Liberdades fundamentais: posição jurídica e contextualização no âmbito dos «modelos de direitos fundamentais»
Introdução e posições jurídicas
A compreensão do sentido e alcance da liberdade de expressão no contexto desportivo pressupõe a prévia delimitação conceptual de «direito fundamental», a exposição logicamente estruturada das posições jurídicas atribuídas e, por fim, a esquematização dos vários modelos de direitos fundamentais adoptados pela doutrina e pela jurisprudência.
Numa formulação sumária, embora controversa, tem sido defendido que os direitos fundamentais correspondem a posições jurídicas de vantagem atribuídas a todos ou a uma certa categoria de destinatários por normas de hierarquia constitucional que, conexionando-se em maior ou menor medida com a dignidade humana, são genericamente dirigidos ao (ou oponíveis contra o) Estado lato sensu(1) (2) (3).(4) (5)
Há muito que o conceito de direito (e, por inerência, de direito fundamental) se descreveu como ambíguo (6) (7). Por um lado, na variante da liberdade fundamental, o direito fundamental corresponde a uma posição jurídica decorrente de uma norma constitucional permissiva, atributiva ao titular da discricionariedade de optar entre realizar ou abster-se de realizar uma determinada acção. Por outro lado, na variante de direito a algo (ou direito-pretensão), o direito fundamental pode reportar-se a deveres dirigidos resultantes de normas - impositivas de uma determinada acção ou proibitivas da realização daquela - que impendem sobre terceiros a respeito da prestação de um certo serviço ou bem (i.e., geralmente, mas não exclusivamente, a cargo do Estado). Neste último caso, o titular do direito a algo tem direito à prestação como consequência correlativa do dever dirigido que impende sobre o destinatário da imposição ou proibição - normalmente, o Estado .
Os direitos a algo podem implicar logicamente o direito a uma prestação positiva fáctica (e.g., o dever constitucional de providenciar cuidados médicos), o direito a uma prestação positiva jurídica (e.g., o dever constitucional de aprovar um regime jurídico que compreenda um determinado salário mínimo), o direito a uma omissão fáctica (e.g., o dever constitucional de abstenção de prejudicar, em termos empíricos, o direito ao trabalho) ou o direito a uma omissão jurídica (e.g., o dever constitucional de omitir a edição de regimes jurídicos que afectem desproporcionalmente o núcleo do direito à educação).
Embora a delimitação rigorosa das fronteiras das posições jurídicas permaneça uma questão em aberto, as dúvidas não surgem tanto a respeito do correlativo dos direitos a algo - que são, em termos mais ou menos consensuais, configurados como deveres dirigidos -, mas sim do correlativo das liberdades, matéria relevante para o tema que se aborda no presente artigo (8) (9) (10) (11) (12).
É pouco claro se o dever de terceiros se absterem de interferir em liberdades fundamentais é uma consequência lógica da posição jurídica de liberdade per se. Dito de outro modo, o dever de abstenção de interferência - que impenderia sobre terceiros e que, por sua vez, seria dirigido ao liberty-holder - é tudo menos uma evidência (13). Em todo o caso, e sem pretensões de exaustividade do assunto na economia deste artigo, parece óbvio que o destinatário de uma norma permissiva que consagra a liberdade fundamental x tem o direito às condições fácticas necessárias para ter a oportunidade de realizar a liberdade a x. Em termos explicativos, dir-se-á que quem tem liberdade para realizar a conduta x terá de ter prima facie direito às - e os demais terão de ter prima facie o dever de não afectar as - condições fácticas necessárias, sem as quais a liberdade se tornaria espúria . Assim, e a título de exemplo, a liberdade de imprensa pressupõe necessariamente que os órgãos de comunicação social não sejam controlados pelo Estado e a liberdade religiosa pressupõe, em certa medida, um direito às condições necessárias para livremente professar um credo.
Em suma, o liberty-holder, para ter oportunidade de realizar uma liberdade «constitucionalmente protegida», terá necessariamente de beneficiar, directa ou indirectamente, de:
uma abstenção de interferência de terceiros, na medida em que tal omissão seja conditio sine qua non do exercício da liberdade fundamental;
a adopção de condutas positivas (que geralmente impendem sobre o Estado), na medida em que tais acções positivas sejam uma conditio sine qua non do exercício da liberdade fundamental (14).
Modelos de direitos fundamentais
Vários «modelos de direitos fundamentais» - alguns antagónicos entre si, quanto a vários aspectos - têm sido trabalhados pela teoria e jurisprudências constitucionalistas como pressupostos teóricos da aplicação de normas de direitos fundamentais a casos concretos (na terminologia norte-americana, a adjudication de direitos fundamentais). Em termos gerais, estes modelos resultam de enquadramentos de referência que salientam específicas características (i) quer da estrutura das normas de direitos fundamentais, (ii) quer da limitação de direitos fundamentais pela edição de legislação parlamentar ou governamental, (iii) quer do específico processo de «adjudicação» de direitos fundamentais.
De entre os vários modelos de direitos fundamentais, quatro devem ser mencionados: a teoria interna, a teoria externa e, posteriormente, a Prinzipientheorie (um subtipo de teoria externa) e a teoria dos rights as trumps. A Prinziepientheorie, tornada famosa por Robert Alexy, é um subtipo de teoria externa e tem ganho progressivamente aderentes, embora mais ao nível da exposição teórica do que no plano da aplicação prática (15). Distintamente, o modelo rights as trumps, desenvolvido por Ronald Dworkin, ainda que não seja totalmente incompatível com a Prinzipientheorie , deve ser mencionado por descrever os direitos fundamentais como interesses tão fortes, tanto do ponto de vista jurídico como do ponto de vista moral, que o Estado simplesmente erraria se os subvertesse em favor de uma maioria democraticamente legitimada (16).
Antes de uma exposição mais detalhada sobre a Prinzipientheorie e o modelo rights as trumps, deve ser traçada uma linha divisória entre a teoria interna e a teoria externa. A linha demarcadora assenta na temática da limitação de direitos e leva a aproximações práticas totalmente distintas, dependentes dos pressupostos teóricos adoptados por cada um. Só após a compreensão dessa demarcação faz sentido a exposição da Prinzipientheorie e do modelo rights as trumps.
A teoria externa
A teoria externa pressupõe que os direitos fundamentais, entendidos lato sensu, como qualquer tipo de direitos, são limitáveis(17). A limitação de direitos fundamentais, por sua vez, pressupõe a compreensão de dois conceitos:
o de posição prima facie, no sentido de que as posições jurídicas conferidas por normas de direitos fundamentais não são definitivas, estando sujeitas a potenciais limitações externas;
o de limitação das posições jurídicas prima facie, protagonizadas pelos conhecidos normative defeaters; a limitação a posições jurídicas prima facie pode ocorrer através da afectação do âmbito de destinatários da norma, do âmbito da acção regulada pela norma ou do conjunto de ocasiões em que a acção pode ser praticada.
De acordo com a teoria externa, a resolução de problemas de direitos fundamentais pressupõe a adopção de dois passos distintos.
Em primeiro lugar, é necessário extrair a norma jurídica do respectivo enunciado através de um processo de descodificação semântica, abstraindo-se da eventual aplicação de outras normas ao caso (i.e., sem consideração pela implicação sistémica da norma, na sua conjugação com as demais normas convergentes no caso). Essa norma é atributiva ao respectivo destinatário de uma posição jurídica prima facie.
Em segundo lugar, importa perceber, então, se outras normas de direitos fundamentais são aplicáveis ao caso e se as mesmas conflituam com a primeira. Se tal ocorrer, é possível que a norma de direitos fundamentais de partida, aplicável prima facie ao caso, seja derrotada por outra norma de direitos fundamentais conflituante. Por outro lado, é possível que normas infraconstitucionais, editadas por autoridades legislativas (e, subsequentemente, num recorte mais fino, por normas regulamentares), já tenham limitado posições prima facie concedidas por normas de direitos fundamentais, favorecendo posições prima facie concedidas por outras normas de direitos fundamentais. Nesse caso, a produção da norma infraconstitucional consubstanciará o resultado de uma ponderação abstracta definitiva (i.e., de uma ponderação realizada pela autoridade normativa, ao tempo da produção de normas, entre as referidas normas de direitos fundamentais) (18), pelo que importará apurar se a norma infraconstitucional, que opera como uma escolha conflict-solver das normas de direitos fundamentais conflituantes, respeita os critérios formais, procedimentais e substanciais do sistema normativo de direitos fundamentais, pontificando a análise sobre a (des)proporcionalidade da restrição .
A teoria interna
De modo radicalmente distinto, a teoria interna pressupõe que as posições jurídicas conferidas por normas de direitos fundamentais estão determinadas ab initio e delimitadas com fronteiras precisas, apuradas através de operações cognitivas de interpretação . Essas fronteiras não são delineadas através de limites externos decorrentes de outras normas, mas através dos chamados limites imanentes. A revelação destes limites é alcançável através da interpretação, não tendo qualquer cabimento, nesta sede, o conceito de limitação externa: trata-se apenas de determinar se o âmbito aparente do direito é co-extensivo com o verdadeiro âmbito do direito.
Ao invés de as normas produzidas pelo legislador serem percepcionadas como uma escolha ou uma ponderação abstracta, segundo esta teoria, as normas infraconstitucionais limitar-se-iam a revelar o verdadeiro âmbito das normas de direitos fundamentais. Por outro lado, os eventuais conflitos entre normas constitucionais seriam meramente aparentes, dissipando-se após a delimitação do âmbito de protecção da norma. Assim, neste último caso, de acordo com a teoria exposta, a norma que consagra a liberdade expressão poderia não ser aplicável a um caso em que fossem proferidas afirmações falsas e injuriosas. Ao invés de se estar perante um eventual conflito entre disposições constitucionais - a que consagra a liberdade de expressão e a que consagra o direito à honra, podendo uma actuar como normative defeater da outra -, apenas seria aplicável à referida hipótese a norma que consagra o direito à honra. Não existiria conflito algum entre essa norma e a que consagra a liberdade de expressão, uma vez que esse específico exercício não estaria coberto pelo âmbito de protecção da norma (19).
Não custa compreender, com base nesses pressupostos, que a teoria interna esteja progressivamente a perder aderentes, dado que se tem demonstrado incapaz de contradizer as críticas formuladas, quer à teoria cognitiva da interpretação constitucional na qual assenta - uma teoria que sustenta que é possível determinar o verdadeiro significado de um enunciado constitucional (20) -, mas também (e especialmente) a objecção segundo a qual esta teoria simultaneamente encapsula e escamoteia a ponderação entre normas de direitos fundamentais (sem lhe fazer qualquer alusão, do mesmo passo que as hierarquiza), no âmbito de um processo opaco de interpretação levado a cabo por decisores constitucionais, legislativos e judiciais, que se demonstra muito pouco apto para o escrutínio democrático (21).
Apresentadas as ideias essenciais das duas teorias, importa constatar que qualquer uma das duas tem sido adoptada por diversos autores em termos não exactamente coincidentes com o seu sentido arquetípico e puro . Aliás, por vezes, e de forma não inteiramente coerente, as construções de modelos de direitos fundamentais apresentadas comportam postulados de ambas as visões. Parece ser este o caso de Vieira de Andrade, ao dividir as hipóteses de limitação dos direitos fundamentais em quatro situações distintas:
a delimitação do âmbito de protecção constitucional do direito, alcançável mediante interpretação e responsável por restringir à partida o âmbito de protecção da norma que prevê o direito fundamental, excluindo os conteúdos que possam considerar-se em abstracto constitucionalmente inadmissíveis;
as restrições legislativas, que apenas operariam nos casos expressamente previstos na Constituição, de acordo com o regime previsto no respectivo n.º 2 do artigo 18.º;
as leis harmonizadoras, que consagram, de forma geral e abstracta, soluções ou critérios para resolução de conflitos, visto não estarem constitucionalmente autorizadas a restringir direitos;
a resolução de conflitos entre direitos em casos concretos .
Embora Vieira de Andrade rejeite expressamente “um modelo «pré-formativo», que sustente a recondução à hipótese normativa constitucional de todas as limitações possíveis (…) (nos termos da chamada «teoria interna»)”, acaba por aderir aos postulados desta visão, afirmando também que “[p]referimos, por isso, considerar a existência de limites imanentes implícitos nos direitos fundamentais, sempre que (e apenas quando) se possa afirmar, com segurança e em termos absolutos, que não é pensável em caso algum que a Constituição, ao proteger especificamente um certo bem através da concessão e garantia de um direito, possa estar a dar cobertura a determinadas situações ou formas pensáveis do seu exercício” .
Assim, o autor defende uma posição segundo a qual - e ainda que apenas em circunstâncias particulares - a força compressora do âmbito de aplicação de uma norma não é protagonizada por um normative defeater, cabendo esse papel ao intérprete-aplicador aquando da interpretação do enunciado normativo. Ainda que o reconhecimento de limitações externas configure uma cedência à teoria externa, a manutenção da noção de limites imanentes - conceito oriundo da teoria interna -, e a preferência pela via explicativa que coloca a tónica na tarefa interpretativa de delimitação do âmbito de protecção da norma consubstanciam uma adesão aos pressupostos teóricos da teoria interna.
Repare-se que esta posição - de natureza híbrida, por fundir dois modelos explicativos tidos por inconciliáveis - não constitui uma excepção na doutrina portuguesa sobre o tema. Mesmo autores como Jorge Miranda e Jorge Pereira da Silva, que rejeitam expressamente a teoria interna, admitem a “demarcação de um determinado direito, com o objetivo de excluir dele aquelas condutas ou pretensões que manifestamente não merecem tutela constitucional - operação que é realizada no plano interpretativo, com base nos subsídios interpretativos disponibilizados pela Constituição, mas com prováveis projeções legais (…)” (22). Estes autores partem explicitamente do pressuposto de que é possível rejeitar a teoria interna afastando-se, em simultâneo, a denominada de tese irrestrita ou ampla da previsão normativa. No seu entendimento, a referida tese - corolário da distinção forte entre regras e princípios e da consequente qualificação das normas de direitos fundamentais como princípios - conduziria a “situações juridicamente claudicantes”, na medida em que “potencialmente tudo são conflitos jusfundamentais carecidos de ponderação e, em última análise, verdadeiras restrições”, “fechando a possibilidade de uma exclusão prévia do âmbito de proteção do direito de condutas e pretensões que claramente não merecem qualquer tipo de tutela constitucional” .
Por outro lado, Jorge Reis Novais, embora se arrogue a defesa de uma variante da teoria externa, constrói a sua teoria em torno do intrincado conceito de reserva imanente de ponderação. A dimensão imanente da ponderação parece pressupor que o conflito da norma a ponderar é necessário (imanente ou inato) e não contingente, quando a realidade demonstra que, por exemplo, a liberdade de expressão se pode aplicar sem ponderação, quando outra norma de direito fundamental não vem ao caso. Por outro lado, e a título de consequência, a tónica dessa imanência é colocada individualmente na estrutura ou posição de cada norma de direito fundamental individualmente considerada e não nas implicações sistémicas da mesma, na relação concorrencial ou conflitual com outras normas do sistema (23).
A Prinzipientheorie
A Prinzipientheorie é o moderno ex libris da teoria externa. Assenta numa teoria «forte» de distinção das normas de direitos fundamentais entre princípios e regras e na definição rigorosa do subsequente método de ponderação entre normas conflituantes (24). A teoria é construída sobre a famosa distinção lógica de Dworkin entre regras e princípios, focada em predicar aos princípios uma dimensão específica de peso e em considerar que as regras são comandos definitivos que se aplicam, fora nos casos de invalidade ou excepção, come what may . A Prinzipientheorie pretende calibrar essas afirmações de Dworkin - algumas incorrectas, e.g., a definitividade das regras, sem consideração pela sua derrotabilidade em determinadas circunstâncias -, sustentando que:
as regras se aplicam a algo determinado, são usualmente comandos definitivos de modo all or nothing e a sua forma de aplicação é a subsunção;
os princípios são comandos a optimizar (dado que exigem que algo seja realizado na sua máxima extensão fáctica e juridicamente possível), estão sujeitos a uma aplicação gradual (de mais ou menos) e consubstanciam meras razões contributivas para a acção, dado que a sua forma de aplicação é a ponderação (com normas conflituantes) (25).
A Prinzipientheorie não pode ser totalmente compreendida sem recurso ao princípio da proporcionalidade - i.e., o princípio que regula a relação entre «meios» e «fins» - em cenário de conflito entre direitos fundamentais. Sustenta-se que, para ser constitucionalmente legítima, uma medida legislativa que determine uma limitação normativa a um direito fundamental deverá passar os testes, sequenciais e eliminatórios, da adequação, necessidade e proporcionalidade stricto sensu. Este último teste espelha o exercício de ponderação entre o princípio que suporta a limitação normativa ao direito fundamental (Pj) e o princípio que se lhe opõe (Pi). O exercício ponderatório assenta nas duas leis da ponderação de Alexy que subjazem à fórmula do peso: (i) a lei substantiva da ponderação, segundo a qual quanto maior for o grau de não satisfação de um princípio, maior a importância de satisfazer o princípio conflituante; e (ii) a lei epistémica da ponderação, segundo a qual quanto maior a interferência num princípio, maior deve ser a fiabilidade dos pressupostos empíricos em que essa interferência assenta(26).
A fórmula do peso da Prinzipientheorie não é, como se verá, uma fórmula que magicamente reporta o resultado de uma ponderação entre normas conflituantes de direitos fundamentais. É, distintamente - e daí o equívoco subjacente às várias críticas formuladas -, um enquadramento racional que procurar delimitar fronteiras e parâmetros para determinar o peso relativo concreto entre dois princípios conflituantes, Pi and Pj(27) (28) (29) (30).
O modelo rights as trumps
Embora o reconhecimento quase universal da sua sofisticação, a Prinzipientheorie - baseada na distinção marcada entre posições jurídicas prima facie pré-ponderação e posições jurídicas all-things-considered pós-ponderação - levantou inúmeras críticas a respeito de um alegado pressuposto de «tudo ponderar», nomeadamente ao pressupor a comparação de peso entre direitos fundamentais que, de acordo com um determinado ponto de vista, simplesmente não devem ser ponderados. Em apoio desta visão, o enquadramento metafórico dos direitos fundamentais como trunfos, difundido por Ronald Dworkin, embora anteceda cronologicamente a Prinzipientheorie, tem revivescido para sustentar que determinados direitos fundamentais se encontram tão próximos da dignidade da pessoa humana que, para referir as palavras de Ronald Dworkin, devem simplesmente transcender o “tipo de argumento relativista de trade-off que geralmente justifica a acção política” (31) (32). Na metáfora, o processo democrático e deliberativo é descrito como um jogo de cartas no qual os direitos fundamentais são cartas de trunfo, ou seja, cartas que ganham a quaisquer cartas opositoras dado que simplesmente são de um ranking diferente .
Independentemente da discussão mais ampla sobre se a derrotabilidade é uma propriedade essencial de normas jurídicas (incluindo as constitucionais) (33) (34), ou do relativismo filosófico como pré-condição da democracia (35), tem sido sustentado que, por vezes, os custos colectivos de um determinado direito fundamental consagrado na Constituição - embora não necessariamente os custos de meros interesses colectivos ou sociais - deve simplesmente ser suportado pela sociedade em geral. Esta visão liga-se, no contexto norte-americano, à protecção quase sagrada da First Amendment (liberdade de expressão), tal como aplicada pelo Supreme Court. Na visão de Dworkin, por ser co-constitutiva da democracia liberal, a liberdade de expressão deve ser protegida ao ponto de admitir que até os negacionistas do holocausto devem ter liberdade opinativa, por mais desprezível que a sua afirmação possa soar (36).
É discutível se o modelo rights as trumps é incompatível com a Prinzipientheorie - ou, pelo menos, com a maioria das exigências desta última. Em termos estritamente técnicos, o modelo rights as trumps parece trivial quando pressupõe a prevalência de normas constitucionais sobre legislação que as contradite. Numa apreciação triangular da constitucionalidade de normas legislativas - i.e., o caso em que uma medida legislativa limita um direito fundamental em favor de outro - o modelo rights as trumps, embora filosoficamente sofisticado, pouco mais faz do que adicionar importância ao peso abstracto de um direito fundamental sobre outro: aquele que é um trunfo maior.
A liberdade de expressão: aspectos fundamentais
Enunciado e conteúdo prima facie da norma
Nos termos do n.º 1 do artigo 37.º da Constituição, «[t]odos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio (…). A distinção entre expressão e divulgação é pouco clara: parece, todavia, que, com base na diferenciação entre o universo de destinatários e a intenção subjacente a cada uma das acções, a expressão pressupõe a divulgação, mas não vice-versa. Em todo o caso, e deixando de lado a acção de divulgar, é consensual que a norma em causa consagra uma posição jurídica de liberdade quanto à acção genérica expressar-se.
A liberdade de expressão é uma liberdade de todos e para todos (e não de alguns e para alguns), conclusão reforçada pela leitura do n.º 1 do artigo 12.º da Constituição . A referência não é pleonástica, face ao que por vezes se assiste empiricamente: a definição de rankings de titulares, seja em função de meio económico, cultural ou social, seja em função da profissão, seja - talvez o pior - em função do prognóstico que alguns fazem sobre a qualidade da expressão de outros(37).
Muito contrariamente, além de a «qualidade da expressão» ser irrelevante para a liberdade do seu exercício, facto é que a profissão, o meio cultural ou a «posição social» do locutor, entre outras, - embora possam, em determinados casos, consubstanciar um factor relevante numa ponderação com normas conflituantes - não são determinantes da delimitação do conteúdo prima facie do direito. Entender-se abstractamente que o discurso de um académico reputado é mais livre do que o de um desportista - porque, eventualmente, será estatisticamente melhor, de acordo com um qualquer critério - é ser presa fácil do erro da indução.
Não está em causa apenas a específica função da liberdade sob o pano de fundo da impossibilidade sincrónica de definir o bom ou o mau do discurso (e.g., o discurso de Galileu foi, à data, mal recebido). É sabido que a censura de discursos incómodos ou fracturantes no passado teria, com elevada certeza, impedido o progresso social. Mas trata-se de mais do que isso: a própria democracia, na relativização pluralista de verdades dogmáticas que pressupõe, impede uma apreciação (ainda para mais, imediata) do conteúdo do discurso que não infrinja - ou não infrinja suficientemente - posições jurídicas fundamentais contrapostas.
Se a renúncia a um critério absoluto de verdades, ditado por elites esclarecidas, é condição da democracia liberal, não o é menos a moral agency, enquanto capacidade de um indivíduo livre realizar juízos morais baseados numa determinada noção de certo ou errado e, subsequentemente, ser responsabilizado (accountable) por esses juízos. Como Dworkin sustentou, “each individual’s having a sphere of independent decision-making around moral issues is a precondition of democracy itself, and that freedom of expression is closely tied to facilitating that sphere”(38). A proibição de censura da expressão prima facie livre é, nessa medida, uma proibição geral, oponível quer ao Estado, quer - nos termos do n.º 1 do artigo 18.º da Constituição - aos demais cidadãos, com particular enfoque nos «poderes sociais» (e.g., igrejas, partidos, organizações profissionais, empresas, federações desportivas, etc.) (39).
Significa isto uma adesão à concepção extrema segundo a qual até os holocaust deniers têm direito à expressão dessa ideia? Não necessariamente, pelo facto de uma posição jurídica prima facie não equivaler a uma posição jurídica all things considered e algum «parâmetro gradual» de certeza deverá servir para a entidade democraticamente legitimada (o juiz) definir limites. A censura constitucionalmente proibida, pelo n.º 2 do artigo 37.º da Constituição, é uma censura abstracta, previamente determinada e content-independent. Não se equivale aos limites da liberdade de expressão, precisamente os limites, a aferir casuisticamente, que são pressupostos pelas sanções constitucionalmente previstas nos termos do n.º 3 do mesmo artigo. Como Schauer afirma, o argumento de não cortar possíveis fontes de conhecimento ou evolução pela raiz, através da censura, é falacioso: “to cut off access to possible knowledge is undoubtedly a harm, But the question to be asked is whether we should take a large risk in exchange for what may be a minute possibility of benefit. Unfortunately, we cannot be sure we have properly weighed the harms and benefits unless we know what benefits the suppressed opinion might bring. And this is impossible to assess so long as that opinion is suppressed. Therefore we are merely guessing when we suppress; but we are also guessing when we decide not to suppress”(40). O juízo probabilístico inerente ao grau de certeza empírica do «mal» (uma metáfora para a interferência em direitos fundamentais conflituantes com a liberdade de expressão) joga aqui um papel fundamental. Mas, como se verá, isso não é outra coisa senão a antecipação, por Schauer, da variável da fiabilidade empírica (a variável «R»), subjacente à ponderação sustentada na Prinzipientheorie.
Quanto ao meio de expressão, o mesmo é indistinto à luz da norma enunciada no n.º 1 do artigo 37.º da Constituição, assim como é indistinto aquilo que se veicula com a acção expressar-se. Como entendem José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira, em posição frontalmente contrária à teoria interna, o âmbito da liberdade - prima facie, acrescente-se - deve ser o mais extenso possível, de modo a englobar “opiniões, ideias, pontos de vista, convicções, críticas, tomadas de posição, juízos de valor sobre qualquer matéria ou assunto (questões políticas, económicas, gastronómicas, astrológicas) e qualquer que sejam as finalidades (influência da opinião pública, fins comerciais) e os critérios da valoração (verdade, justiça, beleza, racionais, emocionais, cognitivos, etc.)” . Todas estas acções específicas se reconduzem à acção genérica expressar-se(41).
Se a previsão da norma que consagra a liberdade de expressão abrange todas as acções específicas reconduzíveis à acção inespecífica expressar-se, então existem múltiplos casos genéricos enquadráveis no exercício da liberdade de expressão - e que, consequentemente, suscitam a aplicação desta norma. Por outras palavras, verifica-se uma instanciação da norma que permite a acção expressar-se tanto quando uma figura pública expressa uma posição ideológica, como quando um jornalista denuncia um caso de corrupção ou um artista plástico apresenta a sua mais recente instalação. O mesmo vale para a publicação de um livro de crónicas por um humorista ou a crítica a uma federação desportiva por um dirigente desportivo.
Assim, a consequência da delimitação prima facie dessa liberdade é, naturalmente - e como salientado acima -, o direito prima facie de todos os liberty-holders à abstenção proporcional de interferência nas condições logicamente necessárias para o exercício da liberdade de exprimir essas opiniões, ideias, pontos de vista, convicções, críticas, tomadas de posição, juízos de valor sobre qualquer matéria ou assunto. Tal implica também o direito prima facie à adopção proporcional de condutas positivas que consubstanciem uma conditio sine qua non do exercício dessa liberdade fundamental. Por fim, os destinatários do correlativo da liberdade - em particular do dever de abstenção de interferência -, como aludido acima, são, não apenas o Estado, mas também as pessoas físicas e colectivas privadas, nomeadamente as federações desportivas .
A liberdade de expressão no contexto desportivo: delimitação das questões
O presente estudo tem como foco o exercício da liberdade de expressão no contexto desportivo e, em especial, as normas infraconstitucionais que estabelecem uma ponderação abstracta entre normas de direitos fundamentais. Em face desta delimitação, não obstante a existência de outros casos paradigmáticos, serão detidamente analisados os que respeitam a críticas a arbitragens ou a condutas das federações desportivas. Contudo, reitera-se que o exercício da liberdade de expressão neste domínio não se cinge às referidas condutas. A título de exemplo, também no domínio do desporto se vislumbra uma dimensão política da liberdade de expressão. Questão diferente corresponde a saber se, tanto num caso como noutro, o ordenamento jurídico português integra normas que restringem essa liberdade. Nessa hipótese, cabe apurar se a restrição operada pelas referidas normas é admissível.
A crítica a arbitragens ou a condutas das federações desportivas é efectuada nos mais variados contextos e através de diferentes meios - tanto tem lugar imediatamente após o término dos jogos, nas conhecidas por flash interviews, sendo usualmente protagonizada pelos jogadores e treinadores, como ocorre em conferências de imprensa e nas redes sociais, contando com um círculo mais abrangente de emissores. Tratando-se de casos genéricos distintos com diferentes propriedades caracterizadoras, podem registar-se nuances no enquadramento jurídico que lhes é dispensado: não só podem suscitar a aplicação de diferentes normas jurídicas, como essas mesmas normas, ao restringirem normas de direitos fundamentais, podem suscitar juízos distintos a respeito da sua conformidade com a Constituição.
Das considerações tecidas anteriormente é possível retirar as seguintes conclusões:
a previsão da norma que consagra a liberdade de expressão abrange todas as acções específicas reconduzíveis à acção inespecífica expressar-se;
o preenchimento da previsão da norma que consagra a liberdade de expressão não impede o preenchimento da previsão de outras normas;
em certos casos, o preenchimento da previsão de outras normas constitucionais pelo caso, para além da extraída do n.º 1 do artigo 37.º da Constituição, poderá conduzir a um conflito normativo e, consequentemente, à prevalência das primeiras sobre a segunda (42) (43) (44) (45);
a norma que consagra a liberdade de expressão pode ser aplicável prima facie sem que tal ocorra num juízo all things considered ;
Em todo o caso, a aproximação da usualmente denominada de tese ampla não implica a elevação da liberdade de expressão a uma posição absoluta, um pouco à imagem da polarização na liberdade de expressão do modelo rights as trumps. Ainda que a protecção da liberdade de expressão seja «especial» em vários sentidos - desde logo face à liberdade geral consagrada no n.º 1 do artigo 26.º da Constituição -, a posição jurídica advém de uma norma jurídica que, como todas, é derrotável . Simplesmente, visto que a identificação de limites internos ao exercício da liberdade de expressão é insustentável, não encontrando respaldo na morfologia da norma - em particular, na previsão normativa -, deve adoptar-se a visão segundo a qual os referidos limites operam pela aplicação, ao mesmo caso, de outras normas (46). Se da aplicabilidade de diferentes normas ao mesmo caso surgir um cenário de conflito normativo, então a prevalência de uma das normas em detrimento da outra terá lugar através da aplicação de normas de resolução de conflitos ou do método da ponderação (47). Assim, a norma que consagra a liberdade de expressão poderá ser afastada na resolução do caso concreto - e, nessa hipótese, sê-lo-á não por existir um limite interno à sua aplicação, mas por, sendo aplicável prima facie, não o ser all things considered.
As conclusões precedentes relevam igualmente no cenário de restrição de um direito fundamental a favor de outra norma constitucional, mediante a criação de uma norma infraconstitucional. Neste caso, a restrição da norma de direito fundamental configura um limite externo e não um imite interno e prévio à consideração de outras normas do conjunto normativo. Importa, assim, aferir se esse limite externo ou restrição é constitucionalmente legítimo; a eventual desconformidade com a Constituição conduzirá à desaplicação da norma infraconstitucional e, consequentemente, ressuscitará a colisão entre a norma fundamental restringida e a norma constitucional que se pretendeu salvaguardar com a emissão da norma desaplicada (ou seja, a desaplicação implica a desconsideração da ponderação abstracta realizada pela autoridade normativa ao tempo da produção da norma). A referida colisão será resolvida através da ponderação e, uma vez mais, sendo prima facie aplicáveis duas normas ou mais (contrapostas), apenas uma regulará o caso all things considered. Este aspecto será detidamente analisado de seguida .
O regime constitucional de restrições: o defeated right, o defeater right e a proporcionalidade
O regime constitucional das restrições à liberdade de expressão
É uma conclusão lógica do que acima se referiu que, muitas vezes, a completa e simultânea «satisfacibilidade» - pese o neologismo - de todos os direitos fundamentais pertinentes num caso não é possível. A conclusão é ainda mais clara se se adoptar os pressupostos básicos da Prinzipientheorie, nos termos da qual as normas de direitos fundamentais que configurem princípios compreendem previsões que descrevem acções genéricas (como expressar-se) em ocasiões igualmente genéricas (em qualquer caso) e destinatários universais (todos), o que potencia a sobreposição de previsões com outras normas conflituantes .
A definição de parâmetros para as restrições à liberdade de expressão resulta quer do modelo de direitos fundamentais adoptado, quer da interpretação dos vários enunciados constitucionais - em particular, os enunciados do artigo 18.º da Constituição.
É quase um lugar-comum afirmar que a restrição deve ser proporcional, nos termos adiante descritos. Todavia, antes de avançar para esse ponto, é essencial analisar as várias condições positivadas na Constituição para essa restrição. Entre as normas constitucionais relevantes avultam:
a reserva de acto legislativo para a restrição normativa (primeiro segmento do n.º 2 do artigo 18.º e, especialmente, alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição);
a necessidade de previsão expressa da restrição (primeiro segmento do n.º 2 do artigo 18.º);
a sustentação da restrição noutros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (segundo segmento do n.º 2 do artigo 18.º);
o carácter geral e abstracto da restrição (primeiro segmento do n.º 3 do artigo 18.º);
a inexistência de efeito retroactivo das normas restritivas (segundo segmento do n.º 3 do artigo 18.º); e
a salvaguarda do núcleo essencial do direito fundamental restringido (terceiro segmento do n.º 3 do artigo 18.º) (48).
Não é este o local para ilustrar a impraticabilidade do regime constitucional de restrições - também ele composto por normas e, portanto, derrotáveis face a outras normas que com aquelas conflituem . Salienta-se apenas o seguinte:
o desrespeito da reserva de acto legislativo para a restrição normativa é frequentemente tolerado em vários casos - basta pensar no efeito restritivo de regulamentos de entidades reguladoras ou, no que ao caso interessa, de regulamentos de federações desportivas a respeito de liberdades de agentes desportivos, com mero apoio em normas legais de competência, sem critério restritivo ;
embora o n.º 3 do artigo 37.º pressuponha a existência de limites, são inúmeros os casos em que as restrições não são expressamente autorizadas pela Constituição ;
a imposição de carácter geral e abstracto das restrições não cobre as designadas intervenções restritivas, individuais e concretas, quer no exercício da função jurisdicional, quer no exercício da função administrativa, também elas pacificamente toleradas ;
frequentes vezes as restrições normativas de direitos fundamentais são inaptas para operar uma «harmonização» ou Praktische Konkordanz, resultando no sacrifício total de um direito fundamental face à prevalência de outro .
Para o caso vertente interessa especificamente a obrigação constitucional prevista no segundo segmento do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição: é que, se as restrições se devem limitar ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, tal significa necessariamente uma restrição temática dos fundamentos restritivos. Por argumento a contrario, tal significa que, à luz da Constituição (fonte exclusiva dos critérios de restrição a direitos fundamentais), a restrição a um direito fundamental apenas pode basear-se em:
argumentos jurídicos, ou seja, excluindo-se como fundamento restritivo legítimo quaisquer argumentos morais, de «natureza das coisas», filosóficos, políticos, económicos, estéticos, comerciais ou outros;
argumentos constitucionais, ou seja, excluindo-se como fundamento restritivo legítimo quaisquer argumentos jurídicos não reconduzíveis a normas atributivas de direitos ou âmbito de protecção de interesses constitucionais.
O regime constitucional descrito proíbe as restrições com fundamento-fantasma. Do mesmo modo que um corpo, na física, apenas pode ser constrangido por outro corpo, também uma norma atributiva de uma liberdade fundamental apenas poderá ser restringida por outra norma constitucional. A existência de uma total ou parcialmente defeated norm (à qual corresponde um defeated right ou uma defeated liberty) pressupõe necessariamente um defeater. E esse defeater terá de ser, por imposição constitucional, necessariamente uma norma jurídica e constitucional. A questão é particularmente importante a respeito da repartição do ónus argumentativo. Impende sobre quem argumenta a favor da limitação da liberdade de expressão o ónus de invocar a sede jurídico-constitucional da norma que fundamenta a restrição. Não o fazendo, não há como considerar a restrição constitucionalmente legítima.
Nas palavras de J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, a propósito das restrições não expressamente autorizadas, “[t]ais limites têm sempre de resultar da necessidade de conjugar ou compatibilizar os direitos fundamentais com outros direitos ou bens constitucionais. Por isso, não se pode recorrer a valores extraconstitucionais ou sem adequada densidade constitucional para justificar a introdução de restrições não expressamente autorizadas” .
Face ao exposto, e no que respeita especificamente ao contexto desportivo, o argumento do “prestígio da competição” não pode isoladamente fundamentar a restrição de direitos fundamentais; no limite, será atendível estritamente a título auxiliar de outros direitos fundamentais contrapostos à liberdade de expressão (e dependendo dos casos) . Esta posição tem sido, aliás - e ainda que não unanimemente -, defendida pela jurisprudência portuguesa, sufragando-se que “[a]tenta a natureza das funções em causa, é indiscutível que a honra e o bom nome dos árbitros estão indissociavelmente ligados à reputação e à credibilidade e integridade da competição desportiva em causa. Mas tal bem jurídico individualmente considerado (e não por referência a um bem jurídico pessoal in casu a honra, como sucedeu no acórdão recorrido) não tem a potencialidade de comprimir a liberdade de expressão” . Voltar-se-á à questão adiante.
A proporcionalidade stricto sensu e a fórmula do peso
Para ser substancialmente legítima, uma norma restritiva que limite uma liberdade prima facie como a liberdade de expressão deve passar os testes sucessivos e eliminatórios da adequação, necessidade e proporcionalidade stricto sensu.
De acordo com o primeiro teste (adequação), a medida restritiva que limite uma liberdade prima facie apenas será legítima se, com base numa prognose séria, aumentar as probabilidades de obter o fim que o fundamento jurídico-constitucional da restrição - assumindo que este existe, claro está - prossegue (e.g., ainda que limite a liberdade e a integridade física, a obrigação de ser vacinado constitui uma medida apta a obter uma melhor realização do direito à saúde).
De acordo com o segundo teste (necessidade), deverá ser feita uma selecção de entre as medidas adequadas para efeitos de isolar aquela que, considerando todos os factos, tem um melhor ratio ou saldo líquido à luz de uma análise custos-benefícios. Deve notar-se que nem todas as medidas restritivas pressupõem um grau invariante de efectividade (i.e. um grau de sucesso de adequação), pelo que o critério da necessidade não se deve focar necessariamente apenas na medida menos intrusiva (ou com menos «custos factuais»); antes deve assentar numa análise relativa e comparativa (e.g., a proibição de venda de tabaco configura uma medida desnecessária caso medidas de campanha adequadas e aumento de impostos configurem opções que, all things considered, prossigam eficazmente, com melhor saldo líquido entre custos e benefícios, o direito à saúde).
Por último, a medida legislativa isolada no teste de necessidade é ainda sujeita a um exercício ponderatório sob o pano de fundo das normas de direitos fundamentais em conflito (proporcionalidade stricto sensu) (49). É neste plano que releva a consideração da «cláusula de núcleo essencial», que proíbe a completa aniquilação de um direito fundamental à custa de outro, prevista no terceiro segmento do n.º 3 do artigo 18.º da Constituição.
Evidentemente, considerando que a questão é, em última análise, uma questão de lógica, e sem desprimor para a relevância da jurisprudência que se vai construindo em matéria de mínimos - da qual sobressai o Untermassverbot prinzip gerado pelo Bundesverfassungsgericht -, o núcleo essencial é sempre um núcleo essencial relativo, dependente do próprio juízo ponderatório, nunca um núcleo essencial absoluto . A análise é, portanto, casuística e depende das possibilidades fácticas e jurídicas de salvaguardar o mínimo de um direito fundamental. Ilustrativamente, no exercício da liberdade de expressão por agentes desportivos, no particular caso respeitante à expressão de mensagens políticas em camisolas na celebração de um golo, a resposta é binária: ou há permissão de expressão ou há proibição de expressão. Tertium non datur.
Sendo vários são os modelos de ponderação apresentados pela doutrina, e não cabendo no escopo do presente estudo a sua identificação exaustiva, opta-se pela apresentação do modelo alexyano da ponderação (50) (51). Apesar das críticas de que tem sido alvo, o mesmo consubstancia uma descrição mais ou menos adequada do exercício ponderatório . Para além das considerações tecidas supra para as quais se remete, de acordo com este modelo, o resultado da ponderação entre dois (ou mais) direitos fundamentais conflituantes deriva do quociente entre, de um lado, (a) o produto da importância de Pi, (b) o seu peso abstracto - um factor altamente discutível quando o conflito se gera entre normas de idêntica hierarquia (constitucionais) - e (c) a fiabilidade empírica das premissas assumidas como suporte das importâncias atribuídas aos dois factores anteriores (a e b) e, do outro, (d) o produto da importância de Pi, (e) o seu peso abstracto e (f) a fiabilidade empírica das premissas assumidas como suporte das importâncias atribuídas aos dois factores anteriores (d e e)(52).
Na fórmula do peso, Ii representa a intensidade da interferência em Pi. Ij representa a importância de prosseguir Pj. Wi e Wj representam o peso abstracto de Pi e Pj (se forem idênticos, anulam-se na equação). Por fim, Ri e Rj representam o grau de fiabilidade das premissas empíricas e normativas (i.e., o factor epistémico), em particular o grau de certeza das assunções. A classificação é levada a cabo metaforicamente, por Robert Alexy, com base numa escala triádica. As variáveis I e W poderão ser pontuadas como «leves» (20), ou seja, 1; «médias» (21), ou seja, 2; e sérias (22), ou seja, 4. A fiabilidade das premissas subjacentes, R, poderá ser pontuada como «certa» (20), ou seja, 1; «plausível» (2-1), ou seja, 0,5; e «não evidentemente falso» 2-2, ou seja, 0,25. A título de exemplo, numa ponderação entre liberdade de expressão e o direito à honra, se as premissas subjacentes ao impacto da afirmação na honra de um determinado visado forem baixas (e.g., 0,25), poderá ser o caso que apenas a única medida adequada e necessária para prosseguir o direito à honra seja derrotada pela liberdade de expressão.
Naturalmente, o aspecto crucial da fórmula do peso é a justificação das assunções subjacentes à atribuição de valores às variáveis. Para esse propósito, uma completa e consistente teoria da argumentação deve ser adoptada, com o mínimo de vieses cognitivos. Por exemplo, entre todos os demais, é necessário ter particular atenção em evitar (i) o confirmation bias, pelo qual se tem a tendência para interpretar informação factual e jurídica de modo a confirmar crenças ou entendimentos prévios, (ii) o focalismo, pelo qual se tem a tendência para sobre-confiar («ancorar») em informação factual ou dados jurídicos nos processos decisórios (usualmente a informação obtida em primeiro lugar) ou (iii) o conservadorismo, pelo qual se tem a tendência para rever insuficientemente crenças ou entendimentos prévios se deparados com nova informação factual ou jurídica (53) (54).
A aplicação de normas proibitivas de actos de expressão no contexto desportivo
Algumas categorias de normas proibitivas de actos de expressão
Existe, no contexto do ordenamento desportivo, uma panóplia de enunciados legais e regulamentares que, ao proibirem e sancionarem actos de expressão, configuram normas restritivas daquela liberdade constitucionalmente protegida. Numa parte, estes enunciados compreendem normas primárias proibitivas que, ao vedarem quaisquer tipos de uma categoria de actos de expressão e em quaisquer circunstâncias, abstraem das variáveis que determinam uma ponderação proporcional entre, de um lado, a liberdade de expressão e, do outro, o direito fundamental ou interesse constitucionalmente protegido contraposto. Noutra parte, os enunciados compreendem normas secundárias sancionatórias, isto é, normas que determinam consequências que se projectam sobre situações de incumprimento das normas proibitivas primárias que estas pressupõem. A separação entre enunciados proibitivos e enunciados sancionatórios nem sempre é totalmente clara. Todavia, é pacífico que, em condições de normalidade, uma norma secundária sancionatória pressupõe necessariamente (mesmo que implicitamente formulada) uma norma primária proibitiva ou impositiva.
Deve notar-se que a matéria relativa à interpretação e aplicação de enunciados sancionatórios por tribunais, judiciais ou arbitrais (e o seu juízo de inconstitucionalidade ou ilegalidade), ainda que também suscite a aplicação de normas de direitos fundamentais, requer fundamentalmente a aplicação de normas de direito penal e sancionatório, substantivo e processual. Já a matéria relativa à interpretação e aplicação dos enunciados primários proibitivos por tribunais, judiciais ou arbitrais - na sua veste de normas restritivas dos direitos fundamentais preteridos ou limitados - suscita essencialmente questões a respeito da aferição do respeito do regime constitucional de restrições, face à fiscalização difusa prevista no artigo 204.º da Constituição (55). É sobre estas questões, e não tanto sobre as questões de direito penal e sancionatório, que as linhas seguintes versam.
Entre tantas normas proibitivas de actos de expressão no contexto desportivo, pode utilizar-se, a título de exemplo, as previstas no Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol (doravante, «RDFPF»), aprovado ao abrigo do disposto no artigo 10.º, na alínea a) do n.º 2 do artigo 41.º e no artigo 52.º do Regime Jurídico das Federações Desportivas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de Dezembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 93/2014, de 23 de Junho, bem como na alínea a) do n.º 2 do artigo 51.º dos Estatutos da Federação Portuguesa de Futebol.
As categorias de normas proibitivas dividem-se, tendencialmente, em (i) normas relativas ao objecto das declarações; (ii) normas relativas ao conteúdo, propósito ou impacto das declarações e (iii) normas relativas ao modo de produção das declarações (i.e., as palavras e gestos usados). Sublinham-se as seguintes:
Normas sobre declarações sobre arbitragem, antes de jogo oficial;
Normas sobre ameaças e ofensas à honra, consideração ou dignidade;
Normas sobre uso de expressões ou gestos grosseiros, impróprios ou incorrectos.
No ponto (i), está em causa a proibição regulamentar de, por qualquer meio de expressão, através de meios de comunicação social ou outros, emitir declarações ou juízos pondo em causa a imparcialidade ou competência técnica da equipa de arbitragem ou dos observadores designados para o jogo que vai disputar, bem como a sua respectiva nomeação pelos competentes órgãos de arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol (doravante, «FPF»). A proibição desse tipo de declarações sobre uma arbitragem antes de jogo oficial consta dos artigos 75.º, 129.º e 152.º do RDFPF, respectivamente (em conjugação com os deveres enunciados no artigo 12.º do mesmo diploma), tendo a primeira norma como destinatários os clubes, a segunda norma como destinatários os dirigentes do clube e a terceira norma como destinatários os jogadores. O fundamento constitucional da restrição será, neste caso, não primariamente a tutela propriamente dita da honra dos visados (árbitros ou observadores), mas a salvaguarda do mérito, ética e verdade desportiva como traves-mestras dos valores do desporto . A dissuasão de comentários sobre parcialidade pré-jogos oficiais representa um meio para um fim que é o de evitar o condicionamento na arbitragem e supervisão de jogos oficiais que possa, através de um clima de enviesamento, impactar uma correcta e imparcial arbitragem da partida a disputar.
O exposto não significa que a proibição de declarações ou juízos, pondo em causa a imparcialidade ou competência técnica da equipa de arbitragem, apenas ocorra antes de um jogo oficial. A proibição da conduta referida também se verifica a posteriori, mas apenas na hipótese de essa imputação já representar uma ofensa à honra, consideração ou dignidade (i.e., apenas no cenário em que a imputação directa de «parcialidade» ou «incompetência» constitua uma ofensa à honra). Pressupõe-se, nesses casos, a aplicação das normas referidas em (ii), que proíbem através de qualquer meio de expressão, dirigindo-se a terceiros ou ao visado, formular juízo, praticar facto ou, ainda que sob a forma de suspeita, imputar facto ofensivo da honra, consideração ou dignidade da FPF, de órgãos sociais, de comissões, de sócios ordinários, de delegados da FPF, de árbitros, de observadores de árbitros, de cronometristas, de outro clube e respectivos jogadores, membros, dirigentes, colaboradores ou empregados ou de outros agentes desportivos no exercício das suas funções ou por virtude delas. A referida proibição consta dos artigos 77.º, 130.º e 153.º do RDFPF, respectivamente (em conjugação com os deveres enunciados no artigo 12.º do mesmo diploma), tendo a primeira norma como destinatários os clubes, a segunda os dirigentes de clubes e a terceira os jogadores.
Dito de outro modo, ao passo que a proibição de declarações ou juízos pondo em causa a imparcialidade ou competência técnica da equipa de arbitragem antes do jogo abstrai da imputação de características e propriedades aos visados que sejam ofensivas da sua honra - sendo apenas relativa ao objecto das declarações (i.e., o jogo a realizar), a proibição de declarações ou juízos pondo em causa a imparcialidade ou competência técnica da equipa de arbitragem após o jogo é já relacionada com o conteúdo das declarações e depende da associação dessas afirmações ao resultado de afectar a honra, consideração ou dignidade dos visados.
Como se vê, as condutas representadas nas normas indicadas no ponto (ii) extravasam largamente (embora incluam) meras declarações ou juízos pondo em causa a imparcialidade ou competência técnica da equipa de arbitragem. Na realidade, é possível ofender a honra, consideração ou dignidade de árbitros (excluindo agora os demais beneficiários do âmbito de protecção da norma) sem ser através de declarações ou juízos pondo em causa a imparcialidade ou competência técnica da equipa de arbitragem. Mas também não se exclui, como abaixo melhor se explicitará, que seja possível emitir declarações ou juízos pondo em causa a competência técnica da equipa de arbitragem - ou a imparcialidade de um desempenho -, sem que tal implique necessariamente ofender a honra, consideração ou dignidade de árbitros ou observadores.
Por fim, as normas indicadas em (iii) são normas que proíbem que antes, durante ou após a realização de jogo oficial se faça uso de gestos ou expressões grosseiros, impróprios ou incorrectos para com agente desportivo no exercício de funções ou por virtude delas ou espectador. Uma vez mais, a respectiva proibição consta dos artigos 138.º e 167.º do RDFPF (em conjugação com os deveres enunciados no artigo 12.º do mesmo diploma), tendo a primeira norma como destinatários os dirigentes de clubes e a segunda os jogadores.
Questões metodológicas na aplicação de normas proibitivas de actos de expressão
De entre os vários problemas que podem surgir na aplicação de normas proibitivas, devem salientar-se dois:
o problema da clarificação linguística de conceitos com margens de incerteza e da qualificação das propriedades do caso na hipótese normativa e;
o problema de aplicação (ou desaplicação) das normas proibitivas regulamentares quando a acção concreta sob análise se subsume à acção genérica prevista na norma regulamentar proibitiva mas, ainda assim, existam razões ponderosas para permitir a expressão proibida por essa norma regulamentar.
Embora surjam por vezes misturados, os dois problemas são, como se entende, analiticamente distintos. O problema da clarificação linguística relaciona-se com a interpretação do enunciado e com a «aplicabilidade interna» da norma proibitiva. Está, por um lado, em causa a descodificação semântica do enunciado e, por outro, a qualificação das propriedades do caso na hipótese normativa. Em suma, está em causa saber se a norma proibitiva é, ou não, aplicável ao caso (56).
O problema da eventual desaplicação de normas regulamentares está a jusante da clarificação linguística e da operação de qualificação: já se concluiu que a norma é internamente aplicável, pelo que a mesma é aplicável ao caso; procura-se agora concluir se, all things considered (i.e., considerando todos os factos relevantes e todas as normas internamente aplicáveis ao caso), a norma proibitiva será, ou não, definitivamente aplicada no caso. O segundo problema, da eventual desaplicação de normas proibitivas, é, portanto, um problema de aplicabilidade externa de normas, dado que, para que uma norma seja definitivamente aplicada no caso, não basta que a mesma seja internamente aplicável (i.e., que os seus pressupostos se preencham): é também necessário conjuntamente que (i) nenhuma terceira norma seja igualmente aplicável ao caso e (ii) essa(s) norma(s) não prevaleça(m) sobre a norma de partida, quer sob critérios de prevalência definidos no ordenamento (e.g., lex superior ou lex specialis) quer, à falta destes, segundo um juízo racional e proporcional de ponderação (57).
Questões de «aplicabilidade interna» de normas proibitivas de actos de expressão
As questões de aplicabilidade interna de normas proibitivas relacionam-se maioritariamente com a incerteza linguística das palavras utilizadas nos enunciados proibitivos, nomeadamente a sua vagueza (e.g., «honra», «competência técnica», «consideração» ou «dignidade»). Muito embora as palavras «honra» e «dignidade» compreendam significados concorrentes quanto ao seu sentido e apresentem uma franja incerta de denotação quanto às realidades que abrangem, parece haver uma clara diferença entre um acto de expressão que predica uma propriedade a um sujeito (e.g., «o árbitro x é parcial», «o árbitro x está ao serviço do clube y») e um acto de expressão que consubstancia estritamente um juízo de valor sobre um desempenho (e.g., «o penalty assinalado pelo árbitro x era inexistente» ou «a arbitragem de x prejudicou gravemente o clube y») (58).
A lesão do direito à honra pressupõe - e cresce em grau de intensidade com - a pessoalização da crítica, tanto da perspectiva da definição de um destinatário específico, como no que respeita ao conteúdo da afirmação. Neste último caso, tem-se em mente as expressões directamente atentatórias do sujeito enquanto tal. Inversamente, a lesão será tanto menor quanto mais objectiva for a crítica, o que ocorrerá quando o conteúdo da mensagem consistir na apreciação de um desempenho ou da execução de uma tarefa - e.g., a arbitragem de um jogo -, com a consequente secundarização do agente que a protagonizou .
Fora dos casos em que essa predicação de propriedades negativas a sujeitos ocorra, a «honra», «consideração» ou «dignidade» não pode constituir uma panaceia para a imunidade à crítica ou para a implementação de um determinado regime moral de prestígio de competição. Assim, se a liberdade de expressão compreende a permissão prima facie de emitir opiniões, pontos de vista, críticas, tomadas de posição, juízos de valor sobre qualquer matéria ou assunto, então os demais sujeitos - nomeadamente os «criticados» ou «avaliados» por esse juízo de valor - estão prima facie sujeitos ao exercício daquela liberdade pelo liberty-holder. Como acertadamente já se sustentou em decisão arbitral, “tratando-se de um direito subjetivo fundamental, a liberdade de expressão não se encontra funcionalizada a valores. Ou seja, a liberdade de expressão não tem uma função constitucional promotora de conteúdos vinculados pela «sensatez», «serenidade», «fair play», «contenção verbal» ou «manutenção do prestígio das competições” .
Mesmo para a questão interpretativa, isoladamente considerada, do conceito de «honra» e «dignidade» não é irrelevante considerar que as normas regulamentares proibitivas de actos de expressão constituem excepções à liberdade de expressão constitucionalmente prevista no artigo 37.º da Constituição. Se toda e qualquer atribuição de significado na interpretação jurídica se deve enquadrar no sentido literal, o caso da interpretação de enunciados de excepção a direitos fundamentais é, por maioria de razão, um caso em que tais limites literais se impõem (59). Assim, independentemente da avaliação do bom gosto, ou juízo de sensatez, a respeito das expressões utilizadas publicamente - a liberdade de expressão compreende a faculdade prima facie de veicular ideias e expressões insensatas -, não é necessariamente o caso que, com os juízos de valor acerca de um desempenho, se predique uma propriedade («parcial» ou «corrupto»), ou se impute facto ofensivo da honra, ao visado pelo conteúdo da expressão.
A título de ilustração da discussão, é duvidosa a adequação jurídica de uma argumentação que sustente que um juízo de valor formulado por um clube a respeito de desempenhos passados de um determinado árbitro - onde se afirma que o mesmo incorreu em vários erros técnicos, que se somam a outros na carreira, face aos quais o árbitro parece ter um problema com a imparcialidade - cai no âmbito da norma proibitiva de ofensa à honra. Não se nega a relevância de apurar uma tentativa de condicionamento com afirmações deste género, considerando os já habituais «pedidos» que clubes de futebol formulam a respeito do afastamento de determinados árbitros dos jogos em que esses mesmos clubes participam: mas aí o caso é já mais próximo da aplicação das normas proibitivas dos artigos 75.º, 129.º e 152.º do RDFPF do que dos artigos 77.º, 130.º e 153.º do RDFPF.
Embora a questão seja discutível, crê-se que a resposta jurídica não passará por salientar, nos termos em que o fez o nosso Supremo Tribunal Administrativo (doravante, “STA”), quando afirmou que “constituindo a imparcialidade e a isenção atributos que têm de ser intrínsecos às funções exercidas, não pode deixar de se considerar que o aludido texto põe em causa a integridade moral e o bom nome e reputação do agente desportivo em questão, além de se afectar a credibilidade e o prestígio da própria competição desportiva” . Além da extra-constitucionalidade (aliás, a extra-juridicidade) de alguns dos argumentos aduzidos pelo STA, o argumento estribado na premissa de que a imparcialidade e isenção são «atributos intrínsecos» às funções exercidas prova demais: além de constituir uma falácia de begging the question, tornaria simplesmente um qualquer agente desportivo do género imune à crítica, dado que tudo se reconduziria remotamente a um juízo sobre a imparcialidade ou isenção do mesmo.
O que importa apurar, em casos do género, é se afirmações - que, embora sugestivas, sejam em si dubitativas - equivalem a predicar a propriedade da «parcialidade» a um agente desportivo ou, por outro lado, traduzem um juízo de valor induzido a partir de desempenhos desportivos, no contexto em que o emissor crê haver verdade ou verosimilhança no substrato das suas afirmações .
A existência de uma base factual mínima é frequentemente elevada a factor relevante na resolução de questões jurídicas relativas ao exercício da liberdade de expressão, tendência para a qual contribuiu decisivamente a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (doravante, “TEDH”). Alertando para a distinção entre factos e juízos de valor, o TEDH esclarece que apenas os primeiros podem ser qualificados como verdadeiros ou falsos, sendo inviável a demonstração da exactidão dos segundos .
Nessa medida, exigir a prova da veracidade de um juízo de valor equivaleria, na visão do TEDH, à negação da própria liberdade de opinião, algo não admitido pelo artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (doravante, “CEDH”) (61). É neste contexto que surge o critério da base factual mínima: segundo o TEDH, os juízos de valor devem apresentar o mínimo respaldo factual, ancorando-se em factos, sob pena de serem excessivos. Contudo, esse conteúdo factual mínimo varia consoante as circunstâncias de cada caso . Desta forma, quanto mais factos sustentarem a opinião emitida - ainda que este juízo seja, num primeiro momento, estritamente subjectivo -, menos intensa será a lesão à honra decorrente da crítica efectuada. Contrariamente, a crítica não acompanhada pela invocação de factos é mais apta a revestir-se de um teor objectivamente difamatório.
A jurisprudência do TEDH tem sido paulatinamente adoptada pelos tribunais portugueses. Veja-se, a título de exemplo, o decidido pelo TCAS no Acórdão de 15 de Outubro de 2020, Processo n.º 53/20.5BCLSB, no qual se afirma que: «[n]ote-se ainda que as afirmações em causa são contextualizadas. O seu autor insurge-se contra o que entende constituírem erros fazendo alusão às concretas “faltas” indevidamente sinalizadas e às que ficaram por sinalizar, discordando, de forma frontal e acutilante das decisões tomadas pelos árbitros. Apesar de emitir um juízo sobre os erros e sobre quem dos mesmos beneficiou, as afirmações proferidas são justificadas (no sentido de explicadas), não podem considerar-se gratuitas ou puramente ofensivas» .
Questões de «aplicabilidade externa» de normas proibitivas de actos de expressão
Casos distintos dos casos de clarificação linguística e «qualificação» acima retratados, são os casos, porventura mais complexos, respeitantes à «aplicabilidade externa» de normas proibitivas. Neste tipo de casos, embora as normas proibitivas sejam internamente aplicáveis, sobrevêm razões (necessariamente jurídicas, como visto) que determinam que, all things considered, a norma proibitiva não deva ser aplicada por um órgão de aplicação oficial do direito (regra geral, um tribunal judicial ou arbitral). À decisão de «desaplicação» das normas proibitivas subjaz um juízo de inconstitucionalidade, já designado por juízo de «inconstitucionalidade parcial qualitativa». Este juízo de inconstitucionalidade da norma proibitiva é condicionado (i) quer à proposição interpretativa do seu enunciado, (ii) quer à relevância atribuída a determinadas propriedades do caso, (iii) quer à prevalência de outras normas internamente aplicáveis (60). Independentemente da terminologia, subjaz a esta decisão que a norma proibitiva é inconstitucional apenas na medida em que a sua aplicação ao caso implicaria que prevalecesse sobre outras normas constitucionais, também internamente aplicáveis e que demonstram um maior peso.
Uma análise da jurisprudência sobre a matéria da liberdade de expressão no contexto desportivo permite ver que, da panóplia de factores potencialmente relevantes nos casos de exercício da liberdade de expressão em contexto desportivo, têm sido alvo de destaque os seguintes: (i) a especial emotividade envolvida, (ii) o (risco de) incitamento à violência, (iii) a existência de uma base factual mínima, (iv) a pessoalização da crítica, (v) a visibilidade dos agentes desportivos envolvidos, (vi) o fim subjacente ao exercício da liberdade de expressão. Alguns destes factores já foram referidos acima, a respeito do problema da aplicabilidade interna das normas proibitivas. Outros são demasiado complexos para ser aqui desenvolvidos. Sem pretensões de exaustividade, desenvolvem-se dois pontos.
A especial emotividade que caracteriza o contexto desportivo tem sido considerada como um aspecto relevante na ponderação entre, por um lado, a norma que consagra a liberdade de expressão e, por outro, a norma que consagra o direito à honra. Este é o posicionamento do TCAS, no Acórdão de 15 de Outubro de 2020, Processo n.º 53/20.5BCLSB, no qual se afirma que: «[o]s termos em que essa crítica é feita necessariamente são influenciados por aquele meio, sendo do conhecimento geral que para a generalidade das pessoas que estão nele inseridas ou que se interessam por ele, a contundência das críticas é a regra, utilizando-se termos que no aceso contexto desportivo, pela sua generalização, não têm a carga valorativa que têm noutras atividades. Sublinhe-se que não compete aos tribunais valorar ou modificar esta realidade, apenas lhes compete utilizá-la como um facto a ter em conta em busca das soluções que considera mais justas para os casos concretos que lhe são submetidos a apreciação.» .
Semelhante entendimento já constava de decisões anteriores, como é o caso do Acórdão de 4 de Abril de 2019, Processo n.º 18/19.0BCLSB, no qual se considerou que «[o] art.º 136.º, n.º 1, do RD, deve ser interpretado e enquadrado atendendo à realidade que enquadra o mundo desportivo e futebolístico, pelos que as expressões contantes daquele RD relativas ao “desrespeito”, à “injúria”, à “difamação” ou à “grosseria” terão, necessariamente, que ajustar-se àquela mesma realidade» e que «[a] afirmação do “roubar” de golos não pode ser tida como ofensiva da honra e consideração das pessoas que fazem parte das equipas de arbitragem, por ofender seriamente as suas qualidades morais e profissionais e lhes provocar uma real humilhação ou o desprezo de terceiros»”.
É indiscutível que o contexto desportivo e a particular emotividade envolvida são elementos relevantes para discernir se uma determinada acção é ou não sancionada e, em última análise, se estava ou não proibida. Todavia, essa emotividade concorre para ambos os lados do argumento: se, por um lado, justifica uma maior latitude a conferir às expressões utilizadas, por outro lado, pode implicar maiores cautelas, atendendo à danosidade social e violência a que as expressões utilizadas podem, num juízo de prognose e certeza empírica, dar azo .
Merece igual destaque, como factor de ponderação, a visibilidade dos agentes desportivos envolvidos - i.e., dos destinatários indirectos das afirmações escrutinadas. Assim, a admissão de que as afirmações possuem um destinatário indirecto não equivale a reconhecer que são direccionadas a um sujeito ou órgão concreto. Este factor foi sobejamente desenvolvido pelo TEDH, considerando-se que os limites da crítica admissível são significativamente mais amplos no que diz respeito a pessoas com estatuto público: no fundo, da consciente exposição da pessoa à opinião pública decorre um mais intenso controlo das suas acções . Sendo certo que os agentes desportivos não integram a categoria de “homem político”, é igualmente claro que estão normalmente em causa “personalidades bem conhecidas do público”, o que tem sido suficiente, aos olhos do TEDH, para justificar uma maior exposição à crítica .
Também os tribunais portugueses têm adoptado este critério, aplicando-o ao caso dos árbitros. A título de exemplo, no Acórdão de 15 de Outubro de 2020, o TCAS sustentou que «[o]s árbitros desportivos, tendo em conta o meio onde desenvolvem a sua atividade, não podem deixar de serem considerados, nesse exercício, como personalidades públicas e, consequentemente, expostos à crítica da opinião pública - incluindo a crítica dos demais agentes desportivos - veiculada pelas diversas formas de expressão ao seu dispor» .
A conclusão a retirar deste excurso jurisprudencial vai no sentido de concluir que, embora a teoria interna (na sua formulação inicial ou nas variações subsequentes) ainda se encontre algo arreigada no STA , a generalidade dos tribunais competentes - judiciais e arbitrais - tem geralmente sabido fazer uso da metódica da ponderação, seleccionando elementos relevantes do caso e aplicando o princípio da proporcionalidade nas suas várias vertentes . O principal problema metodológico, porém, é o de esse exercício ponderatório ocorrer, por vezes, em «contexto conversacional», no sentido em que abstrai, na ponderação, totalmente da existência de uma regra proibitiva, criada por um órgão legitimado para o efeito - ou seja, desconsidera-se a existência de uma norma infraconstitucional cuja legitimidade com o regime constitucional de restrições carece de ser apurada.
Sequência: a liberdade de expressão perante normas regulamentares proibitivas de actos de expressão
Na expressão de Joseph Raz, as regras jurídicas (rules) são razões para excluir outras razões: têm uma força específica, independente do seu conteúdo, pelo simples facto de serem modelos padronizados para a acção. Metaforicamente falando, as regras jurídicas são expressões de compromissos ou juízos a respeitos de soluções de conflitos. Por exemplo, a proibição de expressões que imputem factos ofensivos da honra, resultante dos artigos 77.º, 130.º e 153.º do RDFPF (em conjugação com os deveres enunciados no artigo 12.º do mesmo diploma), constitui um «compromisso», para uma categoria abstracta de casos, de prevalência do direito ao bom nome e à reputação (artigo 26.º da Constituição) sobre a liberdade de expressão (artigo 37.º da Constituição). Se a hipótese se verifica, a regra deve ser aplicada, desonerando-se qualquer tarefa ponderatória. Regras proibitivas, como quaisquer outras regras, não podem ser puramente «desconsideradas» por um tribunal, de modo a permitir, sem mais, uma ponderação entre normas de direitos fundamentais em conflito.
Sucede, porém, nas palavras do próprio Joseph Raz, que “determinados casos estão «simplesmente» fora do âmbito das regras [internamente aplicáveis] se as principais razões que apoiam a regra não são aplicáveis a tais casos. Nessa situação, os casos jurídicos encontram-se numa situação de excepção à regra quando algumas das principais razões em prol da regra são aplicáveis a eles, mas o “compromisso ínsito na regra” considera que prevalecem outras considerações em conflito” (62). A questão essencial é, naturalmente, de ordem metodológica: que «peso» deve ser atribuído à regra e como apurar que o «compromisso ínsito na regra» determina que devem prevalecer outras razões em conflito?
O tema em análise, nesta parte final, prende-se com a legitimidade para ponderar, no contexto constitucional da separação de poderes. Num exemplo paralelo, perante a vigência de uma regra que proíba circular a mais de 120 km/h na auto-estrada, a avaliação por um agente de autoridade ou por um juiz das circunstâncias do caso (e.g., urgência da marcha, visibilidade boa, faixa desimpedida, inexistência de reincidência) não pode ser feita sem consideração da «existência» da referida regra. O aplicador não pode, sem mais, ponderar (i) as razões subjacentes à marcha de urgência e as razões que apoiam a conclusão da inexistência de perigo com (ii) as razões que determinam a referida proibição. Pode fazê-lo, é verdade, mas é necessário incluir na equação ponderatória o «peso» da existência daquela regra, pelo simples facto de existir uma regra criada pela autoridade legitimada para o efeito .
Um juízo ponderatório envolve um determinado grau inescapável de discricionariedade decisória. Nessa medida, em democracias constitucionais, as escolhas fundamentais para a comunidade deverão, regra geral, ser levadas a cabo pela autoridade legislativa (Assembleia da República ou Governo), que detêm o maior grau de legitimidade democrática da comunidade. Um exemplo claro do que se afirma é o da Wesentlichkeitstheorie, desenhada pelo Bundesvergfassungsgericht, nos termos da qual as escolhas essenciais para a comunidade devem ser reservadas para a autoridade legislativa e não sujeitas a um «activismo judicial», que se deve pautar por um saudável self-restraint (63). É com base nessa premissa que a aplicação da fórmula do peso de Alexy procura acomodar a objeção institucional formulada por Böckenforde, pela qual se sustentou que a fórmula não era coerente com a separação de poderes e, se compreendida literalmente, desembocaria num Governo de Juízes, dado que qualquer legislação que restringisse direitos fundamentais seria subsumida à fórmula e livremente «reponderada» por juízes .
Alexy respondeu à objecção com a introdução do factor epistémico da fórmula - a variável «R» -, que já pressupõe que as decisões não são necessariamente tomadas com base em graus semelhantes de certeza empírica e normativa, tornando activista qualquer reponderação baseada em fracas assunções epistémicas, ou juízos contra-democráticos (64). Todavia, a resposta parece insuficiente.
Nos casos em análise, mediante a «aplicabilidade interna» de uma regra proibitiva do acto de expressão, um juiz não está simplesmente autorizado a realizar uma ponderação para resolver o conflito entre P1 e P2. Existe uma regra que expressa uma ponderação abstracta já acima aludida, subordinando P1 a P2. A desaplicação da regra e a reponderação do compromisso de princípios que lhe subjaz implica algo mais do que a certeza empírica acerca da interferência na liberdade de expressão ou a relevância abstracta que se lhe atribui. A desaplicação da regra implica, distintamente, que se atenda ao «peso» que a aplicação da regra teria pelo simples facto de essa regra existir. A razão para cumprir a regra criada é P3, um princípio formal e remissivo, que determina que a regra internamente aplicável seja aplicada, pelo simples facto de se tratar de uma regra criada por autoridade legítima, ao qual eventualmente se associa a dimensão da segurança jurídica (P4) e o princípio democrático, na medida em que a regra criada seja a expressão de uma vontade democrática.
A introdução dos referidos princípios formais, na equação ponderatória, propicia uma «ponderação global» bastante mais complexa do que aquela que simplesmente atende ao princípio que suporta a permissão de expressão (P1) e ao princípio que se lhe antagoniza (P2). Se a regra proibitiva internamente aplicável proíbe o acto de expressão no caso, o seu suporte principiológico é o de uma ponderação abstracta mediante a qual P2 deve prevalecer sobre P1 em todos os casos que se subsumam à hipótese normativa. E como a existência da regra proibitiva não pode simplesmente ser desconsiderada, desatender a essa regra implica um juízo de prevalência, no caso, de P1 (=liberdade de expressão), quer sobre (P2), que suporta substancialmente a regra proibitiva, quer sobre todos os princípios formais que depõem no sentido da aplicação definitiva da regra internamente aplicável.
A economia do presente artigo não permite estruturar uma formulação completa deste juízo complexo, sempre casuístico, a respeito de uma eventual desaplicação judicial de normas proibitivas formuladas em regulamentos de federações desportivas. Duas notas, porém, parecem certas. A desaplicação de normas restritivas implica sempre o cumprimento de um ónus argumentativo particularmente intenso da parte de quem pretende desaplicar. Porém, a desaplicação de normas regulamentares proibitivas de actos de expressão, embora assente necessariamente num «juízo empírico forte» sobre a interferência (do princípio que suporta a norma restritiva) na liberdade de expressão, acarreta um ónus argumentativo formal menos intenso do que a desaplicação de normas legais proibitivas. Desde logo, pelo facto de as primeiras serem editadas por órgãos menos democraticamente legitimados em geral do que as segundas, que também são criadas por órgãos menos constitucionalmente habilitados para operar restrições a direitos fundamentais de agentes desportivos. A avaliação da restrição para efeitos de uma desaplicação envolve, em última análise, não apenas um juízo sobre a interferência na liberdade de expressão (o «quanto» da restrição) mas também um juízo sobre a legitimidade constitucional para positivar essa mesma restrição («quem» restringiu). À relevância desses dois factores soma-se o critério do destinatário da restrição («quem» se viu limitado na liberdade de expressão). Neste último ponto, qualquer juízo de desaplicação deve respeitar a diferenciação entre normas destinadas a clubes associados a federações desportivas e normas destinadas a outros agentes desportivos. Na realidade, qualquer argumento de auto-limitação - cuja valia é relativa - sempre será, no caso dos segundos, bastante diminuído.