazes de aprender essas “outras línguas” a que se referem em suas perguntas. Esse elemento é muito relevante para esta pesquisa, porque um dos objetivos do projeto “Ler o mundo” era estimular o fortalecimento da autoimagem positiva dos alunos. Essas perguntas indicam que esse objetivo foi alcançado, em certa medida, já que os alunos constroem uma autoimagem ligada às ideias de capacidade e de possibilidade, elementos de significação positiva.
A última pergunta dessa subcategoria “Que dia vamos aprender a falar a língua do Egito?” chama a atenção, porque, neste caso, a aluna não é capaz de nomear a língua que desperta seu interesse (talvez ela não saiba a que língua quer se referir). No entanto, apoiando-se na noção uma nação-uma língua (Blanchet, 2016; Glottopol, 2003), ela expressa seu interesse por outro país, onde, segundo ela, fala-se uma língua diferente da sua (o português) e ela demonstra curiosidade e interesse por acessar essa outra realidade. Ela também demonstra motivação para estudar e descobrir essa língua, que se torna a porta de acesso para que ela descubra mais sobre o Egito, o país de seu interesse.
A partir desse mesmo ponto, passamos às perguntas da segunda subcategoria, as perguntas do tipo “Que língua é falada em … ?”, sobre as quais destacamos três aspectos nessa análise, sendo o primeiro precisamente a noção uma nação-uma língua, ainda muito presente na representação dos alunos sobre a diversidade linguística do mundo, como foi possível observar na pergunta analisada no parágrafo anterior. As primeiras atividades do projeto tiveram como objetivo romper essa visão e tornar os alunos mais conscientes das relações entre língua, identidade, território, como indicam os seguintes descritores do CARAP:
K 5.6.1 Saber que não se deve confundir o país e a língua
K 5.6.1.1 Saber que muito frequentemente, há várias línguas em um mesmo país / uma mesma língua em vários países
K 5.6.1.2 Saber que muito frequentemente as fronteiras entre línguas e entre países não coincidem. (Candelier et al., 2012, 28)
Com o avançar do projeto e das discussões, os alunos demonstraram ter compreendido essas diferentes entre fronteiras geográficas e linguísticas.
O segundo aspecto relevante é a curiosidade em relação a diferentes países e continentes demonstrada por esses alunos. Eles demonstram uma espécie de “explosão”, externalizando seus conhecimentos sobre a existência dessas localidades e a busca pela exploração desses lugares, a começar pela identificação das línguas faladas ali. É possível pensar que a nomeação das línguas de cada país ou continente também proporcionaria aos alunos uma espécie de “identidade” de cada um desses lugares.
O terceiro aspecto é bastante interessante, porque os alunos perguntam sobre as línguas de Madagáscar e Lesoto, que eles não conheciam antes de participar do projeto: foi nas primeiras aulas do projeto “Ler o mundo”, quando o mapa mundi foi explorado com detalhes junto aos alunos, que eles descobriram a existência da ilha de Madagáscar e de Lesoto, um país “encrustado” na África do Sul. O que chama a atenção é como os alunos dão um salto entre o desconhecimento e o interesse por ampliar as informações sobre esses locais, mostrando que as abordagens plurais trazem para os alunos, além de conhecimentos sobre as línguas, inúmeros elementos de conhecimentos gerais e de mundo (Sarsur-Câmara, 2020).
Quanto à terceira subcategoria, é possível observar que os alunos foram capazes de realizar reflexões metalinguísticas a partir dos estímulos que receberam no contexto das aulas e, dando um passo à frente, são capazes de extrair das suas experiências linguísticas fora da sala de aula, o material para fundamentar tal reflexão. Esse é o caso do aluno que pergunta “Por que os japoneses dizem ‘sam’ antes do nome?”: o contato dessa criança com a língua japonesa são os jogos eletrônicos. A partir dessa experiência de contato por meio dos jogos, ela construiu uma relação de afeto com essa língua e profundo interesse, não só pela aprendizagem do japonês (conforme apresenta em sua biografia linguística), mas também pela vontade de compreender o funcionamento desse sistema linguístico, como mostra a pergunta registrada por ele.
A pergunta relativa à língua alemã também contém indícios de interesse e busca pela alteridade, ainda que em um estágio inicial e que não necessariamente se concretizará. Há, nesses dois exemplos, os primeiros sinais do que o CARAP apresenta como
A 7.5 Motivação para °estudar / comparar° o funcionamento das diferentes °línguas {estruturas, vocabulário, sistemas de escrita…} / culturas° (Candelier et al., 2012, p. 42)
No que se refere à última pergunta, observa-se que, ao refletir sobre a maneira como os portugueses e os espanhóis interagiam entre si, a aluna amplia a noção do aspecto estritamente linguístico, estrutural, lexical da língua e passa a um nível mais profundo. Ela analisa a língua em seu contexto social, de uso real, por falantes em um contexto de interação - e, no caso, em um contexto bastante significativo de interação, ou seja, a decisão sobre a divisão das terras recém-descobertas no continente americano. Essa mesma aluna dá outras mostras de reflexões mais aprofundadas, como se verá na parte 5.4, mais adiante.
Perguntas sobre a relação da professora com as diferentes línguas
A segunda categoria apresenta 12 perguntas, que foram divididas em três subcategorias:
8 perguntas sobre as línguas dominadas pela professora;
2 perguntas sobre a relação afetiva da professora com as línguas;
2 perguntas sobre o processo de aprendizagem das línguas.
O quadro 3 apresenta as perguntas sobre a relação da professora com as diferentes línguas:
Subcategoria | Perguntas | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
línguas dominadas pela professora | Você sabe escrever todas as língua? | Você sabe escrever mais alguma língua? | Você sabe falar outra língua? | Quais línguas você fala? | Você fala quantas línguas? | Você consegue falar Romanche? | Quais as línguas que você fala? | Quantas línguas você sabe???????? |
relação afetiva da professora com as línguas | Quais línguas você mais gosta de falar? | Você gosta de uma língua mais do que a língua espanhol? | ||||||
processo de aprendizagem das línguas | É fácil falar outra língua? | Como você aprendeu as 7 línguas? |
Fonte: Elaborado pela autora.
As perguntas desta categoria evidenciam outro aspecto relevante nesta pesquisa: ao buscar se aproximar da realidade linguística da professora, os alunos parecem desejar mensurar suas próprias possibilidades de atingir aquela mesma condição. No primeiro momento, eles desejam saber quantas e quais línguas a professora conhece. Essas perguntas podem parecer mera curiosidade, mas são o primeiro passo para a subcategoria seguinte, que trata do aspectos afetivo da relação da professora com as línguas. Os alunos, tendo tido, até antes do projeto, pouco contato com outras línguas diferentes do português, buscam a noção do prazer (verbo “gostar”) na experiência da professora.
Nesse mesmo sentido, a análise da pergunta “Você gosta de uma língua mais do que a língua espanhol?” permite-nos observar o papel da emoção na aprendizagem. Essa pergunta foi registrada no “Estacionamento de perguntas” ao fim de uma aula dedicada à leitura em intercompreensão da música “Dónde estás corazón”, da cantora colombiana Shakira. Ao longo dessa aula, a aluna sentiu, em si, o prazer de estar em contato com a língua espanhola, como mostra esse registro do Diário reflexivo da professora-pesquisadora:
Grupo 5 Colômbia, aula da música Dónde estás corazón - Sophia não parava de sorrir. A cada agudo da Shakira, ela olhava para mim. Ao final da aula, ela escreveu no Estacionamento de Perguntas: “tem alguma língua que você gosta mais que o espanhol?” (Diário reflexivo, 23/05/2018, Grupo 5 Colômbia, grifo nosso)
Essa pergunta mostra a intensidade da emoção que a descoberta da língua espanhola causou nessa aluna. E, ao invés de declarar sua própria emoção, ela a transfere e busca, na professora, um eco do seu próprio sentimento, evidenciando o importante lugar que têm as emoções na aprendizagem de uma nova língua (Puozzo-Capron & Piccardo, 2013).
Por fim, na última subcategoria de perguntas, os alunos se projetam na possibilidade de aprender outras línguas, tomando como referência a experiência da professora: ao buscar conhecer o processo de aprendizagem de outras línguas, se é fácil ou difícil, os alunos parecem buscar referências para aplicarem a si mesmos, para verificar se também serão capazes e alcançarão aquelas competências.
As perguntas dessa categoria se respaldam, em certa medida, no seguinte descritor A 8.5 do CARAP, além de carregarem um aspecto afetivo, de valorização e estima, como apresenta o descritor A 6:
A 8.5 Desejo de descobrir °outras línguas / outras culturas / outros povos°” (Candelier et al., 2012, pp. 38-43)
A 6 °Respeito / Estima° - das °línguas / culturas / pessoas°” (Candelier et al., 2012, p. 41) .
Perguntas sobre a experiência da professora em outros países:
A terceira categoria apresenta duas perguntas:
Esta categoria guarda alguma semelhança com a categoria anterior, na medida em que os alunos buscando conhecer mais de perto a vivência da professora e suas experiências linguísticas e culturais.
A segunda pergunta, no entanto, atesta um desejo mais profundo do que apenas “conhecer”. A formulação da pergunta com o pronome “como” dá mostras de que o aluno deseja compreender mais do que “como é Paris”, e sim “como é (a experiência) de ir para Paris”: ele busca acessar as sensações, as impressões, como se desejasse viver essa experiência para sentir em si, no próprio corpo e no próprio coração, como ela é.
Esse aspecto afetivo e emocional foi manifesto muito frequentemente pelos alunos ao longo do ano. As expressões mais evidentes dessa experiência afetiva era o prazer de ter contato com as línguas durante as aulas. Tal prazer foi verbalizado por eles em inúmeras ocasiões ao longo do ano ou expressos por meio de linguagem não-verbal, com sorrisos e olhares de muito entusiasmo pelas experiências que estavam vivendo no projeto “Ler o mundo”12.
Perguntas sobre conhecimentos gerais
A quarta e última categoria apresenta 13 perguntas, que foram divididas em três subcategorias:
5 perguntas relacionadas à questão das origens do indivíduo e do ser humano;
3 perguntas diretamente relacionadas aos temas tratados nas aulas;
5 perguntas sem relação aparente com os temas das aulas.
O quadro 4 apresenta as perguntas sobre conhecimentos gerais:
Subcategoria | Perguntas | ||||
---|---|---|---|---|---|
origens do indivíduo e do ser humano | Como você sabe que raça você tem? | Os nossos tataravós eram índios ou portugueses? | Como os índios surgiram? | Como surgiu o primeiro homem do mundo? | Como surgiu o mundo? |
perguntas diretamente relacionadas aos temas tratados nas aulas | Quais países ou lugares do mundo que as pessoas ainda não exploraram? | (É possível) pensar e cantar ao mesmo tempo?? | O que sabe sobre a Copa? | ||
perguntas sem relação aparente com os temas das aulas | Como faz argila? | Por que o Brasil vive tanta corrupção? | Porque o Brasil não tem uma máquina do tempo? | Como faz pirâmide do Egito? | Como o ar sai das árvores? |
Fonte: Elaborado pela autora.
As perguntas da primeira subcategoria foram todas feitas pela mesma aluna, em diferentes momentos do ano. O aspecto que mais chama a atenção nesse bloco de pergunta é que todas tratam de um tema central comum, que é a noção de origem. A aluna reflete sobre a origem de maneira progressiva e essa noção se mistura com a noção de identidade. No primeiro momento, a pergunta se situa no âmbito individual: a raça do indivíduo. No segundo momento, ela amplia a busca já no âmbito das origens familiares, a partir de conceitos trabalhados no projeto, em relação à formação do Brasil como país, decorrente dos dois primeiros povos que se encontraram nesse território: os colonizadores portugueses e os índios que já habitavam a terra em que hoje se situa o Brasil. Na sequência, a aluna questiona sobre a origem dos índios, que já estavam no Brasil quando os portugueses chegaram aqui: a aluna tenta dar um passo atrás para entender a origem deles. Na quarta pergunta, sua reflexão vai ainda mais longe no tempo, quando ela busca a origem do ser humano (“o primeiro homem no mundo”). Até que, por fim, ela pergunta sobre a origem de tudo e esse parece ser o limite de sua busca pelas origens - do mundo, do homem, dos índios que deram origem ao povo brasileiro, de sua família e de si mesma como indivíduo.
Esse conjunto de perguntas mostra como as atividades em torno das línguas do mundo, unidas ao retorno à História e à Geografia e às noções de povo e de identidade são capazes de estimular nos alunos reflexões tão complexas e tão profundas em diferentes níveis, sempre contribuindo para sua autopercepção enquanto indivíduo. Diante dessas noções, o indivíduo toma consciência da sua condição de ser humano plural inserido em uma sociedade plural.
Quanto à segunda subcategoria, encontram-se nela perguntas diretamente relacionadas às questões desenvolvidas no projeto “Ler o mundo”, referentes a diferentes ordens: a pergunta sobre os lugares não explorados mostra que o trabalho com o mapa mundi e a descoberta dos países pelos alunos leva um deles a refletir mais amplamente sobre a relação do Homem com o planeta.
A segunda, de ordem cognitiva, parece ter relação com as atividades com músicas, feitas em sala: a aluna passa a refletir sobre suas próprias capacidades diante da experiência que teve, ao trabalhar com a letra de uma música em sala de aula.
Por fim, a última pergunta é muito ampla e o aluno parece procurar expandir ainda mais os próprios conhecimentos sobre a Copa do Mundo 2018, que foi a temática central de sensibilização dos alunos e serviu de ponte para o trabalho com as línguas do mundo no projeto “Ler o mundo”.
As 5 últimas perguntas não têm relação direta com as temáticas trabalhadas no projeto: elas tratam de temas variados que despertam a curiosidade dos alunos: temas da atualidade e da vida cotidiana. Essas perguntas podem indicar o sentimento de pertencimento dos alunos ao grupo e ao próprio projeto, uma vez que eles se sentem à vontade para expor suas dúvidas e curiosidades, fazendo uso do recurso destinado a esse fim, sem se intimidarem por qualquer razão (deboche ou censura, seja da parte dos colegas ou da professora).
Esta categoria de perguntas reforça a ideia de que o trabalho com as línguas, em uma proposta pedagógica baseada nas abordagens plurais, pode favorecer a construção de novos conhecimentos gerais e de mundo (Sarsur-Câmara, 2020), contribuindo para a formação dos alunos, em qualquer nível de aprendizagem. Parece-nos relevante mencionar os conhecimentos gerais e de mundo, presentes no processo de aprendizagem de uma nova língua (QECR - Conselho da Europa, 2001), ainda que eles não figurem entre os descritores de recursos do CARAP.
Considerações finais e perspectivas
Os dados analisados neste artigo são oriundos do projeto “Ler o mundo”, baseado nas abordagens plurais e realizado junto a 41 alunos brasileiros de idade entre 11 e 12 anos ao longo de 30 horas/aula. O principal instrumento de geração de dados foi o “Estacionamento de perguntas”, um espaço para que os alunos registrassem suas dúvidas e curiosidades surgidas ao longo do ano letivo em que participaram do projeto.
As 44 perguntas registradas no “Estacionamento de perguntas” foram classificadas em cinco categorias temáticas: as línguas do mundo; a relação da professora com as diferentes línguas; a experiência da professora em outros países; conhecimentos gerais; perguntas pessoais para a professora. A análise aponta que 63% das perguntas registradas pelos alunos se relacionam com temas e questões linguísticas tratados no projeto “Ler o mundo”, o que significa que as atividades realizadas nesse projeto foram responsáveis pelo despertar do interesse e da curiosidade em torno de 4 assuntos principais, dos quais 3 estão diretamente relacionados à temática do projeto:
As línguas em geral, sua diversidade e utilização, aprendizagem das línguas;
A relação da professora com as línguas;
A experiência da professora em outros países;
A cultura geral, conhecimento do mundo onde vivemos, nossa origem e nossa história.
A elaboração de algumas perguntas repousa claramente sobre reflexões metalinguísticas realizadas individualmente pelos alunos. Muitas perguntas “ultrapassam” o espaço da sala de aula e os assuntos tratados durante as aulas: elas indicam uma abertura de espírito realizada nos alunos, sobretudo no nível intercultural, o interesse pelo outro e pela sua cultura. Essa passagem do espaço interno da sala de aula para o espaço e o mundo externo se faz principalmente através das línguas.
Por meio das perguntas, os alunos se projetam e mostram seu interesse pela aprendizagem de novas línguas e por novas descobertas. As perguntas feitas pela mesma aluna sobre as origens (do mundo, do ser humano, da família) traduzem uma reflexão ampla sobre as próprias origens e guardam relação com as discussões feitas em sala sobre fatos históricos e formação do Brasil, bem como com a noção de identidade, diretamente relacionada às línguas, constituinte identitário dos indivíduos.
Identifica-se e confirma-se, ainda uma vez, por meio das análises aqui apresentadas, a grande contribuição das abordagens plurais para o despertar da curiosidade e do interesse desses alunos pela diversidade linguística e cultural do mundo. Assim, os pressupostos que orientaram a concepção do projeto “Ler o mundo” são confirmados e apresentam resultados positivos no que diz respeito à prática pedagógica realizada. As atividades de despertar para as línguas e a intercompreensão contribuíram para que os alunos desenvolvessem atitudes positivas relativamente à diversidade linguística do mundo; atitudes metalinguísticas; e estratégias de aprendizagem, que são os objetivos centrais das abordagens plurais, segundo Candelier (2003, 2008).
Essa experiência pedagógica com as abordagens plurais une-se a outras, realizadas no Brasil e em outros países, e apresenta suas especificidades, como, por exemplo, o fato de ser realizada junto a um grupo de alunos que compartilham a mesma língua materna. Isso evidencia a importância e a eficácia das abordagens plurais nas práticas pedagógicas em diferentes contextos linguísticos e socioeconômicos. Através das línguas, os alunos puderam acessar, simbólica e literalmente, outros países, valores e culturas, como um “novo mundo” que se abre à sua frente e passa a existir em seu horizonte, pronto a ser explorado e descoberto.
Consideramos, concordando com Alas Martins em seu artigo pioneiro de 2010, que, no contexto brasileiro, essas práticas podem contribuir para o desenvolvimento escolar dos alunos, bem como para sua formação integral, enquanto indivíduos inseridos em uma sociedade plural e diversa. Além disso, a educação linguística, se oferecida desde os anos iniciais de escolarização podem favorecer - e facilitar - o processo de aprendizagem de outras línguas ao longo da vida escolar das crianças e adolescentes. A educação linguística também é responsável por fazer desabrochar nos alunos, desde cedo, o interesse pelas línguas do mundo, a capacidade de realizar reflexões metalinguísticas e maior autonomia no desenvolvimento de estratégias de aprendizagem. Essas contribuições poderão ser úteis em suas experiências escolares futuras, no processo de aprendizagem de outras línguas e também no processo de apropriação e desenvolvimento de sua língua materna.
A inserção de outras práticas linguísticas no currículo escolar brasileiro trará, certamente, muitos benefícios aos alunos e aos educadores. E esses benefícios se refletem na família e, a longo prazo, na sociedade brasileira, que recebe cada vez mais migrantes falantes de outras línguas (Conare, 2018) e uma educação linguística será de fundamental importância para o acolhimento desses indivíduos. Além disso, tal educação será essencial no estabelecimento de uma sociedade com maior equilíbrio na distribuição das oportunidades para todos.