Introdução
Enquadramento
O estatuto de utilidade pública desportiva encontra-se atualmente previsto na Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto (doravante a “LBAFD”), a Lei n.º 5/2007, de 16 de janeiro. Na alínea b) do artigo 14.º, o legislador estabelece uma conexão entre este estatuto e o conceito de federação desportiva e nos artigos 19.º a 21.º desenvolve as características do estatuto.
Em desenvolvimento das bases jurídicas, o artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de dezembro, que aprova o regime jurídico das federações desportivas e as condições do estatuto de utilidade pública (doravante “RJFD”) reproduz o disposto no artigo 19.º da LBAFD. As normas constantes de ambos artigos situam o conceito de utilidade pública desportiva no direito português, em especial, no seu direito administrativo, tendo em conta a inserção sistemática dos artigos 19.º da LBAFD e 10.º do RJFD, articulados com os artigos 14.º da LBAFD e 2.º do RJFD, que prescrevem o conceito de federação desportiva.
Do que se trata é de conferir i) competências para “o exercício, em exclusivo, por modalidade ou conjunto de modalidades, de poderes regulamentares, disciplinares e outros de natureza pública” e ii) a “titularidade dos direitos e deveres especialmente previstos na lei” (artigos 19.º da LBAFD e 10.º do RJFD) a “pessoas colectivas constituídas sob a forma de associação sem fins lucrativos” (artigos 14.º da LBAFD e 2.º do RJFD).
Abstraída propositadamente a área temática - o Desporto - o estatuto de utilidade pública desportiva surge como um exemplo de uma figura hoje clássica no direito administrativo, a atribuição de competências públicas a entidades privadas (1) (2) (3), levando até Pedro Costa Gonçalves a escrever que “[e]m Portugal, como por outras paragens, a federação desportiva constitui, com toda a certeza, um dos exemplares mais relevantes do fenómeno do exercício de poderes públicos administrativos de autoridade por entidades privadas” .
O propósito do presente estudo é analisar o modo como normativamente é feita atualmente a repartição de competências das federações desportivas e quais as questões mais relevantes que tal repartição implica. A este respeito iremos socorrer-nos, a título exemplar e conclusivo, de duas decisões arbitrais que ilustram o que nos parece ser o principal problema de repartição de competência: a distinção entre competências jurídico-públicas e competências jurídico-privadas de “aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva” .
Antecedentes
É com a Lei n.º 1/90 de 13 de janeiro, que aprova a primeira Lei de Bases do Sistema Desportivo, que se introduz no ordenamento jurídico português a referência à “utilidade pública desportiva”, posteriormente desenvolvida em regime próprio pelo Decreto-Lei n.º 144/93, de 26 de abril, que estabelece “o regime jurídico das federações desportivas dotadas do estatuto de utilidade pública desportiva”. Este estatuto é atribuído a federações desportivas, realidade jurídico-privada de tipo associativo, que tinha já uma existência de décadas, ligada ao surgimento, no final do século XIX, princípios do século XX, dos primeiros fenómenos de desporto organizado.
Não se trata apenas de uma novidade terminológica. Os dois diplomas revogados pela Lei n.º 1/90, o Decreto n.º 32946, de 3 de agosto de 1943, e a Lei n.º 2104, de 30 de maio de 1960, que durante décadas regularam o direito do desporto em Portugal, não apenas não faziam qualquer referência à “utilidade pública desportiva”, como não imputavam às federações desportivas competências públicas. Pelo contrário, a Lei n.º 1/90 conformava de forma explícita um sistema de “jus-publicização da regulação do desporto” , que vinha sendo progressivamente assumido desde os dois diplomas suprarreferidos, de 1943 e de 1960 , e que se mantém quase inalterado até aos dias de hoje. Jus-publicização funcional e não orgânica, porquanto as federações desportivas confirmaram-se, a partir da Lei n.º 1/90, associações privadas .
A Lei n.º 1/90 inaugura no ordenamento jurídico uma tradição de tratar em parelha a categoria da utilidade pública desportiva, com a sua previsão genérica a ser feita por uma lei de bases e o seu desenvolvimento a ser alvo de um decreto-lei. À parelha inicial, sucedeu a Lei n.º 30/2004, de 21 de julho (Lei de Bases do Desporto), mantendo-se, contudo, o Decreto-Lei n.º 144/93, de 26 de abril. E, presentemente, contamos com a parelha acima identificada, composta pela LBAFD e pelo RJFD.
Desde o surgimento da referência ao estatuto de utilidade pública desportiva, aplicado às federações desportivas, o seu regime sofreu algumas alterações importantes. Em primeiro lugar, note-se a referência à transparência das federações desportivas no n.º 1 do artigo 5.º e no artigo 8.º do atual RJFD por contraposição com o anterior, que era silente sobre esta matéria. Em segundo lugar, registam-se alterações nas vicissitudes procedimentais associadas ao estatuto de utilidade pública desportiva, nomeadamente quanto à atribuição, suspensão (que não é prevista no Decreto-Lei n.º 144/93) e cessação do estatuto. Estas vicissitudes serão objeto de atenção específica infra quando analisarmos o atual RJFD. Em terceiro lugar, regista-se uma alteração da própria natureza dos poderes públicos associados à categoria de “utilidade pública desportiva”. Assim, pode ler-se no n.º 1 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 144/93 que “[t]êm natureza pública os poderes das federações exercidos no âmbito da regulamentação e disciplina das competições desportivas, que sejam conferidos pela lei para a realização obrigatória de finalidades compreendidas nas atribuições do Estado...” (negrito nosso). A referência nesta disposição às atribuições do Estado aponta para a existência de uma delegação de poderes públicos do Estado às federações desportivas por intermédio da atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva , embora a doutrina se tenha dividido sobre este ponto . Como se verá infra, o atual RJFD parece ter dissipado quaisquer dúvidas sobre este ponto, surgindo hoje os poderes legais das federações desportivas, no âmbito regulamentar e disciplinar (artigos 10.º e 11.º do RJFD), como poderes públicos atribuídos diretamente a estas associações, tendo desaparecido a referência a atribuições do Estado.
Distinção entre mera utilidade pública e utilidade pública desportiva
A escolha, pelo legislador, da designação “estatuto de utilidade pública desportiva”, na Lei n.º 1/90, surge como infeliz, por geradora de equívocos. Com efeito, com a utilização desta designação é imediatamente convocado o estatuto de utilidade pública , ou de mera utilidade pública como também é designado, para distinguir-se do mais antigo estatuto de utilidade pública administrativa . Ora, qualquer um destes dois estatutos nada tem que ver com o estatuto de utilidade pública desportiva, enquanto “instrumento por que é atribuída a uma federação desportiva a competência para o exercício, dentro do respetivo âmbito, de poderes regulamentares, disciplinares e outros de natureza pública” (cf. n.º 1 do artigo 22.º da Lei n.º 1/90).
O legislador, porém, parece ter entendido que o regime que estava a aprovar desenvolvia a mera utilidade pública. Note-se o disposto no n.º 3 do artigo 42.º da Lei n.º 1/90: “Os preceitos relativos ao estatuto de utilidade pública desportiva entram em vigor nos prazos fixados pelo decreto-lei que o regular, o qual será elaborado precedendo audição das federações que titulam já a utilidade pública simples”.
O estatuto de mera utilidade pública é um estatuto que visa regular relações de cooperação entre a Administração Pública e os particulares. Este tipo de relações caracteriza-se por não haver qualquer imputação de competências públicas a sujeitos privados, ao contrário do que vemos suceder como característica principal da utilidade pública desportiva. O tipo de relação estabelecida entre uma pessoa coletiva privada que substitui o Estado no desempenho de tarefas suas, por delegação, como sucedia até à atual versão do RJFD, é uma relação de colaboração e não de cooperação (4). Como nota Pedro Costa Gonçalves “na hipótese de colaboração, os particulares são solicitados a contribuir para a realização de fins institucionais da Administração; poderão ter interesse (privado) em oferecer essa colaboração, mas a tarefa envolvida reveste carácter público. Na cooperação, os particulares actuam livre e espontaneamente na sua esfera privada, no exercício de direitos e liberdades” .
Na atual configuração do sistema, a distinção mantém-se, embora alterada. Uma federação desportiva dotada de utilidade pública desportiva adquire capacidade de exercício de competências públicas em nome próprio, mas não deixa de agir como Administração Pública, no quadro das competências decorrentes do estatuto da utilidade pública administrativa, justificando-se aqui o epíteto de Administração Autónoma. Como pode perceber-se são duas realidades distintas (5). Não deve, pois, ceder-se ao equívoco de considerar que o estatuto de utilidade pública desportiva introduzido no ordenamento jurídico português pela Lei n.º 1/90 tem algo que ver com o estatuto de mera utilidade pública, para além de inelutável similitude terminológica.
Não obstante as palavras de cautela que deixamos supra deve notar-se que o atual legislador continua a pressupor a mera utilidade pública como um patamar de acesso à utilidade pública desportiva, mesmo implicando elas naturezas e regimes díspares. Neste sentido, note-se o n.º 1 do artigo 15.º do RJFD: “O estatuto de utilidade pública desportiva é atribuído por um período de quatro anos, coincidente com o ciclo olímpico, a uma só pessoa coletiva, por modalidade desportiva ou conjunto de modalidades afins, que, sendo titular do estatuto de simples utilidade pública...” (negrito nosso). Verifica-se um argumento de conexão: a cooperação com o Estado e o reconhecimento que tal implica, nos termos do estatuto de mera utilidade pública, funciona como uma garantia para a possibilidade de a tais associações privadas poderem ser entregues relevantes interesses públicos.
Vicissitudes do estatuto de utilidade pública desportiva
As vicissitudes do estatuto de utilidade pública desportiva revestem interesse para o nosso tema, na medida em que permitem compreender como o legislador integra a competência jurídico-administrativa na prossecução do objeto das federações desportivas. Destas vicissitudes podemos recolher importantes elementos interpretativos sobre o modo como se repartem as distintas competências jurídicas que estas associações privadas podem exercer.
Atribuição
A atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva convoca um procedimento complexo com a participação de várias entidades.
A iniciativa cabe às federações desportivas. Como se notou acima, as federações desportivas são pessoas coletivas constituídas sob a forma de associações sem fins lucrativos, “englobando clubes ou sociedades desportivas, associações de âmbito territorial, ligas profissionais, se as houver, praticantes, técnicos, juízes e árbitros, e demais entidades que promovam, pratiquem ou contribuam para o desenvolvimento da respectiva modalidade” (cf. artigo 2.º do RJFD). Para tanto, devem preencher cumulativamente os requisitos previstos nas alíneas a) e b) do artigo 2.º do RJFD, ou seja, ter como objetivos, entre outros, “i) Promover, regulamentar e dirigir a nível nacional a prática de uma modalidade desportiva ou de um conjunto de modalidades afins ou associada; ii) Representar perante a Administração Pública os interesses dos seus filiados; e iii) Representar a sua modalidade desportiva, ou conjunto de modalidades afins ou associadas, junto das organizações desportivas internacionais, bem como assegurar a participação competitiva das seleções nacionais” (cf. alínea a), bem como obter o estatuto de pessoa coletiva de utilidade pública desportiva (cf. alínea b).
Da definição legal de federação desportiva e dos seus requisitos legais resulta um aspeto interessante, a possibilidade de haver concorrência representativa, na medida em que várias federações podem competir para conseguir serem escolhidas para representar a sua modalidade (6). Exatamente por esta razão o RJFD veio prever o que designou por “princípio da unicidade federativa”, determinando que o estatuto de utilidade pública desportiva apenas pode ser atribuído “a uma só pessoa coletiva, por modalidade desportiva ou conjunto de modalidades afins” (cf. n.º 1 do artigo 15.º). O estatuto será atribuído aquela que conseguir demonstrar que “possui relevante interesse desportivo nacional e preencha os demais requisitos previstos no presente decreto-lei” (cf. n.º 1 do artigo 15.º). Como se verá infra, o princípio da unicidade federativa tem um enorme impacto no modo como se interpretam as relações entre o direito privado do desporto e o direito administrativo do desporto num sistema como o conformado pelo RJFD. Uma vez que a lei atribui a uma única associação privada um monopólio de criação e aplicação de regras dirigidas a uma multiplicidade de sujeitos, verifica-se uma aproximação material e funcional a princípios e regras jurídico-públicas, pensadas para conformar o poder administrativo.
Assim, no momento em que uma federação desportiva queira requerer a atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva deverá:
Possuir o estatuto de utilidade pública;
Possuir “relevante interesse desportivo nacional”; e
Demonstrar poder prosseguir os objetivos do artigo 2.º do RJFD (capacidade de promover, regular e representar a nível nacional uma determinada modalidade ou conjunto de modalidades afins);
Tendo como pressuposto os requisitos supra indicados, as federações desportivas devem apresentar um requerimento dirigido “ao membro do Governo responsável pela área do desporto” (cf. n.º 1 do artigo 16.º), em modelo aprovado por este sob a forma de portaria . O requerimento deve ser publicitado pelo membro do Governo, no prazo de quinze dias, quer através de aviso publicado em Diário da República, quer através de divulgação na página da Internet do Instituto do Desporto de Portugal, I.P. (cf. n.º 2 do artigo 16.º).
A partir deste momento inicia-se a intervenção de um conjunto de entidades públicas e privadas que qualifica o procedimento, assegurando a convergência de todos os interesses presentes no âmbito da modalidade em causa. Assim, de acordo com o n.º 1 do artigo 17.º do RJFD, devem ser ouvidos obrigatoriamente o Comité Olímpico de Portugal e a Confederação do Desporto de Portugal. Tratando-se de uma federação desportiva responsável pelo desporto para pessoas com deficiência deve ser ouvido o Comité Paralímpico de Portugal. Todas estas instituições são pessoas coletivas privadas sob a forma de associação, demonstrando-se a vontade do legislador em assegurar que a decisão a tomar é legitimada pelos representantes de interesses que caberá à federação desportiva não apenas regular, mas fiscalizar. Estas entidades devem emitir parecer, obrigatório e não vinculativo nos termos gerais, no prazo de trinta dias subsequentes à receção do respetivo pedido (cf. n.º 2 do artigo 17.º).
Sobre os pareceres do Comité Olímpico e da Confederação do Desporto de Portugal deve ainda ser emitido parecer pelo Conselho Nacional do Desporto, nos termos do artigo 18.º do RJFD. O Conselho Nacional do Desporto é uma entidade pública, nos termos do n.º 2 do artigo 7.º da LBAFD. Não obstante integrar representantes da Administração Pública, este órgão integra também representantes do “movimento associativo desportivo” , o que amplia a participação de partes interessadas privadas no procedimento de atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva assim ampliando também a legitimidade da representação detida pelas federações desportivas.
Cada uma das entidades consultadas no âmbito do procedimento deve pronunciar-se sobre todos os requisitos supra identificados. Do mesmo modo, o membro do Governo deve ponderar a verificação de todos estes requisitos. Se a titularidade do estatuto de utilidade pública é de verificação formal que não suscita qualquer exercício de valorações própria da atividade administrativa, os demais requisitos implicam uma medida de discricionariedade que o legislador procurou enquadrar.
No que diz respeito ao requisito do “relevante interesse desportivo nacional”, o parecer das entidades consultadas, bem como a apreciação pelo membro do Governo responsável, deve levar em consideração, nos termos do artigo 19.º do RJFD, se as federações desportivas estão enquadradas em federação internacional “cuja modalidade integre o programa dos Jogos Olímpicos ou Paralímpicos”, sendo neste caso reconhecido automaticamente o relevante interesse desportivo nacional.
Alternativamente, pode ainda ser levada em consideração uma das condições previstas nas alíneas a) e b) do artigo 19.º, ou seja, as federações desportivas possuírem “um grau de suficiente implantação a nível nacional, demonstrando possuir um número de praticantes inscritos, com adequada distribuição geográfica no território nacional, igual ou superior a 500” ou prosseguirem “uma atividade desportiva que contribua para o desenvolvimento desportivo do País, ou de algumas das suas regiões, através da organização de provas, eventos desportivos ou manifestações desportivas suscetíveis de projetar internacionalmente a imagem de Portugal”, respetivamente.
É de notar a variação de discricionariedade a que se assiste no artigo 19.º. A condição prevista no proémio é de controlo vinculado, verificando-se de seguida um contraste entre as condições das duas alíneas do artigo 19.º. A condição da alínea a) apresenta uma margem de discricionariedade reduzida, sendo que, pelo contrário, a alínea b) apresenta um requisito que obriga a vários juízos de valoração assentes em conceitos indeterminados como “desenvolvimento desportivo do País” e “eventos desportivos ou manifestações desportivas suscetíveis de projetar internacionalmente o país”. Nesta medida a condição da alínea b) permite alguma abertura ponderativa a este requisito.
Finda a instrução, com a produção do parecer do Conselho Nacional do Desporto, nos termos do artigo 18.º do RJFD, o membro do Governo responsável pela pasta do desporto deve proferir despacho de atribuição ou de recusa do estatuto de utilidade pública desportiva. Em qualquer um dos casos deverá, bem como em relação a todos os despachos que “afectem a subsistência de tal estatuto”, assegurar a publicação no Diário da República e na página da Internet do Instituto do Desporto de Portugal, I.P. (cf. artigo 20.º).
Suspensão
O estatuto de utilidade pública desportiva pode ser suspenso nos termos do artigo 21.º do RJFD. As causas encontram-se previstas nas alíneas do n.º 1 deste artigo e têm em comum implicarem uma aferição de legalidade e não de mérito da atuação das federações desportivas. São de salientar, pela relevância para o nosso tema, os motivos previstos nas alíneas a) e b). Assim, no primeiro caso encontramos a “[p]rática de ilegalidades ou irregularidades graves, por ação ou omissão, no exercício dos poderes públicos conferidos pelo estatuto de utilidade pública desportiva, violação reiterada das regras legais de publicitação da atividade ou violação das regras de organização e funcionamento internos das federações desportivas constantes do presente decreto-lei”. A primeira das três causas previstas na alínea a) refere-se diretamente ao exercício dos poderes públicos que o estatuto de utilidade pública desportiva acarreta e articula-se com o artigo 14.º do RJFD que permite a fiscalização do exercício desses mesmos poderes. O caso da alínea b) é relevante pois respeita a uma referência ao incumprimento de legislação que cabe as federações aplicar e controlar, de que são exemplos a legislação contra a dopagem e relativa ao combate à corrupção e viciação de resultados, à violência, ao racismo e à xenofobia. Estas referências são relevantes para o juízo a realizar infra sobre o atual posicionamento das federações desportivas no contexto da Administração Pública portuguesa.
O n.º 2 prevê as consequências da suspensão do estatuto, onde, na alínea f) encontramos a “[i]mpossibilidade, por tempo determinado, de exercício de poderes públicos de autoridade por parte de órgãos das federações desportivas” e na alínea g) a “[i]mpossibilidade de atribuição de efeitos desportivos e regulamentares aos resultados das provas e competições organizadas pelas federações desportivas e, sendo o caso, das ligas profissionais, durante o período de vigência da suspensão”. É de notar o contraste entre estas duas disposições. Na primeira faz-se alusão a “poderes públicos de autoridade”, indo para além do que referem os artigos 10.º e 11.º, que se limitam a referir a atribuição de poderes de “natureza pública”. Por seu turno, na segunda alínea referida, encontramos poderes que poderiam bem ser poderes privados, num quadro de autorregulação privada de modalidades desportivas, mas que aqui surgem como poderes resultantes do estatuto de utilidade pública desportiva, ou seja, são poderes também eles de natureza pública. Nesta medida, as duas normas contribuem para a delimitação do escopo das competências jurídico-administrativas das federações desportivas.
Cessação
O artigo 22.º do RJFD prevê três causas de cessação do estatuto de utilidade pública desportiva: i) a extinção da própria federação, sendo a cessação uma consequência jurídica dessa extinção; ii) o cancelamento do estatuto; e iii) o decurso do prazo pelo qual o estatuto foi concedido sem que tenha havido renovação.
Cancelamento
O cancelamento é especialmente regulado no artigo 23.º e, à semelhança da suspensão, aplica-se nos casos em que os requisitos legais deixem de se verificar, neste caso definitivamente. Por isso mesmo, na alínea b), prevê-se uma segunda causa de cancelamento decorrente da conversão de uma suspensão em cessação, quando a federação “não tenha eliminado os fundamentos que deram origem a tal suspensão”.
Não renovação
O regime da renovação do estatuto da utilidade pública vem previsto no artigo 24.º e liga-se diretamente, como se referiu, com a alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º. Ou seja, não ocorrendo a renovação verifica-se um caso de cessação do estatuto de utilidade pública.
Sendo o estatuto de utilidade pública desportiva atribuído por períodos de quatro anos coincidentes com as olimpíadas (cf. artigo 15.º RJFD), o n.º 1 do artigo 24.º determina que “[n]o decurso do ano de realização dos Jogos Olímpicos de Verão deve ser requerida a renovação do estatuto de utilidade pública desportiva pelas federações desportivas nisso interessadas”. Nesta medida, o RJFD, prevê até, no n.º 2 do artigo 22.º, um dever de notificação às federações desportivas quando estas não requeiram a renovação até sessenta dias do prazo de cessão do estatuto. Caso a federação desportiva requeira adequadamente a renovação do estatuto aplicam-se as três hipóteses normais de comportamento da Administração Pública: i) ato de deferimento expresso; ato de indeferimento expresso; ou silêncio. Neste último caso, o n.º 3 do artigo 24.º prevê um deferimento tácito por mais quatro anos. Note-se, porém, que, tendo havido um pedido de renovação, se o estatuto de utilidade pública cessar antes de decorrer o prazo de 90 dias previsto no n.º 3 pode surgir a questão de saber se o estatuto se mantém em vigor ou se cessa por força da alínea c) do n.º 1 do artigo 22.º . Parece-nos que esta última disposição não admite interpretação distinta, mesmo atendendo a ponderações teleológicas e sistemáticas, pelo que ainda que esteja pendente um pedido de renovação, sem resposta, à data da cessação do estatuto de utilidade pública desportiva, esta pendência não tem qualquer efeito sobre a vigência do estatuto e este cessará nos termos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 22.º .
Pode ainda suceder que a federação não requeira atempadamente a renovação do estatuto e nesse caso verifica-se também a cessação do mesmo, por caducidade . Note-se que por força do artigo 25.º do RJFD qualquer um dos casos de cancelamento do artigo 23.º implica parecer prévio do Conselho Nacional do Desporto.
Poderes públicos conferidos pelo estatuto de utilidade pública desportiva
O exato contorno dos poderes públicos que o estatuto de utilidade pública desportiva confere é um dos elementos mais importantes do regime jurídico que temos vindo a estudar. É o que distingue uma federação desportiva de qualquer normal associação constituída e funcionando à luz do direito privado. A determinação de tais poderes é fundamental para podermos, por seu turno, apurar a natureza jurídica das federações desportivas.
O primeiro aspeto que importa referir é que aqui trataremos o conceito de “poderes públicos”, utilizado pelo RJFD, como normas de competência jurídico-administrativa (7). Em segundo lugar, a opção do legislador português coloca um desafio importante ao intérprete: compreender o alcance da publicização de competências face à esteira competencial decorrente da autonomia associativa das federações desportivas. A este respeito importa distinguir dois problemas: i) o de saber se as regras criadas e/ou aplicadas pelas federações desportivas em relação a cada modalidade são regras jurídicas e ii) sendo regras jurídicas quais os sistemas normativos de pertença.
Direito das federações desportivas e “regras do jogo”
Não parecem existir dúvidas de que as regras que regulam a existência e o funcionamento das federações desportivas são regras jurídicas, produzidas quer pelo legislador, quer pelas próprias federações ao abrigo da autonomia privada das associações (8). As dúvidas surgem quanto às regras que as federações podem produzir e/ou aplicar respeitantes às modalidades que regulam: as denominadas regras do jogo(9), que no caso de modalidades desportivas podem referir-se a um conjunto alargado de matérias que incluem regras sobre a tipificação da própria modalidade, como os seus objetivos, duração, equipamento, número de jogadores, existência de equipas, jogadas permitidas e proibidas, entre outras (10). As regras do jogo são complementadas por diversas outras regras, mas que com elas não se confundem, respeitantes a várias dimensões do desporto, como a igualdade de oportunidades, a segurança dos praticantes e espectadores, a integridade competitiva , entre outras.
Pela nossa parte parece-nos ser de qualificar as regras do jogo como regras jurídicas provenientes do direito associativo nacional e internacional . Elas derivam da capacidade jurídica das federações desportivas de criação e aplicação de normas, ao abrigo da autonomia privada e do princípio da especialidade. Natureza que não se confunde com o conteúdo técnico que encerram, através da utilização de conceitos vagos, cuja concretização é deixada aos aplicadores (vg. árbitros e membros dos órgãos de disciplina e de justiça das federações) e que se manifesta num contexto de aplicação de normas jurídicas. As denominadas “leis do jogo” ou “regras do jogo” são disposições cuja pertença a um sistema normativo jurídico decorre da sua aprovação e validade depender de regras jurídicas, aquelas que a nível nacional e internacional disciplinam as instituições desportivas. Isso mesmo é considerado pelo legislador quando no n.º 4 do artigo 44.º do RJFD exige que “[n]as federações desportivas no âmbito das quais se disputem competições de natureza profissional, os membros do conselho de justiça são licenciados em Direito e, nas restantes, a maioria dos membros do conselho de justiça são licenciados em Direito, incluindo o presidente” (negrito nosso). Justamente porque se trata de apreciar normas jurídicas a lei exige que tal apreciação seja feita por juristas.
Pertença de regras jurídico-desportivas ao direito administrativo
Consideradas jurídicas as regras criadas e aplicadas pelas federações desportivas, incluindo as regras do jogo, a questão central torna-se a de saber se tais regras devem considerar-se integradas no direito privado ou no direito público, rectius, direito administrativo. Já surpreendemos acima o critério que nos parece adequado.
Como temos vindo a notar, quer por referência histórica, quer comparada, é evidente a competência jurídica-privada das federações desportivas para criar regras destinadas a regular e disciplinar as modalidades respetivas. Tal, aliás, acontece hoje com um elevado grau de complexidade, através de um modelo piramidal , que atravessa as fronteiras dos Estado e atinge a sua cúpula no direito internacional privado, o que leva a poder-se referir a existência de uma “estrutura de duas faixas” no direito do desporto, englobando o direito privado de origem associativa, composto pelos regulamentos produzidos pelas federações desportivas nacionais e internacionais, e o direito de origem legal ou convencional destinado a regular inúmeros aspetos que são convocados pela prática das modalidades ou que o legislador pretende assegurar no contexto dessa prática. É quanto a este último conjunto normativo que podem surgir dúvidas quanto à sua qualificação, desde logo porque o próprio legislador pode intervir nessa mesma operação. É o caso português a partir do momento em que foi introduzido o estatuto da utilidade pública desportiva e se procedeu a uma publicização do exercício de competência normativa por parte das federações desportivas, com consequências quanto à prática de actos que apliquem tais normas. O que é fundamental determinar para a boa aplicação do direito do desporto é o alcance desta determinação publicizadora do legislador.
O artigo 10.º do RJFD limita-se a referir que o estatuto de utilidade pública confere a competência para o exercício de “poderes regulamentares, disciplinares e outros de natureza pública”. A formulação no enunciado normativo leva-nos a concluir que estamos perante uma norma que carece de outras normas para que possamos determinar quais são os poderes públicos que as federações desportivas podem exercer. Esta interpretação é, aliás, reforçada pelo disposto no artigo 11.º em que se indica terem “natureza pública” os poderes das federações desportivas “exercidos no âmbito da regulamentação e disciplina da respetiva modalidade que, para tanto, lhe sejam conferidos por lei” (negrito nosso) . Nesta medida, os artigos 10.º e 11.º do RJFD operam em conjunto a qualificação de determinadas competências jurídicas das federações desportivas como públicas, em articulação com as normas que preveem especificamente essas competências. Competências que, na maioria dos casos, poderiam ser qualificadas como competências jurídico-privadas, com uma minoria a carecerem de ser competências públicas originárias em função de uma reserva de direito administrativo (ver infra alguns exemplos).
O modo abrangente, mas também pouco rigoroso com que o legislador do RJFD trata a matéria deixa, contudo, muitas dúvidas sobre como deve ser feita a repartição entre a competência jurídico-privada, decorrente da autonomia associativa, e a competência jurídico-pública atribuída pelo legislador. O critério a adotar não pode deixar de ser o critério formal de atribuição legal de competências públicas, pelo que as demais competências a exercer pelas federações desportivas serão um exercício de autonomia privada. É aliás este o sentido da precisão que o artigo 11.º faz à referência no artigo 10.º a “natureza pública”. Mas mesmo este critério não oferece um cenário claro, desde logo por interpretação do próprio RJFD. Pense-se no caso da articulação dos artigos 10.º e 11.º, no sentido agora exposto, com a alínea g) do n.º 1 do artigo 13.º do RJFD. Uma vez que a competência para regulamentar os “quadros competitivos da modalidade” está previsto em lei (ainda que como um direito das federações) devemos concluir que se trata de uma competência pública, uma vez que estão verificados os critérios dos artigos 10.º e 11.º do RJFD? O mesmo se diga quanto à competência disciplinar por referência à alínea i) do mesmo n.º 1 do artigo 13.º.
Assim, o labor do intérprete ao invés de se consumar no RJFD aí principia, com a necessidade de determinar no próprio regime jurídico e no restante ordenamento jurídico quais as competências públicas que são atribuídas às federações desportivas. Este labor não é sequer completamente enquadrado pelos artigos 10.º e 11.º do RJFD, uma vez que, embora se refiram poderes de regulamentação e disciplina , acrescentam-se “outros de natureza pública”, o que significa que o RJFD abre para qualquer conjunto de competências que o legislador queira entregar às federações, confirmando o critério legal como o único critério seguro para qualificar as competências públicas das federações desportivas. Alguns exemplos são: registo e divulgação de participações qualificadas no capital social de sociedade desportiva (artigo 28.º/1 e 5 do Regime Jurídico das Sociedade Desportivas (Decreto-Lei n.º 10/2013, 25 de janeiro); vistoria (artigo 12.º/4 do Regime Jurídico das Instalações Desportivas de uso público (Decreto-Lei n.º 141/2009, 16 de junho); controlo de medicamentação de animais (artigo 32.º/6 da Lei antidopagem no desporto, adotando na ordem jurídica interna as regras estabelecidas no Código Mundial Antidopagem); cursos de qualificação para treinador desportivo e sua fiscalização (artigo 6.º/3, da Lei n.º 40/2012, 28 de agosto).
Competências públicas originárias e não delegadas
Na versão original do n.º 1 do artigo 59.º da Lei antidopagem verificava-se uma delegação de competências públicas da Autoridade Antidopagem de Portugal (ADoP), que é um serviço público integrado no Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ, I.P.), nas federações desportivas, (que, recorde-se, são pessoas coletivas privadas), quanto à instrução de processos contraordenacionais. Esta situação configurava um caso interessante de delegação legal de competências por efeito da lei, de uma pessoa coletiva pública para uma pessoa coletiva privada , mas marcava também um contraste com os demais casos em que a atribuição das competências é feita diretamente pelo legislador às federações desportivas, consubstanciando um caso de reconhecimento de competências públicas a entidades privadas , denotando um fenómeno de “publicização dos poderes federativos” . Com efeito, tendo desaparecido do RJFD a referência às “atribuições do Estado” (artigo 8.º/1 do Decreto-Lei n.º 144/93) e tendo sido incluído no texto do artigo 9.º a proibição de recusa de inscrição a qualquer “agente desportivo”, para além dos clubes ou sociedades desportivas , não resultam da lei elementos que permitam concluir pela natureza estatal das competências que o legislador confere às federações desportivas e, como tal, por um fenómeno de delegação de poderes públicos . Mais: tendo em conta a história de autorregulação privada das federações desportivas e a eliminação da referência a “atribuições do Estado” do RJFD, parece ser mais adequada a interpretação que defenda que no caso das federações desportivas estamos perante um fenómeno de “auto-regulação pública do desporto” . A estes elementos acresce ainda o contraste, supra identificado, entre as situações em que o legislador se limita a imputar competências públicas às federações desportivas sem fazer qualquer referência ao Estado ou outra pessoa coletiva pública, daquela outra, como sucedia no artigo 59.º da lei antidopagem, em que o legislador expressamente referia haver uma delegação legal de competências de um instituto público para as federações desportivas, não havendo aí dúvidas quanto à qualificação do fenómeno jurídico verificado. Esse contraste é hoje ainda mais marcante por ter desaparecido, em alteração à lei de antidopagem.
A este respeito, como vimos acima, o legislador, à luz da atual LBAFD e do atual RJFD, parece ter tomado como critério para a atribuição de competências públicas às federações desportivas, o reconhecimento da vantagem destas na prossecução de interesses públicos que correspondem aos interesses que estão no âmago do autogoverno desportivo realizado pelas federações. Toma aqui destaque o n.º 2 do artigo 79.º da Constituição que encontra no estatuto de utilidade pública desportiva uma sua forma de concretização. Através deste regime jurídico-administrativo, o Estado concretiza o mandato constitucional de colaboração com as “associações e coletividades desportivas” e, desse modo, encontra-se o fundamento jurídico para atribuir a entidades privadas competências públicas. Colaboração não exige, necessariamente, delegação. A esta construção também não obsta a circunstância de o RJFD prever a fiscalização administrativa das federações desportivas “por parte de serviço ou organismo da Administração Pública com competências na área do desporto, mediante a realização de inquéritos, inspeções, sindicâncias e auditorias externas” (cf. artigo 14.º). Em primeiro lugar porque a norma constitucional habilitante é neutra quanto à modalidade de exercício de competências jurídico-públicas (cf. artigo 267.º/6 da CRP) e em segundo lugar porque a fiscalização de entidades públicas ou privadas pelo Estado não indicia ou sequer implica qualquer delegação de funções administrativas. Aliás, o mesmo tipo de poderes de fiscalização previsto no artigo 14.º do RJFD é previsto em regra para todas as situações de fiscalização de entidades privadas que exerçam competências públicas, estejam sujeitas a financiamento público ou exerçam apenas uma atividade de interesse geral (vejam-se os casos das entidades reguladas ou das instituições particulares de solidariedade social).
Assim, pode dizer-se que todas as condutas que impliquem regulamentação e disciplina jurídica das modalidades desportivas, em termos fixados pela lei (cf. artigo 19.º/2 da LBAFD e artigo 11.º do RJFD) implicam o exercício de normas de competência pública e são reguladas por disposições de direito administrativo. Excluídos desta qualificação, insiste-se, ficam quaisquer normas e actos que, não sendo legalmente regulados, quer através de normas de competência jurídico-pública, quer através de regra de proibição, sejam emitidos e praticado ao abrigo da capacidade de direito privado das federações desportivas.
Análise das competências jurídico-administrativas das federações desportivas
A partir do critério de delimitação das competências jurídico-administrativas das federações desportivas, e tomando como central o disposto nos artigos 11.º e 13.º do RJFD, estamos em condições de analisá-las com maior profundidade.
É importante notar que as competências jurídico-administrativas advenientes do estatuto de utilidade pública desportiva e demais legislação convivem com a capacidade jurídica de direito privado das associações privadas, desde logo quanto ao seu autogoverno e autodeterminação , ainda que com as conformações impostas pelo n.º 3 do artigo 13.º. Importa, pois, distinguir a componente jurídico-administrativa decorrente do estatuto de utilidade pública da base jurídico-privada decorrente do estatuto associativo privado.
Competência regulamentar e disciplinar
A competência regulamentar jurídico-administrativa decorre, como notámos supra, do próprio RJFD, bem como de outros diplomas legais que a atribuam, e convive com poder regulamentar jurídico-privado. Alguma doutrina coloca ao lado desta bipartição, a competência para aprovar regulamentos não jurídicos, respeitantes a aspetos técnicos das modalidades envolvidas, o que é normalmente designado como as regras de jogo , mas já supra nos pronunciámos quanto a esta questão, afastando este entendimento (11). Sendo regras jurídicas, as normas das federações desportivas sobre regras do jogo devem, em regra, ser qualificadas como normas jurídico-privadas, por serem aprovadas ao abrigo de uma competência de direito privado nacional ou recebidas de organizações internacionais privadas . Nos casos excecionais em que estejamos perante normas que tenham sido aprovadas ao abrigo de uma competência jurídico-administrativa, (mesmo se qualificáveis como regras do jogo), verifica-se no direito português uma publicização de tais regras. Tal decorre, como notámos, do artigo 11.º do RJFD, mas também de uma leitura sistemática do disposto na alínea g) do n.º 1 do artigo 13.º, quando aí se prevê como direito das federações a “regulamentação dos quadros competitivos da modalidade” e, posteriormente se reconhecem como direitos adicionais das federações, no n.º 2 do artigo 13.º, in fine, os que estiverem previstos nos estatutos, significando que os direitos previstos no n.º 1 foram atribuídos especificamente pelos legislador e não decorrem da autonomia privada e do princípio da especialidade aplicáveis a qualquer associação privada. A questão está, pois, em determinar o que deve integrar-se no exercício de competências jurídico-privadas para regulamentar os “quadros competitivos da modalidade”, enquanto direito das federações desportivas e o que decorre do exercício de normas de competência jurídico-administrativa. Pense-se no caso de um regulamento disciplinar aprovado por uma federação desportiva, enquanto regulamento administrativo, mas que remete para normas respeitantes às “leis do jogo”, recebidas de instrumento normativo aprovado por organização internacional .
A esta análise acresce o disposto na alínea g) do n.º 2 do artigo 21.º onde, como notámos supra, se dispõe que a “atribuição de efeitos desportivos e regulamentares aos resultados das provas e competições organizadas pelas federações desportivas” se torna impossível enquanto estiver suspenso o estatuto de utilidade pública desportiva, podendo mesmo levar ao cancelamento deste estatuto (cf. artigo 23.º/1/b), o que confirma que tais efeitos decorrem do exercício das competências públicas conferidas por este estatuto. Novamente, o único critério seguro é o critério de atribuição legal de competências jurídico-administrativas .
Nesta medida, sempre que estejamos perante o exercício de competências jurídico-administrativas para emissão de regulamentos e para a prática de actos administrativos, o legislador determina que, quer quanto ao procedimento de aprovação, quer quanto à sua aplicação, as federações desportivas estejam submetidas ao direito administrativo . As matérias em que isto pode suceder são várias, incluindo, a organização de competições desportivas, a inscrição e transferência de praticantes, o exercício de disciplina, a realização de atos eleitorais (quando estejam em causa aspetos do n.º 3 do artigo 13.º) , certificação de modalidades, antidopagem, prevenção da violência, entre outras. O critério deverá ser sempre o da determinação, caso a caso, da apropriação pública, nos termos da lei, de um determinado segmento objetivo de modalidades desportivas, em termos que não contrariem o exercício de liberdades fundamentais. Este limite operado pelos direitos fundamentais é relevante na medida em que opera sobretudo como um limite material, que está em regra de harmonia com a discricionariedade que as federações desportivas possuem, no âmbito das suas competências jurídico-administrativas. As demais imposições decorrentes do exercício de competências jurídico-administrativas por federações desportivas operam ao nível procedimental, onde será difícil encontrar um limite imposto pelos direitos fundamentais, no quadro do seu exercício entre particulares quando está em causa a regulação do desporto.
A determinação de “questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva”
Deve notar-se que a circunstância de as regras do jogo serem aqui consideradas regras jurídicas não deve confundir-se com a abertura semântica que contêm para efeitos de interpretação e aplicação nem com a sua impugnabilidade jurisdicional. Aliás, o legislador procurou distinguir estas situações limitando o universo do que deve entender-se por regras do jogo no direito português para efeito de impugnação jurisdicional (incluindo, portanto, tribunais arbitrais) de normas e decisões das federações desportivas.
A sindicabilidade das normas e decisões das federações desportivas, prevista pelo legislador opera de acordo com um critério material, que é afinal o das regras do jogo. Independentemente destas regras resultarem do exercício de uma competência jurídico-privada ou jurídico-administrativa, independentemente da forma que assumam estas regras e as decisões tomadas com seu fundamento, o legislador pretende que a sindicabilidade seja repartida entre uma apreciação pelas próprias federações das questões que digam respeito à aplicação das regras do jogo, cabendo aos tribunais apreciar todas as demais questões.
A este respeito importa notar o n.º 1 do artigo 44.º do próprio RJFD, que atribui ao Conselho de Justiça das federações desportivas competência para “conhecer dos recursos das decisões disciplinares relativas a questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva”. Esta disposição articula-se com o disposto no n.º 6 do artigo 4.º da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto (doravante “LTAD”) . Com efeito, esta disposição determina que “[é] excluída da jurisdição do TAD, não sendo assim suscetível designadamente do recurso referido no n.º 3, a resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva”. Importa contextualizar estas disposições. Esta categoria de questões substituiu o conceito de “questões estritamente desportivas” (cf. n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º da versão original da LBAFDF, revogado pelo artigo 4.º da LTAD) (12) que eram definidas como as que “tenham por fundamento normas de natureza técnica ou de carácter disciplinar, enquanto questões emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respetivas competições”. Embora o autor da proposta de lei entenda haver uma continuidade semântica entre os dois enunciados normativos, mesmo entrando em contradição , deve dizer-se desde já que tal não é o que resulta de um cotejo cientificamente adequado entre as disposições em causa (13).
O Tribunal Arbitral do Desporto surgiu para dotar de celeridade e especialização técnica a administração da justiça desportiva, desde logo em primeira instância, e sem prejuízo de recurso aos tribunais administrativos, como aliás decorre da própria LTAD, no seu artigo 8.º . Faz-se assim uma repartição entre a jurisdição comum, que deve ocupar-se das matérias estritamente de direito privado, nomeadamente regras de organização interna das próprias federações desportivas, bem como as suas relações laborais (sem prejuízo de arbitragem voluntária); a jurisdição necessária do TAD e dos tribunais administrativos, que se ocupam das questões jurídico-públicas e, finalmente, os órgãos próprios das federações desportivas, onde avulta o Conselho de Justiça, quanto a litígios emergentes de questões técnicas das modalidades desportivas.
O critério que importa fixar aplica-se às situações em que surgem dúvidas entre a jurisdição do Conselho de Justiça sobre questões técnicas respeitantes às regras de jogo e a jurisdição integrada pelo TAD e pelos tribunais administrativos. Apesar de questões distintas, esta questão liga-se ainda à questão da delimitação da competência jurídico-administrativa das federações desportivas na medida em que a exclusão de jurisdição do TAD e dos tribunais administrativos tem como consequência a limitação da sindicância de uma parcela de decisões sobre o exercício dessa competência.
É importante referir que uma distinção incontroversa é impossível de atingir . E importa notar que um diploma que vise “regulamentar uma modalidade” pode conter simultaneamente normas dirigidas à prática concreta dessa modalidade, no âmbito de um jogo, de uma partida, de um evento desportivo, e normas respeitantes a aspetos de organização das provas, calendário, espectadores, segurança, entre outras matérias. Nessa medida a distinção deve ser feita teleologicamente, atendendo também ao modo como o legislador configura a possibilidade de impugnação das decisões tomadas com recurso a normas técnicas jurídico-privadas e as que são tomadas por referência a normas jurídico-administrativas emitidas pelas federações desportivas.
A conjugação do RJFD com a LTAD, no quadro dos princípios gerais de Direito Administrativo não pode deixar de impor uma interpretação estrita do que sejam “normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva” (artigo 44.º/1 do RJFD e artigo 4.º/6 da Lei do TAD”. Impera um critério teleológico de função das normas. Aquelas que se aplicam à prática concreta da modalidade apenas podem ver as suas decisões de aplicação impugnadas junto dos órgãos das federações desportivas, aquelas que regulem os demais aspetos da modalidade, para lá da sua prática e tendo em relação a ela uma função enquadradora quanto a interesses públicos a assegurar e prosseguir, não podem considerar-se “técnicas ou disciplinares” no sentido utilizado no RJFD e na Lei do TAD. Como tal, podem ser impugnadas, bem como as decisões que as tenham como parâmetro, junto dos tribunais: dos tribunais comuns quando se trate de normas e decisões no âmbito do direito privado das federações desportivas e do TAD e dos tribunais administrativos quando se trate de normas e decisões no âmbito jurídico-administrativo.
Com efeito, estão aqui em causa apenas as regras que se apliquem a questões suscitadas na prática das modalidades (durante um jogo, durante uma prova) e não “emergentes” dessa prática, no sentido de decorrentes ou conexionadas com essa prática . Quaisquer questões decorrentes da prática de uma modalidade desportiva implicam já juízos sobre o funcionamento e organização da própria modalidade, ou seja, sobre a regulamentação da modalidade (artigos 10.º e 11.º do RJFD) e não sobre a sua prática concreta, referente a eventos desportivos identificáveis. Nessa medida, já convocam de modo claro, a interposição de princípios e regras de direito público, visadas pela publicização operada pelo estatuto de utilidade pública desportiva. Assim, um regulamento com as regras a que está sujeita a prática de uma modalidade bem como outro que contenha regras disciplinares a aplicar durante provas e competições (independentemente do sujeito) (14), consubstancia um caso de exercício de poder regulamentar e disciplinar que está excluído de apreciação jurisdicional, quer pelo TAD, quer pelos tribunais. Tal actividade regulamentar e disciplinar deve, porém, ser apreciável jurisdicionalmente, para lá da prática concreta de jogos, partidas, e competições da modalidade, ao funcionamento e organização geral dessa mesma modalidade , pois aí radica, a partir do n.º 2 do artigo 79.º da Constituição, a justificação do fenómeno de publicização das competências das federações desportivas promovida pela LBAFD e pelo RJDF. Nem podia ser de outro modo: o reconhecimento da sindicabilidade exclusiva de normas e decisões desportivas por parte das federações desportivas tem como fundamentos não apenas a autonomia privada das federações desportivas, mas também a capacidade de autorregulação técnica das modalidades desportivas que representam. Ora, estes dois fundamentos não deixam em momento algum de estar contrapostos aos demais interesses jurídicos que cabe aos ordenamentos tutelar e proteger. Assim, apenas em situações muito limitadas, em que, por um lado a necessidade de preservação da autonomia técnica atinge o seu máximo (durante a prática das modalidades) e por outro, a interposição de outros princípios jurídicos não carece de especial proteção (excecionada a proteção física e moral dos praticantes e espectadores), haverá razões jurídicas para permitir às federações decidirem em exclusivo sobre litígios daí emergentes, assumindo uma reserva federativa de justiça técnica. Pelo contrário, em todos os demais casos, o legislador realizou uma pré-ponderação de que uma sindicância por um tribunal acautela de melhor forma a proteção dos interesses em jogo. A adequada aplicação do princípio da tutela jurisdicional efetiva assim o exige.
Um primeiro exemplo pode ajudar a ilustrar a importância da distinção. Nos termos do Processo n.º 14/2020 do Tribunal Arbitral do Desporto discutiu-se a questão de saber se o TAD era competente para i) apreciar um pedido de impugnação de uma decisão do Presidente da Federação Portuguesa de Canoagem, que se recusou a excecionar a aplicação de um Regulamento (o que teve como consequência a não inscrição do Demandante no clube pretendido), bem como ii) decretar uma providência cautelar de inscrição provisória. A questão implicava a apreciação do Regulamento de Transferências da Federação Portuguesa de Canoagem, aprovado pela Direcção da mesma. O TAD veio a concluir que era incompetente para apreciar a questão porquanto “a decisão de manter a aplicação do Regulamento de Transferências insere-se nas designadas questões estrictamente desportivas”. Apesar de a Decisão referir quer o artigo 44.º/1 do RJFD, quer o artigo 6.º/4 da Lei do TAD, o Tribunal sustenta a sua decisão em argumentos que não podem aceitar-se : “A ratio desta construção normativa radica, por um lado, na circunstância de o recurso direto para o TAD de decisões não definitivas de órgãos federativos implicar um número de processos incomportáveis para a sua estrutura (imagine-se, por hipótese, que todos os praticantes e, ou, clubes dos diversos escalões das distintas modalidades pretendiam impugnar junto do TAD todas as decisões de recusa de inscrição de jogadores) e, por outro, porque se afigura totalmente desnecessário, porquanto o recurso interno para o Conselho de Justiça poderia atender às pretensões do demandante” . Com efeito, a argumentação apresentada não se dirige à questão fundamental, a única que releva para a aplicação das normas supra referidas que repartem as competências de apreciação de decisões entre órgãos administrativas das federações e tribunais: saber se se está perante a “aplicação d[e] normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva”. Ora, embora nos pareça inequívoco que a transferência de um praticante de canoagem de um clube para outro não se fundamenta numa norma técnica ou disciplinar que seja diretamente respeitante à prática da própria competição desportiva, assegurando, para mais, a proteção de um interesse público de relevo como a igualdade de oportunidades , o TAD decidiu pela sua incompetência , aliás em sentido contrário a sua jurisprudência anterior . Deste modo, retirou-se do âmbito jurisdicional a apreciação de uma questão jurídica na qual converge não apenas o importante princípio da igualdade de oportunidades, mas um relevante direito do universo desportivo, previsto no artigo 9.º do RJFD .
Um outro exemplo relevante é trazido pelo denominado “Caso Palhinha”, alvo de Decisão Arbitral do TAD no Processo n.º 4/2021. Para o tema que aqui nos ocupa, releva que o jogador da equipa principal de futebol do Sporting Clube de Portugal, João Palhinha recorreu de uma decisão do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol respeitante à aplicação da sanção automática de suspensão de um jogo por acumulação de cartões, em virtude de ter havido um reconhecimento pelo árbitro, posterior ao jogo, de que o cartão amarelo gerador da suspensão, havia sido aplicado erroneamente. A este respeito o TAD pronunciou-se do seguinte modo:
“XIV - Não pode o TAD tecer juízos decisórios sobre a correção ou não da exibição do cartão amarelo ora em causa, pois - disso não existem quaisquer dúvidas - a resolução da questão inerente à correção ou não de tal exibição emerge exclusiva, direta e imediatamente da aplicação das normas técnicas e disciplinares respeitantes à prática da própria competição desportiva.
XV - Só que, in casu, o thema decidendum trazido à ponderação prudencial do Colégio Arbitral inclui uma outra questão que em nada se confunde com esse tipo de juízos; essa outra questão constitui a verdadeira e fulcral questão de fundo a apreciar e decidir na presente ação arbitral, qual seja a de saber da relevância, enquanto dado de facto assente, das afirmações do árbitro reconhecendo, formalmente e em sede de sancionamento disciplinar, que, após visionar as imagens da jogada em causa, a exibição de tal cartão amarelo “não foi adequada”, para aferição da questão de mérito, que é uma questão de Direito, sobre se pode considerar-se verificada, in casu, a infração prevista e punida no artigo 164.º, n.º 7, do RDLPFP; ou, dito de outro modo, sobre se aquele concreto cartão amarelo exibido durante o jogo, porque comprovadamente exibido com erro, como pelo próprio árbitro formalmente assumido, permite integrar a hipótese, a previsão, o tatbestand, a factispecies, daquela norma regulamentar.
[...]
XVII - Não se trata, pois, de apreciar e julgar a correção da exibição do cartão amarelo segundo as normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva, nem, muito menos, de retirar esse cartão; trata-se, isso sim, de apreciar e julgar a relevância da apreciação e julgamento que comprovadamente o próprio árbitro fez, formalmente e em sede de sancionamento disciplinar, sobre a correção dessa exibição, para considerar, ou não, preenchidos os elementos do tipo sancionatório constante do artigo 164.º, n.º 7, do RDLPFP, uma norma que é independente e está para além das regras do jogo em que a prática efetiva da competição em causa se traduz” .
O TAD veio, pois, a considerar que tinha jurisdição sobre a questão em apreço, uma vez que esta não podia ser considerada excluída pelo n.º 6 do artigo 4.º da sua Lei. Para fundamentação desta decisão considerou “quatro momentos” metodológicos:
“Desde logo, na previsão da norma do artigo 4.º, n.º 6, da Lei do TAD subsumem-se as «questões emergentes de normas técnicas e disciplinares», independentemente do acolhimento formal de tais normas. Valerá, portanto, a natureza, a essência, a substância das mesmas, na indicação do seu conteúdo técnico e disciplinar.
Depois, tais normas têm de respeitar «à prática da própria competição desportiva». O facto de o elemento literal se referir a “competição desportiva” e o confronto com aquele anterior n.º 3 do artigo 18.º da Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto, que se referia a «leis do jogo» a par da referência a «organização das respetivas competições», permite concluir que na «prática da própria competição desportiva» pode não caber apenas o «jogo» em sentido estrito, mas também a própria «competição» em que o primeiro se integra. Fulcral é que se trate de normas técnicas e disciplinares respeitantes «à prática» efetiva, seja do jogo, seja da competição.
Em terceiro lugar, temos de estar perante normas técnicas e disciplinares «diretamente» respeitantes a essa prática. Este advérbio de modo é absolutamente determinante para assinalar a exigência de uma postura interpretativa muito criteriosa, senão mesmo restritiva, na determinação/concretização, em cada caso, das questões que podem integrar a previsão do artigo 4.º, n.º 6, da Lei do TAD. Não basta, pois, uma relação indireta e/ou mediata das normas técnicas e disciplinares em causa com a prática efetiva do jogo ou da competição.
Por fim, desta previsão do artigo 4.º, n.º 6, da Lei do TAD devem excluir-se, pela sua própria natureza, as questões que contendam com direitos fundamentais, direitos indisponíveis ou bens jurídicos protegidos por outras normas jurídicas para além dos estritamente relacionados com a prática desportiva, como as infrações à ética desportiva (maxime, dopagem, corrupção, violência, racismo, xenofobia e intolerância), algo bem assinalado, entre outros, naqueles Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 10 de setembro de 2008 [no Processo n.º 0120/08] e de 21 de setembro de 2010 [no Processo n.º 0295/10], naqueles outros Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 13 de outubro de 2011 [no Processo n.º 06925/10], de 6 de dezembro de 2017 [no Processo n.º 2141/06.1BELSB] e de 24 de maio de 2018 [no Processo n.º 192/14.1BEPDL], bem como no Acórdão do TAD no Processo n.º 27- A/2016” .
A chave para a decisão do TAD resulta de que para o Colégio Arbitral “o ponto determinante é que, se tais “sanções automáticas” têm origem em factos ocorridos durante os jogos e logo apreciados e decididos pelos próprios árbitros, elas estão para além de tais factos e só com estes se relacionam/conexionam de modo mediato (por emergirem de regulamentação específica) e indireto (por implicarem um procedimento administrativo-sancionatório particular)” . Eis aqui um exemplo claro de como pode ser intricado o processo de delimitação operado pelo n.º 6 do artigo 4.º da Lei do TAD, ou seja, a distinção entre o exercício de competências jurídico-administrativas ou jurídico-privadas na modalidade de “regras do jogo”.
Os exemplos supra apresentados demonstram a necessidade de procurar melhorar quer as disposições previstas no artigo 44.º/1 do RJFD e no artigo 4.º/6 da Lei do TAD, quer os critérios jurisdicionais da sua aplicação, atendendo a um propósito de redução da vagueza. Se parece difícil proceder a esta parametrização através de uma norma legal, dada a porosidade das questões abrangidas, como demonstra o segundo caso que damos supra como exemplo, não parecem restar dúvidas que caberá aos tribunais, avultando aqui o TAD, definir uma jurisprudência de parâmetros de aplicação aos casos contidos no n.º 6 do artigo 4.º da sua Lei, que crie confiança no sistema divisado pelo legislador, que se apoie num princípio de auto-contenção sempre que as matérias a decidir tanjam com a aplicação das “regras do jogo”, e que se oriente para a determinação dos casos em que a interposição de princípios fundamentais do ordenamento português obrigue à sindicância jurisdicional das normas desportivas e da sua aplicação . Só deste modo é cumprido plenamente o desiderato da previsão do estatuto de utilidade pública.
Considerações finais
O atual regime da utilidade pública desportiva procedeu à previsão de uma cláusula de qualificação de competências jurídico-administrativas próprias. Essa qualificação pode ser feita em relação a competências que anteriormente estavam integradas na capacidade jurídico-privada das federações desportivas, como pode ser feita em relação a competências que o legislador atribua ex novo às federações desportivas. Fica assim salvaguardada toda a atividade federativa que não assente no exercício de uma competência qualificada como jurídico-administrativa. Aqui, para além de aspetos de organização interna, inclui-se a quase totalidade da importante área da definição das regras do jogo no âmbito mais vasto da regulação global das modalidades.
Por efeito do próprio RJFD a emissão de normas e a prática de atos que respeitem à regulamentação dos quadros competitivos da modalidade bem como o exercício da ação disciplinar encontram-se sob a égide do direito administrativo. A estes domínios acrescem outros pautados por diversos diplomas legais. A boa aplicação deste direito administrativo deve conformar-se com o princípio geral da tutela jurisdicional efetiva e, como tal, de entre as matérias que consubstanciem o exercício dessa competência (e mesmo nos casos de juridificação administrativa de regras do jogo) o sistema jurídico obriga a uma ponderação adequada das normas que permitam a exclusão do escrutínio jurisdicional das normas e decisões das federações, devendo entender-se que apenas as decisões que digam respeito a condutas ocorridas na prática de uma modalidade e que com ela mantenham conexão direta e não autónoma, podem eximir-se ao controlo jurisdicional, onde avulta o labor do TAD.