A evolução da Medicina e os níveis de conhecimento exigidos, para o seu exercício de acordo com a melhor prática levaram ao estabelecimento das diferentes especialidades e, mais recentemente, subespecialidades médicas. Atualmente, existem 50 especialidades e 21 subespecialidades médicas, reconhecidas pela Ordem dos Médicos Portuguesa. Se olharmos atentamente para os diferentes tipos de subespecialidades médicas, podemos verificar que na sua génese estiveram presentes distintos pré-requisitos: áreas muito singulares dentro de uma determinada especialidade demasiado abrangente; procedimentos ou técnicas complexas - exigindo certificação dirigida para assegurar a competência; abordagem especificamente em pediatria de diferentes especialidades (10 subespecialidades são pediátricas); fusão de valências entre diferentes especialidades (por exemplo dermatologia e anatomia patológica ou entre neurologia e anatomia patológica). Na maioria dos casos, as subespecialidades têm “acesso restrito”, ou seja, apenas uma especialidade permite ter acesso a essa subespecialidade. Contudo, em outros casos, e dependendo dos motivos que levaram à sua criação, duas ou mais especialidades médicas poderão dar acesso a uma determinada subespecialidade. Esta abrangência de acesso à subespecialização cruzando conhecimentos e valências de diferentes especialidades médicas não deixa de ser a exceção à regra. No que tange à maioria das subespecialidades pediátricas, o acesso é restrito a especialidades não pediátricas, permitindo certificar médicos de diferentes especialidades não pediátricas nesta faixa etária muito específica. Acontece que algumas das especialidades mais abrangentes - Medicina Interna, Cirurgia Geral, Pediatria ou Medicina Geral e Familiar - não enveredaram pela via da subespecialização. No entanto, em sentido contrário, especialidades menos generalistas mas com valências muito técnicas - Cardiologia, Ginecologia e Obstetrícia e Gastrenterologia - foram pioneiras na subespecialização e lideram este processo. Assim, não se pode deixar de levantar a questão - quais os motivos e potenciais benefícios desta abordagem de “sobre-especialização”?
O racional para essa opção pode ser visto, em primeiro lugar, na perspetiva dos doentes, permitindo um tratamento dirigido e otimizado, de acordo com a melhor prática clínica, e conjugando o melhor que a medicina-baseada-na- evidência e a medicina-personalizada podem oferecer. A complexidade de conhecimentos e competências técnicas para alcançar este nível de cuidados em saúde obriga, de facto, a uma elevada subespecialização ou especialização dentro da especialização. Em segundo lugar, essa opção pode ser encarada na perspetiva dos médicos. Na verdade, permite assegurar e certificar a qualidade, ajudando a circunscrever os limites territoriais no funcionamento sobre quem e quando deve tratar definidas patologias ou efetuar determinados procedimentos. Todos nós, como médicos, já nos confrontamos com áreas da Medicina em que determinadas patologias ou procedimentos/cirurgias possam ou devam ser assegurados por mais do que uma especialidade médica, dada a sua complexidade. Isso não constitui um problema quando as diferentes especialidades médicas trabalham em equipa para o bem comum dos doentes, como tem sido apanágio na abordagem oncológica multidisciplinar. Contudo, em algumas áreas da Medicina, esse trabalho em equipes multidisciplinares não está infelizmente ainda estabelecido. Nestes casos, pode chegar- se ao extremo de ter duas ou mais especialidades diferentes a tratar o mesmo tipo de doentes e a realizar o mesmo tipo de procedimentos ou cirurgias sem qualquer tipo de interligação, levando a um desperdício de recursos humanos e materiais e consequente aumento de despesa, sem que tal acarrete qualquer benefício ou valor acrescentado da prestação médica para o doente. Assim, interrogamo- nos se a subespecialização, provocada pela inovação, não deveria abrir portas à fusão de conhecimentos e valências provenientes de diferentes especialidades, otimizando os recursos despendidos no tratamento dos doentes, sem negligenciar na competência, qualidade e nível dos cuidados. A consequência desta opção seria que por força das especificidades do trabalho clínico diário - práxis médica - , clínicos de diferentes especialidades poderiam vir a trabalhar juntos, em equipe, e terem mais em comum ou seja maior afinidade profissional do que com os colegas da própria especialidade. Isto não estaria eventualmente isento de provocar desequilíbrios ao normal funcionamento dos médicos dentro de cada especialidade. No entanto, na maioria das unidades de saúde, a organização dos médicos é feita com base na especialidade de origem, pertencendo ao centro de custos da especialidade. Importa reter, contudo, que determinados médicos podem ter maior vocação ou apetência para determinadas patologias ou procedimentos/ cirurgias de natureza mais específica que podem não ser vistos como prioritários dentro do funcionamento da especialidade de origem, embora sejam reconhecidos como essenciais para a prestação de cuidados de saúde e valorizados por muitas outras especialidades. Ora, isto é suscetível de levar a situações de potencial conflito dentro e fora da especialidade.
Por isso, focando-nos no exemplo concreto que motivou este artigo, importa reconhecer que a criação da radiologia de intervenção não é um tema novo, mas tem sido sempre polémico. Verifica-se que, dentro da especialidade de radiologia, a radiologia de intervenção é frequentemente vista como não prioritária perante as longas listas de espera de exames de diagnóstico aos quais é preciso dar resposta. Fora da radiologia, é vista como competição, pois diferentes especialidades querem realizar os procedimentos e as técnicas implementadas pela radiologia de intervenção. Parece difícil negar a evidência de que, sendo a radiologia de intervenção ambicionada por outras especialidades, é , certamente, por ser muito relevante e prioritária na promoção da saúde e para o bem dos doentes. Por isso, a consequência lógica do que acabámos de expor, seria que os gestores dos diferentes serviços de radiologia considerassem a radiologia de intervenção prioritária, dado o enorme impacto na prestação de cuidados de saúde e o risco iminente de abandonar a radiologia. Desta forma, não se pode deixar de levantar a questão: preferem a extinção da radiologia de intervenção, sendo esta diluída nas restantes especialidades ou abraçar e defender a radiologia de intervenção como um ícone da radiologia e uma área de inovação que desafia o quotidiano? A criação da subespecialidade - radiologia de intervenção - teria um duplo objetivo: garantir recursos e meios para que a radiologia de intervenção seja implementada em todos os hospitais evitando conflitos dentro e fora da radiologia; assegurar que os doentes tratados por radiologistas de intervenção sejam tratados de uma forma exemplar e de excelência.
Com este intuito, em Fevereiro de 2018 foi entregue à Direção da Sociedade Portuguesa de Radiologia e Medicina Nuclear (SPRMN) um documento realizado pela secção de Radiologia de Intervenção com a proposta de criação da Subespecialidade de Radiologia de Intervenção no âmbito do Colégio de Radiologia da Ordem dos Médicos. Este documento foi aprovado e oficialmente enviado pela SPRMN ao Colégio de Radiologia da Ordem dos Médicos a 12 de julho de 2019. Neste documento estão especificados: o âmbito da criação da Subespecialidade de Radiologia de Intervenção; a Missão e Propósito do Programa de Formação em Radiologia de Intervenção; os Médicos e Instituições Alvo; os Critérios para obtenção da Subespecialidade de Radiologia de Intervenção; a Secção da Subespecialidade de Radiologia de Intervenção do Colégio de Especialidade de Radiologia da Ordem dos Médicos e o Programa de Formação da Subespecialidade de Radiologia de Intervenção. Até à data este processo não teve qualquer desenvolvimento dentro da estrutura do Colégio de Radiologia da Ordem dos Médicos. Como se verifica, brevemente, fará 3 anos que o documento foi criado, não tendo tido até ao momento qualquer impacto. Este tipo de passividade e morosidade, na gestão de processos fulcrais à defesa dos doentes, da Radiologia e dos radiologistas, só prejudica a própria especialidade. É urgente que a Radiologia, nesta matéria, desperte do estado de letargia e deixe de passivamente assistir a que outras especialidades a reclamem como suas valências e competências que foram asseguradas de forma exemplar por radiologistas inovadores. Devemos isto aos nossos antecessores radiologistas - que tiveram a coragem de desafiar o quotidiano -, devemos isto aos nossos colegas médicos da actualidade, devemos isto aos futuros médicos e, acima de tudo, devemos isto aos doentes, pois radiologistas diferenciados permitem otimizar os cuidados médicos e a prestação de cuidados de saúde de excelência. A radiologia de intervenção está na frente deste processo, tendo elaborarado um plano de subespecialização que já está em cima da secretária do Colégio de Radiologia da Ordem dos Médicos desde 12 de julho de 2019. Resta que os Radiologistas que nos representam na Ordem dos Médicos levem este projeto a bom porto. Esperamos que este desígnio seja cumprido!