Introdução
Os anti-inflamatórios não esteróides (AINEs) são amplamente usados a nível mundial pelo seu efeito inibidor de enzimas cicloxigenases (COX) com redução das prostaglandinas mediadoras de inflamação, dor e febre. Contudo, associam-se a efeitos adversos gastrointestinais, sobretudo pelo papel das prostaglandinas na proteção da mucosa gástrica (mediado pela isoenzima COX1). Os AINEs seletivos de COX2 (responsável pelos efeitos anti- inflamatórios) têm menor risco destas complicações, mas associam-se a complicações cardiovasculares.1,2As lesões gastrointestinais podem ser precoces (horas a dias), são dependentes da dose e potência farmacológica e a gravidade da clínica é variável, desde dispepsia a hemorragia digestiva potencialmente fatal.3,4
A abordagem inicial da hemorragia digestiva alta (HDA) envolve medidas gerais de suporte e correção hemodinâmica seguida de endoscopia digestiva alta (EDA), que além de diagnóstica pode tratar a hemorragia. Quando esta persiste (5-10%) há necessidade de cirurgia ou embolização endovascular. A taxa de mortalidade cirúrgica atinge os 20- 40%, particularmente nos doentes hemodinamicamente instáveis ou com comorbilidades, nos quais a embolização endovascular pode ser uma alternativa mais segura e menos invasiva com elevado sucesso, embora apenas detete hemorragias com taxa superior a 0,5 ml/min.5
O presente trabalho visa descrever um caso de gastrite erosiva hemorrágica aguda em jovem após toma de AINES em doses excessivas e rever os seus potenciais efeitos adversos e respetivas abordagens terapêuticas e preventivas.
Descrição do Caso
Doente do sexo feminino com 21 anos de idade, que recorreu ao Serviço de Urgência (SU) por hematemeses com um dia de evolução. Referia síndrome febril refratário a anti-piréticos, episódios de vómitos alimentares e dor abdominal epigástrica com uma semana de evolução, que motivou duas idas prévias ao SU de outro Hospital, onde foi medicada com metamizol magnésico e desloratidina. Por iniciativa própria tomou adicionalmente Ibuprofeno. Negava outras queixas, antecedentes pessoais ou familiares relevantes, alergias, hábitos etílicos ou medicação habitual. Ao exame objetivo apresentava temperatura auricular de 38,8ºC e dor à palpação abdominal. Analiticamente apresentava redução do valor de hemoglobina (10.4 g/dL), em decrescendo face aos dias anteriores. No SU apresentou vários episódios de hematemeses e iniciou Ondasetron e Pantoprazol.
A EDA revelou pequenas erosões gástricas de predomínio no antro. Durante a vigilância objetivou-se redução progressiva dos valores de hemoglobina (mínimo 5.1 mg/dL) e hematémeses. Repetiu EDA, identificando- se volumoso coágulo fresco na grande curvatura, não passível de remoção. Foi então submetida a angiografia com cateterismo seletivo do tronco celíaco e superseletivo das artérias gastroduodenal e gástrica esquerda acessória (origem na esplénica), tendo-se observado área de retenção de contraste na grande curvatura gástrica (Fig. 1). Foi realizada embolização de ramos arteriais distais com partículas de álcool polivinílico e microcoils (Fig. 2). A principal hipótese de diagnóstico colocada foi a de gastropatia erosiva secundária a toma excessiva de AINEs, complicada de hemorragia e choque hemorrágico.
Durante a permanência Hospitalar recebeu múltiplos hemoderivados, com subida do valor de hemoglobina. A EDA de controlo ao 2º dia de admissão revelou duas úlceras de fundo branco na grande curvatura e parede anterior gástrica. Manteve-se hemodinamicamente estável e assintomática e foi transferida para o Hospital da sua área de residência ao 5º dia após a admissão.
Discussão
Os AINEs podem dar complicações gastrointestinais graves, mesmo quando usados a curto prazo, com lesões evidentes dentro de várias horas.3,4O risco parece ser maior no primeiro mês (presumivelmente pela adaptação posterior da mucosa), com doses maiores e combinação de vários AINEs.4 A doente deste caso desenvolveu gastrite hemorrágica grave com apenas uma semana de toma. Admitiu ter ultrapassado a dose recomendada e além do AINE prescrito pelo médico tomou adicionalmente Ibuprofeno, vendido sem prescrição médica. Embora considerado relativamente seguro, o Ibuprofeno é responsável por um número crescente de intoxicações, possivelmente pelo acesso fácil e barato.3,6
Os inibidores seletivos da COX2, desenvolvidos no sentido de reduzir os efeitos gastrointestinais, revelaram associação a complicações cardiovasculares, pelo que poderão não ser uma alternativa segura em muitos doentes. Uma alternativa melhor envolve medidas terapêuticas preventivas, nomeadamente o uso concomitante de fármacos inibidores da bomba de protões (IBPs), antagonistas histamínicos H2 ou misoprostol (análogo de Prostaglandina E2).7
A HDA tem mortalidade estimada em 10%. A grande maioria é provocada por doença ulcerosa péptica, cuja principal etiologia atualmente é o uso de AINEs.8 A EDA é o método de eleição para confirmar o diagnóstico e tratar a hemorragia, com eficácia superior a 90%. Com os avanços das técnicas de embolização transarterial, suplanta atualmente a cirurgia como tratamento de 2ª linha, sendo menos invasiva e com menos complicações.8,9
A irrigação gastroduodenal (Fig. 3A) é rica e abundante, o que embora possa dificultar a embolização, reduz a incidência de isquemia. A probabilidade de sucesso da embolização dependerá do conhecimento prévio do local da hemorragia.10 Muitos doentes apresentarão variantes arteriais anatómicas. No presente caso identificou-se artéria gástrica esquerda acessória, responsável por irrigação colateral à zona da hemorragia (Fig. 3B).
Apesar de não haver consenso baseado na evidência quanto ao melhor agente de embolização a utilizar em cada caso, a literatura sugere que os coils devem ser usados com esponja de gelatina, partículas ou cola.10 No caso descrito o uso de partículas PVA e microcoils revelou-se eficaz e isento de complicações, ilustrando o potencial terapêutico bem sucedido e seguro desta abordagem.
Apesar do baixo custo dos IBPs, não é consensual se a profilaxia de complicações gastrointestinais será custo- eficaz.6,7Contudo, as complicações graves além de custos económicos significativos, mais importante ainda trazem morbilidade e potencial mortalidade. Havendo estratégias preventivas, a sua aplicação não deve ser retida pelo custo financeiro associado, e a mera consciencialização da população para os riscos da toma desmedida de AINEs pode ser uma excelente forma de prevenção não dispendiosa.
A falta de sensibilização para os riscos da toma excessiva de AINEs, acrescida ao seu fácil acesso podem ter consequências nefastas, nomeadamente gastrointestinais. O presente caso clínico de choque hemorrágico por gastrite hemorrágica aguda ilustra uma complicação grave deste comportamento. É essencial alarmar os doentes para os potenciais efeitos nocivos da toma desmedida desta classe farmacológica, mesmo a curto prazo.