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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.6 Lisboa dez. 2016

 

ARTIGO

 

A Casa do Largo de S. Mamede. Um projeto dos irmãos Rebelo de Andrade

The House in Largo de S. Mamede. A design by the Rebelo de Andrade brothers

Luís Soares Carneiro*

CEAU – Centro de Estudos de Arquitetura e Urbanismo, Faculdade de Arquitetura / Universidade do Porto, 4150-755 Porto, Portugal.

 

RESUMO

A singular casa do Largo de S. Mamede, em Lisboa, é um projeto dos irmãos Rebelo de Andrade, arquitetos muito ativos na primeira metade do século XX. Defensores de uma arquitetura simultaneamente “Moderna” e “Portuguesa”, esta casa constitui uma tentativa de conciliar as memórias e evocação da arquitetura urbana do século XVIII com um modo de viver que, em meados do século XX, estava em plena transformação. A casa original a partir da qual esta construção se edificou, o novo programa e as suas formas e modos de organização, as expectativas e desejos que esta arquitetura de compromisso comportava, o esquecimento a que foi votada e a incompreensão da crítica da segunda metade do século XX, cruzam-se neste recanto da arquitetura portuguesa. Este texto integra, como um fascículo, uma abordagem mais alargada sobre os arquitetos Rebelo de Andrade e os problemas da arquitetura do seu tempo.

 

PALAVRAS-CHAVE

Arquitetura / Século XX / Casa / Arquitetos Rebelo de Andrade

 

ABSTRACT

This study takes part in a broader approach to the work of the Rebelo de Andrade brothers, a very active duo of architects in the first half of the twentieth century, and the architectural and cultural problems of their time.

The peculiar house in Largo de S. Mamede, Lisbon, was designed by them to promote an architecture intended to be both “Modern” and “Portuguese”. This specific design was an attempt to reconcile the memory of eighteenth-century house architecture with the modern ways of living that, in the mid-twentieth century, were in full transformation. The original building from which this house was raised, the new program and its architectural layout, the oblivion to what it was submitted by the architectural critique of the second half of the 20th century, all intersect in this singular architectural object.

 

KEYWORDS

Architecture / 20th century / House / Rebelo de Andrade, Architects

 

 

Figura 1

 

 

1. Introito

A historiografia da arquitetura portuguesa do século XX foi estabelecida por José Augusto França1 e Nuno Portas2 nos anos 60, e conformou, por compreensíveis razões políticas e ideológicas, uma narrativa parcial e parcelar – ortodoxa, segundo Pedro Vieira de Almeida3 – que se replicou, expandiu e se tornou dominante, continuando ainda hoje sem contraditório efetivo. Toda ela se conforma – pelo menos relativamente aos anos 30 e 40 – em torno da ideia da arquitetura moderna como rutura, tal como concebida pelas vanguardas internacionais dos anos 20 e 30 e continuada pelo Racionalismo e pelo Funcionalismo sob a designação genérica de ‘Movimento Moderno', desvalorizando qualquer outra visão da modernidade em arquitetura.

Porém, apesar de ignorados e omitidos por esta historiografia, existiram outros modos de entender a modernidade, onde em vez da rutura se defendia o compromisso, a integração das formas herdadas da história com os usos e modos de vida modernos, e o recurso a sistemas e materiais contemporâneos compatibilizados com formas do passado, procurando preservar um sentido de continuidade cultural4. Mas a sua rotulação genérica como arquiteturas historicistas, regionalistas, nacionalistas – termos absolutamente denegridos pela historiografia do Movimento Moderno – tem, entre nós, dificultado a possibilidade do estudo destas obras e dos seus autores.

O presente ensaio inscreve-se num plano mais vasto de inventariação, documentação e releitura da obra dos irmãos Rebelo de Andrade5, pelo que prescindimos aqui do enquadramento biográfico, histórico e arquitetónico, assim como de leituras de síntese ou conclusivas. Identicamente, embora a pertinência seja evidente, não é aqui o momento para debater os problemas historiográficos e de teoria da História que inevitavelmente estas questões colocam.

A apresentação e descrição da casa do Largo de S. Mamede, importa como contributo para alargar o acervo de obras que permitem observar diferentes pressupostos e valores relativamente aos convencionalmente consagrados como modernos, e com isso ganhar massa crítica para um futuro debate que possibilite rever critérios e repensar categorias historiográficas.

 

2. Os Irmãos Rebelo de Andrade

Carlos Rebelo de Andrade (1887-1971) e Guilherme Rebelo de Andrade (1891-1969) foram dos mais ativos arquitetos portugueses de meados dos anos 20 até ao final dos anos 40 do século passado. Assim como foram depois dos principais derrotados pela ascensão, afirmação e posterior hegemonia do Movimento Moderno. Foram menorizados por razões artísticas, por razões ideológicas e também por razões políticas. Mas fica sempre claro o pouco conhecimento da sua obra, assim como fica evidente uma absoluta indisponibilidade para ponderar as suas razões culturais e as suas opções arquitetónicas, sempre remetidas para as classificações estereotipadas de ‘arquitetura tradicionalista', de ‘arquitetura nacionalista', ou mesmo de ‘arquitetura do regime'.

Como muito outros arquitetos da época – incluindo os canonizados pela historiografia – a sua obra oscilou entre o modernismo e o tradicionalismo. Mas o grande número de obras representativas realizadas para o Estado (entre as quais o Pavilhão das Indústrias na Exposição do Centenário do Brasil em 1922, o Pavilhão de Portugal na Exposição de Sevilha em 1929, a Escola Naval do Alfeite em 1928-38, a reconstrução do Palácio Nacional de Queluz depois do incêndio de 1934, a Estação Agronómica de Sacavém em 1938-40, a Fonte Monumental da Alameda, de 1938-48, o Museu Nacional de Arte Antiga de 1932-44, a Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro, de 1946-62, a reconstrução do Teatro Nacional de D. Maria II de 1964-78...), somado à fama de serem, na viragem dos anos 20' para os 30', “os arquitectos do estilo D. João V”6, contribuíram para uma aparente proximidade ao Estado Novo, quando, de facto, nada indica que tenha sido muito diferente da generalidade dos outros arquitetos seus contemporâneos, todos eles também muito dependentes das encomendas estatais.

Os dois irmãos trabalharam por vezes de modo independente, nomeadamente em obras associadas a instituições onde foram funcionários. Mas, nos trabalhos em regime de profissão liberal, mesmo quando apenas um deles aparece formalmente associado a um contrato ou assina os documentos de licenciamento, tal não significa que o outro não participou no projeto. Verifica-se aliás, com frequência, que as inscrições gravadas nas obras referem ambos, mesmo quando os documentos referem apenas um deles. É caso do projeto da Capela das Escravas (Lisboa, 1944-7), onde todos os documentos são assinados por Carlos, mas a inscrição junto à entrada refere “Rebelo de Andrade Arquitetos”; ou, inversamente, no caso da Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, 1946-62), onde apesar do contrato estar em nome de ambos, todos os documentos aparecem assinados apenas por Guilherme. A longa prática conjunta, o partilhar do mesmo espaço de trabalho, a sintonia de princípios7 terá certamente cruzado e fundido ideias e modos de fazer. Por conseguinte, apesar da inscrição nesta obra (no rodapé de granito, do lado direito da fachada) dizer: “C REBELLO/DE ANDRA/DE ARQUI/TECTO/1952”, o que leva a supor ter sido Carlos Rebelo de Andrade o principal responsável, referir-nos-emos regularmente à obra como sendo dos dois irmãos.

 

3. A singular casa do Largo de S. Mamede

Entre a multiplicidade de construções que Lisboa foi incorporando ao longo dos séculos, pode figurar entre as mais singulares a casa que ocupa os nºs 4 e 5 do Largo de S. Mamede, na Freguesia de S. Mamede, em Lisboa.

Refazendo uma construção já existente, possui um conjunto de atributos distintivos. O contraste da alvura do reboco com a inusual pedra escura das guarnições e remates; a simetria irregular da fachada acentuada pelo corpo central elevado no piso superior e forrado com telhas em esmalte verde; a peculiar relação de cheios e vazios; o enorme portal... Tudo ali denota a peculiaridade da encomenda e da conceção e o afastamento aos códigos da casa urbana lisboeta da época, num conjunto que ressuma demarcação e diferença. E, no entanto, existe também continuidade histórica e tipológica, filtrada embora por uma reinterpretação, essa sim singular.

O primitivo edifício tinha sido “construído por partes, por sucessivas ampliações, conforme foram surgindo necessidades de aumento de instalações”8 pelo seu primeiro proprietário, Manuel Henriques Carvalho, antiquário, falecido em 19439. O edifício ficaria para a sua viúva, Eugenia Silva Carvalho e, por morte desta, em 194810, para a filha, Maria Eugenia Carvalho Martins, cujo marido, José Manuel Martins, “proprietário e industrial ligado à indústria cervejeira”11, promoveria a sua reconstrução e readaptação para residência da família. O projeto foi realizado entre 1949 e 195012 e as obras efetuadas entre 1950 e 195313, sendo habitada de imediato, apesar da vistoria final ter sido apenas realizada em 195414.

O livro Monte Olivete, de J.-A. França, ao comentar a zona de S. Mamede, refere-se-lhe nos seguintes termos:

Começa mal a rua, porém, num luxo assaz bizarro de anos 50, ‘à antiga portuguesa', obra dos arquitectos irmãos Rebelo de Andrade, autores de muito trabalho do mesmo tipo nacionalista, aqui exagerado numa moradia usando granito exótico nas cantarias recortadas abusivamente pela fachada – toda ela explicada por um imenso portal de garagem (nº4, ainda do Largo), como se o prédio fosse levantado para ela e à volta dela, em capela a São Automóvel – um Buick então?15

Embora se trate de um livro num registo de memorialismo e comentário de circunstância, não deixa de ser um reflexo da historiografia existente, eliminando ou desprezando, por omissão ou derrisão, quaisquer obras ou arquiteturas do século XX que não verifiquem os pressupostos do Movimento Moderno.

Com esta frase em mente, descreveremos a casa e tentaremos mostrar as suas razões formais, os seus métodos compositivos, os seus objetivos estratégicos, o seu significado e a sua lição.

 

4. A Peculiar Situação Urbana

A via dominante desta área da cidade é a Rua da Escola Politécnica, antiga Rua Direita da Fábrica das Sedas. É uma via de saída da parte central de Lisboa, percorrendo uma das linhas de festo da difícil topografia da zona, desde o topo norte do Bairro Alto até ao Largo do Rato, onde a conexão viária com outras direções se torna possível.

Tanto o Largo de S. Mamede como a Rua Nova de S. Mamede, que dá continuidade ao largo são estruturas de preenchimento recente, ambos na ilharga leste da Rua da Escola Politécnica. A Rua Nova aparece já em projeto numa planta realizada cerca de 175616. Um século mais tarde, no levantamento de Filipe Folque17, a ocupação do seu lado sul era ainda fragmentária, sendo quase inexistente do lado norte. E a igreja, cuja construção foi iniciada em finais do séc. XVIII (1782), apenas seria dada por concluída já na segunda metade do séc. XIX (1861).

O prédio que ocupa a esquina entre a Rua da Escola Politécnica (n.ºs 84 a 98) e o Largo de S. Mamede, anterior a 185818, possuía, como tantos outros, a sua “faixa de pertença”19, ou seja, o terreno que, nas traseiras, permite a abertura do alçado tardoz para um espaço livre, possibilitando iluminação e ventilação naturais, usualmente designado por logradouro. Neste caso, o extremo da área do logradouro vinha até à frente do largo, criando um fenómeno habitual no processo de crescimento das cidades canónicas, que é o de, nas ruas ditas “de implantação”20 (como a Rua Nova de S. Mamede) deixar livre o espaço correspondente à profundidade do lote inicial do percurso matriz – a Rua da Escola Politécnica – antes do início das construções ao longo da via de implantação.

O facto desta circunstância urbana se ter verificado foi essencial para toda a história desta casa. Ao contrário das edificações que se lhe adossam para nascente, ao longo da Rua Nova de S. Mamede, ela teve a possibilidade de transformar a empena do lado poente em fachada, com abertura de vãos, por acordo com o proprietário vizinho. Com efeito, segundo um documento existente no Arquivo da CML21, em setembro de 1918, os proprietários do edifício da Rua da Escola Politécnica n.º 84-98, autorizaram a construção de um volume no fundo do seu terreno e, mais importante, a abertura das janelas do terreno da casa para o seu próprio logradouro.

Numa cidade madura e densa, onde cada metro de rua constitui um valor, não há hiatos nas frentes urbanas. Nessa situação, o que teria certamente acontecido, otimizando o potencial fundiário, seria a reconstrução do edifício da esquina da Rua da Escola Politécnica, crescendo o seu volume para o Largo de S. Mamede e formando um novo edifício em “L”. Porém, por falta de pressão imobiliária e da correspondente exigência de densidade urbana, o proprietário aceitou limitar as suas possibilidades futuras ao autorizar a realização de aberturas na empena lateral oeste da casa vizinha.

Comparando as larguras das frentes de cada módulo construído do lado nascente da Rua Nova de S. Mamede com a desta casa, verifica-se que estas são aproximadamente 1/5 do terreno livre disponível com frente para a lateral da igreja, ao longo da Rua Nova de S. Mamede. Ou seja, percebe-se que este terá sido um terreno loteado em cinco partes, sendo as três centrais mais pequenas e as dos extremos mais largas, como é fácil de observar (Figura 2). Entretanto, foram agrupadas as três parcelas mais a nascente numa única unidade (apesar de ainda ser visível a separação dos logradouros), mantendo a restante – anexa à casa que estudamos – a dimensão original. O proprietário do terreno onde se implantou a casa ficou assim com a fração mais a poente, uma das mais largas, que melhoraria com a possibilidade de realização de aberturas para o logradouro do prédio vizinho com frente para a Rua da Escola Politécnica.

 

 

Por esta razão, e diferentemente das restantes construções que seguem pela Rua Nova de S. Mamede, a casa possui três frentes, o que lhe permitiu aumentar substancialmente a profundidade construída até ao limite sul do lote, o que as suas congéneres vizinhas não podiam fazer por razões de ventilação dos compartimentos centrais.

 

5. Continuidade e Transformação

O edifício existente antes da intervenção de 1950-53 e que deverá ter sido realizado cerca de 1918 ocupava o mesmo terreno da casa atual e possuía um conjunto de características que seriam posteriormente retomadas e incrementadas na construção renovada.

A fachada original do primeiro edifício, realizada com um gosto eclético, não andava longe de modelos como o Palacete Lambertini22, projeto do Arq. Nicola Bigaglia23, de 1904, ou do Palacete Conceição e Silva, do Arq. Henri Lusseau24, de 1891, ambos na Avenida da Liberdade, em Lisboa. Possuía um núcleo central de composição realizado com janelas justapostas, dois conjuntos verticais laterais com portas no nível do piso térreo e janelas nos superiores; e com um volume central sobressaliente à cornija, coroando a fachada e reforçando o eixo de simetria. Elemento marcante, dando a nota de diferença de programa em relação aos seus modelos da Avenida da Liberdade, era a grande porta central, utilizada como entrada de serviço para o armazém que ocupava quase todo o piso térreo (Figura 3).

 

 

Sabemos que o prédio original estava dividido em dois apartamentos e um armazém25. Um dos apartamentos, ocupando três pisos superiores, era destinado ao proprietário, com entrada pela porta pequena do lado esquerdo da fachada. E a porta pequena do lado direito dava entrada para um outro apartamento, situada no entre-solo, destinado a residência do empregado do armazém. A grande porta central ficava dedicada ao serviço do armazém, com o grande pé-direito do piso térreo reforçando o caráter meramente utilitário e comercial da parte baixa do edifício.

O projeto dos Rebelo de Andrade – de início apenas uma remodelação – retomou os elementos estruturais da casa anteriormente existente – tanto no sentido tectónico como urbano da expressão – como retomou igualmente o posicionamento de muitas das aberturas. Mesmo na versão final – reivindicada, como veremos adiante, como ‘construção nova' – mantiveram-se muitos dos determinantes e elementos estruturais da construção anterior.

A grande entrada central do prédio original tinha a sua justificação na função comercial do piso térreo. Como se pode ver no levantamento existente dessa construção26, o espaço por detrás da entrada era amplo, existindo somente um pilar isolado que, ao mesmo tempo que suportava o piso superior, evitava uma eventual parede que reduziria a capacidade e a flexibilidade de uso do armazém. E, ao contrário do que sucederia depois da transformação, os três espaços de entrada – as entradas para os apartamentos e para o armazém – eram absolutamente independentes entre si.

Os “portais” ou mesmo as “portas carrais”, estas de dimensão maior e dando passagem a veículos, eram frequentes em Lisboa, como em todas as cidades onde funções residenciais e funções industriais ou comerciais se cruzavam no mesmo edifício27. O sistema é lógico e funcional. Por elas entravam as mercadorias e também os cavalos para as cavalariças situadas nos pátios interiores ou junto deles, atravessando os vestíbulos onde vinham terminar as escadas de acesso ao piso nobre.

Um exemplo, entre muitos, é o da planta térrea da casa da Rua Formosa28. O esquema (Figura 4) mostra bem o sistema utilizado na sua organização e funcionamento. Ali vemos uma porta central com dimensão claramente maior do que as restantes, abrindo diretamente para o vestíbulo, abobadado, e para o qual desce a escada que liga à habitação no piso nobre. Vê-se igualmente a passagem que, do lado direito conduzia, ao fundo, às cavalariças junto ao pátio.

 

 

Esta casa da Rua Formosa – hoje Rua de O Século, n.º 38 – é tipologicamente idêntica a muitas outras da Lisboa setecentista. Como os Rebelo de Andrade tomavam frequentemente como modelos edifícios do século XVIII, é compreensível que tenham replicado tal dispositivo de entrada na casa de S. Mamede, naturalmente adaptado aos veículos mecânicos e com uma escala conveniente às pretensões da nova residência. E, como veremos adiante, embora não seja exatamente igual na sua forma ou dimensões, é geneticamente do mesmo tipo daquele que podemos observar na casa da Rua das Flores. E pode concluir-se que esta ou outra semelhante terá constituído a ‘matriz tipológica' que inspirou a forma como os Rebelo de Andrade trataram a monumental entrada e o sequente vestíbulo da casa do Largo de S. Mamede.

Ocasionalmente, este tipo de entradas dava mesmo passagem a carruagens, como acontecia no projeto setecentista para o Teatro da Rua Áurea29, no qual, sem grande modificação, numa fachada muito semelhante à dos restantes quarteirões da Baixa Pombalina, se inseriram entradas para carruagens dando passagem direta, por acesso privativo, ao camarote real. E muitos outros edifícios lisboetas, como o Palácio dos Condes de Almada, hoje Palácio da Independência, cuja grande porta principal era destinada a carruagens, constituem exemplos da relevância funcional e da correspondente importância formal dos portais.

A presença dos automóveis nas cidades e nas casas portuguesas – incluindo nas garagens das casas modernas, ou sobretudo nelas – tinha-se afirmado e crescido muito na primeira metade do século XX, pelo que é natural que, também nesta casa, tivesse natural realce. Mas, como veremos, não era somente disso que aqui se tratava. O grande portal conduzia não apenas à “garagem” (embora também o fizesse) mas sobretudo, antecedendo-a, a um grande e nobre vestíbulo abobadado para onde convergia, cenograficamente, a escada que conduzia aos pisos superiores, numa organização muito semelhante, como vimos, ao de casos da grande habitação portuguesa dos séculos anteriores (Figura 5), (Figura 6).

Ou seja, o portal não era apenas o vestígio do anterior armazém mas a sua completa reformulação, abrindo agora para ele a escada que na versão original era completamente independente. O vestíbulo passou a ser a verdadeira e efetiva entrada da casa e não uma simples porta de garagem.

Por outro lado, para entender a importância urbana do portal e a relevância do seu jogo de profundidades, importa considerar que, embora em frente ao largo, a casa tinha o plano da fachada no alinhamento do lado sudeste da Rua Nova de S. Mamede, sendo predominantemente observada, como todos os restantes prédios adjacentes, em visão tangencial, por quem percorria a rua num ou noutro sentido. Analisando os prédios modernistas construídos do lado oposto da rua nas primeiras décadas do século XX e o seu reportório de varandas redondas e salientes, de bow-windows, de sacadas e de avanços, afirmando singularidades face às limitações do plano das fachadas em linha da rua, é fácil de compreender que tanto a tridimensionalidade do desenho do grande portal, tal como a manutenção do volume central elevado no piso mais alto, constituíam similares afirmações de identidade. Ou seja, embora com estratégia formal diversa, o objetivo era idêntico aos dos seus vizinhos modernistas.

 

6. Uma Casa “Sumptuosa”

A casa possuía um programa vasto e complexo, fortemente hierárquico, alicerçado numa visão da vida e num patamar de conforto que é hoje, para muitos, difícil de entender.

Estava organizada em cinco níveis, sendo apenas o 3º e o 4º destes os espaços especificamente destinados a habitação da família. Os dois níveis inferiores, correspondentes à dupla altura do vestíbulo, ficavam localizados apenas na parte da retaguarda da construção atingindo o limite sul do lote e destinavam-se exclusivamente a serviços e instalações do pessoal, assim como todo o sótão e as águas furtadas.

Duas escadas interligavam os diversos pisos. A primeira, de aparato, subia do grande vestíbulo no piso térreo, começando por uma sucessão de degraus e patamares de bordos curvos, em mármore branco, que se transformavam em lanços retos até ao piso 3, onde se situava a zona diurna da casa. Esta escada prolongava-se depois para o piso 4, a zona noturna, onde terminava, iluminada zenitalmente por uma claraboia, mediante um teto falso horizontal envidraçado. Toda a escada e muitos dos interiores da casa estavam forrados com azulejos, retirados na remodelação que recentemente sofreu.

Uma segunda escada, de serviço, em semicírculo, possuía na sua parte central um pequeno elevador que interligava todos os níveis, da garagem ao sótão, constituindo, simultaneamente, uma circulação independente para os empregados e um núcleo articulador do funcionamento interno de toda a casa.

A entrada era, sem dúvida, tal como a fachada e em estrita relação com ela, um dos pontos marcantes. É importante reforçar que o grande portão não corresponde apenas, como seria hoje natural, à “porta da garagem”. Era ali, de facto, a entrada nobre da casa, pela qual se acedia a um amplo espaço, o “vestíbulo”, com um pé-direito de perto de 5m, com abóbadas e arcos em pedra construídos de novo, que do lado esquerdo separavam a entrada da escadaria nobre e a cenografavam. A iluminação deste espaço fazia-se tanto pela parte vidrada do cimo do arco da porta como pelo óculo redondo no primeiro patamar da escada que, por razões de composição, foi implantado enviesado de modo a, tanto do lado de fora, na fachada, como no lado de dentro, no patamar da escadaria, surgir na posição lógica e no devido eixo formal (Figura 7), (Figura 8).

O automóvel, obviamente conduzido pelo “chauffeur”, entrava, parava no amplo ‘vestíbulo', os passageiros saíam e o veículo seguia em frente descendo uma pequena rampa até à garagem. No espaço da entrada, em frente e a eixo dela, ligando a um janelão interior, situava-se uma abertura para zona de serviço do “entresolho”30, designação arcaica para o segundo pavimento, localizado ‘entre' o piso térreo e o andar nobre. Existia ainda a possibilidade de, diretamente a partir do vestíbulo, por uma porta colocada detrás do segundo arco, à esquerda, se passar para o átrio do elevador, subindo por aí para qualquer dos outros pisos (Figura 9), (Figura 10), (Figura 11).

Do lado direito da fachada, à ilharga da grande porta principal, encontra-se uma outra porta, de dimensões normais (Figura 10). Na atual cultura do habitar, tendemos a ler e a interpretar esta como a porta principal, lendo a outra, comparativamente, como sendo a de uma garagem monumentalizada. Nada mais errado. De facto, a entrada pequena era apenas a entrada de serviço para um pequeno átrio, de onde se subia para o apartamento do “chauffeur” e para zona de serviços de cozinha e respetivos espaços de apoio.

Aí, a cozinha (com um monta-pratos que ligava a uma copa, no piso superior), a despensa, a lavandaria e a garrafeira, constituíam uma área autónoma, de ‘piso técnico'. Por conseguinte, a entrada pela ‘porta pequena' era isso mesmo, a entrada de serviço, secundária, do pessoal.

 

O Primeiro Piso

A chegada ao patamar do piso nobre (designado por “1º Andar”, nos desenhos, mas, de facto, como vimos, o Piso 3) não era particularmente elegante, herança da anterior versão da construção31, apesar de generosamente iluminado por um ‘falso céu', em vidro amarelado, que gerava um tom de luz quente destinado a contrabalançar o azul dos azulejos. Em frente do patamar ficava a porta do escritório e, à esquerda, o arco abatido em continuidade com cachorros laterais que o separava do ‘hall', conformando um segundo momento de entrada32 (Figura 12), (Figura 13).

A partir deste local de distribuição tinha-se acesso a um significativo conjunto de espaços. Na fachada principal, à “sala de bilhar” – designação original de projeto, pois que o bilhar nunca existiu33 – que ficava a eixo do “hall” e articulava o “escritório” com a “saleta”. Já em frente da saída da escada, atravessando o “hall”, começava o principal conjunto de espaços: “salão”/“sala de jantar”/“estufa fria”, prolongado, para o lado da fachada, pela porta que ligava à “saleta”. Esta sequência de espaços trabalhava um jogo de eixos complexo: o eixo longitudinal do “salão”, que integrava a sequência, conjugava-se com um segundo, perpendicular ao primeiro e centrado no fogão de sala, relacionando a simetria das janelas da fachada lateral e as duas portas do “salão” para o “hall”.

Na “sala de jantar” ocorria um jogo semelhante: o eixo da mesa só podia ser transversal ao da sequência por questões de dimensão, marcado com dois nichos na fachada lateral e duas portas do lado interno, entre as quais um nicho maior destinado a um móvel de apoio. Para além disso, a profundidade da sala de jantar era maior que a do salão, criando diversidade. Finalmente, entre a sala de jantar e a estufa fria, posicionava-se um espaço intercalar, com uma exedra de cada lado, onde foram colocados “imponentes vasos chineses”34, que apertava a sequência antes do grand finale, na estufa, com um excelente painel de azulejo, com cerca de 2,5x3m, ainda existente, representando “Jesus a ensinar os ignorantes”.

O conjunto, formando sequência, com as suas boiseries, as variações de dimensão, a presença ordenadora do eixo que atravessa da fachada da frente até à de trás, as variações de pé direito e de decoração integrada e, virtualmente, adicionada, devia ser impressivo. Tanto mais que os materiais, como o mármore verde no pavimento (na sala de jantar), o soalho de sucupira no salão, os apainelados e forros em azulejos do século XVIII35 lhe davam uma grande densidade. A isto associavam-se os tetos pintados por José Ferreira Basalisa36, sobretudo na ‘sequência' (à exceção da sala de jantar, onde o teto era composto por molduras justapostas, como caixotões, e do espaço de passagem para a estufa fria), constituindo os espaços mais representativos da casa (Figura 14), (Figura 15), (Figura 16).

Por outro lado, o “hall” ligava ao salão por duas grandes portas de correr duplas; e o mesmo se passava na ligação do “salão” à “sala de jantar”, gerando uma concatenação de espaços, não como o Movimento Moderno propunha, por continuidade, deslizamento e fluidez, mas de modo absolutamente clássico: por sucessão e sequência.

O extraordinário, porém, é que nada desta lógica espacial existia na construção inicial (Figura 17). Comparando a organização da casa transformada com a versão original (Figura 12) com (Figura 17), verifica-se que, originalmente, as circulações se faziam através de um corredor estreito que articulava os vários compartimentos, independentes uns dos outros na sua maioria, numa articulação das relações domésticas corrente em inícios do século XX. Porém, a deliberada introdução de aberturas diretamente entre compartimentos no eixo “saleta/sala de estar/sala de jantar/estufa fria”, construindo uma enfilade, era a retomada de uma articulação entre espaços característica do século XVIII, absolutamente alheia, portanto, à estrutura espacial e organizativa da construção inicial. Ou seja, num edifício de inícios do século XX introduziu-se, em meados do mesmo século, elementos como o vestíbulo de entrada e a enfilade do ‘piso nobre', características do século XVIII, com clara intencionalidade nobilitadora e evocativa.

 

O Segundo Piso

Este piso seguia em múltiplos aspetos o primeiro. A disposição das escadas e do “hall” eram idênticas, o mesmo acontecendo aos compartimentos junto à fachada, exatamente semelhantes aos do piso inferior, embora com programa variado. O “escritório” passava a “saleta”, o “bilhar” passava a “sala” e a “saleta” do piso inferior passava a “quarto-menina”. Na parte central, iluminado a partir da fachada lateral, o “quarto-meninos”. Entre ambos, acedendo-se por pequenas antecâmaras de articulação, a casa de banho comum (Figura 18).

 

 

Já o “quarto-senhores”, juntamente com a casa de banho privativa e os espaços de vestir, ocupava toda a extremidade traseira da casa, desaparecendo a assáquia que existia nos pisos inferiores e deixando toda a fachada tardoz livre. A dimensão generosa deste conjunto – cerca de 72m2 de área bruta – recuperava alguma das temáticas do “salão/sala de jantar” do piso inferior, retomando o duplo eixo, com o “toucador da senhora” junto à parede norte alinhada com a cama, no lado sul, enquanto, na parede interna, constituindo o eixo leste-oeste, um nicho, também em êxedra, que continha um oratório fechado por duas portas em ferro trabalhado, para quando fosse necessário encerrá-lo e dar ao quarto um uso mais profano. Ao lado deste, fazia-se a passagem para a casa de banho fazendo contraponto com as duas janelas laterais e a pequena zona de estar ali existente, e uma porta falsa para construir a simetria com a porta da suite. Curiosamente, o projeto indica o toucador a sul e a cama a norte, enquanto as fotografias mostram o inverso, alterando a decoração a intenção original do projeto (Figura 19), (Figura 20).

Na tradição da salle-a-bains de linhagem francesa37, a banheira ficava inserida num nicho em posição central; do mesmo modo que as aberturas para o exterior envolviam dos lados e por cima o lavatório e o seu espelho. Um chuveiro e a sanita e bidé, eram instalados em sub-compartimentos (Figura 21).

A sala de banho ligava-se ainda ao “quarto de vestir do senhor”, assinalando uma nítida diferenciação: se o toucador feminino se integrava no quarto de cama, já o quarto de vestir do senhor, de modo a permitir outra independência e flexibilidade de uso, se apresentava completamente autónomo.

O restante programa da casa, nomeadamente o sótão, era preenchido com serviços domésticos (rouparia, engomados, costura...) assim como os quartos das criadas, além de arrumos diversos (Figura 22).

A planta constitui, na continuidade das preocupações e dos critérios de agenciamento, arrumação e articulação de espaços da tradição clássica, o elemento decisivo. Mas três fatores inserem no desenho das plantas desta casa características particulares. Um deles é a reminiscência da estrutura de paredes portantes da antiga casa, condicionando o posicionamento das escadas, deixando transparecer a antiga varanda corrida das traseiras no espaço de transição entre a sala de jantar e a estufa fria, ou, no piso dos quartos, mostrando-a pelo posicionamento do toucador; ou mesmo, no piso do sótão, na separação entre “engomados” e “lavandaria”. Outro deles é o modo como foram habilidosamente superados os constrangimentos impostos pela construção original pela sua transformação em novos motivos espaciais e arquitetónicos. Como é o caso da maioria das janelas, que mantiveram o seu posicionamento, colocando limitações evidentes na composição interior dos compartimentos, transmutadas em simetrias e reforçando as axialidades.

Por outro lado ainda, o modo como regularizando espaços e gerindo a articulação entre eles, fez surgir múltiplos espaços de arrumação. Porém, sem que isso seja um mero subproduto da composição e da regularização dos espaços principais, pois que se deteta uma grande atenção ao detalhe no funcionamento e no estratégico posicionamento de alguns deles, como a colocação do arrumo específico da “estufa fria”. Acresce o evidente cuidado e a experiência profissional da colocação de acessórios e complementos, caldeira, quadros elétricos, ventilações, prumadas de águas, que encontram, eficazmente, a sua posição de modo coordenado com o desenho global. Ou seja, foi a planta e a sua organização planimétrica, o objeto principal da atenção do projeto e da sua lógica compositiva.

Por toda esta longa mas necessária descrição observamos e constatamos que, na verdade, como afirmava um parecer da Direção dos Serviços de Urbanização e Obras da CML, aceitando as alegações apresentadas para autorizar um pequeno incumprimento regulamentar, que “...tendo em atenção que se trata de moradia sumptuosa, julga, a título excepcional, de autorizar o requerido”38. Era, de facto, uma moradia sumptuosa.

 

7. Transformações Recentes

A casa está atualmente transformada em quatro apartamentos separados destinados a serem alugados. A antiga escada principal foi fechada em cada patamar com panos de parede e portas que encerram os antigos arcos que a ligavam aos átrios do piso 3 e do piso 4. As antigas escadas de serviço e o respetivo elevador assumiram a tarefa de dar acesso a todos os pisos.

No piso 3 está construída uma casa de banho no local onde foi o escritório, criando uma suite com a anterior “sala do bilhar”, e adaptou-se a antiga copa a cozinha. No piso 4, a casa de banho “das crianças” foi dividida para servir os dois quartos, transformados em duas suites; o quarto dos pais foi transformado em sala e a sua grande casa de banho transmutada em cozinha. O sótão passou a apartamento autónomo com a transformação da lavandaria em cozinha. Nos pisos inferiores, a antiga cozinha e o apartamento do chauffeur foram fundidos numa única residência.

A garagem mantém-se como era e os compartimentos desse piso são agora arrecadações dos apartamentos.

 

8. Afinal... um Cadillac

Há uma matriz estratégica em toda esta intervenção onde o profissionalismo e o domínio do projeto ressaltam. Por um lado, a aceitação pragmática das regras básicas que a manutenção da estrutura da construção primitiva impunha. Por outro lado, a recomposição de espaços – vestíbulo, sequência de salas... – recorrendo a modelos, dispositivos e decorações evocativos da história da arquitetura portuguesa39, articulados numa organização interna com recurso a dispositivos composicionais da tradição clássica, onde as simetrias e as axialidades, formando sequências de espaços, estão bem presentes.

A qualidade e sofisticação dos materiais, a densidade decorativa, a carga histórica que as peças antigas, trazidas ou recuperadas do património familiar (como os vasos chineses que pertenciam já ao anterior dono, antiquário), ou recuperadas de edifícios antigos, como os painéis de azulejos, faziam desta casa, um produto singular.

De facto, tratou-se de uma construção que, a partir de um simples prédio de inícios do século XX, foi transformada num ‘solar urbano' ao gosto do século XVIII, período a que o projeto foi buscar múltiplas e evidentes referências: o grande portal, o monumental vestíbulo, a escada que desce do piso de habitação, os painéis de azulejo, os arcos em pedra, a linguagem dos vãos, a organização dos espaços nobres em enfilade...

Mas também se pode observar que foi buscar ao século XIX aspetos relevantes, como o desdobramento das circulações verticais ou a desmultiplicação e diferenciação de funções e espaços (reformulando as existentes na casa original). E pode-se ainda notar que foi buscar ao século XX a modernidade do programa familiar do duplex – na verdade, pode-se mesmo dizer com propriedade que esta casa é, no essencial do seu programa, um “T3 duplex”, exatamente no sentido em que a expressão se aplica ainda hoje – tal como a presença e importância dos espaços de banho no programa da casa, ou o recurso a equipamentos típicos do século XX como o elevador e o monta-pratos.

Talvez se possa qualificar como bizarro o resultado – e toda a arquitetura que o é, tem necessariamente algo de bizarro, caso contrário pode ser, ou não, Arquitetura – mas isso significa um juízo moral, frequente nos seguidores do Movimento Moderno, que entendiam o curso da história como um caminho inevitável numa direção determinada e previsível, pelo que, qualquer obra que fosse em sentido contrário, que recusasse a visão de um futuro radioso, teria de ser classificada como retrógrada. E, consequentemente para esquecer.

Porém, o esmagamento da opinião diferente, somada à negação tipicamente Moderna da “irredutível pluralidade cultural”40, isto é, da irreprimível diferença e desejo de distinção entre indivíduos, e ao esquecimento da resiliência que a cultura enraizada possuía e possui, estava necessariamente condenada ao fracasso, pelo menos relativo. Apenas quinze anos depois da construção da casa do Largo de S. Mamede, após 1965 – com a morte de Le Corbusier e a publicação do livro A Arquitectura da Cidade, de Aldo Rossi – a margem de liberdade iria começar a ser aos poucos retomada, mesmo com os preconceitos ainda hoje presentes, renovando a possibilidade de utilizar os potentes valores da hibridização, da evocação formal e da exploração da história como fontes para a arquitetura.

Na época, os irmãos Rebelo de Andrade não podiam ainda perceber as mutações estruturais que os novos tempos estavam a trazer. Eles resistiam à rutura modernista enquanto simultaneamente introduziam as novidades que pareciam práticas e úteis. Na convicção de que a linguagem do modernismo seria passageira, fundada na experiência própria de terem vivido tempos de múltiplas correntes e várias opções de linguagem arquitetónica em rápida sucessão, recusavam-na, acreditando ser ela uma simples moda41. Por outro lado, não lhes parecia possível abdicarem de um sentido de continuidade com o passado, com a história, com uma tradição das formas que não se mede no tempo curto. Mais ainda, partilhavam essa convicção, e o gosto daí resultante, com os seus clientes. Restava-lhes portanto, e compreensivelmente, resistir.

A adjetivação contemporânea de arquiteturas como a casa do Largo de S. Mamede a partir da visão e pressupostos do Movimento Moderno é o exercício de um equívoco e de uma iniquidade. Pode, em tempos, ter sido estratégica para a implantação do Movimento Moderno em Portugal, no momento histórico específico em que este precisava de se afirmar. Mas não se pode hoje, sem reservas, continuar a repetir. Para se perceber a posição cultural e arquitetónica dos Rebelo de Andrade é necessário conhecer a sua produção ‘por dentro', nos seus próprios termos, entendendo o quadro mental em que se moviam. E aceitar que não há um só caminho para a modernidade, compreendendo que, mais do que a rutura, são a continuidade histórica e a inovação dentro da tradição que permitem manter os valores e, simultaneamente, ir agindo no sentido de os modificar, adaptar e transformar.

A casa do Largo de S. Mamede é uma síntese entre um ‘solar setecentista' e um ‘apartamento familiar moderno', dando significado histórico ao “luxo bizarro”. O apartamento T3 para a família padrão do pós-guerra – pai, mãe e dois ou três filhos – tinha aqui de algum modo uma interpretação. E a ampla porta do vestíbulo não se tratava de uma “capela a S. Automóvel” mas o retomar de uma forma setecentista das entradas dos prédios de Lisboa que, substituídos os cavalos pelos veículos motorizados, ganhava nova oportunidade.

O dono da casa não tinha um “Buick”, mas um Cadillac, de 1949, vermelho escuro, conduzido pelo chauffeur Andrade. Porém, nessa mesma época, o filho mais velho tinha já um leve, rápido, ágil e moderno Porsche de 75cv, e era ele mesmo quem conduzia.

E esta metáfora ajuda a explicar o essencial: – o que os tradicionalistas estavam a fazer não era a recusa da evolução e da modernidade. Não estavam a resistir ao ‘avançar do progresso' nem a negar a mudança de modos de vida. Estavam, isso sim, a tentar estabelecer uma integração da modernidade com os valores da tradição da arquitetura, sem rutura nem revolução.

O que esta obra mostra – e é também por isso que vale a pena conhecê-la – é que o caminho da arquitetura para a modernidade podia não ser feito exclusivamente pela via da adoção dos códigos visuais e dos pressupostos formais do Movimento Moderno. O que os Rebelo de Andrade procuravam, conjugando nesta obra contributos de três diferentes séculos, era ajustar o avançar da tecnologia (com as mudanças correlativas), compatibilizando-o com um sentido de continuidade cultural. Ou seja, procurando evitar a rutura e a anomia.

 

9. Epílogo

No processo n.º 1062/DAG/PG/195242 do Arquivo da CML, datado de 1952 – estava a obra em vias de terminar –, existe uma “Memória” assinada por Carlos Rebelo de Andrade. Nesse documento refere-se que o projeto foi inicialmente apresentado como um “Projecto de Alterações”. Porém, continua o documento, “observa-se agora, para os devidos efeitos, que se trata de uma obra de raiz visto que todo o existente foi demolido”. E termina, com alguma candura, dizendo: “Faz-se esta declaração para que esta obra, na altura devida, seja considerada na apreciação para a distribuição dos prémios municipais”.

Era demasiado tarde. No início dos anos cinquenta, passado já o Congresso dos Arquitetos de 194843, o moderno triunfante e em rápida expansão estendia a sua sedução e influência a um número cada vez maior de arquitetos e de pessoas ligadas à cultura e à opinião. Estava-se no início dos anos 50, os “verdes anos” da arquitetura moderna portuguesa, e a esperança, ou sequer a expectativa, da repetição de um prémio como o Valmor de 1939, que lhes havia sido atribuído (aos irmãos Rebelo de Andrade) em 194344, era já irrealista. Na verdade, depois de 1950 – exceto em 1953 – todos os prémios Valmor seriam atribuídos a edifícios inequivocamente influenciados pelos valores e atributos do Movimento Moderno45.

A carreira dos irmãos Rebelo de Andrade, prosseguiria pelos anos 50 e inícios de 60. Contudo, apesar dos importantes projetos que lhes seriam ainda confiados, sobretudo por parte do Estado46, e de um certo esforço de reconversão de linguagem47, a vitalidade, a energia, a convicção no seu gosto e na sua arquitetura tinham-se esgotado. E nenhum prémio lhes voltaria a ser atribuído.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fontes

 

Arquivo da Família Vasco Rebelo de Andrade

Fotografias de Horácio Novais, c. 1953.

 

Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas

Terreno que pertence á cerca do Real Colégio dos Nobrez visto do Conde de Oeiras. Lisboa: [s.n., 1756?].

Arquivo Municipal de Lisboa

Obra n.º10887, Processos n.º 41142/DAG/PG/1949; 43988/DAG/PG/1949; 26596/DAG/PG/1951; 1062/DAG/PG/1952; 43480/DAG/PG/1952; 5872/DAG/PG/1954.

 

ESTUDOS

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submissão/submission: 30/12/2015

aceitação/approval: 21/10/2016

 

 

NOTAS

* Luís Celestino Mourão Soares Carneiro é arquiteto e professor associado na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. Licenciado pela Escola Superior de Belas-Artes do Porto em 1987 e doutorado pela FAUP em 2003. É diretor do Programa de Doutoramento em Arquitetura da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. Além de manter uma intensa atividade de projeto, ensina, escreve, faz conferências e participa em encontros nacionais e internacionais. Trata sobretudo temas relacionados com teatros, habitação coletiva e história da arquitetura portuguesa. Correio eletrónico: lcarneiro@arq.up.pt

1 FRANÇA, José-Augusto - A arte em Portugal no século XX. Lisboa: Bertrand, 1974.

2 PORTAS, Nuno – A evolução da arquitectura moderna em Portugal. In ZEVI, Bruno - História da arquitectura moderna. Lisboa: Arcádia, 1970-1973. vol. 2, p. 687-746.

3 ALMEIDA, Pedro Vieira de - A arquitectura do Estado Novo: uma leitura crítica. Lisboa: Livros Horizonte, 2002. p. 16.

4 Ver: PIGAFETTA, Giorgio; ABBONDADOLO, Ilaria; TRISCIUOGLIO, Marco - Architettura tradizionalista: architetti, opere, teorie. Milano: Jaca Books, 2002. VIGATO, Jean Claude - L'architecture régionaliste: France, 1890-1950. Paris: Editions Norma, 1994. VIGATO, Jean Claude – Régionalisme. Paris: Ed. La Villete, 2008. BORSI, Franco - The monumental era: European architecture and design, 1929-1939. New York: Rizzoli, 1987. MEGANCK, Leen; SANTVOORT, Linda Van; MAYER, Jan de, ed. – Regionalism and modernity: architecture in Western Europe, 1914-1940. Leuven: Leuven University Press, 2013.

5 Temos trabalhado neste tema desde 2011, recolhendo, ordenando e estudando as complicadas questões que envolvem a obra dos Rebelo de Andrade e de outros da sua geração. A intenção é a de estabelecer uma monografia sobre estes arquitetos e o seu tempo, com temas e problemáticas que colocam hoje, como então, dificuldades e interrogações. Na sequência da conferência “Marques da Silva 2015”, que realizei na FAUP, em outubro de 2015, vai ser em breve publicado o respetivo texto pela FIMS. Nele se aborda a questão do percurso dos arquitetos Rebelo de Andrade e os problemas que se colocam à sua releitura; o título é: Casas ermas: os arquitectos Rebelo de Andrade e os discursos do Moderno.

6 “Os Irmãos Rebelo de Andrade, arquitectos do ‘D. João V', apresentam o seu primeiro projecto modernista”. Notícias Ilustrado. Ano V Série 2 N.º 237 (25 Dezembro 1932), p. 21.

7 Veja-se, como exemplo, a entrevista em que Carlos Rebelo de Andrade fala explicitamente em nome dele e do irmão: “Onde vai construir-se o novo estádio...”. Noticias Ilustrado. Ano VI Série 2 N.º 289 (24 Dezembro 1933), p.4-5 e p.19.

8 AML, Obra n.º 10887, Processo n.º 41142/DAG/PG/1949, f. 2.

9 Informações fornecidas pelo Dr. Manuel José Carvalho Martins, neto daquele e filho do promotor da reconstrução, José Manuel Martins, em 2013-05-06.

10 AML, Obra n.º 10887, Processo n.º 43988/DAG/PG/1949, f. 1.

11 Informações fornecidas pelo Dr. Manuel José Carvalho Martins, neto daquele e filho do promotor da reconstrução, José Manuel Martins, em 2013-05-06.

12 AML, Obra n.º 10887, Processo n.º 5872/DAG/PG/1954.

13 AML, Obra n.º 10887, Processo n.º 5872/DAG/PG/1954.

14 AML, Obra n.º 10887, Processo n.º 5872/DAG/PG/1954.

15 FRANÇA, J.-A. - Monte Olivete: minha aldeia. Lisboa: Livros Horizonte, 2001. p. 105.

16 Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas (AHMOP), Terreno que pertence á cerca do Real Colégio dos Nobrez visto do Conde de Oeiras. Lisboa: [s.n., 1756?].

17 VIEGAS, Inês Morais; TOJAL, Alexandre Arménio, coord. - Atlas da carta topográfica de Lisboa, sob a direcção de Filipe Folque: 1856-58. Lisboa: Câmara Municipal, 2000. plantas n.º 26 e n.º 27.

18 Já existia na planta de Lisboa de 1856-8, ver: VIEGAS, Inês Morais; TOJAL, Alexandre Arménio, coord. - Atlas da carta topográfica de Lisboa, sob a direcção de Filipe Folque: 1856-58. Lisboa: Câmara Municipal, 2000. planta n.º 26.

19 Para uma noção mais detalhada de “faixa de pertença” ver “fascia di pertinenza” em: CANNIGIA, G; MAFEI, G. L. - Composizione architettonica e tipologia edilizia. 4.ª ed. Venezia: Marsilio Editori, 1982. 1. Lettura dell'edilizia di base. p. 130.

20 Ver “percorso di impianto edilizio” em: CANNIGIA, G; MAFEI, G. L. - Composizione architettonica e tipologia edilizia. 4.ª ed. Venezia: Marsilio Editori, 1982. Lettura dell'edilizia di base. p. 134.

21 AML, Obra n.º 10887, Processo n.º 5872/DAG/PG/1954, f. 2 a 3 v., certidão da Sexta Conservatória da Registo Predial de Lisboa, de 3 de fevereiro de 1954.

22 O protesto que M. Lambertini apresentaria à CML pela não atribuição do prémio Valmor à sua obra referia que a fachada da casa tinha sido realizada “no estilo da renascença italiana veneziana, conhecido com o nome de lombardesco” que se caracterizava por “uma elegante magreza de formas e aristocracia de detalhes, singularmente próprios para decorar edifícios de pequenas dimensões”. Ver: Carta de M. Lambertini nos arquivos da CML, citado por: PEDREIRINHO, José Manuel - História do prémio Valmor. Lisboa: D. Quixote, 1988. p. 49. Era contra este gosto que os Rebelo de Andrade porfiavam desde os anos 20, pelo que se compreende que uma fachada hoje muito provavelmente preservada fosse deliberada e ostensivamente substituída.

23 Nicola Bigaglia (1841-1908) foi um arquiteto italiano vindo para Portugal em 1888. Foi professor e arquiteto, sendo autor de muitos edifícios por todo o país, mas sobretudo em Lisboa. Ver resumo biográfico em: BAIRRADA, Eduardo Martins - Prémio Valmor, 1902-1952. Lisboa: Câmara Municipal, 1988. p. 226-228.

24 Henri Lusseau (1868-1936), engenheiro e arquiteto paisagista ativo em Portugal no último quartel do séc. XIX. Ver: PEDREIRINHO, José Manuel - Dicionário dos arquitectos activos em Portugal do séc. I à actualidade. Porto: Edições Afrontamento, 1994. p. 153. E também: CALADO, Maria - A cultura arquitectónica em Portugal, 1880-1920: tradição e inovação. Lisboa: [s.n.], 2002. vol. II, p. 180-181. Dissertação de doutoramento em Arquitectura, apresentada à Faculdade de Arquitetura, Universidade Técnica de Lisboa.

25 AML, Obra n.º 10887, Processo n.º 41142/DAG/PG/1949, f. 2.

26 AML, Obra n.º 10887, Processo n.º 43980/DAG/PG/1952, f. 3 a 12.

27 No Cartulário Pombalino são múltiplos os casos em que aparecem estas portas mais largas, alternando com portas mais estreitas, como se pode verificar nos prospetos 2, 9, 11, 12, 20, 21, 23, 26, 30, 31, 32, 33, 34... Nalguns casos (no prospeto 20, por exemplo) é clara a existência de “frades” dos lados das entradas, protegendo as ombreiras dos eixos das carroças ou carruagens. Ver: VIEGAS, Inês Morais, coord. - Cartulário pombalino. Lisboa: DPC, 1999.

28 Ver: MOITA, Irisalva, org. - Catálogo da exposição Lisboa e o Marquês de Pombal. Lisboa: Museu da Cidade, 1982. fig. 228.

29 Ver: CARNEIRO, Luís Soares - Teatros portugueses de raiz italiana. Porto: [s.n.], 2002. vol. 1, p. 91-95. Tese de doutoramento, apresentada à Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto.

30 É uma designação arcaica para “entresolo” ou “entrepiso”, utilizada na memória descritiva. Ver: AML, Obra n.º 10887, Processo n.º 41142/DAG/PG/1949, f. 2.

31 Compare-se o levantamento existente no Arquivo Municipal de Lisboa, Obra n.º 10887, Processo n.º 43980/DAG/PG/1952, f. 2-12, desenhos 1 a 10, com a versão final apresentada em AML, Obra n.º 10887, Processo n.º 1062/DAG/PG/1952, f. 3 e 4.

32 As designações são as dos desenhos das “telas finais”, ver: AML, Obra n.º 10887, Processo n.º 1062/DAG/PG/1952, f. 8.

33 Informação fornecida pelo Dr. Manuel José Carvalho Martins, filho do promotor da reconstrução, José Manuel Martins, em 2013-05-06.

34 Informação fornecida pelo Dr. Manuel José Carvalho Martins, filho do promotor da reconstrução, José Manuel Martins, em 2013-05-06.

35 Alegadamente provindo de um antigo Hospital de Grândola. Informação fornecida pelo Dr. Manuel José Carvalho Martins, filho do promotor da reconstrução, José Manuel Martins, em 2013-05-06.

36 José Tiago Ferreira Basalisa, pintor, nascido em 1871, discípulo de E. Cotrim, segundo: PAMPLONA, Fernando de - Dicionário de pintores e escultores portugueses ou que trabalharam em Portugal. 3.ª ed. Lisboa: Civilização, 1991. vol. 1, p. 188.

37 Ver: GARCÍA NAVARRO, Justo; DE LA PEÑA PAREJA, Eduardo - El cuarto de baño en la vivienda urbana: una perspectiva histórica. Madrid: COAM, 1998. p. 72-73.

38 AML, Obra n.º 10887, Processo n.º 26596/DAG/PG/1951, f. 2.

39 Um projeto com arcos e escadas principais semelhante tinha sido utilizado na Chancelaria da Embaixada Portuguesa em Londres, dos irmãos Rebelo de Andrade, de 1940.

40 Tradução livre da expressão de: FOUGEYROLLAS, Pierre - Le marxisme en question. Paris: Editions du Seuil, 1959.

41 Ver a entrevista a Carlos Rebelo de Andrade: “Um problema que tem de ser resolvido. O Palácio da Justiça de Lisboa”. Noticias Ilustrado. Ano VI Série 2 N.º 262 (18 Junho 1933), p. 12-13.

42 AML, Obra n.º 10887, Processo n.º 1062/DAG/PG/1952, f. 2.

43 Ver: CONGRESSO NACIONAL DE ARQUITECTURA, 1, Lisboa, 1948 – 1.º Congresso Nacional de Arquitectura: relatório da Comissão Executiva, teses, conclusões e votos do Congresso. Lisboa: Sindicato Nacional dos Arquitectos, 1948.

44 Ver: LEITE, Ana Cristina, org. - Arquitectura premiada em Lisboa: prémio Valmor – prémio municipal de arquitectura. Lisboa: Câmara Municipal, 1988. Ou: PEDREIRINHO, José Manuel - História do prémio Valmor. Lisboa: D. Quixote, 1988.

45 Idem.

46 Outros estudos nossos tratarão desses assuntos.

47 É o caso, por exemplo, do Projeto de Edifício para os Serviços Municipais (anteprojeto de 1953), ou o Grupo Escolar do Restelo (1954-1958).

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