A transição digital na educação avança, depois da disponibilização de equipamentos informáticos a todos os alunos, com o reforço da capacidade e velocidade da internet das escolas, com a progressiva transição para manuais digitais, com a produção de recursos educativos digitais, com a desmaterialização de provas e exames (…).
João Costa (Ministro da Educação), 2022, s.p.
Os alunos que leem livros em papel ou equilibram o seu tempo de leitura entre papel e digital tendem a ter melhor desempenho no teste de leitura do PISA e afirmam gostar mais de ler.
Miyako Ikeda e Giannina Rech/OECD, 2022, p. 5, tradução nossa.
INTRODUÇÃO
Impulsionados por recomendações de organismos supranacionais, muitos têm sido, neste século, os Estados a empenhar-se na modernização dos seus sistemas educativos, o que passa, invariavelmente, pela atualização tecnológica, na qual se inclui a digitalização de recursos pedagógico-didáticos destinados aos alunos, com destaque para os manuais escolares. Encontramos, contudo, nas mesmas recomendações, a advertência de que, sobretudo nos primeiros anos de escolaridade, devem privilegiar-se recursos pedagógico-didáticos em papel, com provas dadas em termos de aprendizagem, não devendo ser substituídos por outros que, embora declarados como mais atraentes, levantam dúvidas em termos de resultados académicos tidos por desejáveis.
Este paradoxo, objeto do presente artigo, sobressai em recentes publicações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), considerada o maior think tank no campo da educação escolar a nível global (vg. Istance, 1996). Laborando de forma proativa (Berkovich & Benoliel, 2017, p. 5) e invocando “evidências” (“dados e rankings”) resultantes de indicadores que a própria estabelece (Robertson, 2012, p. 596), formula questões-chave, agrega públicos, define agendas e norteia tendências políticas. Abarcando os seus discursos um espectro cada vez mais amplo de conteúdos fraturantes, aumenta a ressonância junto dos interlocutores, com vantagens na concretização do fim que persegue. Fim que é sobejamente conhecido: alinhar a educação com a economia ou, em termos mais atuais e consensuais, consolidar “economias baseadas em conhecimento” (Robertson, 2012; Souza, 2016)1.
Pode dizer-se que o organismo em causa tem instituído o que Shiroma et al. (2005, p. 431) designam por “hegemonia discursiva”2 dado o “tom prescritivo”, ainda que dissimulado, que lhe é transversal, o recurso, sempre latente, ao “argumento de autoridade”, bem como um tipo de expressão que abre “margem a interpretações e reinterpretações”, não sendo raras as contradições3. As citadas autoras afirmam que o facto de o organismo avançar recomendações justificadas em “evidências” faz antecipar o consenso que a sua implementação exige, e acrescentam um ponto de alerta: a lógica prevalecente traduz “interesses, valores, perspectivas dos sujeitos que, ao fim e ao cabo, são os que realizam as mudanças”, por isso, notam a importância da “exploração das contradições internas às formulações” (Shiroma et al., 2005, pp. 430-431).
Seguimos esta sugestão para estudar o paradoxo acima enunciado: por um lado, a OCDE recomenda a passagem para suporte digital dos documentos de apoio à aprendizagem escolar, afirmando a sua superioridade face a recursos “tradicionais”; por outro lado, nota os constrangimentos que tal passagem acarreta para a aprendizagem. O próprio diretor da Diretoria para a Educação e Competências da dita organização dá exemplo disso mesmo, não em diferentes tempos - o que poderia indicar evolução da sua posição -, mas no mesmo discurso4. Diz ele:
(...) as escolas precisam de conduzir uma mudança, de um mundo onde o conhecimento acumulado nalgum lugar se desvaloriza rapidamente em direção a um mundo no qual o poder enriquecedor da comunicação e dos fluxos colaborativos está a aumentar. Tudo isso exige abordagens novas e inovadoras para a educação onde a tecnologia é central. A tecnologia não pode continuar à margem da educação, mas precisa de ser central para qualquer solução. (Schleicher, 2015, s.p., tradução nossa)
Contudo, mais adiante, declara:
Os alunos que usam, moderadamente, computadores na escola tendem a ter resultados de aprendizagem um pouco melhores do que os alunos que usam computadores raramente. Mas os alunos que usam computadores com muita frequência na escola pioram muito na maioria dos resultados de aprendizagem. (…) quanto mais intensamente os alunos usam o computador na escola, menos alfabetizados digitalmente parecem ser, mesmo depois de ter em conta a [sua] origem social e demografia. Os nossos resultados também não mostram melhorias nos resultados de aprendizagem nos países que investiram mais fortemente em tecnologia digital nas escolas. E talvez a descoberta mais dececionante seja que a tecnologia parece ser pouco útil para diminuir o desfasamento de competências entre alunos favorecidos e desfavorecidos. Simplificando, garantir que todas as crianças atinjam um nível básico de proficiência em leitura e matemática parece potenciar mais a criação de oportunidades equitativas num mundo digital do que subsidiar o acesso a dispositivos e serviços de alta tecnologia. (Schleicher, 2015, s.p., tradução nossa)
Não deixa, porém, de apelar à implementação massiva da tecnologia na escola:
A tecnologia é a única maneira de expandir drasticamente o acesso ao conhecimento. Por que deveriam os alunos limitar-se a um livro em papel que foi impresso há dois anos, e talvez projetado há dez anos, quando podem ter acesso ao melhor e mais atualizado livro do mundo? (Schleicher, 2015, s.p., tradução nossa)
Como entender que um paradoxo tão evidente, veiculado por uma personalidade com tamanha responsabilidade pela educação no mundo, não interpele as instâncias que laboram em interface com a OCDE? Voltamos ao trabalho de “decifrar textos para compreender a política”, que tem sido levado a cabo por investigadores como Shiroma et al. (2005), o qual requer a interpretação dos termos, a fim de captar as intenções que lhes subjazem, sendo fundamental atender ao declarado, mas não descurando o tácito (Fávero & Centenaro, 2019). Para realizar esse trabalho, no respeitante aos textos que escolhemos para clarificação do problema que enunciámos recorremos à “técnica de análise de conteúdos” (Bardin, 2011), seguindo os passos de apreensão, exame e compreensão da informação.
Em resultado, avançamos com uma possibilidade de resposta: a apresentação, no mesmo discurso ou em distintos discursos, de uma ideia e do seu contrário faz confluir a concordância daqueles que se identificam com ela e dos que dela discordam, diminuindo em muito a possibilidade de contestação. Duplicada a abrangência discursiva, aumentam os públicos-alvo e o raio de domínio político. Acresce que cada ideia - e a sua contrária - se considerada de modo isolado e superficial, tende a ser percebida como clara, mas essa perceção modifica-se quando interrogamos o seu efetivo sentido, revelando-se, afinal, dúbia.
Nesta conjetura, torna-se difícil conseguir uma cabal compreensão dos discursos que veiculam a mudança da educação escolar e, em consequência, exercer crítica sobre eles, segundo os moldes do pensar académico, que implica conhecimento escrutinado e honestidade intelectual. Ora, a educação escolar não pode dispensar um tal exercício, sob pena de, na esteira de Popper (1992), se substituir o “racionalismo crítico” pela “aceitação dogmática”. Não podemos deixar de vislumbrar nesses discursos “pós-nacionais” um risco que, no ambiente distópico orwelliano, é conhecido por “duplopensar”, ardil da “novilíngua” que permite aceitar duas ideias diametralmente opostas (Orwell, 2021/1949, pp. 246-247).
Face ao que acima dissemos, propomo-nos tratar a referida transição dos recursos educativos em suporte de papel para o digital, a partir: a) dos contornos da mencionada dualidade discursiva nos discursos globais da educação; b) do acolhimento que esses discursos têm tido pela tutela, em Portugal e na Europa, e das deliberações a que têm conduzido; c) do que nos dizem estudos, realizados em diversas áreas científicas, sobre os efeitos e constrangimentos, sobretudo para a aprendizagem, do mencionado investimento.
O PARADOXO
A desmaterialização dos manuais escolares e de outros suportes de papel tem sido, em tempos recentes, justificada pelas dificuldades que a pandemia covid-19 acarretou. A OCDE alega que não se pode perder o que de bom se aprendeu num período em que as ferramentas de ensino remoto constituíram a única possibilidade de escolarização. Nesta conformidade, o estímulo à “universalização de acesso (um computador por aluno)” e à “produção de recursos e plataformas de aprendizagem digital” (OECD/CERI, 2010, pp. 3-4) marca presença nas suas publicações, conferências e outras iniciativas. Contudo, em julho de 2022, publicou um “resumo de política” onde questiona a crescente tendência de leitura em ecrãs - que tem incentivado -, notando os efeitos contraproducentes desta, tanto em termos da capacidade leitora de crianças e jovens, como da resposta que dão a itens de programas de avaliação, como o PISA (Programa Internacional de Avaliação dos Alunos) - pelo qual é responsável. O estudo em causa, com o título O mundo digital abre uma divisão crescente no acesso a livros impressos?, surge na sequência de outros que abordam a questão, tida por muito relevante e urgente (Ikeda & Rech/OECD, 2022)5.
Miyako Ikeda e Giannina Rech, analistas da Organização que assinam este estudo, recuperando, precisamente, dados do PISA 2018 sobre o “desempenho e prazer na leitura”, concluíram que os alunos que leem em suporte de papel apresentam resultados superiores por comparação aos dos que o fazem apenas em suporte digital, e que os melhores leitores são aqueles que têm mais livros em casa, independentemente do nível socioeconómico. Em particular, assinalaram que as desigualdades deste tipo tendem a acentuar-se na falta de acesso à cultura, chamando a atenção das “partes interessadas” para a necessidade de se repensarem as condições de equidade: “a igualdade de acesso aos livros impressos não deve ser esquecida” num momento em que a digitalização se intensifica (Ikeda & Rech/OECD, 2022, p. 7).
Estas afirmações não podem deixar de surpreender quem acompanha o forte incentivo que a OCDE tem feito à digitalização, sobretudo durante e após a pandemia, junto de países e economias com os quais colabora, assinalando que “compatibilizar a escolaridade com as exigências do mundo digital” constitui a “principal prioridade da educação”6. Atentemos nas razões que a Organização aponta para justificar o incentivo7:
a escolarização deve promover a literacia digital porque ela é imprescindível numa sociedade, como a do século XXI, que se encontra num processo de transição digital;
é preciso superar “modelos tradicionais de educação”, agora, mais do que antes, desadequados face aos desenvolvimentos tecnológicos;
a inclusão e a equidade, isto é, a igualdade de oportunidades são potenciadas por esses desenvolvimentos;
eles tornam as experiências de aprendizagem mais ativas e atrativas com consequências positivas nos resultados dos alunos;
promovem, também, a socialização, a cooperação, a colaboração entre atores, pois colocam diferentes gerações a aprender entre si e potenciam os seus esforços para superar desafios;
tal é particularmente válido na relação entre alunos e entre professores, bem como na relação entre professor e alunos. A transformação desta decorre da transformação do ensino e da aprendizagem;
o antes dito potencia uma organização institucional capaz de promover o “bem-estar”;
uma vez alcançada a capacitação digital dos professores, o ensino ver-se-á melhorado;
além disso, o uso de ferramentas digitais, como sejam, por exemplo, os “currículos digitais”, permitindo a maximização dos dividendos, tornam a educação “menos onerosa”. Este aspeto, sendo menos evidente, é um dos mais relevantes;
essas ferramentas permitem criar novos espaços: a escolarização pode funcionar fora da escola e da sala de aula.
Importa esclarecer que as razões reunidas neste alinhamento encontram-se envoltas no argumento da inevitabilidade, até porque a mudança já está em marcha: o uso assertivo de expressões como “a digitalização sobrepor-se-á”; ou “a digitalização está a mudar a educação globalmente”; ou, ainda, os “desenvolvimentos tecnológicos (…) estão a alterar fundamentalmente a maneira como vivemos as nossas vidas numa escala global”, constitui manifestação disso mesmo.
Considerando, em particular, o caso de Portugal, num relatório publicado em 2021 com o título Leitores do século XXI: desenvolver competências de leitura num mundo digital8, a OCDE (2021, p. 1), com base nos dados do PISA 2018, reassume que vivemos num tempo “rico em tecnologia”, pelo que as “políticas e as práticas” devem “potenciar a digitalização para criar melhores oportunidades de aprendizagem”. Em paralelo, detém-se no combate aos efeitos, a diversos títulos perturbadores, da digitalização, concluindo pela supremacia da leitura em papel sobre a leitura em suporte digital:
Em comparação com alunos que raramente ou nunca leem livros, em Portugal os leitores de livros impressos obtiveram pontuações 44 pontos acima na leitura, enquanto os leitores de livros digitais obtiveram 11 pontos acima depois de ter em consideração o estatuto socioeconómico dos alunos e das escolas e o género dos alunos. (Rech/OECD, 2021, p. 2)
São dados que destoam do entusiasmo que a tutela tem posto no Plano de Ação para a Transição Digital, implementado a partir de 2021/20229, o qual prevê a substituição dos manuais em papel por manuais digitais, sendo atribuído equipamento individual (computadores) a todos os alunos do ensino obrigatório. Pretende-se, assim, criar “ambientes digitais que promovam a inovação”, motor privilegiado para a melhoria das aprendizagens, pelo estímulo da criatividade, “aproximando as novas gerações aos novos paradigmas da vida em sociedade e do mundo do trabalho”, apontando:
A integração transversal das tecnologias nas diferentes áreas curriculares dos ensinos básico e secundário, visando a melhoria contínua da qualidade das aprendizagens e a inovação e desenvolvimento do sistema educativo, dotando as crianças e jovens das competências digitais necessárias à sua plena realização pessoal e profissional, bem como a igualdade de oportunidades no acesso a equipamentos e recursos educativos digitais de qualidade. (DR n.º 78, 2020, p. 12)
A desmaterialização em causa iniciou-se antes, em 2020/2021, com o Projeto-Piloto Manuais Digitais, em oito agrupamentos de escolas e numa escola não agrupada. Nos dois anos letivos seguintes (2021/2022 e 2022/2023) foram, respetivamente, 24 e 66 as instituições participantes; neste ano são 12 mil os alunos envolvidos10, perspetivando-se que até 2026 estejam todos abrangidos. No relatório final do Projeto-Piloto, publicado em 202111, justificava-se o investimento pela necessidade de desenvolver nos alunos “competências do século XXI” que lhes permitam “adaptar-se e progredir num mundo em rápida evolução”, em coerência com as orientações da Comissão Europeia, que “definiu a educação e a formação em tecnologias digitais como uma das prioridades para a próxima década”12: as tecnologias potenciarão o processo de aprendizagem, uma vez postas “ao serviço do desenvolvimento cognitivo dos indivíduos e da promoção de aprendizagens significativas” (Lagarto/DGE, 2021, p. 12). Ao fazerem a transição para o digital, os sistemas de ensino disponibilizam ferramentas “mais interessantes e exigentes do ponto de vista cognitivo”, que, na “experiência e interação com a realidade”, envolvem os alunos ativamente “no processamento de informação e na criação de conhecimento”; pelo contrário, ao estudarem em papel, limitando-se a repetir mensagens, que nada lhes dizem, não aprendem verdadeiramente a pensar. É o contraste entre o “modelo tradicional de ensino assente na transmissão e reprodução de conhecimento” e a educação desejável para o século XXI que está em causa (Lagarto/DGE, 2021, pp. 16 e 17).
Em coerência com o referido projeto, o Instituto de Avaliação Educativa (IAVE), mudará as provas de avaliação externa para formato digital, defendendo que isso terá ganhos em termos de eficiência, viabilidade, fiabilidade e comparabilidade dos resultados (IAVE, 2022, s.p.). A desmaterialização, também iniciada num projeto-piloto relativo às provas de aferição em 2021/2022, abrangerá, até 2024/2025, todas as provas deste teor, provas finais de ciclo e exames finais nacionais. Nesse sentido, foi colocado em marcha o programa DAVE (Desmaterialização da Avaliação Externa)13, para que:
as escolas e os processos pedagógicos possam também evoluir e modernizar-se, usufruindo das vantagens que as omnipresentes inovações tecnológicas possibilitam, sendo protagonistas de uma verdadeira transformação digital no âmbito pedagógico e didático, mas igualmente e em particular nos processos avaliativos. (IAVE, 2022, s.p.)
O financiamento do empreendimento está previsto no Plano de Recuperação e Resiliência14, no qual se insiste na necessidade de aproximação da escola à realidade social, cuja evolução tecnológica conduz à digitalização. Esta terá impacto nas intenções pedagógicas e didáticas, promovendo a “transformação dos processos de ensino-aprendizagem”:
A pandemia demonstrou a necessidade de se dispor de estruturas e redes digitais eficazes que permitam desmaterializar as aprendizagens (...). Para além do acesso às tecnologias, é necessária uma transformação no processo educativo e pedagógico. Trata-se de uma nova forma de pensar os canais de comunicação e de ensino-aprendizagem, interpretando o digital para além de um conjunto de ferramentas, mecanismos e apoios técnicos. (República Portuguesa, 2021, pp. 12, 199)
É compreensível que os grupos editoriais tenham apostado, prontamente, na produção de manuais em suporte digital, bem como no apoio às escolas, professores, alunos e famílias. O seu discurso tende a aproximar-se do da tutela, incluindo no que toca à substancial transformação da função docente dado que os alunos podem recorrer, em qualquer momento e lugar, a plataformas que alojam o conhecimento necessário à concretização dos objetivos de aprendizagem15.
Considerando o acima dito, concluímos pelo otimismo nacional no respeitante à transição em destaque, na qual se veem omissas reservas assinaladas pela própria OCDE - mesmo impulsionando-a -, nomeadamente, no estudo de Ikeda & Rech (2022) e nas palavras do seu Diretor da Diretoria para a Educação e Competências, Andreas Schleicher (2015). Reservas que a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) subscreve no seu marcante relatório publicado em finais de 202116: apesar de defender a implementação do digital como fator aglutinador e motor de progresso, inclusão, democracia e acesso à educação, admite que este pode potenciar desigualdades. Concorda com o facto de a alfabetização digital ser um direito básico do século XXI, advertindo, porém, que “o digital deve facultar suporte, mas não substituir as escolas” (UNESCO, 2021, p. 4). E, no respeitante ao foco deste artigo, reconhece “contradições inerentes à digitalização e às tecnologias digitais”, provindas do seu “grande potencial emancipatório”, por um lado, e dos riscos que envolvem, por outro (UNESCO, 2021, pp. 34-35).
António Nóvoa, embaixador de Portugal junto desta organização, na apresentação do indicado relatório, optou por uma atitude de cautela que toca a crítica. Referindo-se à “fragmentação da educação” que a digitalização pode acartar, disse17:
é impressionante a fantasia futurista, como se o futuro da educação fosse feito por robots, inteligência artificial, pelas novas tecnologias, as plataformas, os gadgets mais extraordinários possíveis e que, na maior parte dos casos, diminuem a ideia de que o professor é um profissional. (Nóvoa, 2022, p. 4)
É com a mesma atitude que, de seguida, faremos uma leitura do paradoxo enunciado.
UMA LEITURA DO PARADOXO
Tal leitura requer pelo menos um esclarecimento: a determinação de transformar a escolaridade por via do digital, muito estimulada pela OCDE, conta com um historial mais antigo do que fizemos crer no tópico anterior. O marcante projeto Schooling for Tomorrow, surgido na década de 1990, que visou impulsionar o “pensamento de futuro”, é disso exemplo18, expressando que:
uma questão importante que se coloca aos decisores políticos é se as escolas podem ser mantidas desta forma à luz dos avanços nas tecnologias da informação e comunicação. Tendo os alunos e os seus pais crescente acesso ao conhecimento através da inovação tecnológica cada vez mais localizada em casa, será que as escolas continuarão a ser relevantes no século XXI? (OECD/CERI, 1999, p. 24, tradução nossa)
Mais do que ensaiar uma resposta à pergunta, interessa-nos evidenciar estratégias de convencimento que lhe são subjacentes e que vemos replicadas em discursos que veiculam a aludida “determinação”. É que, não tendo poder legislativo, a organização em que nos temos fixado recorre a mecanismos “soft” (Martens & Jakobi, 2010, pp. 2, 7) para produzir opiniões entre os agentes educativos e orientar decisões políticas.
Uma dessas estratégias que aqui destacamos é o “pensamento de futuro”, que “considera a evolução complexa das tendências existentes, bem como os potenciais desenvolvimentos e choques” (OECD, 2022b, s.p.), sendo justificado pela necessidade de preparar as novas gerações para viver num mundo cada vez mais volátil, incerto, complexo e ambíguo (VUCA). No quadro de uma “visão estratégica”, a OCDE tem feito prospeções destinadas a antecipar “contextos ideais para situações hipotéticas”, o que designa por “cenários” (OECD, 2020, 2022b; OECD/CERI, 2001). Para tanto, diligencia “conversas entre atores influentes nos sistemas nacionais de educação” (Robertson, 2012, p. 593), devolvendo-lhes os resultados, na forma de evidências, e apontando soluções. Reivindicando uma posição de neutralidade, nega que a sua ação possa ter um sentido prescritivo, mas a verdade é que, por diversos meios, mais implícitos do que explícitos, define o “tom e a direção do discurso e das políticas de aprendizagem (…) em muitos países” (Walker, 2009, p. 335). Assim sendo, os responsáveis por essas políticas veem-se sujeitos a um pensamento educacional “colonizado” por ideias que, fazendo reiterada “alusão ao risco” e abusando da “noção de crise”, solicitam a “proteção e a segurança para todos”, de modo “imprescindível” e “urgente” (Shiroma et al., 2005, pp. 429-430, 437). Por isso, é de supor que os referidos “cenários” influenciem o “que pode ser imaginado e materializado”, condicionando as opções políticas (Robertson, 2012, p. 593).
O subterfúgio, sumariamente descrito, é bem evidente nos discursos da OCDE: através de uma “abordagem dualista”, aparentemente “pragmática” e, em alguns casos, salvífica, polariza-se o que deve ser tido por desejável e indesejável, anulam-se matizes das ideias em debate e aligeira-se o escrutínio racional, constituindo paradoxos, que se “naturalizam” (Berkovich & Benoliel, 2017, pp. 12-15). Deste modo, não será de estranhar que os elogios da digitalização convivam, sem conflito cognitivo, com as sérias reservas que lhe são endereçadas.
Neste ponto, poderá parecer que o “pensamento de futuro” nos conduziu a um beco sem saída: o que pensar face a este “duplopensar”? Como escolher, em consciência e responsabilidade, a ação capaz de beneficiar os alunos na sua aprendizagem? Para melhor compreender o problema e buscar soluções, consideremos três frentes críticas que resultam de conhecimento confiável e que têm tido ampla divulgação na sociedade.
Uma primeira frente decorre do caso concreto dos magnatas das tecnologias que optam por escolas sem ecrãs - screen-free ou tech-free - para os seus filhos19. Desmurget (2021), recorrendo a testemunhos públicos que prestam, nota estarem a par dos riscos que os dispositivos digitais que concebem têm nas crianças:
Nos Estados Unidos, inúmeros quadros dirigentes das indústrias digitais (…) parecem deveras preocupados com a necessidade de proteger os seus filhos dos inúmeros «instrumentos digitais» que eles próprios comercializam. Segundo consta, de acordo com o New York Times, «começa a emergir em Sillicon Valley um consenso sombrio acerca do impacto dos ecrãs nos miúdos», um consenso tão significativo que transpõe o cenário doméstico e leva geeks a inscreverem os filhos nas dispendiosas escolas privadas sem ecrãs. (Desmurget, 2021, p. 19)
Também dizem limitar, às suas crianças, o uso destes dispositivos em momentos recreativos, privilegiando o relacionamento pessoal, que joga a favor do desenvolvimento da linguagem e, em última instância, da inteligência. E explicam que as tecnologias são concebidas para poderem ser utilizadas com facilidade e eficácia, pelo que o contacto com elas, sobretudo o contacto sistemático, pode ser protelado.
Uma segunda frente decorre de trabalhos inscritos em diversas áreas da ciência que sistematizam problemas provocados pela exposição ao digital, e de que aqui deixamos breve apontamento. Referimo-nos a trabalhos como os de Greenfield (2000), ou mais genéricos, como o de Carr (2012), e mais recentes, como os de Desmurget (2021). Este último autor, em resultado da revisão de um elevado número de estudos dignos de crédito20, conclui que os ecrãs “perturbam o desenvolvimento do cérebro”, pois fecham, progressivamente, as suas “janelas”, ou seja, “reduzem a inteligência” (pp. 37 e 85)21. Por isso, sobre o apetrechamento digital das escolas, declara: para os alunos, “na melhor das hipóteses, a despesa foi inútil; na pior, prejudicial”. Mas também os professores têm perdido: ao substituir-se “o ser humano pela máquina”, é inevitável o “empobrecimento intelectual da profissão docente”, concretizada nas figuras de guia, mediador, facilitador (Desmurget, 2021, p. 132). Por que se persiste, nesse caso, na digitalização? A opinião do autor junta-se à de muitos outros: o avultado investimento económico que os Estados têm feito não visa nem o bem dos alunos nem dos professores, visa a redução das despesas no setor da educação (Desmurget, 2021, pp. 151-152):
(…) substituindo, mais ou menos parcialmente, o ser humano pela máquina (…) coloca o professor qualificado na longa lista de espécies ameaçadas de extinção. De facto, este professor é caro, muito caro, demasiado (?) caro. Além disso, são difíceis de treinar e (…) de recrutar. A tecnologia digital oferece uma solução muito elegante para o problema. É claro que o facto de esta solução vir em detrimento da qualidade educacional torna o assunto delicado e, portanto, difícil de admitir. Assim, para facilitar isto e evitar a fúria dos pais, o assunto deve ser vendido com uma elegante verborreia pedagógica. O cautério digital deve ser transformado numa «revolução educacional», um «tsunami didático» levado a cabo, obviamente, em benefício exclusivo dos alunos.
Face a isto, sugere que se esclareçam as crianças e os jovens, erroneamente apelidados de “nativos digitais”, dos perigos que a sua maturação cerebral corre:
(...) é preciso dizer-lhes que os ecrãs têm influências muitíssimo negativas sobre o cérebro, a inteligência, a concentração, o aproveitamento escolar, a saúde, etc.; há que explicar-lhes porquê: menos sono, menos tempo passado em atividades enriquecedoras, como ler, tocar um instrumento, fazer desporto ou falar com os outros; menos tempo passado igualmente a fazer os trabalhos de casa; etc. (Desmurget, 2021, p. 67)
É aqui oportuno referir uma meta-análise sobre os efeitos do suporte de leitura, conduzida por Delgado et al. (2018), que abrangeu publicações entre 2000 e 2017 e envolveu 171 055 alunos, situados entre o 1.º ciclo do ensino básico e o ensino superior. Independentemente do nível de escolaridade, o estudo mostrou maior proveito da leitura em papel por comparação à leitura digital. Esta, cada vez mais precoce e frequente, perturba a qualidade da atenção e da compreensão, o que se acentua com o passar do tempo. Contudo, quanto maior for a exposição dos alunos à superficialidade dos ambientes digitais22, maior é a sua confiança nessas capacidades. Embora concluindo que a leitura em papel favorece a profundidade do que se lê, os autores reconhecem ser irrealista a exclusão da leitura digital, que, de resto, está em crescimento, razão pela qual recomendam abordagens pedagógicas com suporte científico, capazes de favorecer as mencionadas capacidades.
Em complementaridade, um outro estudo sobre o impacto na aprendizagem de se fazerem anotações em suporte de papel e em suporte digital destacou a vantagem das primeiras, pois a escrita à mão incentiva o processamento mais profundo da informação e a reconstrução conceptual, em contraste com a transcrição superficial promovida pelo digital, a que se alia a distração do multitasking (Mueller & Oppenheimer, 2014).
Mais recentemente, um estudo sobre o movimento ocular dos sujeitos quando leem mostrou que quem o faz em suporte de papel tem um “comportamento de leitura mais seletivo e intencional”, sendo que quem lê em suporte digital, com o objetivo de responder a perguntas de interpretação, fá-lo de modo mais superficial e raramente relê o texto ou partes do texto. A leitura em papel promove, assim, maior “autorregulação e metacognição”, favoráveis a uma “melhor compreensão” (Jian, 2022, p. 1563). Conclui-se, pois, que o suporte digital não só conduz a uma leitura superficial, como também, por esse motivo, altera as estratégias cognitivas recrutadas, com influência direta na compreensão do que é lido e sua transferência.
Uma terceira frente, que se cruza com as duas anteriores e contribui sobremaneira para o seu esclarecimento, decorre da análise dos interesses económicos implicados na digitalização, próprios da Indústria Global de Educação (Amaral et al., 2019), cujo lema é “fazer mais com menos”, particularmente “atrativo” em termos políticos (Amos, 2019, p. 227). No “mascarar do mercantilismo e do lucro” com a promessa de se conseguir maior eficácia, participam organizações internacionais, como as já referidas OCDE e UNESCO, a que se juntam o Banco Mundial (BM) e a União Europeia (UE) (Amos, 2019, p. 226). Diz a primeira delas, num relatório de 201623:
Embora não possam transformar a educação por si só, as tecnologias digitais têm um enorme potencial para transformar as práticas de ensino e aprendizagem nas escolas e abrir novos horizontes. O desafio de alcançar essa transformação assenta mais na integração de novos tipos de ensino do que na superação de barreiras tecnológicas. (OECD, 2016, p. 10, tradução nossa)
Amos (2019, p. 229) esclarece que a digitalização, promotora de uma “disrupção inovadora”, promete “mudanças profundas”: melhores resultados de aprendizagem e “de forma personalizada”. Essa “hipertendência” da educação sustenta a referida “indústria”, que não para de ganhar “novos clientes” e de incitar a “novos modos de governança educacional” (Amaral & Fossum, 2021, pp. 306-307). Vê-se a reforma global da educação, de base eminentemente económica, ser apresentada como a possibilidade de libertação de um sistema que tem aprisionado alunos e professores. Numa sedutora retórica, induzem-se uns e outros à ilusão de poder, liberdade e prosperidade:
O futuro da educação é pintado em cores vivas, modelado como um ecossistema de consumo colaborativo; criativa, empreendedora e inovadora, a educação é retratada como um futuro que só pode ser alcançado por meio de uma colaboração transparente, alimentada por poderosas métricas de reputação digital. (Thompson & Amaral, 2019, p. 2, tradução nossa)
É a desvirtuação do sentido educativo da escola e das relações entre os seus atores que está em causa, bem como as desigualdades sociais que se agravam e os valores que conferem substância ao “bem-comum” (Amaral & Thompson, 2019, p. 285). De facto, a aludida indústria, aliada aos mecanismos de governança global, tende a deslocar a educação desse plano para o preocupante plano do individualismo e da competitividade (Berkovich & Benoliel, 2017; Robertson, 2012).
EM SÍNTESE
A transição digital tem estado no centro da agenda educativa global para este século, potenciada pelos constrangimentos causados pela ainda recente pandemia covid-19, que “desencadeou uma adoção apressada da tecnologia educacional” (Holmes et al., 2022, s.p.). Acontece que essa transição, declarada como progressista, inovadora e inevitável, está longe de poder ser aceite acriticamente, pois os estudos realizados, sobretudo, no âmbito das neurociências e da psicopedagogogia revelam, de modo consistente, múltiplos perigos que o contacto precoce e de forma continuada com os ecrãs acarreta para o desenvolvimento humano. Revelam, com a mesma consistência, que, em contexto escolar, as ferramentas digitais, se usadas de forma sistemática, comprometem os resultados de aprendizagem que se pretendem obter, mas também a ação estruturante de ensino. Desaconselham, por isso, de maneira que consideramos inequívoca, a substituição de recursos “tradicionais” em papel, como os manuais escolares, por sofisticados recursos informáticos. Sobretudo se essa substituição for radical e precoce, em termos de escolaridade.
Igual sentido tem uma vertente dos discursos de organizações supranacionais, mormente de matriz económica, que reivindicam, com força crescente, protagonismo na escolarização. Com base em estudos que elas próprias promovem ou citam, dirigindo-se aos diversos agentes educativos, realçam as maiores cautelas face à mudança em causa. O mesmo tendem a fazer países, como Portugal, que, em virtude da sua proximidade estratégica com tais organizações, acolhem e promovem, com grande empenho, essa mudança. Acontece, porém, que tanto as organizações como os países a que nos referimos, apresentam, nos seus discursos, a par desta vertente, uma outra, que lhe é contraditória. Nesta veem-se recrutados argumentos que revertem os constrangimentos indicados, agregando-se-lhe a promessa de se poder encontrar solução para todos os problemas educativos e, por inerência, para os mais variados problemas sociais e outros que se vislumbrem. Ampliando o raciocínio, os recursos digitais são apresentados como a panaceia para a formação do ser humano e para o equilíbrio do mundo.
Recorrendo à linguagem orwelliana, que nos ajuda a interpretar o fenómeno, estamos perante um caso paradigmático de “duplopensar”, mas tão habilidoso e aperfeiçoado que, num mesmo discurso, verbal ou escrito, certa ideia e a sua contrária entrelaçam-se de maneira que a distopia passa por utopia. Estas situam-se, precisamente, no que se diz ser o “pensamento de futuro”, a que Gimeno Sacristán prestou atenção ainda antes da vulgarização do termo. Diz este autor que, colocando-se o foco num tempo que ainda não existe, cria-se uma realidade paralela à atual, compressora do presente e subtratora de valor ao passado; enfim, uma realidade que “carece de conteúdos e de orientação em que se apoiar”, pelo que, em termos concretos de educação, se vivermos “debruçados no futuro”, ficamos impossibilitados de pensar o presente e de resolver os problemas que ele nos coloca (Gimeno Sacristán, 1999, pp. 38-39).
Há que reconhecer, no entanto, que este pensamento é pragmático, denotando grande sentido funcional na medida em que, ao desviar as atenções do presente, as suprarreferidas entidades mais facilmente conseguem gerar o consenso que buscam, e necessitam, para implementar as suas propostas de escolaridade. Propostas que, como explicámos no corpo do artigo, se encontram fortemente comprometidas com fatores económicos de enorme monta e de alcance global; que, além disso, traduzem interesses particulares, não coletivos, pelo que não podem, ou não devem ser considerados quando se trata de decidir os fins e os meios da educação nos sistemas de ensino públicos.
Olhando para trás no tempo, encontramos entusiasmos com as tecnologias que, agora, não podem deixar de se nos afigurar pueris: “Os livros tornar-se-ão em breve obsoletos nas escolas (...). O nosso sistema escolar alterar-se-á por completo dentro de dez anos”, dizia Thomas Edison, em 1913, ao referir-se às potencialidades do cinema para o ensino. Vendo as capacidades daquele meio de comunicação, ambicionava “ensinar todos os ramos do conhecimento humano através do cinema” (cit. por Saettler, 1990, p. 98). Seguiu-se a rádio e, posteriormente, a televisão como janelas de oportunidades aliciantes para se tornar o ensino acessível e aprazível a todos (Desmurget, 2021, p. 127). Atualmente, a janela é o computador, a internet e os seus muitos derivados.
Estes exemplos poderão ajudar aqueles que têm responsabilidade efetiva na formação académica das novas gerações - professores, diretores, investigadores, políticos - a pensar, num registo coerente, informado e honesto, sobre quais serão as virtudes e as consequências, tanto para elas como para a humanidade, de uma entrada massiva por essas janelas, com destaque para a última, descuidando outras que nos permitiram chegar aqui.
Foi, precisamente, este alerta e solicitação que a UNESCO lançou no seu Global education monitoring report, de 2023, subordinado ao título Technology in education: a tool on whose terms?. No relatório, além de mostrar evidências claras da desaceleração e até da inversão, por parte de muitos países, no que respeita ao uso das mais novas tecnologias em meio escolar, relembra-se que “a tecnologia serve a educação e não o contrário”, devendo “a relação entre os professores e a tecnologia (...) ser de complementaridade - nunca de substituibilidade”. As palavras são de Audrey Azoulay, Diretora-Geral da Organização, que faz uma advertência: “nem toda a mudança constitui um progresso” (UNESCO, 2023, p. vii). O repto que deixa a todos aqueles que possuam responsabilidades educativas é que se empenhem deveras em discernir o que, numa perspetiva humanista, concorre para encarar a educação como um “bem-comum mundial”, finalidade em que, nos anos mais recentes, a UNESCO tem insistido (v.g. 2016).