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e-Pública: Revista Eletrónica de Direito Público

versão On-line ISSN 2183-184X

e-Pública vol.8 no.1 Lisboa mar. 2021  Epub 22-Jan-2022

https://doi.org/10.47345/v8n1art9 

Direito Administrativo

A Tridimensionalidade da Justiça Desportiva

The Three-Dimensionality of Sports Justice

Miguel Arnaud de Oliveira1 

iFaculdade de Direito da Universidade de Lisboa


Resumo:

Com o presente artigo propomo-nos a realizar uma breve incursão pelo ecossistema do diálogo jurisprudencial em torno dos “temas desportivos”, o qual foi impulsionado após a constituição do Tribunal Arbitral do Desporto. Sem qualquer pretensão de exaustão, analisa-se as diversas abordagens empregues pelos tribunais chamados a pronunciarem-se sobre um conjunto de casos idênticos.

Privilegia-se a divergência de abordagens, de sobremaneira marcadas, entre o Supremo Tribunal Administrativo e o Tribunal Central Administrativo Sul, sem deixarmos de fazer uma breve referência ao papel do Tribunal Constitucional, do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e do Tribunal Arbitral do Desporto.

Aborda-se um vasto conjunto de decisões em dois grandes temas, o confronto entre a liberdade de expressão e o direito à honra e a natureza da responsabilidade dos clubes pelos atos praticados pelos seus adeptos. Para além disso, faz-se ainda uma breve referência a dois acórdãos, em matérias distintas, mas igualmente dignos de nota.

Palavras-Chave:

Abstract:

With this article we propose to make a brief incursion in the ecosystem of the jurisprudential dialogue around the "sports issues", which was fostered after the establishment of the Court of Arbitration for Sport. Without exhaustion, we analyze the different approaches used by the various courts called to rule on identical cases.

We privilege the divergence of approaches, which are very marked, between the Supreme Administrative Court and the Central Administrative Southern Court, while making a brief reference to the role of the Constitutional Court, the European Court of Human Rights and the Court of Arbitration for Sport.

A wide range of decisions on two major issues is addressed, the confrontation between freedom of expression and the right to honour and the nature of the responsibility of clubs for the acts performed by their supporters. In addition, there is a brief reference in two judgments, on different but equally noteworthy subjects.

Key words:

Introdução

Após a criação do Tribunal Arbitral do Desporto (doravante TAD) em 2013, através da Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, a justiça desportiva sofreu um forte impulso transformador fruto da criação de um progressivo acervo jurisprudencial. Este apresenta-se como especialmente importante, considerando que os tribunais já não são, se é que alguma vez o chegaram a ser, apenas a expressão de um preciso texto da lei, como outrora foi defendido (1). Na verdade, o diálogo jurisprudencial fornece decisivos contributos na construção do Direito (2), dentro de um determinado sistema jurídico, mesmo em ordenamentos, como o nosso, em que não vigore o sistema do precedente, mas, ao invés, a velha máxima da relatividade do caso julgado.

No que toca ao Direito do Desporto - disciplina que ainda se encontra em desenvolvimento e que desafia os modelos tradicionais da sistemática jurídica, por romper com a divisão de disciplinas tradicionais, congregando um vasto conjunto de elementos pertencentes aos mais variados ramos do Direito / / (3) - as decisões dos Tribunais dizem respeito a matérias tão diversas como a própria diversidade daquela disciplina.

Ainda que não fosse uma matéria ignorada pela justiça, verificou-se, após o surgimento do TAD, uma verdadeira proliferação de sentenças, criadoras de várias dimensões relativas a uma mesma realidade. Para além de uma dimensão fruto do labor do próprio TAD, brotaram dos Tribunais Superiores um conjunto considerável de pronúncias, que contribuíram de forma bastante significativa não só para a sedimentação daquela disciplina, mas, também, para o Direito Administrativo. Este manancial de jurisprudência, graças, desde logo às múltiplas mundividências dos juízes e às diversas escolas do saber jurídico, criou, face aos mesmos casos (ou grupo de casos), uma pluralidade de dimensões, três desde logo (4), mas no horizonte, começam também a surgir sinais de pronúncias com outras origens.

No presente artigo, iremos abordar alguma da vasta matéria que compõe a tridimensionalidade da justiça desportiva e que, naturalmente, se reporta ao conjunto de posições encontradas na jurisprudência: uma primeira dimensão, que constitui a posição do TAD; uma segunda dimensão, que se reconduz ao posicionamento do Tribunal Central Administrativo Sul (doravante TCAsul); por fim, uma última dimensão, a qual se reporta, naturalmente, ao Supremo Tribunal Administrativo (doravante STA).

O périplo jurisprudencial

Várias poderiam ser as matérias, a desenvolver no presente artigo. Procurámos, contudo, trazer aquelas que mantêm o diálogo em aberto entre instâncias (diálogo multidimensional).

Assim, e a este propósito, revestem-se de especial interesse dois grupos de casos. Por um lado, os que sindicam o confronto entre a liberdade de expressão dos agentes desportivos e o direito à honra dos árbitros e, por outro lado, os que se pronunciam relativamente à responsabilidade dos clubes pelos atos praticados pelos seus adeptos.

É certo que outras matérias já animaram o diálogo jurisprudencial, mas têm-se atualmente por encerradas , pelo que não serão aqui desenvolvidas. Far-se-á ainda um breve destaque a algumas decisões que não tendo necessariamente criado um robusto acervo jurisprudencial, merecem uma breve referência pela sua importância para a dogmática do Direito do Desporto.

A bidimensionalidade da jurisprudência desportiva, enunciação do problema

Vejamos, então, duas decisões em particular. Uma do STA, respeitante ao estranho caso do árbitro excluído e outras, duas na realidade, do Tribunal Constitucional (doravante TC), em que, chamado a pôr fim à dúvida em torno da possibilidade de fixação de uma presunção legal dos factos constantes nos relatórios dos árbitros e delegados da Liga, este Tribunal pronunciou-se sobre outra questão, e por entender que a conexão entre ambas era tal (uma relação de quase prejudicialidade), decidiu não se pronunciar sobre a conformidade com a lei fundamental da República.

O estranho caso do árbitro excluído

O estranho caso do árbitro excluído advém da pronúncia do STA através do Acórdão que revogou a decisão do TCAsul, que por sua vez havia revogado a decisão do TAD .

Sumariamente, em causa estava a impugnação da classificação atribuída a um árbitro pelo Conselho de Arbitragem da FPF e o pedido de reintegração desse árbitro numa determinada categoria dos quadros da FPF. O fundamento basilar da impugnação, residia no facto de a divulgação dos critérios de avaliação ter ocorrido em momento posterior à realização dos jogos avaliados. O Conselho de Justiça da FPF determinou a anulação da classificação atribuída pelo Conselho de Arbitragem, mas negou o pedido de alteração da classificação e devolveu-a ao Conselho de Arbitragem. Este conselho, por sua vez, determinou uma classificação que, ainda assim, não permitiu a reintegração do árbitro no quadro pretendido. Posto isto, o Conselho de Justiça foi novamente chamado a pronunciar-se, tendo decidido que assistia razão ao árbitro, mas que, ainda assim, não seria possível determinar a sua reintegração.

Importa reter a razão pela qual o Conselho de Justiça, no primeiro momento devolveu ao Conselho de Arbitragem a determinação da classificação do árbitro. Destarte, aquela prende-se com o facto de Conselho de Justiça, no seu entender ser um órgão desprovido de competência para proceder à reintegração do árbitro ou à atribuição de qualquer classificação, uma vez que possui competência meramente anulatória.

Impugnada a decisão junto do TAD, este, formulou duas hipóteses de resolução do pleito. Uma primeira hipótese seria a de anular a decisão do Conselho de Justiça, considerando procedente a pretensão do demandante, mas concluído pela impossibilidade absoluta de o Conselho de Arbitragem cumprir a sua sentença anulatória, convidando as partes a entenderem-se quanto ao quantum indemnizatório (ex vi artigo 45.º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos, doravante CPTA), ou, em alternativa e como segunda hipótese, anular a decisão recorrida e condenar o Conselho de Arbitragem a reintegrar o árbitro. Contudo, o TAD entendeu que esta segunda hipótese não seria possível, uma vez que para tal “(…) o presente colégio arbitral tivesse de ficcionar uma nota final de avaliação pois só a existência de uma classificação permitiria colocar o Demandante de volta aos quadros (…)”. Ora, não seria possível tal reintegração, por a atribuição da nota se enquadrar no domínio da função administrativa e, como tal, judicialmente insindicável, pelo que, apenas lhe restaria deitar mão do mecanismo previsto artigo 45.º do CPTA.

O TAD determinou, então, que o árbitro deveria ser indemnizado pela perda das vantagens que a execução do ato lhe teria proporcionado caso não existisse impossibilidade absoluta, deitando mão do artigo 45.º do CPTA e convidando as partes a chegarem a acordo quanto ao quantum.

Destaque-se desde já, até pela importância na construção da segunda dimensão deste caso, a declaração de voto vencido do Árbitro João Miranda, anexa à decisão do TAD, que entendeu não existir uma situação de impossibilidade absoluta (e como tal não se aplicaria o disposto no artigo 45.º do CPTA), por duas razões. Em primeiro lugar, por o Tribunal entender, erradamente, que apenas aquela classificação se encontrava inquinada pelo vício, e, em segundo lugar, deveria ter-se em conta a impossibilidade de reconstituir o momento avaliativo num procedimento sem ilegalidades, pelo que apenas restaria considerar anuladas todas as classificações.

Ora, se a causa do vício é comum a todos os avaliados, naturalmente e como decorrência lógica, todas as avaliações estariam inquinadas pelo mesmo vício. Relativamente ao segundo ponto, sublinhe-se que o mesmo não se prende com a interferência no exercício da função administrativa, mas, ao invés, com “o retirar de todas as consequências que decorrem da anulação judicial do Demandante”. Desta forma, se o ato é anulado, terá de o ser para todos os classificados pelo que, o órgão que o praticou terá de voltar a praticá-lo, desta vez desprovido de qualquer ilegalidade.

Não aderindo a esta raciocínio, o STA entendeu anular a decisão do TCAsul que havia anulado a deliberação do Conselho de Arbitragem, aderindo à declaração de voto vencido e condenado o Conselho de Arbitragem a reintegrar o árbitro na categoria uma vez que, no entender do STA, a reintegração do árbitro, como consequência da anulação do ato administrativo, corresponderia a uma sobrevigência da decisão daquele conselho relativo ao ano anterior e, como tal, consubstanciaria uma verdadeira “passagem administrativa”.

Diríamos ser, pelo menos, discutível o posicionamento do STA, uma vez que estando em causa um vicio comum a um conjunto de atos administrativos aplicáveis a uma pluralidade de destinatários, é notório que, o efeito anulatório é relativo à pluralidade dos destinatários (até porque o vício afeta todos eles, pois todos os classificados tiveram conhecimento do critério após a realização dos jogos, mesmo que a classificação lhe seja favorável, não deixa de padecer de um vício jurídico), pelo que a uma solução resultante da anulação do ato, considerando a impossibilidade fática (em razão da continuidade do tempo), em criar um critério prévio aos jogos, seria não proceder à descida de categoria de qualquer árbitro (incluindo o árbitro que impugnou a decisão), podendo caso algum árbitro subisse de categoria, manter-se como supra numerário e no ano imediatamente seguinte, corrigido o vício, despromover os árbitros de acordo com o critério geral, repare-se que o que não falta são critérios de mitigação de efeitos relativos a modificação do número de elementos numa liga ou divisão (recorde-se aliás as ligas de futebol são recorrentemente ajustadas, pelo que múltiplos critérios já foram avançados).

A jurisprudência constitucional (in)eficiente

Numa dimensão muito diversa da analisada no subcapítulo precedente, o TC foi chamado recentemente a pronunciar-se relativamente ao valor dos factos contidos nos relatórios dos árbitros ou delegados da Liga.

Em concreto, e por um lado, pretendia-se saber se os relatórios possuíam, à luz do disposto na alínea f) do artigo 13.º no Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portugal , uma presunção inilidível da veracidade dos factos. Por outro lado, importava analisar a possibilidade de aplicação de uma sanção disciplinar, com base naqueles relatórios sem audiência do visado (procedimento disciplinar sumário).

O TC pronunciou-se, no que respeita à impossibilidade de aplicação da sanção sem audiência do visado (5) (6), no sentido da inconstitucionalidade. Contudo, nada disse - quiçá por ser inútil para o caso em apreço, devido à conexão entre as duas questões - quanto ao valor probatório dos relatórios dos árbitros ou delegados.

Mantem-se, assim, em aberto esta questão, ainda que, em abono da verdade, com alguns indícios de que, caso volte a ser chamado a pronunciar-se quanto à mesma, possa vir a decidir no sentido da não inconstitucionalidade, uma vez que fez questão de salientar que não é apenas por ser fixada uma presunção legal que existe a violação do princípio constitucional da presunção de inocência.

A eterna conflitualidade entre a liberdade de expressão e o direito à honra;

Entremos, de seguida, no primeiro grande bloco de casos da jurisprudência do desporto (7), respeitante ao conflito entre a liberdade de expressão dos agentes desportivos e o direito à honra dos árbitros.

Em causa está, regra geral, a aplicação de um conjunto de disposições normativas do regulamento disciplinar da FPF, que procuram solucionar, de forma geral e abstrata, o conflito entre aqueles Direitos Fundamentais. Vejamos, então, como tem a questão sido encarada pelos Tribunais.

O posicionamento do Tribunal Central Administrativo Sul

Numa primeira fase, este Tribunal não procedeu a um juízo expresso relativo à valoração da liberdade de expressão, limitando-se a analisar se os comportamentos em causa eram suscetíveis de preencher a previsão da norma que proíbe determinados comportamentos atentatórios da honra / , tendo entendido que “(…) aquelas expressões, usadas repetidamente, e no contexto em que o foram, não vertem uma mera crítica, admissível e tolerável, ao desempenho do árbitro principal da partida. Elas na verdade refletem também uma crítica quanto à nomeação daquele mesmo árbitro para vários jogos em que o [arbitro] participou, levantando simultaneamente a suspeição de que aquele árbitro havia sido tendencioso nas arbitragens, prejudicando reiteradamente o clube em causa. O que é bastante para concluir não ser de considerar que a decisão disciplinar punitiva fez uma errada subsunção dos factos ao direito. Tendo que manter-se, nessa medida, o juízo feito no acórdão arbitral recorrido.”

Esta decisão partiu, inequivocamente (ainda que tacitamente), da premissa de que as regras vertidas no regulamento de disciplina procedem a uma ponderação definitiva dos interesses em jogo, cabendo ao intérprete aplicador apenas a tarefa de, à luz dos factos trazidos pelo caso, subsumir ou não àquela disposição normativa. Esta lógica ignora, todavia, a possibilidade de aquela regra ser afastada (derrotada) por um princípio conflituante (como seja, o que prevê a liberdade de expressão), uma vez que, em determinadas circunstâncias, um princípio pode afastar (derrotar) uma regra jurídica. / (8) (9) Independentemente da retidão (ou não) da decisão final, cremos que este tipo de fundamentação ignora a profundidade do debate atual (e passado) em torno do conflito de direitos.

Tendo sido novamente convidado a pronunciar-se, desta feita, relativamente a um caso em que um agente desportivo havia levantado dúvidas quanto à ausência de penaltis marcados a favor da sua equipa, o Tribunal foi questionado quanto à apetência daquelas para a violação dos deveres de urbanidade que recaem sobre os agentes desportivos . Não se ficando por meras operações de subsunção, o Tribunal procurou analisar se o conteúdo do dever de urbanidade poderia conflituar com o direito à liberdade de expressão, tal como inscrito na Constituição da República Portuguesa (doravante “CRP”), tendo considerado que “(…) tal direito fundamental não é, obviamente, absoluto e admite compressões “in concreto” desde que justificadas, à semelhança, aliás, do que ocorre com inúmeras outras atividades há décadas, como por exemplo a de magistrado. Esta ligeira afetação do direito (…) justifica-se aqui, porque o futebol profissional é um setor dado a muito ruído social, a condutas violentas ou impensadas e até muito perigosas; é um setor da vida económica e social muito importante, em que a estabilidade, a urbanidade, a confiança e a lealdade são verdadeiramente essenciais. (…). Por outro lado, “ad latere”, sempre devemos lembrar que não há opiniões objetivas (…). Há opiniões e há afirmações, e estas afirmações do aqui recorrente violaram o artigo 19.º/1 do RD. Não se trata, enfim, de pôr em crise a honra e o bom nome dos árbitros. Trata-se, sim, de manter ou não manter uma conduta conforme aos princípios de lealdade, probidade, verdade e retidão, ou urbanidade e correção, em tudo o que diga respeito às relações de natureza desportiva, económica ou social; princípios que os próprios membros da LPFP consideraram ser de impor aos agentes desportivos”.

Perante este cenário, seria este o presságio para uma alteração de postura do TCAsul relativamente a este confronto? Ainda que, em bom rigor, não fosse um caso de confronto entre a liberdade de expressão e a honra, mas sim entre a liberdade de expressão e a proibição de comportamentos que violem o dever de urbanidade, o Tribunal reconheceu que a liberdade de expressão não é um direito absoluto (ou seja é derrotável) e deu o mote a uma análise de conflito normativo com recurso a ponderação.

Este mesmo Tribunal, em Acórdão de 04-10-2018 , veio reconhecer expressamente a delicadeza do confronto de direitos de dignidade constitucional. Já num aresto datado de 04-04-2019 , que versava sobre um caso em que um agente desportivo havia publicado na sua página do Facebook um texto no qual acusava alguns árbitros de “roubar”, o Tribunal entendeu, relativamente ao confronto entre a liberdade de expressão e a honra, que “(…) há que fazer uma ponderação quando estes direitos entrem em conflito, devendo-se aferir em que moldes aquela opinião, pelas expressões que usa e pelas imputações que faz, ataca desproporcionadamente a honra e consideração desses terceiros. Nesta aferição há que ter em conta todo o contexto em que os direitos são exercidos para se encontrar o limite do razoável ou aceitável”.

No que toca a este último aresto, é interessante notar que o Tribunal, para fundamentar a sua decisão, chamou à colação a Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Diretos do Homem (doravante TEDH), referindo-se, em particular, à pronúncia daquele Tribunal num caso em que, envolvendo Portugal, se discutia a possível aplicação de sanções de natureza penal fruto de comentários num programa televisivo sobre futebol . O juiz nacional considerou que estando em causa figuras públicas ou afins, os limites da crítica admissível são mais extensos do que se admitem para a generalidade dos particulares. Por outro lado, aquele Acórdão, formulou um princípio de solução em caso de conflito entre a liberdade de expressão, n.º 1 do artigo 37.º, da CRP e o direito ao bom nome, reputação e a imagem, artigo n.º 1 do artigo 26.º, da CRP, concluindo que “(…) há que recorrer ao critério da proporcionalidade e operar a uma compatibilização ou concordância prática entre os direitos em colisão”, continuando no sentido de “(…) em caso de conflito entre estes dois direitos «Importa essencialmente operar uma compatibilização ou concordância prática entre os valores fundamentais da defesa da honra, do direito ao crédito, ao bom nome e privacidade dos cidadãos e o exercício das liberdades de expressão, opinião e de imprensa, obrigando naturalmente a convocar, não apenas as normas constitucionais e legais internas, mas também as que integram a CEDH, tal como vêm sendo reiteradamente interpretadas e aplicadas pelo TEDH»(…) E, nesta busca de realização de uma satisfatória concordância prática entre os direitos em conflito ou colisão, face às circunstâncias do caso concreto, não pode naturalmente o intérprete e aplicador do Direito deixar de atender e conferir o devido relevo às normas de Direito Internacional convencional, vinculativas do Estado Português, tal como são qualificadamente interpretadas e aplicadas pelo órgão jurisdicional a que a própria Convenção confiou uma tarefa de realização prática dos princípios nela contidos. (…) Na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), o direito de expressão vem consagrado no art.º 10.º, n.º 1, como garantia de uma sociedade democrática (…) para preenchimento do ilícito disciplinar em questão, “as expressões, desenhos, escritos ou gestos injuriosos, difamatórios ou grosseiros” têm de ser imputadas a alguém, têm de ser dirigidas a uma determinada pessoa, ou pessoas, concretamente identificadas ou identificáveis. Não basta a afirmação ou proclamação de uma grosseria, sem a [devida] imputabilidade (…)”. Neste aresto, assiste-se já a uma fundamentação mais robusta, contudo, algumas dúvidas não deixam de subsistir, nomeadamente quanto ao papel da norma regulamentar na resolução do conflito entre princípios e a sua interação no ordenamento com os referidos princípios. Será um problema de conflito normativo no qual a norma incompatível (infra legal) deve ceder face à norma constitucional? Mas se assim for, questiona-se qual o relevo daquela norma e se também ela visa a proteção de Direitos fundamentais. Por outro lado, a solução final (falta da imputação da grossaria a uma pessoa concreta), parece ser mais um problema de subsunção do comportamento à norma proibitiva e, assim sendo, levanta-se a questão de saber se fará sentido ir mais além e analisar o conflito de princípios.

Mais expressiva, ainda, foi a análise efetuada pelo TCAsul no Acórdão de 07-02-2019 , o qual versava sobre a alegada violação da honra e reputação de um árbitro (e de quem o havia nomeado) por um agente desportivo durante uma entrevista, na qual foram tecidas algumas considerações, em jeito de comparação, sobre casos conhecidos de corrupção de árbitros. O Tribunal considerou que “(…) devemos sublinhar que, na análise jurídica de um exercício concreto do direito fundamental à liberdade de expressão eventualmente colidente com outro direito fundamental, não se deve atender, logo à partida, a algo que só interessa a final: a teleologia infraconstitucional - portanto, abaixo do tema dos direitos fundamentais - das disposições legais de natureza administrativa disciplinar eventualmente violadas. Sob pena de se minar o raciocínio metódico-jurídico, que é especialmente importante quando pareça estar em questão uma colisão entre direitos fundamentais (…)”.

Neste Acórdão, o Tribunal, dando já cobertura a algumas das questões por nós formuladas, procede a uma cisão analítica do problema, desconsiderando, num primeiro momento, a solução formulada pela Administração (de forma geral e abstrata) na resolução de um conflito de Direitos Fundamentais.

Contudo, como supra questionado, a norma regra de natureza regulamentar, tendo apetência para conflituar com um princípio constitucional, deverá, como regra, sair necessariamente derrotada? Não cremos que o Tribunal tenha sequer formulado a questão nestes termos, na medida em que a metodologia utilizada para fazer o controlo da proporcionalidade da restrição surge, inclusive, como algo surpreendente, tendo o Tribunal entendido, em primeira linha, que a análise da proporcionalidade (ou melhor, no seu dizer, da desproporcionalidade), “(…) não é simplesmente identificável com a chamada “metodologia da ponderação de bens jurídicos”; esta, a ponderação ou sopesamento de direitos ou princípios colidentes, não é a mesma coisa do que controlar a desproporcionalidade das medidas que interfiram com bens ou princípios jurídicos (…)”.

Consequentemente, o Tribunal entendeu que a ponderação de bens jurídicos utiliza sucessivamente os três exames próprios da metodologia da proporcionalidade, mas que bastaria o cumprimento racional dos três testes. Já no que toca à desproporcionalidade, o controlo seria diferente, envolvendo a análise da decisão (administrativa ou normativa), que procura dirimir o conflito de princípios, considerando que, no caso em concreto, está em causa mais do que uma ponderação entre a liberdade de expressão e a honra, devendo dar-se enfase à aferição da proporcionalidade ou não da decisão fixada pela Administração.

Ainda que a solução formulada pelo Tribunal possa ser criticável por não cindir a análise das duas decisões da Administração, que materializam duas avaliações distintas - isto é, a decisão administrativa que fixa a norma, a qual tem em vista resolver a colisão entre a liberdade de expressão e a honra em abstrato e a decisão administrativa que aplica a norma, a qual deve ponderar um eventual conflito entre a regra e os demais princípios do ordenamento -, tem o mérito de analisar não só o conflito de princípios, mas também a legalidade da decisão que visa fixar a sua resolução.

Pelo conjunto de decisões analisadas, torna-se patente que o TCAsul, ao longo dos últimos anos, tem sofrido um progressivo amadurecimento das suas decisões, ainda que sem alterar radicalmente o sentido da sua jurisprudência, logrando sustentá-la cada vez melhor. Vejamos, no próximo ponto, se o STA percorreu semelhante trilho.

A abordagem oferecida pelo Supremo Tribunal Administrativo

Analisado o percurso feito pelo TCASul, seria expectável verificar idêntico movimento por parte do STA, i.e., um progressivo amadurecimento da questão, à luz dos desenvolvimentos doutrinários e tendo sempre em mente não só a jurisprudência do TC, mas também do TEDH, bastante presente, como vimos, nas pronúncias do TCAsul.

Em aresto de 04-06-2020 , relativo a um conjunto de publicações desportivas de um agente desportivo que levantou a suspeição de que os erros da arbitragem haviam sido intencionais para prejudicar a sua equipa, o Tribunal entendeu que: “(…) O texto não se limitou, pois, a apontar «erros de apreciação» aos árbitros, na medida em que afirma que os mesmos atuaram com a intenção deliberada de errar e de favorecer a equipa adversária, imputando-lhes um comportamento ilícito e, por isso mesmo, desonroso. Na verdade, ao afirmar que os árbitros não arbitraram aquelas partidas de acordo com os critérios de isenção, objetividade e imparcialidade a que estão adstritos, o texto insinua que os mesmos foram corrompidos pelo clube rival, colocando assim deliberadamente em causa o seu bom nome e reputação. Assim, e considerando que o Tribunal a quo andou mal ao julgar que os fatos provados inviabilizavam completamente qualquer hipótese de subsunção normativa na previsão do ilícito disciplinar de difamação, nos termos do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional”, o STA considerou que “(…) como se afirmou a propósito do abuso de liberdade de imprensa no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de dezembro de 2002, proferido na Revista n.º 3553/02, da 7.ª Secção, «o simples facto de se atribuir a alguém uma conduta contrária e oposta àquela que o sentimento da generalidade das pessoas exige do homem medianamente leal e honrado, é atentar contra o seu bom nome, reputação e integridade moral». Naturalmente, a liberdade de expressão e de informação não protege tais imputações, quando as mesmas não consubstanciem factos provados em juízo, ou objetivamente verificáveis, pois aquelas liberdades não são absolutas e tem de sofrer as restrições necessárias à salvaguarda de outros direitos fundamentais, como são os direitos de personalidade inerentes à honra e reputação das pessoas, garantidos pelo n.º 1 do artigo 26.º da Constituição. (…).Acresce ainda, na linha do que se decidiu no Acórdão desta Secção, de 26 de fevereiro de 2019 (…), que o respeito estrito pelos deveres de lealdade, probidade, verdade e retidão inerentes ao regime disciplinar estabelecido pelas normas em apreciação é indispensável à prevenção da violência no desporto, que é também um valor constitucional legitimador da compressão da liberdade de expressão e de informação dos clubes desportivos, nos termos do n.º 2 do artigo 79.º da CRP.”

Perante isto, denota-se uma tendência de reversão das decisões do TCAsul relacionadas com o conflito entre a liberdade de expressão e a honra, com base numa análise relativamente superficial, visto que o STA, afirmando a não inconstitucionalidade da norma regulamentar, procura apenas a subsunção dos factos àquela norma sem analisar a interação desta com o ordenamento como um todo. Todavia, tal orientação adotada pelo STA não significa que o seu posicionamento está errado e o do TCAsul correto, até porque, considerando as especificidades do Direito do Desporto e do futebol em particular, bem como todo o clima envolvente, outros valores (e Direitos Fundamentais) podem entrar em jogo. Mas se assim é, só se espera um reforço na robustez das decisões do STA.

Os próximos episódios

Como vimos, o debate encontra-se vivo entre instâncias, sendo expectável que a breve trecho não só seja o TC chamado a pronunciar-se, mas também o TEDH. Neste último caso, e atendendo à sua jurisprudência (tida em conta, aliás, pelo TCAsul), antecipa-se que a fundamentação do STA possa não ser suficiente, pois se é certo que o TEDH não considera a liberdade de expressão um direito absoluto, também é certo que não aceita facilmente a sua derrota.

A controversa responsabilização dos clubes pelos atos praticados pelos seus adeptos

Vejamos agora um conjunto muito distinto de decisões, desta feita, respeitantes à natureza (e alcance) da responsabilidade dos clubes pelos atos praticados pelos seus adeptos. Em causa estão, tipicamente, comportamentos como o rebentamento de petardos, o acender de flash lights, o disparo de very lights ou cânticos ofensivos, de natureza pejorativa, racista ou xenófoba, comportamentos reconhecidos, unanimemente, como altamente reprováveis e perpetuadores de um clima social inaceitável (em especial em eventos como os grandes jogos de futebol), mas, simultaneamente, difíceis de combater.

Note-se que esta dificuldade é transversal a vários indivíduos, já que não só o legislador tem tido dificuldade em pôr-lhe fim, como também os diversos agentes desportivos (em especial os clubes) não lograram, ainda, manejar a questão e os Tribunais, chamados a enquadrar juridicamente os mecanismos que os visam mitigar, não têm sido bem-sucedidos, ora vejamos!

O cuidado do Tribunal Central Administrativo Sul

O TCAsul, chamado a pronunciar-se quanto à impugnação de uma sanção a um clube relacionada com o comportamento incorreto dos seus adeptos e a inobservância de alguns deveres, proferiu um Acórdão , no qual estava em causa a impugnação de uma sanção relacionada com o comportamento incorreto dos seus adeptos e inobservância de outros deveres. Neste âmbito, ficou provada a utilização, por adeptos do clube, de artefacto pirotécnico proibido, bem como o entoar de cânticos grosseiros, ficando, ainda, provado que o clube nada fez para impedir aqueles acontecimentos. O Tribunal considerou, com apelo à fundamentação do Ministério Público revogar a decisão do TAD e anular os atos impugnados, considerando ser necessária a culpa do clube (responsabilidade subjetiva do clube), ainda que esta se reporte à omissão de cumprimento dos deveres legais e regulamentares a que estava vinculado, violação esta que permitiu o surgimento de determinada conduta proibida.

Noutro Acórdão com factualidade não muito distinta e em que, mais uma vez, estava em causa a necessidade ou não de um demonstrar uma conduta (ou omissão) culposa por parte do clube relativo a atuações dos seus adeptos, entendeu que, independentemente de dolo ou negligência “(…) mesmo que se mostre excluído o dolo ainda é possível censurar disciplinarmente o sujeito, se este omitiu deveres de diligência a que estava obrigado. Ora, no caso dos autos, não é certo que a arguida soubesse que no exercício das suas funções de vigilância não devia, nem podia proceder do modo que procedeu e/ou que, por perfeitamente claros e definidos, conhecesse os deveres que sobre ela impendiam previstos e definidos na normação elencada na acusação, que são os deveres específicos decorrentes da RJD” .

O Tribunal, aceitando que estamos no âmbito do Direito Administrativo e da discricionariedade administrativa, também entendeu que a valoração realizada pela administração está limitada pela factualidade real e pelos princípios de direito penal (que contaminam o direito disciplinar). No mais, entendeu que: Assim e segundo um tal entendimento no caso do ilícito disciplinar, a conduta também dever ser provida de tal elemento subjectivo, sob pena de indesejável responsabilização objectiva, existindo a necessidade de que haja um resultado, se assim exigir a norma disciplinar, havendo, entretanto, um resultado jurídico a ser apurado, imputável a alguém por inequívoco liame causal.”

Em suma, o TCAsul tem mantido uma postura prudente, apelando aos princípios da culpa para punir um clube, ainda que disciplinarmente, pelos atos praticados pelos seus adeptos. O TCAsul forneceu, ainda, um importante elemento para a resolução desta questão referindo que, na verdade, não se está a punir o clube pelo comportamento dos seus adeptos, mas sim pela violação de alguns deveres que este tem de prevenção nesta matéria. Mas será simples um clube cumprir estes deveres? O que tem de demonstrar a acusação para se puder considerar que os deveres foram de facto violados? Vejamos se o STA formulou resposta a estas questões.

O pragmatismo do Supremo Tribunal Administrativo

O STA tem-se mantido relativamente uniforme nesta matéria e com uma postura bastante pragmática (aliás, de certa forma alinhada com o pragmatismo que tem demonstrado na questão supra analisada do conflito entre a liberdade de expressão e o direito à honra), de tal forma que os juízes conselheiros têm a maior parte das vezes efetuado uma remissão, quanto à fundamentação, para o Acórdão de 21-02-2019 / , razão pela qual importa conhecê-lo com algum detalhe.

O STA começa por considerar que “(…) Constitui uma incumbência do Estado, em colaboração, nomeadamente, com as associações e coletividades desportivas (…) a prevenção e combate à violência no desporto”, num conjunto de diplomas legais, vem fixado um conjunto de deveres legais, que impendem, também, sobre os clubes e as sociedades desportivas, responsáveis e organizadores de competições desportivas, e que “(…) diversos regulamentos internos em matéria não apenas da organização daquelas competições, mas, também, de prevenção e punição das manifestações de violência, racismo, xenofobia e intolerância nos espetáculos desportivos, e, bem assim, de disciplina, nomeadamente, dos clubes de futebol e sociedades desportivas e dos agentes desportivos”.

Ora, estes deveres visam combater os comportamentos social ou desportivamente incorretos. Verificando-se, in casu, aqueles comportamentos (por exemplo, o arremesso de petardos), considerou o Tribunal que tal significa que existiu o incumprimento de um dever por parte do clube (como seja, o de revista dos adeptos ou do estádio, o dever de controlar os adeptos dentro do estádio, ou o mais polémico, dever de demover os adeptos de praticarem ou desenvolverem determinado tipo de condutas, como entoar cânticos racistas), cabendo ao clube a demonstração do cumprimento destes deveres, nomeadamente através de formação, controlo e vigilância do comportamento dos seus adeptos e dos espectadores do estádio, acrescentou o Tribunal que “(…) Neste contexto, ao invés do sustentado pela demandante na sua impugnação e que veio a ter acolhimento no acórdão recorrido, não estamos em face de uma qualquer situação de responsabilidade disciplinar objetiva violadora dos princípios e comandos constitucionais. Com efeito, mostra-se ser in casu subjetiva a responsabilidade desportiva na vertente disciplinar da demandante aqui recorrida, já que estribada naquilo que foi uma violação dos deveres legais e regulamentares que sobre a mesma impendiam neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao do domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido. Na verdade, não estamos in casu, pois, perante uma responsabilidade objetiva já que o regime previsto (…) e com o que resulta do demais quadro normativo (…), observa o princípio da culpa, tanto mais que em sua decorrência apenas se sancionam os clubes de futebol ou as suas sociedades desportivas pelos comportamentos incorretos do seu público havidos em violação porá queles dos deveres que sobre os mesmos impendiam. (…) Cabe aos clubes de futebol/sociedades desportivas a demonstração da realização por parte dos mesmos junto dos seus adeptos das ações e dos concretos atos destinados à observância daqueles deveres e, assim, prevenirem e eliminarem a violência, e isso sejam esses atos e ações desenvolvidos em momento anterior ao evento, sejam, especialmente, imediatamente antes ou durante a sua realização” .

No entanto, estas asserções não estão isentas de críticas. A título de exemplo, veja-se as declarações de voto vencido da conselheira Maria Benedita Urbano, no Acórdão de 07-05-2020 , relativas, é certo, apenas à delicada conjugação entre a responsabilidade do clube visitante e do clube visitado: “(…) Não obstante no caso dos autos estarmos perante comportamentos incorrectos de sócios e simpatizantes (…) é nossa convicção, baseada nos textos legais e regulamentares aplicáveis, que no apuramento do concreto grau de responsabilidade disciplinar pelos desacatos ocorridos não pode deixar-se de ter em conta aquelas que são as responsabilidades do clube visitado, enquanto promotor do espetáculo desportivo, em matéria de segurança e ordem no «seu» estádio” . Se é natural que uma parte significativa das ações repreensíveis praticadas por adeptos podem ser facilmente imputadas aos adeptos de um determinado clube (até porque regra geral têm origem nas claques), não é de excluir que muitas também surjam de adeptos isolados, descaracterizados e, como tal, os factos por si praticados são insuscetíveis de serem imputados a um dos clubes. Mas, ainda que seja possível imputar um comportamento a um determinado adepto ou conjunto de adeptos de um clube, na hipótese de esse clube ser o visitante, como é que este pode impedir, por exemplo, a entrada de material pirotécnico se o controlo e segurança do estádio fica a cargo da equipa visitada?

Uma solução fácil para um problema difícil?

Por todo o exposto, não se antevê uma resolução simples para a questão aqui tratada. Deve ter-se presente, porém, que a matéria não é uma novidade no nosso ordenamento. Já no final dos anos noventa o TC havia sido chamado a pronunciar-se quanto à conformidade com a CRP de um regulamento desportivo da FPF com disposições materialmente idênticas às vigentes. Já nessa altura o TC reconhecia o complexo fenómeno social da violência do desporto, bem como a linha ténue entre a responsabilidade objetiva e a culpa in vigilando, ilustrada na seguinte passagem: “(…) Não é, pois, em suma, uma ideia de responsabilidade objectiva que vinga in casu, mas de responsabilidade por violação de deveres. Afastada desde logo aquela responsabilidade objectiva pelo facto de o artigo 3º exigir, para a aplicação da sanção da interdição dos recintos desportivos, que as faltas praticadas pelos espectadores nos recintos desportivos possam ser imputadas aos clubes. (…). Por fim, o processo disciplinar que se manda instaurar (artigo 4.º) servirá precisamente para averiguar todos os elementos da infracção, sendo que, por esta via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)” .

É expectável que o TC seja novamente chamado a pronunciar-se, e mais uma vez, é plausível que, para fundamentar a importância daquelas disposições normativas, invoque argumentos de natureza sociológica relacionados com a necessidade de contenção dos fenómenos de violência no desporto. É, ainda, plausível que, mais uma vez, recuse a ideia de uma responsabilidade desprovida de culpa (10) e que a tónica seja colocada nos deveres de vigilância que recaem sobre os clubes, no que respeita ao comportamento dos seus adeptos, e a suscetibilidade destes, cumprindo esses deveres, não serem responsabilizados pelas suas condutas. Claro está que esta construção também não se apresenta isenta de críticas, surgindo imediatamente à colação o não menos delicado tema do ónus da prova no direito sancionatório e a dificuldade de imputação do resultado à conduta omitida, nos casos de deveres de cuidado (11).

Tenha-se, ainda, presente que a amalgama de situações analisadas pela jurisprudência, e tratadas em bloco , carecem de diferentes graus de labor, porquanto se, por um lado, é evidente que um clube, através de mecanismos de controlo, pode proceder à revista dos adeptos e a acautelar a segurança no acesso aos recintos desportivos, pode, com maior ou menor esforço, controlar a entrada de material pirotécnico no seu estádio ou adotar medidas que evitem a aglomeração de adeptos em claque e, assim, minimizar o feito multidão. Bem mais difícil será demonstrar que os clubes podem fazer algo para evitar que os seus adeptos entoem cânticos desagradáveis, ofensivos ou de pior natureza (e não temos por certo que a ideia de um dever de os clubes formarem os seus adeptos, venha a ter acolhimento).

Conclusões e breves notas finais

No presente artigo procurámos percorrer alguns dos mais importantes arestos relacionados com o Direito do Desporto, dos últimos anos, sem realizarmos uma análise exaustiva, até porque, desde logo, o espaço era limitado.

Foi possível observar que, mesmo nos tópicos mais desenvolvidos a questão está longe de estar encerrada, antecipamos, aliás, que o TC e o TEDH venham a ser chamados a pronunciar-se quanto a alguns destes temas, com destaque para as decisões relacionadas com o confronto entre a liberdade de expressão e o direito à honra, matéria que transcendendo em muito as fronteiras da Direito do Desporto, encontrou nele um campo particularmente fértil de aplicação.

Palavra final para a questão relacionada com a responsabilização dos clubes pelos atos praticados pelos seus adeptos. Como observámos, este mecanismo jurídico é, por excelência, um meio à disposição do legislador (e da Administração) para mitigar alguns dos comportamentos mais nefastos em torno do Deporto (como um todo, mas do futebol em especial). Contudo, a eficácia surge lado a lado com dúvidas de conformidade com a CRP. Importa, pois, garantir, desde logo pela administração, mas também pelos tribunais, que a sua utilização não entra em terrenos menos claros de responsabilidade objetiva pelo que, importa clarificar que comportamentos dos adeptos podem responsabilizar os clubes e o que podem estes fazer para cumprir o comando normativo.

Aguardemos pelos desenvolvimentos a fornecer pelas múltiplas dimensões da Justiça Desportiva!

Referências

1. Montesquieu. Do Espírito das Leis. Morgado M, tradução e notas. Lisboa: Edições 70; 2018. [ Links ]

2. Gilssien J. Introdução Histórica ao Direito. Hespanha AM, Malheiros LMM, tradução. 5.º ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; 2008. [ Links ]

3. Silva VP. Verde Cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente. 2.ª ed. Reimpr. Coimbra: Almedina; 2005. [ Links ]

4. Greene B. String theory. In Encyclopaedia Britannica. Disponível em: https://www.britannica.com/science/string-theory [ Links ]

5. Otero P. Direito do Procedimento Administrativo. Vol. 1. 1.ª ed. Reimp. Coimbra: Almedina; 2016. [ Links ]

6. Freitas LV. Direito do Procedimento Administrativo e Formas de Atuação da Administração Parte Geral - Lições ao Curso de Mestrado. 1.ª ed. Lisboa: AAFDL; 2016. [ Links ]

7. Alexy R. Direitos Fundamentais, Balanceamento e Racionalidade. Netto MC, tradutor. Ratio Juris. 2003 jun. Vol. 16;(2):138 ss. [ Links ]

8. Lopes PM. Derrotabilidade normativa e jurisdição constitucional. In Estudos de Teoria do Direito. Vol. I. Lisboa: AAFDL; 2018. [ Links ]

9. Canotilho JJG. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ª ed. 4.ª reimp. Coimbra: Almedina; 2003. [ Links ]

10. Brandão N, Cardoso TV. A Responsabilidade Disciplinar dos Clubes pelos Comportamentos Incorretos dos seus Adeptos. Boletim da ordem dos Advogados; 2019 maio; XXI. [ Links ]

11. Neves AB. Na boca do Lobo - Conduta da vítima e fim de proteção da norma (Anotação ao Acórdão da Relação do Porto de 11/06 /2014). In Anatomia do Crime; 2015;(2):165 ss. [ Links ]

Recebido: 24 de Janeiro de 2021; Aceito: 24 de Fevereiro de 2021

Notas biográficas Miguel Arnaud de Oliveira Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Alameda da Universidade Cidade Universitária 1649-014 Lisboa migueloliveira@fd.ulisboa.pt

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