Introdução
O artigo apresenta resultados de uma tese de doutorado que discutiu a inserção do soroban - ábaco japonês - para o ensino de conceitos relacionados aos números e às operações matemáticas a estudantes com deficiência intelectual, que frequentavam a Educação de Jovens e Adultos de uma escola de Educação Especial (Mamcasz-Viginheski, 2017).
O soroban foi trazido ao Brasil pelos imigrantes japoneses a partir de 1908, a ter o uso pelas pessoas com deficiência visual na década de 1950. O soroban recebeu pequenas alterações, não perdendo os princípios matemáticos originais, porque a adaptação foi somente com a inserção de uma borracha ao fundo, que impedia o movimento involuntário das contas. Dessa forma, o soroban, inicialmente, não é um material elaborado para uso de pessoas com deficiência visual, tendo sido adaptado para tal finalidade. A Figura 1 apresenta a imagem do soroban.
Os números são registrados no soroban ao se ter as contas dos eixos aproximadas à régua de numeração. Cada um dos eixos corresponde a uma ordem do Sistema de Numeração Decimal. Assim, considera-se o primeiro eixo da direita para a esquerda como o eixo das unidades. Nele, as contas da parte inferior têm o valor de uma unidade, já as contas da parte superior têm o valor de cinco unidades. O segundo eixo, da direita para a esquerda, é destinado às dezenas. Nele, as contas da parte inferior têm o valor de dez unidades ou uma dezena por sua vez, e as contas da parte superior equivalem a cinquenta unidades ou cinco dezenas. Assim, sucessivamente, o eixo das centenas, em que as contas inferiores assumem o valor de cem unidades ou uma centena, a ter as contas da parte superior, equivalentes a quinhentas unidades ou cinco centenas.
O estudo desenvolvido por Mamcasz-Viginheski (2017) investigou as contribuições do uso do soroban na aprendizagem de conceitos matemáticos relacionados aos números, pelos estudantes com deficiência intelectual e o desenvolvimento das funções psicológicas superiores ali envolvidos. Defendeu-se a tese de que as limitações cognitivas das pessoas com deficiência intelectual não constituem barreiras para a aprendizagem dos conceitos científicos. No caso do estudo conduzido, o número e a realização das operações por meio do soroban foram confirmadas pelos resultados obtidos na pesquisa-ação. Para tanto foram desenvolvidas intervenções pedagógicas em uma turma com oito estudantes com deficiência intelectual matriculados na Educação de Jovens e Adultos (EJA) de uma escola de Educação Especial da região Sul do Brasil.
Os registros de dados da pesquisa revelaram que havia limitações relativas ao conhecimento matemático pelos participantes. Entre elas destacam-se: a) a compreensão de pequenas quantidades, entre três ou quatro; b) a contagem apropriada limitada a agrupamentos de até dez unidades; c) o desconhecimento das regras do sistema de numeração decimal; e d) as dificuldades na resolução de problemas. Após a intervenção, a pesquisadora observou mudanças conceituais dos participantes com a inserção do soroban como instrumento de cálculo, associado a outras atividades que permitiram as uas participações no processo de aprendizagem, assim como seus desenvolvimentos para além dos limites do ensino da Matemática. A pesquisa apontou que a inserção do soroban contribuiu para a aprendizagem dos conteúdos matemáticos, propostos na intervenção pedagógica, como números, sistema de numeração decimal, operações, resoluções de problemas entre outros. Como consequência, efetivou-se o desenvolvimento das funções psicológicas superiores dos estudantes participantes do estudo.
Os resultados obtidos são comparados a outros estudos que trazem como temática o uso do soroban para o ensino de conceitos matemáticos. Entre eles, ensinar aos estudantes os números complementares de um número, como, por exemplo, dois e três são complementares ao número cinco, a inserir o soroban como instrumento de cálculo ainda nos anos iniciais, assim como o desenvolvimento do cálculo mental (Donlan & Wu, 2017; Freeman, 2014; Mahpop & Sivasubramanian, 2010).
Ressalta-se o estudo desenvolvido por Shen (2006), que examinou os efeitos do ábaco mental no ensino de conceitos matemáticos para crianças com deficiência intelectual matriculadas em escolas de Educação Especial da China. Os resultados revelaram que os estudantes, ao fazerem uso do ábaco mental, desenvolveram habilidades como a computação, a compreensão de conceitos, melhorias na capacidade de aplicação de conhecimentos matemáticos em situações extraescolares por eles vivenciadas, mudanças não verificadas no grupo de estudantes que não fez uso do ábaco mental.
No Brasil, a pesquisa desenvolvida por Peixoto e Santana (2009) analisou a influência do soroban na compreensão do sistema de numeração decimal e das quatro operações fundamentais com números decimais para dezesseis estudantes com dificuldades para a aprendizagem em Matemática de uma escola pública do estado da Bahia. O estudo revelou melhores resultados após a inserção do soroban como ferramenta para o cálculo.
As pesquisas citadas apresentaram resultados positivos para a utilização do soroban na aprendizagem dos conceitos matemáticos e, consequentemente, o desenvolvimento das funções psicológicas superiores dos alunos, tais como a atenção, a linguagem, a memória e o pensamento. Essa revisão da literatura constata a relevância de os professores usarem dessa ferramenta de cálculo no processo de ensino e aprendizagem dos conceitos matemáticos. Assim, a partir dela, desencadeia-se um questionamento: os professores que atuam na educação das pessoas com deficiência intelectual conhecem e sabem utilizar o soroban para a realização de cálculos matemáticos e para a resolução de problemas?
Na prática do ensino efetivo em sala de aula, é comum a preocupação dos professores que atuam na área em oferecer aos estudantes atividades escritas, repetitivas, que, na maioria das vezes, não exigem a ação mental, portanto não contribuem para a aprendizagem dos conceitos, tampouco para seu desenvolvimento (Mamcasz-Viginheski, 2017).
Para a atuação como docente em programas específicos de Educação Especial é necessário que o professor tenha formação inicial que o habilite para o exercício da docência, com formação para atuação na Educação Especial (Brasil/MEC, 2009). A habilitação é obtida nos cursos de licenciaturas e nos cursos de especialização, em nível lato sensu. Ao revisitar alguns currículos das licenciaturas de duas universidades públicas do estado do Paraná, Sul do Brasil, disponíveis para consulta em domínio público, constata-se que as disciplinas voltadas à compreensão da Educação Especial são poucas e, possivelmente, insuficientes para a atuação. A maioria dos cursos de especialização são de formação generalista, o que não permite o aprimoramento do tema.
A formação inicial não atende às demandas de trabalho do professor. Por sua vez a formação continuada é uma das maneiras de se estudar questões teóricas e as suas práticas realizáveis no contexto escolar para que a escola não se distancie da sua função que é propiciar a aquisição de instrumentos necessários ao acesso do conhecimento científico e a superar o senso comum (Saviani, 2009).
Saviani (2009) discute a formação docente voltada aos conteúdos culturais e cognitivos, como também contempla as questões pedagógicas. Para o autor, a formação iriar além e argumenta sobre a necessidade da formação pedagógica crítica e com atitudes. O conhecimento científico sustentado por uma base epistemológica sustenta a atividade escolar e permite que a ciência seja transferida para o cotidiano dos que dela se apropriam. Fundamentados nessa perspectiva teórica refletiu-se sobre a formação continuada aos professores, que será descrita e analisada no presente artigo.
A partir do questionamento da pesquisa, propôs-se uma formação continuada para professores que atuavam em uma escola de Educação Especial da região Centro-Oeste do estado do Paraná - Sul do Brasil, com o objetivo de instrumentalizá-los para a inserção do soroban como ferramenta de cálculo a ser utilizada por estudantes com deficiência intelectual.
Referencial Teórico
O referencial teórico adotado para o estudo sutenta-se nos pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, desenvolvida por Lev Semionovitch Vygotsky (1896-1934), e a Teoria da Formação da Ação Mental por meio de Etapas, desenvolvida por Piotr Yakoviecich Galperin (1902-1988), psicólogo e colaborador de Vygotsky. Optou-se por tais abordagens porque consideram o homem como um sujeito participante na produção do conhecimento, sendo que a apropriação da experiência histórica e cultural é resultante do desenvolvimento das funções psicológicas superiores específicas do ser humano.
Em seus estudos, Vygotsky (1998) observou que o desenvolvimento humano se dá em dois níveis: o proximal e o real. O primeiro refere-se às funções em processo, àquilo que o indivíduo é capaz de fazer apenas com a ajuda de terceiros, já o segundo reporta-se às funções já consolidadas, aquelas que consegue fazer sozinho. Segundo o teórico, a aprendizagem, ao criar zona de desenvolvimento proximal (ZDP), ativa os processos internos de desenvolvimento; sendo o local em que o professor atuaria para consolidar os conhecimentos.
Em relação às pessoas com deficiência intelectual, Vygotsky (1997) considerava a sua avaliação inicial, realizada por meio de testes quantitativos, como informando somente o seu desenvolvimento real e não indicava os processos que estavam em desenvolvimento, que não poderiam ser mensurados quantitativamente. Conforme seus estudos, tais pessoas não poderiam ser consideradas menos desenvolvidas, mas, sim, desenvolvidas de modo distinto, peculiar. Ele preconizava ainda que todas as pessoas podem aprender se oferecidas as condições pedagógicas necessárias para tanto.
Ao se fundamentar nessa reflexão, o acesso e a utilização de ferramentas desenvolvidas culturalmente pela humanidade para a resolução de problemas constituem-se num caminho para a superação da deficiência. Vygotsky (1997) declara que o ensino dos conceitos escolares para pessoas com deficiência intelectual, em sua época, respaldava-se no uso excessivo de materiais manipuláveis, o que não é diferente da atualidade do século XXI. Em sua visão, as experiências concretas são necessárias por se constituírem instrumentos mediadores, porém a sua utilização como único recurso metodológico configura um obstáculo para o desenvolvimento do pensamento dos estudantes.
Na mesma linha de raciocínio, Galperin (2009a) explicou o mecanismo da internalização dos conceitos, direcionando o processo de ensino de modo a conduzir os estudantes aos novos conhecimentos, habilidades, atitudes, valores, assim como a seu aprimoramento. De acordo com o autor, a orientação da ação pela mediação permite ao estudante a apropriação dos conceitos escolares de forma completa, com alto nível de generalização. Nesse processo, o professor permitiria ao estudante a ação sobre o objeto do conhecimento, etapa denominada de formação da ação no plano material ou materializado.
No processo de ensino, ainda se faz necessário permitir ao estudante o raciocínio sobre a ação por ele realizada na etapa anterior, por meio de seu relato verbal, que pode ser oral, escrito, até mesmo em outra maneira de comunicação. Na etapa, a ação se separa dos objetos materiais ou de sua representação. A etapa foi intitulada por Galperin (2009b) de formação da ação no plano da linguagem externa.
A comunicação se transforma em linguagem interna, proporcionando ao estudante novos meios para o pensamento. Com isso, tem-se a terceira etapa, denominada por Galperin (2009d) de etapa da formação da ação no plano da linguagem interna. Nela, o conhecimento é internalizado e, depois, generalizado em outras situações.
Nesta pesquisa aqui relatada, entende-se que o uso do soroban por pessoas com deficiência intelectual para a realização de cálculos e resolução de problemas constitui uma ferramenta mediadora, por meio da qual os conceitos relacionados aos números são internalizados. O ensino do uso dessa ferramenta passa por todas as etapas propostas por Galperin, desde a material até à mental.
Para melhor elucidação das reflexões citam-se dois exemplos. Para realizar a soma de uma unidade em três unidades no soroban, basta registrar três contas no eixo das unidades e, depois, acrescentar mais uma, sem precisar recorrer ao cálculo mental. Isso feito, basta contar o total das unidades registradas. Esse é um exemplo que atribui ao soroban o caráter material manipulável, a contemplar a primeira etapa proposta por Galperin (2009d). Entretanto, ao se adicionar mais uma unidade nas quatro unidades já registradas, é preciso recorrer ao cálculo mental, uma vez que não há cinco contas na parte inferior do eixo das unidades. Após a realização da soma mentalmente de 4+1=5, apagam-se as quatro contas da parte inferior e registra-se a conta localizada na parte superior do mesmo eixo. Assim, o soroban também contempla a ação no plano mental, não somente para essa operação, como também para outras operações relacionadas aos princípios do sistema de numeração decimal.
Método
Utilizou-se, como método, a pesquisa colaborativa, proposta por Ibiapina (2007), para promover a formação continuada aos professores que atuam na Educação Especial, na área da deficiência intelectual e a possibilitar o desenvolvimento de uma pesquisa-ação na área da Educação. Com essa escolha, aproxima-se a produção de conhecimentos das universidades com a formação continuada de professores, ao abordar questões teóricas e práticas do processo pedagógico envolvido.
A pesquisa colaborativa, no contexto educacional, é definida por Ibiapina e Ferreira (2007, p. 22) como: “(...) atividade interativa de coprodução de saberes e desenvolvimento profissional realizada conjuntamente por pesquisadores e por professores de forma crítico-reflexivo”, ou seja, uma investigação que promove envolvimento de pesquisadores e professores visando a reflexão sobre os aspectos profissionais, os quais são compartilhados e indagados, com vistas à resolução dos problemas que surgem no processo educacional, confrontando-os com as teorias pedagógicas. Essa abordagem de pesquisa permite a atividade mediadora entre a pesquisa e a formação docente, ao possibilitar aos professores alterações qualitativas em sua prática pedagógica e ao se promover a compreensão, a interpretação e a transformação da universidade e da escola, num processo conjunto.
Assim, a pesquisa, como propostas por Ibiapina (2007), foi feita em etapas. 1ª) levantamento das características das professoras participantes, com a escuta de suas necessidades; 2ª) intervenção colaborativa junto às professoras sobre o uso do soroban; 3º) avaliação do processo.
Após a conclusão do estudo desenvolvido por Mamcasz-Viginheski (2017), a pesquisadora retornou à Escola de Educação Especial em que ela foi desenvolvida para apresentar os resultados aos professores que atuavam na área da deficiência intelectual. As docentes manifestaram interesse e solicitaram uma formação continuada sobre o uso do soroban e o ensino de conceitos matemáticos para estudantes.
Assim, um dos primeiros procedimentos do presente estudo foi o contato com a equipe de Educação Especial do Núcleo Regional de Educação (NRE) do município, para verificar a possibilidade de realizar a formação continuada solicitada. Estendeu-se o convite para os demais professores que atuavam na educação de estudantes com deficiência intelectual de todos os municípios do NRE, num total de sete, e também, à direção do Campus da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) do local, para que a formação acontecesse em suas dependências.
Foi estabelecido como critério de inclusão aos professores participantes da pesquisa: atuar na educação de pessoas com deficiência intelectual e aceitar participar da formação continuada e, também, assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Foram vinte e três inscrições realizadas no total, mas somente nove professoras iniciaram e concluíram a formação em ação. As participantes tomaram conhecimento do projeto, aprovado pelo Comitê de Ética por meio do Parecer 953.511, CAEE n. 39300614.0.0000.5547, em 12 de fevereiro de 2015, assinando o TCLE. Esclarece-se que muitos professores não participaram da formação continuada porque o horário coincidia com o trabalho nas escolas, além de possuírem outras demandas, além do trabalho.
Na formação colaborativa foram propostas ações como: i) discussões teóricas e práticas sobre o ensino de soroban e o planejamento de tarefas a serem realizadas pelos estudantes com deficiência intelectual; ii) ensino do uso do soroban e conceitos matemáticos aos professores participantes em suas turmas; iii) reflexões e discussões sobre os resultados obtidos, a constituir a etapa da avaliação.
Participantes da Pesquisa
No Quadro 1, apresentam-se as informações das professoras participantes, como idade, formação e tempo de atuação na Educação e na Educação Especial. Ressalva-se que os nomes são fictícios para se manter suas identidades em sigilo.
NOME | IDADE | FORMAÇÃO | TEMPO DE TRABALHO (anos) | ||
---|---|---|---|---|---|
EDUCAÇÃO | EDUCAÇÃO ESPECIAL | ||||
Adriana | 47 | Licenciatura em Pedgogia e Magistério em nível médio | 28 | 26 | |
Beatriz | 43 | Licenciatura em Pedagogia e Magistério em nível médio | 25 | 25 | |
Carla | 32 | Licenciatura em Educação Física e cursando Licenciatura em Pedagogia | 04 | 04 | |
Daniela | 53 | Licenciatura em Letras | 11 | 02 | |
Fabiana | 34 | Licenciatura em Educação Física | 04 | 04 | |
Julia | 49 | Licenciatura em História e Pedagogia | 22 | 03 | |
Luci | 64 | Licenciatura em Pedagogia e Magistério em nível médio | 29 | 21 | |
Sandra | 45 | Licenciatura em Educação Especial, Pedagogia e Magistério em nível médio | 27 | 27 | |
Tatiana | 48 | Licenciatura em Pedgogia e Magistério em nível médio | 30 | 13 |
Fonte: Acervo das pesquisadoras.
Todas as professoras participantes tinham formação em Educação Especial, em cursos de especialização ou Estudos Adicionais em Educação Especial em nível médio e formação de professores em nível médio de educação. Do total, três possuíam formação em nível médio denominado Estudos Adicionais na área da deficiência intelectual; duas, especialização em Educação Especial; uma, em Educação Inclusiva.
No que tange aos conhecimentos referentes à Matemática, duas professoras tiveram na graduação a disciplina de Fundamentos e Metodologia para o Ensino de Matemática; duas cursaram a disciplina Didática da Matemática; e uma cursou a disciplina denominada Estatística Direcionada à Educação. As professoras formadas em Educação Física tiveram acesso aos conhecimentos matemáticos apenas nas disciplinas de Estatística, Antropometria e Cinesiologia. As outras duas professoras tiveram acesso aos conhecimentos matemáticos somente na formação da Educação Básica, ou seja, nos Ensino Fundamental e Ensino Médio.
A formação continuada na pesquisa aconteceu de forma presencial e remota, por meio do google meeting. Na etapa presencial, com carga horária de 20h, foram abordados os conteúdos relacionados ao ensino de números e operações, que são as etapas de ensino propostas por Galperin (2009b, c, d) e os conhecimentos relativos ao soroban. Outras 40h foram destinadas para que as professoras desenvolvessem, em suas turmas, o ensino do uso do soroban para realizar operações e resolver problemas. Durante essa etapa, as pesquisadoras acompanharam o desenvolvimento das práticas das professoras com seus alunos em visitas às escolas e na interação entre os participantes pelo aplicativo WhatsApp.
Após essa etapa, aconteceu um novo encontro presencial, em que as professoras apresentaram os resultados do processo de ensino e aprendizagem para os seus alunos, promovendo a avaliação da proposta, por meio de reflexões e discussões entre os participantes.
Os instrumentos utilizados para a coleta de dados foram as imagens das filmagens, as anotações em diário de campo e as interações ocorridas nas intervenções. Todos foram examinados por meio da análise da conversação, que permite determinar os princípios e trabalhos presentes nas ações e a reação que essas ações causam, de forma recíproca, a seus interlocutores (Flick, 2009). Para tanto, os diálogos registrados em áudios e filmes foram transcritos integralmente. Os episódios para a análise foram identificados, selecionados e analisados fundamentados no referencial teórico adotado. Fundamentados nas etapas da pesquisa colaborativa propostas por Ibiapina, analisaram-se: i) concepções iniciais sobre o processo de ensino e aprendizagem de matemática para estudantes com deficiência intelectual; ii) metodologia para o ensino de matemática por meio das etapas de Galperin (2009d); iii) avaliação dos resultados obtidos pelas professoras no ensino do soroban.
Concepções das Participantes sobre o Processo de Ensino e de Aprendizagem de Matemática
As professoras que participaram da formação continuada tinham experiência no ensino para pessoas com deficiência intelectual. Essa experiência foi importante nas discussões promovidas durante a formação, por permitir estabelecer uma relação entre a teoria e a prática, visto que na experiência de trabalho se conhecem as capacidades e as possibilidades dos estudantes no processo de aprendizagem. Todavia, os registros de dados e as falas das professoras revelaram que a falta de formação em Matemática das docentes que atuam em escolas da Educação Especial é considerada uma das dificuldades no processo de ensino e aprendizagem.
No primeiro encontro, foi apresentada às professoras a proposta de inserção do soroban como uma ferramenta para o processo de ensino do conceito de número e operações. Algumas sinalizaram que a aprendizagem dos estudantes com deficiência intelectual acontecia de maneira mais lenta, sendo necessário um tempo maior para que eles pudessem aprender. Para análises, reproduzem-se, na íntegra, as falas das professoras relativas ao objeto de estudo durante a formação:
A gente tem que ter um cuidado muito grande quando a gente vai trabalhar para a gente ter uma forma para a gente fazer com que o mínimo eles entendam porque eles ficam muito frustrados. (...) Vamos tentar, os meus são bem lentos. Vamos ver se vai ajudar eles. Eu vejo a necessidade de voltar, repetir. (Daniela) O desenvolvimento da criança com deficiência intelectual é mais lento do que a criança normal. (...) Os meus alunos são pequenos. (...) Eu comecei pelo número um. Até agora fui até o três. Eu vejo a necessidade de voltar, estar sempre voltando, repetir. (Julia) Trabalhar com deficiência intelectual precisa ser com muita repetição. Fazer uma atividade repetidas vezes e várias atividades com o mesmo conceito. (Carla)
A concepção de que as pessoas com essa deficiência não apresentavam as mesmas condições que os demais estudantes para aprender se estendeu por um longo período na história, como consequências as formas de acesso ao conteúdo escolar eram minimizadas (Brasil, 2007). Defende-se que o acesso ao currículo escolar às pessoas com deficiência é necessário, a permitir acesso a conteúdos mediante abordagens de ensino que possibilitem a apropriação das informações das ciências que a humanidade produziu ao longo da história.
As professoras participantes concebem a pessoa com deficiência intelectual menos desenvolvida que as demais. Por essa razão pareceu que sua prática de ensino, baseada em repetições, não contribuía para o desenvolvimento da ZDP que, segundo Vygotsky (1987), é reduzida na pessoa com deficiência intelectual devido às poucas interações vivenciadas.
Observa-se, nos registros das falas, o uso do termo “lento” ao se referirem à necessidade de um tempo maior dos alunos para a aprendizagem. Tais depoimentos evidenciaram ser consenso entre as professoras que os estudantes com deficiência intelectual são mais lentos na aprendizagem e a solução para isso seria a metodologia fundamentada em repetições. Esse foi um dos motivos de as professoras manifestarem incerteza quanto à aprendizagem mediante o uso do soroban por seus estudantes.
É comum que as pessoas, por terem conhecimento equivocado acerca do desenvolvimento destes estudantes, pré-conceituarem que estesnão conseguem aprender devido a sua deficiência, assim oferecem condições adequadas para que a aprendizagem aconteça. Por muito tempo, as pessoas com deficiência intelectual foram estigmatizadas socialmente por essa condição dada a priori e por esse motivo sua marginalização ocorre no processo de ensino e aprendizagem até a atualidade.
Lacanallo, Albuquerque e Mori (2010) afirmam que a concepção dos professores relativa à lentidão no processo de aprendizado destes estudantes é justificada pelo fato de que não apresentam o desenvolvimento necessário para aprender. Esse pensamento está relacionado à concepção teórica de que os processos de desenvolvimento são independentes daqueles relacionados ao aprendizado, em que os primeiros antecedem os segundos. De acordo com Vygotsky (1998), o aprendizado promove o desenvolvimento. Ao alicerçar-se em seus postulados, defende-se que se o professor, em sua prática de ensino, centrar-se nas capacidades das pessoas e não em suas limitações, a promover ZDP, contribui para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Por outro lado, o ensino via repetição não contribui para que isso aconteça (Vygotsky, 1998; Talizina, 2009).
A esse respeito, Shimazaki e Pacheco corroboram, ao afirmar que:
(...) tarefas baseadas somente em cópias ou quaisquer outras atividades eminentemente repetitivas oferecidas aos alunos com deficiência intelectual causam morbidez e podem abafar o seu desenvolvimento cognitivo, não permitindo, em consequência, a aprendizagem, e acentuando, assim, a diferença. (2012, p. 98)
Apesar de julgarem a aprendizagem de seus alunos mais lenta comparada com a das demais pessoas, as professoras manifestaram preocupações em relação à sua prática de ensino. Sinalizaram a necessidade de resultados imediatos. Em sua acepção, os pais criam uma expectativa sobre a aprendizagem de seus filhos, a gerar exigências ao docente, com isso há a tendência de os professores atropelarem o ensino, desconsiderando as etapas necessárias para o desenvolvimento dos conceitos matemáticos.
O entendimento das concepções das professoras sobre o processo de ensino e aprendizagem para estudantes com deficiência intelectual leva à compreensão de que as práticas de ensino são reflexos de suas concepções e, por esse motivo, o ensino não tem proporcionado as condições para que estes estudantes alcancem um nível mais elevado na apropriação do conhecimento. Daí a necessidade de propiciar aos professores conhecimentos que lhes permitam a compreensão de que as pessoas com deficiência intelectual aprendem, independente das suas limitações, ao lhes serem proporcionadas condições adequadas.
O Ensino de Soroban e as Etapas de Ensino Propostas por Galperin
No início das discussões relativas aos encaminhamentos metodológicos utilizados pelas professoras para o ensino de Matemática, as participantes manifestaram que a repetição e a memorização são fatores que promovem a aprendizagem, aliados ao uso dos materiais manipuláveis no processo de ensino. A professora Julia revelou que fazia uso de palitos, tampinhas e jogos. E a professora Beatriz assinalou que “eles quase que vão necessitar sempre do concreto. (...) Devido à dificuldade de abstrair mesmo. Têm alguns professores que usam material dourado, risquinhos também, bolinhas”.
Concorda-se com Lacanallo et al. (2010), ao argumentarem que outros recursos também são utilizados no processo de ensino para promover a abstração, como a literatura, a música e outros instrumentos. Todos os materiais utilizados pelos professores contribuem para o desenvolvimento do pensamento desde que sejam estabelecidos objetivos para a sua utilização, ultrapassando os limites da contagem e da quantificação também do concreto ao abstrato.
Leontiev (2012) enuncia que a utilização de recursos como jogos, brincadeiras e outras atividades lúdicas permite ao estudante avançar da etapa concreta à etapa do pensamento, uma vez que o alvo reside no processo e não no resultado da ação. A ação, em sidas crianças sobre o objeto constitui um caminho para a consciência da atividade humana sobre ele, permitindo-lhes, posteriormente, a atividade teórica abstrata.
Em uma das visitas às escolas, observou-se o trabalho de uma das professoras. Nesse dia, ela desenvolvia uma atividade de contagem com material concreto, porém não dava tempo para o estudante responder. Fazia a pergunta e, na sequência, ela mesma respondia: “Quanto é três mais dois? Cinco”. Segundo Talizina (2009), os professores exigem dos estudantes uma rapidez no processo de aprendizagem como a sua própria. Eles não consideram que o nível de seu desenvolvimento é diferente do nível de desenvolvimento dos seus estudantes.
Apesar de os professores fazerem uso de materiais na tentativa de promover a aprendizagem, observaram-se dificuldades na organização do processo de ensino, uma vez que os instrumentos não eram utilizados como mediadores entre o estudante e o objeto do conhecimento. Além disso, nota-se o fato de a professora não permitir ao estudante a participação no processo, tanto no desenvolvimento da atividade como na reflexão sobre ela.
Leontiev (2012, p. 122) assevera que o reconhecimento da necessidade da utilização dos objetos na educação dos estudantes não é suficiente para garantir o seu desenvolvimento psíquico: “O desenvolvimento mental de uma criança é conscientemente regulado, sobretudo pelo controle de sua relação precípua e dominante com a realidade, pelo controle de sua atividade principal”. Entende-se que além de o professor reconhecer a necessidade da utilização dos objetos na prática de ensino, deve explorá-los com vistas à apropriação do conhecimento, por meio das relações estabelecidas entre o objeto e o estudante durante a realização da atividade proposta.
Vygotsky (1997) criticava o ensino somente por meio do uso de materiais manipuláveis e meios visuais, uma vez que consolidam a incapacidade da pessoa com deficiência e não contribuem para a sua superação, pois não direcionam ao pensamento abstrato. O estudante com deficiência intelectual, se deixado por si, não desenvolve o pensamento abstrato, portanto, a escola deveria priorizar um ensino com vistas à superação das lacunas. Leontiev (2012) e Galperin (2009) enunciam que os meios concretos e visuais configuram uma das etapas para o desenvolvimento do pensamento.
Nesse sentido, foi introduzida na formação continuada a proposta de Galperin para o ensino, o que explicou, por sua vez, a teoria de Vygotsky sobre a internalização do conhecimento em uma proposta de ensino por etapas. Nessas há o estabelecimento da base orientadora da ação, entendendo ser a mediação a mais completa para o ensino de Matemática. Na sequência, a etapa da formação da ação no plano material ou materializado, a etapa da formação da ação no plano da linguagem externa e a etapa da formação da ação no plano da linguagem interna. As professoras faziam uso da etapa material no processo de ensino, mas não aconteciam avanços de uma etapa para a outra. O problema de ensino, segundo elas, não era a etapa material, embora reconhecessem que nem sempre exploravam ao máximo os materiais que utilizavam, mas, sim, as etapas seguintes.
A professora Beatriz relatou que, ao propor uma atividade para seus alunos, normalmente problematizava para que precisassem elaborar uma estratégia para resolver o problema proposto. Assim, mesmo ao ser necessário o uso de materiais manipuláveis, os alunos precisavam fazer uso de diferentes conceitos, consolidados em outros momentos. Para tanto, em consonância com a professora, faziam uso da linguagem externa e do pensamento.
No tocante à etapa da linguagem, a professora Daniela acenou: “o problema é que os alunos querem escrever, querem copiar do quadro a matéria, e essas atividades não escreve nada, acho que eles não vão entender que isso é Matemática”. A fala da professora expressa sua angústia frente à solicitação dos próprios estudantes, por estarem acostumados à prática de ensino baseada na cópia e na repetição. Essas são atividades que não exigem o pensar, não exigem a ação mental, apenas preenchem o tempo escolar do estudante. Talvez isso comprove a preferência pela cópia, tanto pelos professores como pelos estudantes. Salienta-se que não se trata de excluir as atividades escritas, uma vez que a etapa da formação da ação no plano da linguagem externa compreende toda a forma de comunicação, seja verbal, oral, escrita, gestual, pictórica, entre outras formas de comunicação.
Galperin (2009a) declara que a linguagem se faz presente em todas as etapas, por meio de diferentes maneiras, seja na forma de um sistema de indicações ou estabelecendo a base para a ação. O professor necessita fazer uso de uma metodologia de ensino que tenha a linguagem como um caminho para a apropriação do conhecimento.
Ainda sobre essa etapa, a professora Sandra relatou que, muitas vezes, o professor não considera o que o estudante com deficiência intelectual fale, ao comentar: “Tem muita gente que pensa que o aluno com deficiência intelectual não pensa. Não leva a sério o que ele fala. Falou, falou. Desvalorizam a ideia dele”. A sua fala vai ao encontro da pesquisa de Glat (2000) ao afirmar que a desvalorização e a maneira como a pessoa com deficiência é tratada faz com que ela própria represente o seu papel sempre como deficiente e incapaz, o que pode agravar ainda mais a deficiência.
Outra questão discutida foi a fragmentação do ensino. Conforme a professora Adriana: “Lá na escola a Matemática sempre foi ensinada assim: primeiro os números, para depois trabalhar as operações e depois a resolução de problemas”. Essa fragmentação dos conteúdos matemáticos é, para Galperin (2009c), um problema para a apropriação dos conceitos, uma vez que as atividades propostas desse modo não se constituem como um processo, ou seja, acaba sendo substituído pela sucessão de diversas partes do conceito estudado.
O teórico orienta o ensino a partir das situações reais vivenciadas pelos estudantes, da mesma forma que as diretrizes curriculares nacionais para a disciplina de Matemática indicam (Brasil, 2018). Por sua vez Hiebert e Wearne (2006) orientam o ensino das operações considerando os problemas extraídos das vivências cotidianas. Nessa direção de trabalho, o estudante precisa, inicialmente, buscar uma estratégia para a resolução dos problemas e, posteriormente, as estratégias são sistematizadas, com a mediação do professor, pelo conhecimento científico.
Ao final das discussões, as professoras chegaram ao consenso de que no ensino para os estudantes com deficiência intelectual é necessário avançar da etapa material para a mental. A professora Beatriz concluiu que a etapa material ou materializada é o diferencial entre a Educação Especial e o Ensino Regular. Em sua visão, na Educação Especial os professores têm dificuldades de avançar da etapa material para o pensamento, enquanto que, no ensino regular, os professores desconsideram essa etapa, partindo direto para a etapa mental, o que, muitas vezes, não passa de um treinamento, de repetições. A atividade mecânica e repetitiva impossibilita as ações mentais dos estudantes, ratificando sua condição de incapacidade.
Entende-se que a prática de ensino de maneira fragmentada, repetitiva e descontextualizada é consequência de uma formação docente também fragmentada, que não proporcionou ao professor o entendimento do processo de aprendizagem do estudante. Com a inserção de um referencial teórico sobre esse processo, constatou-se que as professoras participantes chegaram a tal compreensão. Esse fato certamente influencia diretamente em sua prática docente, trazendo benefícios à educação de todos os estudantes.
Assim, após as discussões teóricas, ensinou-se às professoras o uso do soroban como ferramenta de cálculo, a que passaram a fazer seu uso no ensino de conceitos matemáticos para seus alunos com deficiência intelectual.
Avaliação dos Resultados Obtidos pelas Professoras no Ensino do Soroban
À medida que as professoras desenvolviam as atividades com os estudantes, os resultados foram relatados e discutidos nos encontros presenciais. A dificuldade encontrada no processo de ensino e aprendizagem era discutida em grupo e cada professora fazia sugestões de acordo com os seus próprios resultados. A prática enriqueceu os estudos porque as docentes constataram que havia situações comuns entre si. Além disso, a discussão coletiva ajudou a esclarecer questões levantadas à luz da teoria adotada para o estudo, entre as quais a elaboração das atividades por meio de recursos que possibilitem a aprendizagem e o desenvolvimento dos alunos envolvidos.
A população de estudantes envolvida nessa formação era constituída por crianças e adultos, o que exigiu das professoras algumas mudanças nas atividades de ensino, compartilhadas por todas nas discussões e reflexões. Entre as mudanças, destacam-se: a) a inserção de músicas para ensinar a contagem; b) a elaboração de problemas simples, conforme o entendimento dos alunos, para serem resolvidos por meio do soroban; c) o uso de um soroban com contas maiores, para que um aluno com limitações físicas pudesse manuseá-lo com maior facilidade; d) o uso de elásticos para separar o eixo das unidades, para que os estudantes não confundissem em qual eixo registrar as quantidades até nove unidades. Para Shen (2006), essas mudanças são necessárias ao ensino do uso do soroban por estudantes com deficiência intelectual, principalmente no caso de deficiência física associada a ela. A Figura 2 ilustra a mudança realizada pela professora Luci.
As professoras puderam verificar que é possível desenvolver diversas estratégias de ensino ao se planejar as atividades segundo as necessidades dos estudantes e, em decorrência, permitir-lhes o acesso ao conhecimento de maneira sistematizada, mediada e orientada. Segundo os relatos das professoras, o uso dos materiais permitiu o acesso ao conhecimento por todos os estudantes, ao contribuir para a aprendizagem dos conceitos ensinados. Da mesma forma, promoveu mudanças no processo de ensino, pois perceberam a importância de realizar adaptações conforme as necessidades individuais de cada estudante.
Entre os resultados relatados pelas professoras, os alunos da professora Beatriz conseguiram contar e quantificar objetos até dez, registrando as quantidades no soroban. Nas atividades de classificação, identificaram características essenciais e não essenciais dos objetos utilizados, embalagens de diferentes produtos, incluindo informações sobre o local onde o produto foi fabricado e a presença de QR CODE nas embalagens. Um dos alunos que tinha dificuldades para contar passou a contar de cinco em cinco, de dez em dez. A contagem passou a ter significado para os estudantes, permitindo-lhes abstrair quantidades, avançando da contagem por meio da relação termo a termo para a quantificação de quantidades maiores por meio de agrupamentos.
A professora Luci relatou pequenos avanços observados em seus alunos, principalmente na ação de contar objetos. Tais progressos, em sua visão, foram possíveis pela mediação, confirmando o que Vygotsky (1998) postulou ao considerar que a interação entre estudantes, colegas e professores promove o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Sobre a aprendizagem do uso do soroban, os alunos da professora Luci conseguiram registrar, somar e subtrair quantidades até quatro unidades.
A professora Julia relatou duas situações em que verificou queos estudantes estavam em processo de apropriação do número três:
(...) meus alunos contam até o 2, entretanto, na hora do jogo Nunca Cinco Solto, compreenderam que a face do dado voltada para o número 3 valia mais e eles faziam questão de que a face 3 ficasse para cima. (Julia) Em um dia durante a aula estávamos jogando o Nunca Quatro Solto em uma rodada o aluno jogou o dado, que caiu no três e ele gritou: tô rico. Perguntei porquê e ele respondeu: eu tenho bastante pecinhas. Os jogos Nunca Quatro Solto e Nunca Cinco Solto são muito bons e os meus alunos adoram jogar. Já entendem que o 3 é mais e que o 0 é nada. As crianças pedem para jogar todos os dias. (Julia)
A professora Sandra comentou que um de seus estudantes compreendeu o agrupamento de dez em dez. As outras professoras não relataram nenhum avanço pontual, entretanto, confirmaram que seus alunos estavam conseguindo aprender o soroban e constataram mudanças qualitativas em seu processo de aprendizagem.
Quando questionadas sobre o que era necessário para que acontecessem outros progressos, a professora Julia apontou ser primordial o professor desenvolver várias atividades, tantas vezes quantas fossem necessárias, para promover a apropriação do conhecimento. A professora Beatriz argumentou ser necessário um tempo maior para o estudante, o que, em sua ótica, é possível na Educação Especial e não no Ensino Regular, uma vez que, neste, os professores precisam dar conta de ensinar os conteúdos previstos durante o ano letivo.
A professora Adriana assinalou que os estudantes apresentariam maiores progressos se fosse proporcionada, aos docentes, formação continuada nas diferentes áreas do conhecimento na área da Matemática. Em sua perspectiva, se o professor não souber o conteúdo de Matemática, não ensinará adequadamente. Entende-se que um dos problemas no ensino dessa disciplina não está relacionado apenas em como ensinar, mas, também, ao desconhecimento do conteúdo a ser ensinado pelo docente.
A professora Sandra concordou com o apontamento da professora Adriana e revelou que, ao iniciar o trabalho com a educação de estudantes com deficiência intelectual, uma mãe lhe perguntou porque ela não fazia uso do Material Dourado. Ela respondeu para a mãe que não conhecia esse material. Apesar de ter cursado o magistério, Pedagogia e Licenciatura em Educação Especial, em nenhuma dessas formações teve conhecimento sobre o material. A esse respeito, a professora Julia comentou:
Quando eu fui fazer meu estágio de pedagogia eu fui fazer uma observação em uma escola e a professora falou que ia trabalhar com o Material Dourado no outro dia. Eu e minha colega pedimos para ir novamente para aprender. No dia seguinte, sabe o que a professora fez? Ela desenhou o Material Dourado no quadro e não levou o material concreto. Nós ficamos assim (expressão de decepcionada). (Julia)
Parece ser comum nas escolas o uso da representação desse material, e não dele propriamente. Ao se considerar a teoria de Galperin (2009b) na etapa material ou materializada, a representação do objeto de conhecimento é indicada quando não é possível fazer uso do próprio objeto, porém, no caso do Material Dourado, não se justifica o uso de sua representação, uma vez que a maioria das escolas dispõe desse material. Também não se justifica o uso da representação do Material Dourado para a substituição do registro dos algarismos. Para isso, não seria necessário o seu uso. Seu uso deve promover o processo de apropriação do conhecimento.
A professora Adriana discorreu ainda sobre a necessidade de problematizar as diferentes situações em sala de aula:
(...) é muito importante porque a gente traz uma ideia que o aluno que tem deficiência intelectual não pensa e a gente traz tudo pronto. Os professores levam muitas atividades prontas, aqueles xerox. (Adriana)
Em consonância com Vygotsky (1997), os estudantes com essa deficiência pensam de forma distinta das outras crianças. Ao ensiná-los o professor consideraria que podem se desenvolver de modos distintos, fazendo uso de meios de ensino que promovam tal desenvolvimento. As atividades prontas, fotocopiadas, conforme apontado pela professora, seriam ineficientes no processo de ensino e de aprendizagem desses estudantes.
A professora Tatiana proporcionou ao grupo a reflexão sobre o professor não querer mudar a sua prática pedagógica, não promovendo, assim, progressos na aprendizagem das pessoas com deficiência:
(...) e aí o aluno chega no terceiro, quarto, quinto ano, não consegue compreender, não consegue abstrair, não consegue realizar nada e ninguém faz nada. O que acontece é que na sala de recurso você tem várias diversidades, mesma série, outros atendimentos. Você percebe que eles têm condições. Então eu vejo as escolas abarrotadas de materiais e o professor não usa. Porque o professor ainda não aprendeu a trabalhar. Eu sempre digo que tenho medo da sala silenciosa. Você passa, o professor tá lá, o quadro cheio e todo mundo quietinho. Não são nessas salas que acontece a aprendizagem. É na sala em que o aluno pergunta, o aluno vê o erro do professor e tem coragem de falar. Eu já vi muitas coisas que estão acontecendo e quando o professor vem conversar comigo ou quando eu vou conversar com ele eu percebo na fala do professor o que ele está fazendo com o aluno. E 80% dos professores não querem mudar. (Tatiana)
Verifica-se que, embora haja notável evolução nas diferentes áreas, no Brasil, na área da educação ainda se encontram resistências às mudanças. Na escola ainda predomina o ensino em que os estudantes passam a maior parte do tempo sentados em suas carteiras, copiando os conteúdos do quadro e enchendo cadernos com atividades esvaziadas de conhecimentos práticos e de qualquer ação mental. Muitos professores continuam presos a um padrão de ensino de lousa e giz, para o trabalho com a cópia. Os estudantes com deficiência intelectual ficam em desvantagem em relação aos demais estudantes por não questionarem essa situação. É preciso estimular a criticidade desses estudantes para não aceitarem passivamente a realidade imposta.
Considerações Finais
Este estudo relatou uma pesquisa colaborativa realizada com professores que atuam na Educação Especial, na área da deficiência intelectual, para a inserção do soroban como ferramenta de cálculo a usar pelos estudantes. Acredita-se que uma formação com carga horária reduzida não capacita o professor de forma suficiente. No entanto, pode fazer com que crie a necessidade de mais estudos e isso se constitui, pensamos, como um dos resultados positivos da pesquisa conduzida e aqui apresentada.
Em síntese, as professoras que participaram da formação consideraram que, para o estudante com deficiência intelectual se apropriar do conhecimento científico, é necessário que o professor: i) tenha consciência da importância do seu trabalho; ii) se disponha a compreender e aceitar as mudanças; iii) conheça seus alunos em seu diagnóstico e nas necessidades que possui; iv) faça uso de diferentes estratégias de ensino e, principalmente, v) não limitar o ensino ao uso de materiais manipuláveis, mas sim, proporcionar condições para que o aluno avance para o plano da linguagem interna, ou seja, o pensamento.
Os alunos das professoras participantes do estudo apresentaram avanços nos conhecimentos matemáticos relacionados à contagem, à quantificação, à estruturação do sistema de numeração decimal, à realização de operações e de problemas, resultados muito semelhantes aos obtidos na pesquisa realizada por Mamcasz-Viginheski (2017). Com esses resultados, confirma-se que os estudantes com deficiência intelectual aprendem a operar com o soroban e a desenvolver conceitos relacionados aos números, a ter como consequência o desenvolvimento das funções psicológicas superiores.