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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.4 Lisboa dez. 2015

 

RECENSÕES

MONTEIRO, João Gouveia; COSTA, António Martins - 1415 A Conquista de Ceuta. Lisboa: Letras & Diálogos, 2015. 222 p.

Vitor Luís Gaspar Rodrigues*

 

 

A comemoração em 2015 do 6º centenário da conquista de Ceuta pelas forças portuguesas tem sido aproveitada pelas editoras para lançar no mercado novos títulos, direcionados ao grande público, sobre essa extraordinária expedição militar que marcou o início do processo expansionista português.

A obra em questão, 1415 A Conquista de Ceuta, redigida por um dos mais conceituados historiadores militares portugueses da Idade Média (a elaboração do texto ficou a cargo de João Gouveia Monteiro, cabendo a António Martins da Costa a produção do dossiê iconográfico) enquadra-se, como aquele refere no seu prefácio, nesse modelo, procurando, e conseguindo, em nosso entender, atingir um leque significativamente vasto de leitores, sem, no entanto, perder rigor e profundidade.

Tomando por base a Crónica da Tomada de Ceuta, de Gomes Eanes de Zurara, peça fundamental para a recomposição histórica da empresa, e socorrendo-se de diversos testemunhos documentais, que introduz no seu relato através da presença de outras “vozes” – no caso a de João Gomes da Silva, alferes-mor do rei, e a do próprio Infante D. Henrique - que ora complementam, ora retificam as informações daquela fonte, Gouveia Monteiro relata, de forma “quase cinematográfica”, o evoluir da expedição militar, desde os preparativos no Reino, até à conquista de praça em 21 de agosto de 1415.

Embora se trate de uma “evocação ficcionada” da empresa militar, como o reconhece Gouveia Monteiro, o texto que daí resulta, e que compõe em grande medida a primeira parte da obra, apresenta um significativo conjunto de novas ou revisitadas informações, suportadas tanto por um vasto conjunto de fontes como pela bibliografia especializada que se encontra disseminada ao longo das múltiplas notas que acompanham o texto, o que contribui para acrescentar alguma novidade e rigor científico à obra. Terminada a descrição da empresa militar são analisados, já num registo algo diferente - que de alguma forma pré-anuncia “o estilo menos literário e mais convencional” que marcará a segunda parte do livro -, todos os desenvolvimentos que se seguiram à conquista de Ceuta em resultado não só das dúvidas que se colocaram a propósito da manutenção ou o abandono da praça, mas também das dificuldades em encontrar uma figura da nobreza com prestígio social e capacidade de liderança e que estivesse interessada em se encerrar numa fortaleza distante do reino, cuja manutenção se afigurava bastante problemática em virtude de ser difícil de socorrer e se encontrar rodeada por um inimigo poderoso. Nesses capítulos finais da primeira parte não só analisa de forma detalhada o processo que conduziu à nomeação de D. Pedro de Menezes, o mais improvável capitão da praça em virtude do posicionamento contrário da sua família – os Telo – às pretensões do mestre de Avis na crise dinástica de 1383-1385, como descreve de forma exaustiva a guarnição que o irá acompanhar nessa primeira fase, terminando com um retrato bastante impressivo das “despedidas amargas” que marcaram a partida da frota.

Na segunda parte da obra, marcada, como referimos, pelo despir da pele do cronista Zurara, Gouveia Monteiro começa por analisar de forma bastante incisiva o debate historiográfico que desde há muito tem lugar a propósito das principais motivações da conquista de Ceuta, e que envolveu um grande número de historiadores, a saber, David Lopes, Vitorino Magalhães Godinho, Jorge Borges de Macedo e A. H. de Oliveira Marques, passando por António Borges Coelho e Luís Filipe dos Reis Thomaz, ou, mais recentemente, por Bernardo Vasconcelos e Sousa. A exemplo dos dois últimos defende que a explicação para a realização da conquista e manutenção da praça decorre da interação de um conjunto de “factores variados e complementares” (religiosos, políticos, comerciais e geoestratégicos), salientando a necessidade de afirmação internacional da Coroa através de um feito de armas que não colidisse com os interesses de Castela e “limpasse o estigma da sua bastardia”. Para além disso, sustenta que os campos marroquinos terão ainda funcionado não só como uma válvula de escape para as tensões acumuladas no Reino por uma vasta camada de filhos segundos da nobreza impossibilitada de ascender socialmente, mas também como o palco ideal para a afirmação militar desses fidalgos em busca da honra e do proveito que lhes eram negados no Reino.

Nos capítulos ulteriores aborda de forma circunstanciada, em resultado do seu conhecimento profundo da arte de guerrear praticada na época, não só as mais importantes medidas defensivas adotadas por D. Pedro de Menezes e os seus homens com o objetivo de segurar o campo em torno da praça e assim evitar os ataques súbitos das forças muçulmanas (o que lhes permitiu criar como que uma zona de ninguém em torno da fortaleza), mas também as principais táticas e técnicas militares praticadas pelos defensores de Ceuta que irão marcar o devir do processo expansionista português no norte de África.

Utilizando uma narrativa clara, fluida, aqui e ali mesmo coloquial, direcionada, naturalmente, para um público bastante alargado, Gouveia Monteiro traça, ao longo dos capítulos seguintes, um quadro bastante impressivo do quotidiano desses homens que, encerrados num espaço muralhado, viviam em constante estado de alerta, num clima de extrema violência, e marcados pelo receio de serem feitos cativos pelos muçulmanos num qualquer cerco ou, com maior probabilidade, numa das constantes cavalgadas ou “saltos” praticados em território inimigo, fatores que faziam com que a religião estivesse sempre presente na sua vida.

Dessas ações militares são analisadas, pela importância de que se revestiram, o ataque muçulmano de 1416 e a grande ofensiva de 1418, que teve lugar em agosto, bem como o cerco de 1419, levado a efeito pelas forças merínidas e do rei de Granada que, seguindo uma estratégia de ataque semelhante à utilizada pelos portugueses no momento da sua conquista, viriam mesmo a tomar a Almina, embora sem grande sucesso dado o reforço da praça com os homens da armada de socorro enviada do reino e capitaneada por D. João de Noronha. Colocado o foco na figura de D. Pedro de Menezes são ainda descritas algumas das escaramuças que marcaram igualmente o quotidiano da guarnição da praça até ao que denomina como o “render da guarda”, em resultado da morte de D. Pedro de Menezes, ocorrida em agosto de 1437, por altura do primeiro cerco de Tânger.

Ao longo dos restantes capítulos da segunda parte da obra a atenção passa a centrar-se não já nas questões da prática da guerra propriamente dita, mas antes nos aspetos logísticos e organizacionais das estruturas entretanto criadas para garantir a manutenção de Ceuta. O autor não só analisa os diferentes expedientes utilizados pela Coroa para angariar no reino as verbas necessárias ao sustento da guarnição da praça e ao seu reforço com armamento, mantimento e bem assim ao aprovisionamento de um conjunto de matérias-primas fundamentais para a manutenção da fortaleza, como dá a conhecer ao leitor o funcionamento da máquina organizativa montada no reino para proceder ao arregimentar dos homens que ali haveriam de servir, e bem assim a complexa organização do serviço militar em resultado da coexistência de um misto de forças régias com as clientelas da fidalguia. Porque a guerra é também o somatório de um sem número de ações individuais, Gouveia Monteiro retrata ainda alguns percursos de vida de diferentes figuras que ali despenderam uma parte da sua existência, com a particularidade de abordar algumas histórias de vida de elementos oriundos da classe popular, caso, por exemplo, do besteiro do conto de Lisboa, João Afonso, que ali serviu alguns anos, tendo depois participado no ataque a Tânger, onde foi ferido com gravidade, o que lhe valeu ser aposentado antecipadamente “com sua honra e serviço”.

No derradeiro capítulo da segunda parte do livro é analisada uma outra realidade (resultante do estado de guerra permanente que marcou todo o período em estudo - a governação de D. Pedro de Menezes), a da existência de um grande número de prisioneiros e a necessidade de proceder ao seu resgate, debruçando-se o autor sobre a difícil tarefa que estava cometida aos alfaqueques de negociar a libertação dos cativos, mas que serviam também como informadores militares.

Por tudo o que deixamos dito entendemos que a obra 1415 A Conquista de Ceuta cumpre na perfeição os objetivos para que nos remete João Gouveia Monteiro no prefácio da mesma, o de ser “uma obra original e que acrescentasse alguma informação valiosa” sobre a campanha militar e o segurar da praça. Direcionado para o grande público, trata-se de um livro que, não obstante manter um elevado grau de cientificidade, se lê com enorme agrado dada a fluidez do discurso e a clareza da linguagem. É, por isso, um trabalho cuja leitura recomendamos vivamente, em especial aos alunos interessados em História Militar, uma área que, felizmente, tem vindo a ganhar em Portugal cada vez mais adeptos, multiplicando-se nas diferentes academias do país o número de teses de doutoramento e dissertações de mestrado nessa área.

 

 

Nota

* Vitor Luís Gaspar Rodrigues é doutorado pela Universidade dos Açores, possui o grau de Agregado pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa na área de Expansão Portuguesa. Investigador Auxiliar com Agregação da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É Investigador Integrado do Centro de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e Investigador Associado do Centro de História d´Aquém e d´Além Mar da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e Universidade dos Açores. Principais áreas de especialização: História Militar do Império Português (séc.s XV-XVII) e História Social do Império Oriental Português (séc.s XVI-XVII), domínios em que tem um vasto número de livros e artigos publicados.

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