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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.2 Lisboa dez. 2014

 

ARTIGO

Poder municipal ou poder administrativo? Um conflito entre a Câmara Municipal de Lisboa e o Governo(1834-1835)

Municipal power or administrative power? A conflict between Lisbon City Council and Government (1834-1835)

António Pedro Manique

ESES - Escola Superior de Educação de Santarém / Instituto Politécnico de Santarém, Portugal

É mestre em História dos Séculos XIX e XX pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e realizou provas públicas para professor do Ensino Politécnico. Foi professor coordenador da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Santarém e docente convidado da Faculdade de Letras de Lisboa e da Universidade Autónoma de Lisboa. É autor de diversos estudos sobre administração pública liberal, designadamente a reforma administrativa de Mouzinho da Silveira. Tem publicados diversos livros e artigos em revistas científicas nacionais e estrangeiras.

Correio eletrónico: apmanique@gmail.com

 

RESUMO

A construção do aparelho administrativo periférico liberal, que teve como primeira etapa a reforma administrativa de Mouzinho da Silveira, decretada em 1832, provocou um amplo movimento de protesto por parte das câmaras municipais de todo o país. Neste artigo procede-se à análise do papel determinante desempenhado pela Câmara Municipal de Lisboa nessa contestação, ao travar com o governo um conflito que procurava restituir à Câmara os seus poderes tradicionais, alterados pela legislação de 1832.

 

PALAVRAS-CHAVE

Liberalismo / Administração periférica / Reforma administrativa / Instituições municipais / Conflito político

 

ABSTRACT

The building of liberal peripheral administrative apparatus, which had the first stage on the Mouzinho da Silveira administrative reform enacted in 1832, provoked a protest movement by the municipal councils across the country. In this article the author analyzes the crucial role played by the Lisbon City Council in that challenge, starting a conflict with the Government in order to try to restore the Council in its traditional powers, amended by the 1832 legislation.

 

KEYWORDS

Liberalism / Peripheral administration / Administrative reform / Municipal institutions / Political conflict

 

 

INTRODUÇÃO LIBERALISMO, REFORMA ADMINISTRATIVA E CONFLITUOSIDADE POLÍTICA

Imediatamente após o discurso protocolar de posse da primeira Câmara Municipal de Lisboa eleita depois da tomada da cidade pelos liberais, o seu presidente, Francisco António de Campos, dando início à primeira sessão de trabalho, “propos á Camara se era de parecer que se reclamassem os attributos que lhe são proprios”. Regista a ata que, “depois de breve discução, a Camara decidio pela affirmativa”1. Estava, assim, dado o mote para o conflito que a Câmara viria a travar com o governo e que se arrastou por todo o ano de 1834 e início de 1835, a propósito da perda das prerrogativas municipais que tinham sido coartadas pela reforma administrativa de Mouzinho da Silveira, vulgarmente designada pelas câmaras municipais por “lei das prefeituras”.

Este conflito, que teve aspetos peculiares decorrentes da especificidade da organização municipal da cidade de Lisboa, inseriu-se no amplo movimento de contestação da primeira reforma administrativa liberal, imposta pelo decreto nº 23, de 16 de maio de 1832, que tem a assinatura de Mouzinho da Silveira. Lisboa teve também a particularidade de liderar tal contestação a partir do momento em que o conflito se tornou público, através de uma representação enviada à Câmara dos Deputados em 23 de agosto de 1834, que adiante abordaremos2. Ora, a compreensão deste conflito generalizado, que opôs os municípios aos últimos governos da regência de D. Pedro IV e aos primeiros governos constitucionais nomeados por D. Maria II, exige que recordemos, ainda que de forma breve, os traços gerais da administração periférica do Estado nos fins do Antigo Regime, os quais foram formalmente destruídos pela legislação de 1832.

O aparelho administrativo do Antigo Regime refletia os princípios fundamentais do sistema político que lhe estava subjacente, uma vez que as instituições administrativas, enquanto extensão e parte integrante de um determinado aparelho de Estado, são responsáveis pela difusão dos códigos políticos dominantes, pela normalização dos comportamentos sociais e pelo exercício das funções coercitivas e ideológicas inerentes ao modelo político vigente e emanadas do centro do sistema político3. A concentração de poderes típica da monarquia absoluta determinava a não separação das funções administrativas, judiciais e fiscais, exercidas frequentemente pelos mesmos funcionários. A não coincidência das divisões territoriais relativas a essas funções fazia multiplicar o número de agentes atuantes num mesmo espaço, imperando a complexidade do sistema administrativo que, nos seus traços gerais, chegou a 1832.

Nos fins do Antigo Regime, as comarcas e os concelhos eram as as unidades básicas da administração periférica portuguesa, nas quais agiam os funcionários régios encarregados do controlo administrativo e da aplicação da justiça: os corregedores e os juízes. Com competências administrativas e financeiras existiam ainda os provedores, cujas áreas de atuação coincidiam, genericamente, com as comarcas4.

A comarca era a área de jurisdição do corregedor, primeiro magistrado régio na hierarquia da administração periférica, o qual detinha vastas atribuições de caráter judicial, administrativo, fiscal e policial. Politicamente, tutelava o governo concelhio, organizando e ratificando as eleições, autorizando o lançamento de impostos e fiscalizando as contas. Estes magistrados correspondiam-se diretamente com o poder central, sobretudo através do Desembargo do Paço5.

Os provedores atuavam em áreas semelhantes às comarcas e detinham competências administrativas e financeiras, sendo particularmente responsáveis pela arrecadação das receitas reais.

A administração local básica assentava nos concelhos, governados pelas câmaras municipais, cujos vereadores eram eleitos localmente e confirmados pelo Desembargo do Paço, ou pelos senhores das terras, conforme se tratasse de concelhos da Coroa ou de concelhos em que os donatários possuíam tal capacidade6. Nos concelhos da Coroa, as câmaras eram presididas por juízes de fora, subordinados aos corregedores e com vastas atribuições nos campos da justiça, da administração e do policiamento. Nos restantes concelhos, estas funções eram desempenhadas por juízes ordinários, eleitos localmente em conjunto com as vereações.

Fora deste quadro administrativo genérico ficava a cidade de Lisboa. O órgão dirigente da Câmara Municipal era o Senado, presidido por um fidalgo de primeira grandeza e composto por vereadores de nomeação régia, que eram desembargadores e tinham o privilégio do uso do título de conselheiros. Além dos seis vereadores, integravam ainda o Senado quatro procuradores dos mesteres e dois procuradores da cidade7.

Era às câmaras municipais que cabia a responsabilidade de toda a administração concelhia. As vereações atuavam com inteira liberdade na elaboração de posturas que regulamentavam a vida dos concelhos, dado que a elas pertencia “ter carrego de todo o regimento da terra e das obras do concelho, e de tudo o que puderem saber e entender para que a terra e os moradores dela possam bem viver”. Assim, deviam ser feitas as posturas “que cumprir ao prol e bom regimento da terra, considerando em todas as coisas que ao bem comum cumprirem”8.

Os órgãos camarários dispunham, pois, de ampla autonomia na gestão dos negócios concelhios, uma vez que as suas deliberações podiam abranger qualquer aspeto da vida local e, desde que respeitassem as formalidades prescritas na lei, não podiam ser revogadas por ninguém, incluindo os corregedores. Acresce que, ao contrário do que acontecia noutros estados europeus, não existiam em Portugal instituições regionais que se contrapusessem ao poder da Coroa9 ou que interferissem nas decisões concelhias, pelo que as instâncias intermédias entre o centro e o local (ou seja, as câmaras) eram os delegados da Coroa, os corregedores e provedores de que atrás falámos, de onde resultava que “o contraponto do centro eram os poderes locais e sobretudo municipais”10.

As prerrogativas camarárias mantiveram-se até ao advento do liberalismo, o que explica as fortes reações dos municípios a uma legislação que alterava completamente o modelo de funcionamento das vereações e, sobretudo, retirava-lhes a capacidade de aplicar as suas decisões, como estavam habituadas a fazer.

Desde os fins do século XVIII que, por influência das novas ideias políticas e administrativas resultantes do racionalismo iluminista e teorizadas, fundamentalmente, pelo cameralismo11, se preconizou um reforço do poder central, uma “administração ativa” e um reordenamento social mais racional, o que passava por alterações substanciais ao nível do ordenamento político-administrativo do território. Nesse sentido se publicou a lei de 19 de julho de 1790, vulgarmente conhecida por lei da reforma das comarcas12, cuja aplicação pode ser considerada um fracasso, tendo produzido escassas alterações territoriais e administrativas.

Por outro lado, no domínio político, social e administrativo, a Revolução Francesa constituiu um marco de primordial importância na transformação das estruturas tradicionais herdadas do Antigo Regime. As reformas levadas a cabo em França depois de 1789 vieram a exercer influência em boa parte do continente europeu, servindo de modelo a ulteriores transformações operadas em diversos países, designadamente Portugal. Em termos de aplicação prática, tais influências remontam à ocupação francesa, com a criação dos corregedores-mores, através do decreto de Junot datado de 1 de fevereiro de 180813. Estes funcionários, em resultado da sua atuação, deixariam no imaginário político português uma impressão negativa, invocada posteriormente para rejeitar modelos administrativos centralizadores.

Com o advento do liberalismo e a construção do Estado liberal, debateu-se amplamente a questão da administração periférica. Importa sublinhar a existência e o confronto, entre os liberais portugueses, de duas correntes de pensamento referentes à reforma da administração pública: uma que seguia os princípios orientadores do modelo francês centralizado e que defendia a bondade das grandes circunscrições administrativas, subordinadas a representantes regionais e locais do poder central, com vastas competências; e outra que rejeitava tal modelo, servindo-se de argumentos vários e invocando, designadamente, a má experiência dos corregedores-mores e a tradição municipalista portuguesa, para defender um modelo descentralizado de administração pública, supostamente mais coerente com os usos e costumes dos portugueses. Estas duas correntes estão bem patentes nos debates sobre reformas administrativas travados nas Cortes em 1822 e 1826-1828, os quais abordaram, quer as instituições administrativas, quer o ordenamento administrativo do território, sem que se tivesse aprovado então qualquer reforma da administração periférica14.

Refira-se, desde já, que um dos mais interventivos representantes da corrente que se opunha ao modelo centralizador, em 1828, foi o deputado Francisco António de Campos, futuro presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Mais adiante abordaremos as suas posições sobre esta temática.

Foi pela pena de Mouzinho da Silveira, ministro de D. Pedro IV em 1832, que a influência francesa em matéria de administração pública atingiu o seu ponto mais alto em Portugal. Dando cumprimento à Carta Constitucional de 1826, o decreto nº 23, de 16 de maio de 183215, estabelece a primeira reforma administrativa liberal, dividindo o país em províncias, comarcas e concelhos, sendo abolidas as demais divisões pré-existentes. E porque “a autoridade pública para a execução das leis está na deliberação e na ação”16, devendo diferenciar-se estas duas funções, atribui-se a ação a magistrados administrativos de nomeação régia, enquanto a deliberação pertence a conselhos de cidadãos eleitos.

Assim, a província é administrada por um “chefe único”, o prefeito, cujo delegado na comarca é o subprefeito, enquanto o concelho é administrado por um provedor. De nomeação régia, sob proposta do ministro do Reino, prefeitos, subprefeitos e provedores são delegados da autoridade do rei nas respetivas circunscrições administrativas, estabelecendo-se uma rígida hierarquia entre eles. Todos os magistrados são amovíveis, a arbítrio do governo, podendo os corpos administrativos ser dissolvidos pelo prefeito, mediante autorização régia.

Quanto às atribuições dos órgãos e magistrados, o decreto é claro, no seu artigo 30º: “O prefeito é o chefe único de toda a administração da província, o delegado da autoridade do Rei, e para o quanto é do bem-estar e comodidade dos povos, investido de todas as atribuições”. Ele é também “a única via legal e ordinária de correspondência com o Governo e as Cortes”.

À semelhança do homónimo francês, o prefeito é um pequeno soberano na respetiva província, investido dos mais amplos poderes, referentes a todas as áreas da vida nacional. Trata-se da materialização de um modelo altamente centralizado de administração periférica, defendido ao mais alto nível do poder político então vigente. Mouzinho da Silveira foi mesmo mais longe do que os seus predecessores, ao transpor para Portugal a própria designação dos magistrados administrativos franceses, embora não se tenha esquecido de introduzir no modelo copiado algumas adaptações às características peculiares de Portugal.

Este decreto previa a existência de um mapa com o novo ordenamento administrativo do território, mas tal instrumento viria a ser publicado apenas em 1833, através do decreto nº 65, de 28 de junho17, complementar do anterior. Nele se prescrevia a existência de 8 províncias, 40 comarcas e 796 concelhos, não havendo grande diferença entre esta malha territorial e a do Antigo Regime, com exceção de uma nova arrumação das circunscrições administrativas.

Mais uma vez se estabelece um quadro específico para Lisboa, atendendo à extensão do concelho e seu termo. Com efeito, o artigo 7º daquele decreto divide a cidade em seis bairros, para efeitos judiciais, equiparando cada um deles a cabeça de comarca e também a concelho. Donde resultava que em cada uma destas circunscrições (vulgarmente designadas por “distritos”) existia um provedor, contando a cidade com seis destes delegados do poder central, o que não deixou de ter reflexos nas posições tomadas pela Câmara em relação ao novo sistema administrativo.

Nos termos do decreto de 16 de maio de 1832, o provedor é o encarregado de todas as funções executivas da municipalidade e o tutor e defensor dos interesses comuns. Ou seja, a Câmara deliberava e o provedor executava as deliberações, o que contrariava toda a tradição municipal e gerava uma vasta área de conflito com as vereações eleitas. Além de que cabiam ao provedor importantes competências nas áreas do registo civil, da vigilância policial, da fiscalização dos abusos de autoridade na cobrança de impostos, da inspeção a escolas e do recrutamento do exército e alistamento da guarda nacional18.

Os provedores podiam assistir às sessões da Câmara, com voto consultivo, tendo lugar destacado à esquerda do presidente. No caso de Lisboa, a entrada dos provedores dos diferentes “distritos” nas sessões camarárias é assinalada casualmente, quando têm de tratar de assuntos da sua competência, designadamente as questões relacionadas com o recrutamento militar e com a guarda nacional. Mas não são presença assídua em todas as reuniões da vereação.

Traçado o quadro geral da nova administração, vejamos como se desenrolou o conflito entre a Câmara Municipal de Lisboa e o governo, a partir de março de 1834.

 

A CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA E A CONTESTAÇÃO DO SISTEMA ADMINISTRATIVO

Aplicado à medida que os liberais iam vencendo as forças de D. Miguel e conquistando o território, o sistema administrativo de 1832 provocou uma onda de protestos de norte a sul do país, transformando-se num dos mais complexos problemas discutidos pelas Cortes logo após a sua abertura, em 15 de agosto de 1834, e mostrando-se ineficaz na resolução dos problemas resultantes da guerra civil.

Ocupado o território, nas cidades e povoações mais importantes o governo substituía as câmaras por comissões municipais, integradas por elementos da sua confiança, cuja missão era a administração provisória dos concelhos até que as condições políticas permitissem a aplicação da reforma administrativa, no que às eleições camarárias dizia respeito.

Assim aconteceu em Lisboa, em julho de 1833. O velho Senado foi definitivamente abolido19 e substituído por uma comissão municipal, presidida por António de Saldanha da Gama, conde de Porto Santo, e que tinha como vice-presidente José Francisco Braamcamp de Almeida Castelo Branco. Foi esta comissão que governou a cidade até à posse da primeira Câmara eleita segundo as novas normas legais20.

A eleição indireta das câmaras municipais, prevista no artigo 11º do decreto de 1832, revelou-se impraticável, protelando-se a sua efetivação, tanto mais que ao governo convinha manter as comissões da sua confiança, para garantir o controlo das eleições legislativas que viriam a ter lugar em 1834. Mas um conflito surgido no Porto em dezembro de 1833, em que um motim popular conduziu à substituição da comissão municipal, forçou o Ministério a legislar sobre as eleições camarárias, regulamentadas pelo decreto de 9 de janeiro de 1834. Baseado num projeto sobre o mesmo assunto aprovado pelas Cortes em 1827, este diploma considerava inviável a execução do decreto de Mouzinho da Silveira enquanto se não procedesse à nova divisão administrativa do território e determinava a eleição direta de câmaras municipais, cujo mandato duraria até à reorganização territorial dos concelhos. Nos municípios já reorganizados, o mandato das câmaras eleitas seria anual, como aconteceu em Lisboa.

O decreto de 9 de janeiro determinava que as vereações seriam compostas por três elementos, nos concelhos que tivessem até mil fogos; por cinco, nos que tivessem até três mil; e por sete, nos que tivessem mais de três mil. As exceções eram o Porto, que teria nove vereadores, e Lisboa, com treze. Seria presidente da Câmara o vereador mais votado, e fiscal o que ficasse em segundo lugar na votação.

Logo que foi recebido na Câmara de Lisboa o decreto referido, a comissão municipal desenvolveu as diligências necessárias à eleição da nova vereação, a qual teve lugar em 16 de março21.

A votação ditou os resultados constantes do quadro 1, assumindo a presidência Francisco António de Campos, enquanto vereador mais votado, e sendo fiscal Joaquim Gregório Bonifácio, segundo em número de votos. Esta primeira Câmara Municipal de Lisboa tomou posse em 25 de março de 1834 e entrou imediatamente em efetividade de funções22.

 

 

Como atrás se disse, na primeira sessão camarária o presidente questionou a vereação sobre se deveriam ser reclamados os antigos “atributos” municipais, tendo recebido luz verde para reivindicar o que considerava serem as competências usurpadas pela “lei das prefeituras”. E a ação não se fez esperar: logo em 2 de abril foi enviada ao governo a primeira representação municipal sobre o assunto23.

Francisco António de Campos era fiel a si mesmo e o que fazia era retomar e pôr em prática as posições que tomara em 1827 e 1828 na Câmara dos Deputados, sobre o modelo centralizador de administração pública. Ele fora então um dos protagonistas da oposição a este modelo, confrontando-se verbalmente com Luís António Rebelo da Silva, defensor da centralização à maneira francesa. A propósito de um projeto de lei que previa a instituição de administradores provinciais com vastos poderes (correspondentes ao futuros prefeitos de Mouzinho da Silveira), declarou Francisco António de Campos em 1828: “Eu me oporei sempre a semelhante instituição de origem napoleónica e fundada no mais absoluto despotismo (...). Esta instituição é mesmo contrária à natureza do governo representativo, com o qual se não compadece o pôr nas mãos de um indivíduo tamanha porção de autoridade (...). Um administrador de província (...) é um verdadeiro soberano, que reúne em si todos os poderes; os secretários de estado não são nada à sua vista (…). Estes empregados serão úteis nos governos absolutos (…), mas nos governos livres não podem admitir-se, porque as leis é que imperam e não os indivíduos”24.

Se o conjunto da vereação lisboeta assume posições contrárias ao governo conservador de D. Pedro, aproximando-se da chamada “oposição” que viria a apoiar o movimento setembrista, Francisco António de Campos não deixa dúvidas quanto ao seu percurso político. O futuro barão de Vila Nova de Foz Côa25 fora deputado às Cortes de 1822 e de 1826-1828 e viria a ser novamente eleito para várias legislaturas a partir de 1834. Membro do Grande Oriente Lusitano, desempenhou o cargo de ministro da Fazenda em 1835 e em 1836, e na conjuntura setembrista chefiou a Sociedade Patriótica Lisbonense. Já no período cabralista presidiu também à Associação Eleitoral Setembrista, criada em 183726, mantendo, portanto, uma coerência ideológica que ajuda a compreender a sua atuação à frente da Câmara de Lisboa.

A primeira representação enviada ao governo pela Câmara Municipal de Lisboa levanta todas as questões fundamentais que viriam a estar no centro dos conflitos travados entre as vereações e o poder central. Desde logo, do ponto de vista formal, a Câmara desrespeita a norma legal que impunha o prefeito como “a única via legal e ordinária de correspondência com o governo e as cortes”27. Apenas o prefeito da Estremadura (neste caso concreto) estava autorizado a corresponder-se com os ministérios, o que significa que a Câmara deveria enviar-lhe todo e qualquer documento dirigido ao governo, sendo ele a reenviá-lo posteriormente. Ao ultrapassar esta instância administrativa, a Câmara mostrava não reconhecer a autoridade do prefeito e considerava-se no direito de se corresponder diretamente com o Ministério do Reino.

Aliás, ao longo do ano de 1834, a Câmara fez questão de contrariar ostensivamente as ordens do prefeito e de afirmar a sua autoridade perante ele. Vejamos alguns exemplos. Em 3 de junho, o prefeito da Estremadura recomendou à Câmara que procedesse à atribuição de gratificações aos provedores, de acordo com o estipulado no artigo 65º do decreto de 16 de maio de 1832. De imediato a Câmara ordenou ao secretário que “formasse o projeto de resposta negativa fundada no mesmo Decreto”. O projeto foi lido na mesma sessão, aprovado e enviado ao prefeito28.

Em 14 de junho, o prefeito oficiou novamente à Câmara, mandando proceder à eleição de novo juiz de paz da freguesia da Ajuda, em virtude do falecimento do antigo. A resposta foi imediata e continha uma lição ao magistrado administrativo: existindo na freguesia um indivíduo que tinha sido votado para o cargo, ficando em segundo lugar no escrutínio, “era este um caso em que não obstante haver empedimento permanente não tinha lugar a nova eleição”, porquanto o referido número dois assumiria de imediato o cargo de juiz. Além de responder negativamente ao prefeito, na mesma sessão a Câmara expediu as ordens para que o referido cidadão viesse prestar juramento e entrasse no exercício das funções29.

Alguns dias depois, o prefeito sugeriu à Câmara que apoiasse os indigentes da guerra civil, que vegetavam pela cidade sem meios de subsistência. A sugestão era que a Câmara empregasse oitocentos a mil desses indigentes nos trabalhos das calçadas, ou que, em alternativa, abrisse uma subscrição pública para os socorrer. A Câmara invocou de imediato a falta de meios para tal efeito30, respondendo três dias depois que a subscrição sugerida era de “pouco proveito (…) por ser um socorro muito transitório”. Assim, a única medida praticável seria a de empregar na limpeza e nas calçadas “aquelle numero que fôr possivel”, e só depois de a Câmara receber as prestações respetivas31. Ou seja, a solução era a que a Câmara entendia e não a que fora sugerida pelo prefeito.

Também em relação aos provedores, a Câmara não perde tempo a afirmar a sua autoridade. Quando o juiz do ver-o-peso consultou a vereação sobre se deveria cumprir as ordens do provedor do terceiro distrito referentes a estivas, a resposta foi imediata: o juiz não devia cumprir “ordem alguma senão da Camara” e deveria participar isso mesmo à referida autoridade32.

É, pois, muito clara a atitude da Câmara de rejeição das autoridades administrativas, que considerava “usurpadoras” dos seus poderes, ao mesmo tempo que reclama a alteração da legislação vigente, numa clara afirmação do que entendia ser o “poder municipal”, a que se julgava com direito33.

Analisemos o conteúdo da representação de 2 de abril de 183434. A Câmara começa por reclamar a observância do artigo 133º da Carta Constitucional de 1826 que, em seu entender, constitui o “poder municipal”. Este artigo consagra a existência, em todas as cidades e vilas, de câmaras municipais, às quais “compete o governo económico, e municipal” dos respetivos concelhos. Era este poder constitucionalmente consagrado que a Câmara considerava ter sido usurpado pela legislação de 1832, dado que o decreto de 16 de maio prescrevia que as posturas municipais teriam de ter a sanção do provedor e a confirmação do prefeito35. Além disso, depois de aprovadas, as posturas eram executadas, não pela Câmara, mas pelo provedor do concelho36, o que constituía uma ingerência do “poder administrativo” no “poder municipal”, outrora independente e soberano na governação dos municípios. Tal ingerência era “subversiva de todos os princípios”, não devendo os representantes do governo exercer outras funções que não fossem as de “pública administração”, porque sendo autoridades administrativas, “estão fora da esfera municipal”.

Considerava a Câmara que as vereações obravam “na qualidade de mandatárias dos seus constituintes”, pelo que deveriam ter ampla autoridade, já que as atribuições de governança dos concelhos “são privativas das câmaras”. Nos termos da Carta Constitucional, na leitura que dela faz a Câmara, o “poder municipal” é independente do “poder administrativo”.

Com efeito, o que a Câmara de Lisboa faz é contrapor duas legitimidades distintas: a legitimidade advinda diretamente do voto dos cidadãos do concelho, que considera ser o fundamento do poder municipal e que, por isso mesmo, é incompatível com ingerências de autoridades não eleitas; e a legitimidade política inerente ao poder executivo, que confere ao governo o direito de nomear os seus agentes locais, constituindo o poder administrativo. Mas este não pode sobrepor-se ao que emana da vontade expressa nas urnas pelos cidadãos, apesar de o voto censitário determinar universos eleitorais bastante restritos37.

Em virtude de a criação dos provedores ser “incompatível com a existência das municipalidades” e de estas serem “a base do edifício social”, a Câmara confia que “Sua Majestade Imperial mandará o que for servido”, ou seja, embora se sugira a revogação da legislação de 1832, ela não é expressamente exigida, como virá a acontecer mais tarde.

As tentativas de recuperação da autoridade perdida e de fuga ao controlo dos agentes governamentais continuaram a ocupar os trabalhos da Câmara Municipal. Na sessão de 14 de abril de 1834, o presidente apresentou um projeto para a criação de comissários municipais e regulamentação das respetivas funções. Tais funcionários deveriam substituir os antigos almotacés, extintos pela legislação de 183238. Apesar de ter sido logo aprovado na generalidade, quis o presidente que o projeto fosse analisado em pormenor por todos os vereadores, pelo que o mesmo veio a ser discutido e definitivamente aprovado na sessão seguinte39, constituindo o objeto da segunda representação ao governo, datada de 15 de abril de 1834.

Os almotacés tinham sido formalmente extintos em 183240, passando as suas atribuições judiciais para os juízes competentes e as administrativas para os provedores de concelho. Embora a cessação de funções dos almotacés não fosse imediata, o papel que desempenhavam de policiamento e de observância do cumprimento das posturas municipais deixou um vazio que preocupava a Câmara, dado que não confiava nos provedores para a substituição daqueles funcionários41.

A representação de 15 de abril de 183442 reforça a crítica aos provedores do concelho, considerando-os não idóneos para a fiscalização da execução das posturas, porque não sendo agentes da Câmara nem por ela nomeados, não podia a vereação responsabilizá-los em caso de mau serviço, desobediência ou prevaricação. Acusava-os mesmo de, nos mercados da cidade, designadamente o da praça da Figueira, darem ordens e condenarem os oficiais camarários, exorbitando os seus poderes e funções.

De acordo com a regulamentação de funções apresentada pela Câmara, os comissários municipais teriam a exclusividade da execução das posturas e deliberações camarárias, retirando-se esse poder aos provedores. O seu número seria o que a Câmara entendesse necessário nos bairros da cidade, sendo pagos pelo orçamento municipal. Tinham competência para levantar autos das contravenções que presenciassem, os quais seriam depois enviados aos juízes competentes, desempenhando os comissários as funções dos delegados do procurador régio nos processos judiciais respetivos. Poderiam ainda usar armas defensivas e chamar as forças policiais para reprimir desacatos, ficando sujeitos a demissão em caso de abuso de poder.

Basicamente, eram competências dos provedores que se reclamavam para estes novos funcionários, que a Câmara solicitava autorização para criar. Insistindo na necessidade de reduzir a intervenção dos provedores do concelho, a vereação voltará a aprovar, poucos dias depois, nova representação ao governo, pedindo uma demarcação clara da autoridade da Câmara e da dos provedores, “para obviar ao conflito desagradavel das jurisdições, e contrariedade das leys neste assumpto”43.

A resposta governamental às solicitações da vereação incendiou as relações entre o poder central e a Câmara de Lisboa. Pela mão do ministro do Reino, Bento Pereira do Carmo, a Câmara foi repreendida, acusada de pretender “empecer” a ação do governo, de não saber distinguir as funções das câmaras antigas das atuais, de abusar da linguagem para confundir ideias, de não saber interpretar a Carta Constitucional, e de pretender criar “um Estado dentro do Estado”, ao invocar um “poder municipal” que colocaria a gestão camarária fora de qualquer controlo do poder central44.

Com efeito, no ofício datado de 22 de maio de 1834, o ministro invocava a consulta que fizera ao procurador-geral da Coroa para considerar que a Câmara estava equivocada na leitura que fazia da Carta Constitucional e que a legislação de 1832 não era “inconstitucional”, porque correspondia à prevista no artigo 135º da Carta, que a vereação se esquecera de mencionar. Por outro lado, eram abusivas as designações de “poder municipal” e de “poder administrativo”, usadas pela Câmara, porque a Carta previa apenas quatro poderes, pelo que a vereação não deveria “abusar das palavras para não confundir as ideias”. Esta lição de direito constitucional completava-se com a advertência de que, “num sistema constitucional bem regulado, os corpos coletivos de eleição popular deliberam mas não executam”, pelo que as funções dos provedores eram inteiramente ajustadas e deveriam manter-se.

Sobre os eventuais abusos de poder dos provedores, lembrava o governo que a Câmara tinha ao seu dispor o direito de representação ou queixa, através do qual poderia denunciar qualquer prevaricação, que o governo se encarregaria de punir.

Em jeito de admoestação final, o ministro esperava que a Câmara se limitasse “aos objetos da sua competência”, que não se intrometesse em assuntos que eram da alçada do poder legislativo e que colaborasse com o governo, “em vez de o empecer” na sua laboriosa e difícil empresa.

Esta autêntica declaração de guerra teria um complemento na resposta relativa aos comissários municipais, datada de 23 de maio de 183445. O governo não se limitava a recusar a criação de tais funcionários, mas acusava também a Câmara de, com eles, pretender criar novos almotacés, e voltava a recordar que para a execução das deliberações camarárias existiam os provedores do concelho, que para tal não precisavam de ser agentes nem subordinados da Câmara.

O conhecimento das posições do Ministério indignou a Câmara Municipal46 e conduziu o conflito ao seu ponto mais alto, com o pedido de dissolução apresentado ao governo, uma vez que, em termos legais, a vereação não podia renunciar ao mandato. Em três sessões consecutivas, a Câmara discutiu e refutou os argumentos ministeriais e aprovou a nova representação, enviada a 27 de maio e que consagrava a rotura política com o governo47. Com a negação dos comissários municipais, a Câmara sentia-se “quase reduzida à nulidade” e ferida na sua dignidade, considerando que não lhe restava outra saída que não fosse a dissolução.

A formação jurídica de Francisco António de Campos está bem patente no documento enviado ao governo, em que refuta todas as acusações que tinham sido feitas à Câmara, embora declare que acata e que cumprirá as determinações ministeriais. Contrapõe a sua interpretação da Carta Constitucional, reafirma a justeza do conceito de “poder municipal”48, continua a sustentar a inconstitucionalidade da legislação de 1832 e nega ao Ministério a capacidade de condenar as posições da Câmara, porque “as opiniões do Governo não são o símbolo que deva regular as opiniões do público”. Também não lhe reconhece o direito de interpretar as leis, pelo que, “à opinião do Governo pode a Câmara opor a sua”, que é tão válida como a do Ministério, “enquanto a autoridade competente não decidir”49. Declarando-se “magoada” com a acusação de querer “empecer” a ação do governo, a Câmara afirma que não fez mais do que utilizar o direito de representação “que lhe compete e que ninguém lhe pode contestar”.

No entendimento da Câmara, as posições governamentais colocavam-na numa situação de diminuição física e moral, pelo que não podia “continuar a exercer as suas funções”. Assim, não podendo demitir-se por autoridade própria50, como desejaria, solicita ao governo a dissolução, restringindo a sua ação ao expediente ordinário.

Trata-se, portanto, de um conflito insanável entre duas instâncias de poder, cujos contornos se entendem melhor à luz das divisões da “família” liberal que, a partir da abertura do Parlamento, conduziriam aos confrontos políticos que viriam a desembocar na revolução de setembro de 1836, e nos quais Francisco António de Campos continuará envolvido.

A resposta do governo a esta solicitação camarária demorou quase um mês, apesar de a Câmara continuar a insistir na urgência da dissolução, por considerar que a posição equívoca em que se encontrava, bem como a redução de atividade que impusera a si própria, a impediam de desempenhar cabalmente as suas funções e dar resposta aos problemas do município51. A demora do governo exasperou a vereação e provocou longas e acesas discussões, reveladoras de alguma divisão interna e da existência de posições de grande radicalismo, às quais se opõe o presidente, que conta inicialmente com o apoio da maioria dos seus pares.

Uma das propostas mais radicais foi apresentada pelo vereador José Inácio de Andrade, na sessão de 16 de junho de 183452, cujo conteúdo levou o presidente a agendar a discussão para a sessão seguinte, recomendando a presença de todos os vereadores. A proposta considerava que o decreto de 16 de maio de 1832 violava de tal modo a Carta Constitucional que a sua observância constituía um perjúrio que não se podia cometer, pelo que a Câmara deveria suspender as suas sessões, apresentando aos eleitores os motivos dessa atitude e os autores da sua ”forçada nulidade”, ou seja, o governo. Defendia a publicitação de todo o conflito, como forma de a Câmara se justificar perante os cidadãos e, como o Ministério não atendia as reclamações enviadas, propunha a formação de uma deputação municipal que fosse expor diretamente ao regente D. Pedro toda a problemática com que o município se debatia. Ou seja, para além de uma espécie de “greve” da vereação, o autor da proposta pretendia que se ultrapassasse, não apenas o prefeito, mas também o próprio governo, numa atitude inteiramente subversiva dos procedimentos protocolares da época e da própria legislação.

A discussão destas propostas ocorreu na sessão de 19 de junho de 183453, a qual, sendo aberta ao público, contou com um “numerosissimo auditorio”54 e durou cerca de cinco horas, mostrando a complexidade e a divergência de opiniões sobre a matéria em análise. A maioria da vereação, incluindo o presidente, considerava que era urgente continuar a exigir ao governo respostas para os problemas apresentados e dava razão a José Inácio de Andrade quanto aos fundamentos teóricos da sua proposta, mas discordava dos meios sugeridos para alcançar os objetivos camarários. O presidente deu o mote à discussão, considerando que a questão da constitucionalidade das leis era “matéria política” que cabia à Câmara dos Deputados, pelo que a vereação não deveria exorbitar as suas competências, para não perder a razão que lhe assistia. A Câmara deveria continuar a utilizar o expediente da “representação” ao governo, o que significava a rejeição de qualquer deputação municipal que ultrapassasse a legalidade e os procedimentos habituais.

Também no que dizia respeito à publicitação do conflito, chegou a propor-se que ela se fizesse mediante afixação de documentos à porta da Câmara, mas venceu uma opinião mais moderada, que considerava ser a sessão de porta aberta suficiente para dar a conhecer as razões da vereação e justificar os seus procedimentos. Para tal, foi lida exaustivamente toda a documentação trocada entre a Câmara e o governo, tendo o presidente feito também o historial da ação desenvolvida desde a instalação da Câmara até àquele momento, salientando que a vereação só não rejeitara o mandato para que fora eleita porque a legislação o não permitia.

A representação resultante deste debate e enviada ao governo no mesmo dia limitava-se a insistir na urgência da dissolução anteriormente requerida, dado que a ação da Câmara estava limitada pelo “estado de nulidade” em que se encontrava. Num discurso mais moderado do que o das representações anteriores, a vereação reiterava que se sujeitava às determinações legais e que não queria “sair da sua órbita”, mas não podia aceitar as anteriores acusações feitas pelo governo e não desistia do direito de representação para expor as suas convicções55.

O governo viria a negar à Câmara a dissolução solicitada, alegando que respeitava “a honrosa escolha” que fora feita pelos habitantes da capital, pelo que só recorreria ao expediente da dissolução quando o bem público o exigisse56. Ficavam, assim, goradas as pretensões da vereação e mantinham-se os problemas inerentes ao sistema administrativo, que viriam a transitar para a Câmara dos Deputados logo após a sua abertura.

A recusa governamental motivaria ainda uma nova representação camarária, cuja discussão voltou a evidenciar a diversidade de opiniões no seio da vereação. Na sessão de 25 de junho de 1834, o vereador Manuel Alves do Rio considerou ofensivo para a Câmara que a correspondência ministerial viesse em forma de “portaria”57, assinada pelo ministro do Reino, e não “firmada pelo punho real”, como tradicionalmente acontecia com os documentos dirigidos ao antigo Senado58. Não só exigiu que este reparo ficasse registado em ata, como pretendia que ele fosse comunicado ao Ministério59, o que não obteve aprovação.

Nesta sessão evidencia-se o isolamento do presidente, colocado em minoria quando pretendeu que a questão “se devia dar por acabada, não se tractando mais de semelhante materia”60. Foi apoiado apenas por Joaquim Gregório Bonifácio e por João Matos Pinto, registando a ata que “a maioria”, concordando que a matéria estava discutida, considerou que isso não obstava a que “se não fizesse subir ao throno ainda mais outro brado, attenta a permanencia do estado equivoco em que se deixava a Camara”61, sem meios para desenvolver a sua ação. Foram então apresentadas três propostas de representação a enviar ao governo, subscritas por outros tantos vereadores: José Inácio de Andrade, Anselmo José Braamcamp e Manuel Alves do Rio, sendo a de Braamcamp a escolhida para base da discussão.

Este debate parece evidenciar que já estava longe o tempo em que os projetos do presidente eram aceites sem grande discussão e em que a coesão política dos vereadores se sobrepunha a posições individuais. Francisco António de Campos não só não apresentara qualquer texto, como pretendia encerrar a questão, como se entendesse que não valia a pena insistir com um governo que teimava em contrariar as pretensões camarárias. Governo que ele combatia em termos mais gerais, dado que integrava a chamada “oposição constitucional”, isto é, o grupo dos futuros setembristas62.

Se é certo que esta problemática provocara cansaço e desgaste da vereação, um outro fator pode ajudar a compreender a atitude de Francisco António de Campos: é que tinham acabado de ser convocadas as eleições para a Câmara dos Deputados, que viriam a realizar-se a 13 de julho63 e nas quais o presidente da Câmara seria eleito deputado. Ora, a partir de 15 de agosto de 1834, o Parlamento torna-se o centro da vida política, competindo-lhe em exclusivo a função legislativa, pelo que é compreensível que as esperanças de Francisco António de Campos se orientassem já para a futura Câmara dos Deputados, como se deduz da própria representação enviada ao governo em 26 de junho, em resultado do debate da vereação.

Com efeito, esta representação (a última dirigida ao governo pela vereação de 1834), para além de reafirmar as razões anteriores, informava que a Câmara continuaria os seus trabalhos, limitando-se aos assuntos a que não obstasse a legislação de 1832, e reservava-se o direito de dispor livremente dos seus fundos, “cuja arrecadação e aplicação a Câmara está resolvida a não confiar senão às pessoas que formam o corpo eletivo da municipalidade”64. O documento continha ainda um desafio ao governo, ao afirmar que “o tempo mostrará (…) quem tinha mais amor do bem público: se a Câmara, pedindo a quem fizera o decreto que o alterasse na parte (…) em que ataca os direitos das municipalidades, ou quem sustenta o mesmo decreto, que além de anticonstitucional, é inaplicável a Lisboa”. E terminava com uma alusão à futura reunião do corpo legislativo, apelando, desde logo, “para as imparciais decisões deste respeitável Congresso”65.

Com efeito, a luta do município de Lisboa será transferida para a Câmara dos Deputados, servindo de orientação a muitas outras vereações, que reclamarão igualmente os seus direitos.

 

A CÂMARA DOS DEPUTADOS E A ALTERAÇÃO DO SISTEMA ADMINISTRATIVO DE 1832

Iniciados os trabalhos parlamentares a 15 de agosto de 1834, a Câmara dos Deputados é inundada de representações municipais que apelam para a resolução dos problemas com que se debatiam as câmaras, em resultado da aplicação da legislação de 183266. Problemas não apenas meramente administrativos, mas também da ordem da justiça, do ordenamento do território e das finanças municipais, gravemente afetadas pela referida legislação67.

Sublinhe-se que entre as câmaras municipais reclamantes encontram-se, não apenas as de cidades e vilas de razoável dimensão e dinamismo político e social, designadamente Porto, Coimbra, Setúbal, Leiria, Beja, Faro, Guarda, Portalegre, Santarém e Viseu, mas também as de pequenos concelhos condenados à extinção pela lógica administrativa do aparelho de Estado liberal, circunstância que contribuiu para alimentar os protestos. Por outro lado, em boa parte dos mais de 800 concelhos chegados a 1832, as vereações eram constituídas por autênticas “dinastias” de elites locais, habituadas a dispor de ampla autonomia na governança municipal e que dificilmente aceitariam transformações legais que pusessem em causa os poderes de que tradicionalmente dispunham68.

Com exceção de Lisboa, que interpelou o governo ainda antes das eleições legislativas de 1834, os confrontos diretos entre os poderes locais e o poder central materializam-se no envio de reclamações ao Parlamento, uma vez que estava em causa um conjunto de normativos legais que, nos termos da Carta Constitucional, só o poder legislativo podia alterar. Este conflito direto entre as duas instâncias de poder contrasta com muito do que aconteceu noutros países europeus, onde os seculares privilégios regionais foram os alvos preferidos da contestação popular nos períodos de instauração do liberalismo.

Com efeito, o estabelecimento da administração liberal em Espanha confrontou-se com a diversidade de situações e privilégios das autoridades do Antigo Regime nas várias províncias e regiões. A principal reivindicação das populações foi o estabelecimento de “ayuntamientos” nas povoações que não os tinham, o que provocou numerosos conflitos entre velhos e novos municípios. As alterações introduzidas pela centralização administrativa e a sua estabilização deram origem “aos maiores conflitos políticos que os governos liberais tiveram que enfrentar” no país vizinho69.

Também em França os privilégios das diferentes províncias e respetivas autoridades do Antigo Regime constituíram um dos maiores obstáculos ao estabelecimento da administração pública liberal. As divisões administrativas chegadas a 1789 eram múltiplas e incoerentes e variavam conforme as regiões, sendo a “généralité” a unidade mais representativa dos privilégios senhoriais a nível regional. Ao longo do século XVIII, o “intendant”, autoridade máxima da “généralité”, personificou o absolutismo monárquico na sua circunscrição e as memórias odiosas que suscitou levaram a Assembleia Constituinte a decretar que as novas autoridades locais e regionais passariam a estar diretamente subordinadas ao monarca. A vida política e administrativa local passou a residir nas “comunas”, dirigidas por “maires” diretamente eleitos pelos cidadãos ativos, sendo preocupação central dos legisladores a libertação das povoações das velhas influências do clero e da nobreza local e regional70.

Como atrás se referiu, a inexistência, em Portugal, de poderes regionais que se interpusessem entre os municípios e o poder central, determinou a relação e o confronto direto entre estas duas instâncias políticas. E, ao contrário do que aconteceu em Espanha e em França, onde a criação de novas municipalidades fez parte das reformas administrativas liberais, em Portugal um dos principais objetivos do liberalismo foi a redução do número de concelhos, operada drasticamente em 183671.

O conjunto fundamental de protestos municipais dirigidos à Câmara dos Deputados situa-se no período compreendido entre a segunda quinzena de agosto de 1834 e fins de abril de 1835, altura em que ocorre a primeira alteração significativa do decreto de Mouzinho da Silveira relativo ao sistema administrativo, sendo o problema da administração pública um dos mais debatidos neste período, com a oposição parlamentar, em que se integrava Francisco António de Campos, a atribuir à nova administração a responsabilidade de grande parte dos males que preocupavam a sociedade portuguesa72.

A Câmara Municipal de Lisboa é uma das primeiras a dirigir-se à Câmara dos Deputados sobre problemas administrativos, através da representação datada de 23 de agosto de 1834, a que se tem feito referência73. Num extenso documento de seis páginas e 17 anexos, a vereação, com Joaquim Gregório Bonifácio no exercício da presidência74, apresenta e documenta todo o historial do seu conflito com o governo, queixa-se que do Ministério recebera apenas “respostas paliativas” aos problemas que apresentara e, sem quaisquer rodeios, pede “a abolição ou reforma do decreto de 16 de maio de 1832”, apelando aos deputados: “salvai as prerrogativas constitucionais de todas as municipalidades (desta base primitiva e perpétua de todo o poder) e levantareis ao vosso nome um padrão de glória, que (…) permanecerá indestrutível na mais remota posteridade”75.

Ora, a Câmara de Lisboa, embora apresentando o seu caso específico, pede a alteração do sistema administrativo “em nome dos seus constituintes e em prol dos interesses de todas as municipalidades”, considerando que as prefeituras e provedorias reduzem as câmaras, “antigamente tão livres e tão fortes, a uns corpos sem ação própria, simulacros de administração económica, fantasmas irrisórios do poder municipal”, que são “a cada passo empecidas pela ingerência das outras duas autoridades, que lhes são heterogéneas”.

A leitura desta representação, logo na terceira sessão de trabalhos da Câmara dos Deputados76, provocou “um renhido debate”, tendo sido nomeada uma comissão parlamentar para proceder à sua análise, composta pelos seguintes deputados: marquês de Saldanha, Joaquim António de Magalhães, António Marciano de Azevedo, Rodrigo da Fonseca Magalhães, Luís António Rebelo da Silva e(…) Francisco António de Campos. Ou seja, também na Câmara dos Deputados, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa continuava na primeira linha de combate à “lei das prefeituras”, pugnando pela sua revogação.

A comissão parlamentar não produziu qualquer trabalho específico sobre a representação do município lisboeta, dado que o problema era geral e tinha que ser tratado ao nível legislativo, como viria a acontecer. A inexistência de resultados da comissão é reconhecida no início de 1835, quando uma nova representação do município foi enviada à Câmara dos Deputados, reclamando sobre os mesmos problemas.

Com efeito, seguindo os passos do seu antecessor, Anselmo José Braamcamp, presidente da Câmara em 1835, no seu discurso de posse fez questão de afirmar que as câmaras tinham sido atacadas por uma “legislação anti-Constitucional e desorganizadora”, que usurpara as atribuições municipais, pelo que “cumpre-nos defender aquelles dereitos, e reclamar aquellas attribuições por todos os meios legaes que estejam ao nosso alcance”77. Realçando o facto de terem sido reeleitos a maior parte dos vereadores do ano anterior, o novo presidente considerava que esse facto sancionava a ação desenvolvida pela Câmara e traçava o caminho a seguir pela nova vereação. Assim, logo a 20 de janeiro de 1835, a Câmara aprova e envia nova representação à Câmara dos Deputados78, onde reclama a plenitude das suas atribuições e a alteração da legislação de 1832, repetindo toda a argumentação anteriormente exposta e pedindo o cumprimento do solicitado no ano anterior79.

A representação da vereação lisboeta de 23 de agosto de 1834, ao ser lida logo no início dos trabalhos da Câmara dos Deputados, assumiu a liderança do movimento contestatário do sistema administrativo, não só porque divulgava um vasto conflito até então desconhecido, mas também porque a sua publicação no jornal oficial encorajou muitos outros municípios a reclamarem sobre o mesmo assunto, sendo frequentes as referências ao seu conteúdo. A atitude da Câmara da capital contribuiu para a formação de uma opinião pública hostil à legislação de 1832 e às novas autoridades administrativas que, sendo de nomeação ministerial, faziam estender ao governo o ódio das populações afetadas pela reorganização administrativa do território, muitas vezes lesiva dos interesses locais e dos tradicionais hábitos de relacionamento dos povos com os poderes municipais.

Daí que a Câmara dos Deputados viesse a pôr-se de acordo quanto à necessidade de alterar o decreto de 16 de maio de 1832, apesar da existência de duas correntes distintas (uma governamental e outra oposicionista) sobre a forma de o fazer. Enquanto os partidários do governo procuravam salvar o sistema, responsabilizando os seus executores, para a oposição não havia outra solução que não fosse a sua substituição, aliando-se aos protestos municipais. Logo na segunda sessão dos trabalhos parlamentares, Passos Manuel acusa as novas autoridades administrativas de terem impedido o seu partido de vencer as eleições, dada a falta de liberdade e a ação dos prefeitos, pedindo a revogação do decreto de 183280. E na sessão seguinte, é o próprio Francisco António de Campos que considera necessário alterar o sistema, em virtude da desarmonia entre as vereações e os magistrados administrativos, os quais levaram ao país “a inquietação e a perturbação de todos os princípios há séculos estabelecidos, e pelos quais os povos muito bem se dirigiam”81.

A maioria governamental argumentava que os problemas sentidos resultavam da irregularidade e da não simultaneidade na aplicação dos decretos de 16 de maio de 1832, apresentando o exemplo dos Açores como um caso de sucesso daquela legislação, dado que os decretos de reforma da administração, da justiça e da fazenda tinham sido implementados concomitantemente, tendo passado a funcionar harmoniosamente toda a nova máquina estatal. Sabe-se hoje que não terá sido exatamente assim, dado que também em Ponta Delgada existiram conflitos entre a vereação e o provedor82. Por sua vez, Mouzinho da Silveira, também deputado em 1834, continua a defender a sua legislação, que considera “um antídoto contra o despotismo”, dando às câmaras municipais uma “liberdade ampla” e combatendo o arbítrio que corroera Portugal durante a monarquia absoluta83. Apesar desta defesa, Mouzinho não se opunha à revisão dos seus decretos, desde que ela englobasse os três diplomas, por ele considerados inseparáveis, chegando a propor a formação de uma comissão parlamentar para o efeito, o que não foi aprovado.

Certo é que, logo em setembro de 1834, tanto a oposição parlamentar como o bloco governamental consideravam urgente que a comissão de administração pública da Câmara dos Deputados se pronunciasse sobre o decreto de 1832, para que se lhe introduzissem as correções necessárias. Coube a António Luís de Seabra, figura de relevo do bloco oposicionista, a apresentação do primeiro projeto de lei de alteração à legislação de Mouzinho da Silveira. Datado de 7 de outubro e assinado por diversos deputados da oposição, o projeto suprimia os prefeitos e os provedores de concelho, passando as atribuições destes para as câmaras municipais e respetivos presidentes. Outros projetos foram apresentados, tendo a comissão de administração, maioritariamente composta por deputados oposicionistas, incluindo o próprio Seabra, apresentado um parecer que defendia a alteração do sistema administrativo de 183284. Mas a sessão legislativa chegou ao fim sem que se tivesse discutido o parecer, apesar de continuarem a chegar os protestos das câmaras municipais.

Logo no início de 1835, o próprio governo, presidido pelo duque de Palmela, tomou a iniciativa de apresentar um projeto de alteração do sistema de administração pública, pretendendo, no entanto, manter as suas bases. Tal proposta não agradou ao grupo oposicionista, que renovou a iniciativa do ano anterior, o que deu origem a um novo projeto de lei sobre “administração geral e municipal”85. Foi a discussão deste projeto que conduziu à carta de lei de 25 de abril de 1835, que dividia o país em “até dezassete distritos administrativos”, subdivididos em concelhos. Os distritos seriam dirigidos por magistrados de nomeação régia, enquanto nos concelhos passariam a existir os administradores, escolhidos pelo governo a partir de listas tríplices ou quíntuplas de elementos eleitos nas municipalidades. A lei concedia ao governo autorização legislativa para desenvolver este sistema, o que foi feito pelo decreto de 18 de julho de 1835.

Estava, assim, derrubado o sistema administrativo de Mouzinho da Silveira. As novas circunscrições administrativas passaram a ser os distritos, os concelhos e as freguesias, administrados, respetivamente, pelo governador civil, o administrador de concelho e o comissário de paróquia. Apenas o primeiro era de nomeação governamental, sendo os restantes escolhidos a partir de listas eleitas diretamente pelos cidadãos dos concelhos, pela mesma forma das eleições camarárias. E as câmaras municipais recuperavam as suas vastas atribuições, passando a ser da competência dos presidentes a execução das deliberações camarárias. Este sistema seria a base do primeiro código administrativo português, o de 31 de dezembro de 1836, referendado por Passos Manuel e que constituiu uma espécie de interlúdio democratizante da vida municipal.

Com efeito, o código administrativo seguinte, referendado por Costa Cabral em 1842, voltaria a impor um sistema administrativo altamente centralizador, tendo tido uma longevidade de 36 anos, moldando, de facto, a administração pública liberal86.

Em suma, chegava ao fim o conflito com que se debatera a Câmara Municipal de Lisboa e, tal como ela preconizara em junho de 1834, o tempo acabaria por dar-lhe razão.

 

CONCLUSÃO

Na complexa conjuntura política de construção do aparelho de Estado liberal, as transformações efetuadas ao nível da administração periférica chocaram com usos e costumes ancestrais e afetaram as normas e modelos de funcionamento das antigas instituições municipais. Os sistemas administrativos liberais assentam no princípio da dominação legal-racional e a sua construção manifesta-se pelo duplo fenómeno da representação e da burocratização, de forma a que cada instituição reproduza o modelo representativo subjacente à organização do Estado. Tal significa que os agentes administrativos exercem o poder, não em nome próprio, mas em nome da instituição que representam e do próprio Estado, que neles delega parte da autoridade de que está investido. A racionalidade administrativa liberal exige também um ordenamento territorial que reflita a igualdade dos cidadãos, o que se traduz em circunscrições homogéneas em espaço e população, inteiramente incompatíveis com a malha concelhia do Antigo Regime, resultante de arranjos e privilégios casuísticos que, ao longo de séculos, tinham determinado a existência de divisões administrativas inteiramente desiguais.

A aplicação da reforma administrativa de Mouzinho da Silveira impunha, não apenas a alteração das normas de governança dos municípios, mas também a extinção de muitos deles, o que condicionou a atitude contestatária das vereações que, não só viam alterados os poderes de que tradicionalmente dispunham, mas temiam igualmente o desaparecimento dos espaços que lhes permitiam exercer a sua influência política e social.

A reação das vereações contribuiu decisivamente para a rejeição da primeira reforma administrativa liberal, altamente centralizadora, tendo a Câmara Municipal de Lisboa desempenhado um papel importante nesse movimento de protesto generalizado. Embora as motivações da vereação lisboeta fossem de cariz estritamente político, dado que não estavam em causa problemas de ordenamento do território, a sua atuação serviu de exemplo e encorajou as atitudes de protesto de largas dezenas de municípios por todo o país, onde questões políticas e territoriais se cruzavam e mutuamente influenciavam os receios de mudança por parte das vereações.

Ao papel de liderança assumido pela Câmara da capital não foi estranho o facto de a primeira vereação eleita nos termos constitucionais ser composta, pelo menos na sua maioria, por personalidades politicamente situadas num campo oposto ao dos primeiros governos conservadores do liberalismo. O estatuto da capital do país conferia à vereação lisboeta uma força política diferente da de qualquer pequena cidade ou vila do interior, força essa que a Câmara soube utilizar para, a partir da abertura do Parlamento, liderar um processo que tinha consciência de corresponder aos anseios da generalidade dos municípios portugueses. Ao contrário de muitas outras câmaras reclamantes, onde continuavam a estar presentes vereadores que tinham exercido funções na fase final do Antigo Regime, a vereação de Lisboa era composta por personalidades ilustradas e bem conscientes dos objetivos políticos que perseguiam, o que dava consistência às suas reclamações e as tornava resistentes à argumentação do poder central.

Iniciando, logo que tomou posse, uma “guerra” que sabia não ser fácil de vencer, a Câmara Municipal de Lisboa lançou mão de todos os instrumentos de que dispunha para fazer valer os seus pontos de vista e soube esperar pelo momento em que a sua razão foi política e legalmente reconhecida.

 

FONTES E BIBLIOGRAFIA

Fontes manuscritas

Arquivo Municipal de Lisboa

Livro 8º de assentos do Senado

Livro de atas da Câmara Municipal de Lisboa - Tomo I

Livro de atas da Câmara Municipal de Lisboa - Tomo II

Livro 1º de registo de cartas

Arquivo Histórico Parlamentar

Secções I/II

Representações das câmaras municipais à Câmara dos Deputados (1834-1867), Caixas 295 a 312

 

Fontes Impressas

Collecção de decretos e regulamentos mandados publicar por Sua majestade imperial o regente do reino, desde que assumiu a regência até à sua entrada em Lisboa: segunda série. Lisboa: Imprensa Nacional, 1834.

Diário da Câmara dos senhores deputados da nação portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1834-1835.

Gazeta oficial do Governo. Lisboa: Imprensa Nacional, 1834.

Ordenações e leis do reino de Portugal, recopiladas por mandado d’el-rei D. Filippe o primeiro. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1847.

Synopse dos principais actos administrativos da Câmara Municipal de Lisboa em 1834. Lisboa: Impressão de Cândido António da Silva Carvalho, 1834.

 

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submissão/submission: 27/08/2014

aceitação/approval: 22/09/2014

 

 

NOTAS

1 Arquivo Municipal de Lisboa (AML), Livro de atas da Câmara Municipal de Lisboa Tomo I, sessão de 25 de março, f. 1v.

Respeitando as normas definidas pelo AML, nas transcrições de documentos nele existentes manteve-se a ortografia original dos textos. Nas restantes transcrições procedeu-se à atualização da ortografia.

Agradecemos ao AML a celeridade com que nos foi disponibilizada a documentação que necessitamos de consultar para a elaboração deste trabalho.

2A aplicação da reforma administrativa de Mouzinho da Silveira, bem como a sua contestação e alteração, constituem o objeto do nosso livro Mouzinho da Silveira: liberalismo e administração pública. Lisboa: Livros Horizonte, 1989. Para ele remetemos o leitor interessado numa visão global desta problemática.

3Ver: CHEVALLIER, Jacques [et al.] - Centre, périphérie, territoire. Paris: P.U.F., 1978. p. 15, ss. CHEVALLIER, Jacques; LOSCHAK, Danièle - Science administrative: théorie générale de l’institution administrative. Paris: LGDJ, 1978. tomo I, p. 175, ss.

4 Ver: SUBTIL, José - Governo e Administração. In MATTOSO, José (dir.) - História de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 1993. vol. IV, p. 182-186.

5Ver: SUBTIL, José - O Desembargo do Paço (1750-1833). Lisboa: Universidade Autónoma, 1996. p. 243-244.

6 Para a eleição dos corpos camarários nos fins do Antigo regime ver: MANIQUE, António Pedro - Processos eleitorais e oligarquias municipais nos fins do Antigo Regime. In Arqueologia do Estado: 1as Jornadas sobre Formas de Organização e Exercício dos Poderes na Europa do Sul, Séculos XIII - XVIII: comunicações. Lisboa: História e Crítica, 1988. vol. I, p. 109-120.

7Para a evolução geral do Senado, ver: LISBOA. Câmara Municipal. Arquivo Municipal – A evolução municipal de Lisboa: pelouros e vereações. Lisboa: Câmara Municipal. Divisão de Arquivos, 1996. FERNANDES, Paulo Jorge – A organização municipal de Lisboa. In OLIVEIRA, César (dir.) - História dos municípios e do poder local. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p. 103-105.

8 Ordenações e leis do reino de Portugal, recopiladas por mandado d’El-Rei D. Filippe o primeiro. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1847. Livro I, título 66.

9Sobre esta temática, ver: MONTEIRO, Nuno Gonçalo - Elites e poder entre o Antigo Regime e o liberalismo. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2003. p. 19-36. MONTEIRO, Nuno Gonçalo – Poder local e corpos intermédios: especificidades do Portugal moderno numa perspectiva histórica comparada. In SILVEIRA, Luís Espinha da (coord.) - Poder central, poder regional, poder local: uma perspectiva histórica. Lisboa: Cosmos, 1997. p. 47-61. MONTEIRO, Nuno Gonçalo - Os concelhos e as comunidades. In MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 1993. vol. IV, p. 303-331.

10MONTEIRO, Nuno Gonçalo – Poder local…, op. cit., p. 56.

11CHAVALLIER, J.; LOSCHAK, D., op cit., p. 22-23.

12Para o estudo da lei e dos problemas suscitados pelas tentativas da sua aplicação, ver: SILVA, Ana Cristina Nogueira da – O modelo espacial do Estado moderno: reorganização territorial em Portugal nos finais do Antigo Regime.Lisboa: Estampa, 1998.

13Sobre esta temática veja-se: MANIQUE, António Pedro – Junot e as influências francesas na reforma da administração pública em Portugal: o papel dos corregedores-mores. Ler História. Lisboa. N.º 60 (2011), p. 73-99.

14Para uma visão geral destes debates e das propostas discutidas, ver: MANIQUE, António Pedro - Mouzinho da Silveira: liberalismo e administração pública. Lisboa: Livros Horizonte, 1989. p. 31-42. OLIVEIRA, César – Os municípios no liberalismo monárquico constitucional. In História dos municípios, op. cit., p. 179, ss.

15 Collecção de decretos e regulamentos mandados publicar por Sua majestade imperial o regente do reino, desde que assumiu a regência até à sua entrada em Lisboa: segunda série. Lisboa: Imprensa Nacional, 1834.

16 Relatório do referido decreto.

17 Collecção…, op. cit.

18 Artigos 60º - 68º.

19 O último “assento” do Senado data de 22 de abril de 1833. AML, Livro 8º de assentos do Senado, f. 182v.

20Ver AML, Livro 1º de registo de cartas.

21 AML, Livro 1º de registo de cartas, ofício nº 310, de 11 de março de 1834, f. 102v.

22 AML, Livro de atas da Câmara Municipal de Lisboa – Tomo I, 1ª sessão, 25 de março de 1834, f. 1-2.

23As atas da Câmara registam a discussão dos documentos remetidos ao governo e as cópias integrais dos mesmos encontram-se anexos à representação de 23 de agosto de 1834, enviada à Câmara dos Deputados. Ver Arquivo Histórico Parlamentar (AHP), Secções I/II, Representações das Câmaras Municipais à Câmara dos Deputados (1834-1867), caixa 301, maço 7, doc. 34, anexo nº 2.

24Sessão da Câmara dos Deputados de 18 de janeiro de 1828, citada em CAETANO, Marcello - Os antecedentes da reforma administrativa de 1832 (Mouzinho da Silveira). Lisboa: [s.n.], 1967. p. 11.

25Título concedido em 1837.

26Ver: MÓNICA, Maria Filomena (coord.) – Dicionário biográfico parlamentar (1834-1910). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais; Assembleia da República, 2005. vol. II, p. 415-418.

27Artigo 35º do decreto nº 23, de 16 de maio de 1832.

28 AML, Livro de atas…, op. cit., sessão de 3 de junho, f. 88-88v.

29Idem, sessão de 14 de junho, f. 103v.

30Idem, sessão de 20 de junho, f. 117v.

31Idem, sessão de 23 de junho, f. 121-122.

32Idem, sessão de 12 de junho, f. 101v.-102.

33 Não cabe na economia deste artigo, nem é o seu objetivo, uma análise circunstanciada e exaustiva da atuação dos provedores e do prefeito e das relações destas autoridades com a vereação. Esse é um tema que mereceria estudo aprofundado, mas que exigirá um tempo mais longo, incompatível com os prazos que limitam a produção deste texto.

34 AHP, Secções I/II, Representações das Câmaras Municipais à Câmara dos Deputados (1834-1867), caixa 301, maço 7, doc. 34, anexo nº 2. As citações seguintes dizem respeito a este documento.

35 Decreto nº 23, de 16 de maio de 1832, art.º 28º, par. 11.

36 Idem, artigos 26º e 29º.

37Apesar de as eleições municipais serem diretas, o voto foi sempre censitário, sendo cidadãos ativos apenas os indivíduos do sexo masculino que auferissem rendimentos anuais mínimos de cem mil réis.

38AML, Livro de atas…, op. cit., sessão de 14 de abril, f. 23.

39Idem, sessão de 15 de abril, f. 23v.

40Artigo 78º do decreto nº 23, de 16 de maio.

41Para a caraterização do ofício de almotacé, ver: FERREIRA, Paulo da Costa – Do ofício de almotacé na cidade de Lisboa (século XVIII). Cadernos do Arquivo Municipal [Em linha]. 2.ª Série N.º 1 (jan.-jun. 2014), p. 55-82. [Consult. 20-08-2014]. Disponível na Internet: http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/fotos/editor2/Cadernos/num1/artigo03.pdf.

42AHP, Secções I/II, Representações das Câmaras Municipais à Câmara dos Deputados (1834-1867), caixa 301, maço 7, doc. 34, anexo nº 4.

43 AML, Livro de atas…, op. cit., sessão de 19 de abril, f. 30.

44AHP, Secções I/II, Representações das câmaras municipais à Câmara dos Deputados (1834-1867), caixa 301, maço 7, doc. 34, anexo nº 5.

45 Idem, anexo nº 6.

46AML, Livro de atas…, op. cit., sessão de 24 de maio, f. 76–76v.

47Idem, sessões de 24, 26 e 27 de maio, f. 73v.–80.

48 Os conceitos de “poder municipal” e “poder administrativo” tinham sido utilizados em legislação de 1830, publicada ainda nos Açores, que a Câmara chegou a invocar para justificar as suas posições. Ver decretos de 29 de novembro e 2 de dezembro de 1830, Collecção de decretos e regulamentos…, op. cit.

49AHP, Secções I/II, Representações das Câmaras Municipais à Câmara dos Deputados (1834-1867), caixa 301, maço 7, doc. 34, anexo nº 9.

50 O decreto de 9 de janeiro de 1834 estipulava que ninguém eleito podia escusar-se ao exercício de funções, enquanto o de 16 de maio de 1832 previa que a dissolução das câmaras municipais podia ter lugar por ordem do rei ou do prefeito, mediante confirmação real.

51 AML, Livro de atas…, op. cit., sessão de 9 de junho, f. 94–94v.

52 AML, Livro de atas…, op. cit., sessão de 16 de junho, f. 104–106.

53 Idem, sessão de 19 de junho, f. 112v.–117.

54Idem, f. 116

55AHP, Secções I/II, Representações das Câmaras Municipais à Câmara dos Deputados (1834-1867), caixa 301, maço 7, doc. 34, anexo nº 11.

56Idem, anexo nº 12. AML, Livro de atas…, op. cit., sessão de 23 de junho, f. 121–122.

57 Assim eram designados os ofícios do Ministério do Reino dirigidos à Câmara Municipal.

58 AML, Livro de atas…, op. cit., sessão de 25 de junho, f. 122v.–124v.

59 Idem, sessão de 26 de junho, f. 124v.

60Idem, f. 124.

61 Idem.

62 Dicionário Biográfico Parlamentar…, op. cit., p. 416.

63As eleições foram reguladas pelo decreto de 3 de junho de 1834, recebido na Câmara a 21. No momento desta discussão estavam já a decorrer os procedimentos preparatórios das eleições.

64AHP, Secções I/II, Representações das Câmaras Municipais à Câmara dos Deputados (1834-1867), caixa 301, maço 7, doc. 34, anexo nº 13.

65 Idem.

66 Recorde-se que os decretos de 16 de maio de 1832, da autoria de Mouzinho da Silveira, são três, que pretendem reformar todo o aparelho administrativo, judicial e financeiro do Estado, genericamente delineado na Carta Constitucional de 1826: o nº 22, que reforma a Fazenda Pública; o nº 23, que reforma a Administração; e o nº 24, que reforma a justiça. Os decretos são precedidos de um longo relatório comum, em que o autor apresenta as suas ideias e justifica as opções tomadas. Collecção de decretos e regulamentos…, op. cit.

67Para uma visão geral dos problemas financeiros sentidos pelos municípios, ver: MANIQUE, António Pedro – Liberalismo e finanças municipais: da extinção das sisas à proliferação dos tributos concelhios. Penélope. Fazer e desfazer História. Lisboa: Quetzal. N.º 3 (jun. 1989), p. 21-42.

68Para o desenvolvimento deste aspeto ver: MANIQUE, António Pedro - Mouzinho da Silveira…, op. cit., p. 160, ss.

69ARTOLA, Miguel – Historia de España: la burguesía revolucionaria (1808-1874). Madrid: Alianza Editorial, 1990. p. 88-91.

70 GODECHOT, Jacques – Les institutions de la France sous la Révolution et l’Empire. Paris: P.U.F., 1968. p. 91-112.

71Os 816 concelhos chegados a 1832 foram reduzidos a 351, através do decreto de 6 de novembro de 1836, referendado por Passos Manuel.

72MANIQUE, António Pedro – Mouzinho da Silveira…, op. cit., p. 103, ss.

73AHP, Secções I/II, Representações das Câmaras Municipais à Câmara dos Deputados (1834-1867), caixa 301, maço 7, doc. 34.

74Francisco António de Campos presta juramento como deputado exatamente no dia em que a representação é assinada. Dicionário biográfico…, op. cit., p. 417.

75Para além do documento manuscrito, a representação está publicada na Gazeta oficial do Governo, nº 50, de 27 de agosto de 1834, p. 223-224 (ata da terceira sessão da Câmara dos Deputados).

As citações seguintes referem-se a este documento.

76Sessão de 26 de agosto de 1834.

77 AML, Livro de atas da Câmara Municipal de Lisboa – Tomo II, sessão extraordinária de 31 dezembro de 1834, f. 48v.–50.

78 Idem, sessão de 20 de janeiro de 1835, f. 77v.–78v.

79AHP, Secções I/II, Representações das Câmaras Municipais à Câmara dos Deputados (1834-1867), caixa 301, maço 9, doc. 40.

80Sessão da Câmara dos Deputados de 25 de agosto de 1834. Gazeta…, op. cit.

81Sessão de 26 de agosto, Gazeta…, op. cit., nº 51, de 28 de agosto.

82Para as transformações operadas em Ponta Delgada pela aplicação dos decretos de 1832, ver: ANANIAS, Maria Luciana Lisboa – A Câmara de Ponta Delgada e a nova organização administrativa (1831-1834). Arquipélago. História. [Em linha]. 2.ª Série, Vol. 5 (2001), p. 119-173. [Consult. 22-08-2014]. Disponível na Internet: http://repositorio.uac.pt/bitstream/10400.3/332/1/Maria_Ananias_p119-173.pdf.

83 Diário da Câmara dos Deputados. Lisboa: Imprensa Nacional, 1835. Sessão de 13 de abril de 1835.

84Parecer datado de 29 de outubro de 1834 e apresentado na sessão de 1 de novembro. Gazeta…, op. cit., nº 115, de 11 de novembro de 1834.

85Sessão de 21 de janeiro de 1835. Diário…, op. cit., p. 27-32.

86Para a evolução geral da administração pública, ver: MANIQUE, António Pedro – Liberalismo e instituições administrativas (1822-1910). Revista portucalense.Porto: Instituto Superior Politécnico. Nº 3 (1996), p. 21-50.

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