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Cadernos do Arquivo Municipal
versão On-line ISSN 2183-3176
Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.10 Lisboa dez. 2018
ARTIGO
A escrita na legitimação do poder: a letra joanina e a Dinastia de Avis. Contributospaleográficos
Writing in the legitimacy of power: the joanina handwriting and the Avis Dynasty. A paleograhic contribute
Ana Pereira Ferreira*
* Ana Cristina Pereira da Silva Ferreira, CH-Centro de História, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, 1600-214 Lisboa, Portugal. anapsferreira@gmail.com
RESUMO
Numa época de mudanças, o surgimento de uma nova dinastia a necessitar de legitimação e afirmação faz-se de várias formas: a escrita é mais uma das hipóteses de demonstrar a mudança em relação ao paradigma anterior de governação e sobre a configuração de poder do novo monarca, com uma mudança nos cargos de Chancelaria e da escrivaninha.
Com a subida ao trono de D. João I e a inauguração do poder de Avis, verificamos uma mudança quase imediata no ductus das letras dos documentos feitos na Chancelaria Régia. Também no assento de quem escreve há alterações: novos homens numa nova administração, todos sem muita experiência nos cargos.
A escrita torna-se um veículo essencial de poder, confirmando o que se fazia sentir desde o século XIII, com o aumento da burocracia e da importância do registo documental. A análise paleográfica desta nova grafia (que por surgir no reinado de D. João I apelidámos de joanina), a demonstração de semelhanças e influências da escrita bâtarde, a ação que a diplomacia e corte inglesas podem ter tido com a vinda, para o reino, da mãe da Ínclita Geração como tentativa de unidade e Corte com a dinastia anterior, bem como a legitimação de poder levada a efeito pelo Mestre de Avis é o que nos propomos neste breve artigo.
PALAVRAS-CHAVE
Poder / Chancelaria Régia / Letra joanina / Paleografia / Dinastia de Avis
ABSTRACT
During a time of changing governance, crisis, hunger, plague and war, the emergence of a new dynasty strives for legitimation and affirmation. The official style in writing is one more vehicle for such assertion, expressing a paradigm shift in governance and the power dynamics surrounding the new monarch, complete with a change in its Chancellery and Notarial Desk.
With the ascension to the throne of D. João I and the beginning of the Avis Dynasty, we verify an almost immediate change in the ductus of the characters drawn in the documents made in the Royal Chancellery. Further, we find changes in the writers' offices: fresh faces for a renewed administrative apparatus.
Writing thus becomes an essential vehicle of power, a trend that can be asserted for since the 13th century with the growing bureaucracies and importance of written record. On this article we intend to propose a paleographic analysis of the abovementioned renewed style of writing.
KEYWORDS
Power / Royal Chancellery / Joanina handwriting / Paleography / Avis Dynasty
INTRODUÇÃO
A Paleografia, que segundo Cencetti “é lo studio critico delle antiche scritura ed e suo scopo non solo interpretare esattamente i manoscritti, ma anche datarli, localizzarli e, in generale, trarre dalle loro aspetto esteriori...”1, tem sido uma ciência auxiliar da História nem sempre tida em consideração no panorama historiográfico nacional.
De Coimbra, além dos sempre úteis contributos de Maria Helena Cruz Coelho, surge-nos ainda o legado do padre Avelino Jesus da Costa, responsável pela regência da disciplina de Paleografia na Universidade do Mondego e pelo Instituto de Paleografia, sendo ainda responsável pela edição do Álbum de Paleografia e Diplomática Portuguesas2, guiando centenas de alumni nos seus primeiros passos na disciplina.
De notar ainda os esforços de Maria José Azevedo Santos3, que analisou a evolução da escrita entre os séculos IX e XII, apurando não só características de suporte e materiais da escrita, mas também a evolução cultural das próprias grafias.
Não podemos deixar de recordar o contributo de A. H. de Oliveira Marques, que lecionou a disciplina de Paleografia e Diplomática na Faculdade de Letras de Lisboa e mais tarde, na década de 80, a sua presença na Universidade Nova de Lisboa, cujo contributo levou à transcrição e publicação através do Centro de Estudos Históricos de importantes fontes documentais, como as Cortes Portuguesas e as Chancelarias Régias. De referir também Eduardo Borges Nunes4 não só pelo que nos deixou publicado, mas também pela regência que teve a seu cargo da disciplina de Paleografia e Diplomática na Faculdade de Letras de Lisboa.
Desta mesma instituição, temos a tese de doutoramento de António Guerra5, que procura tratar os instrumentos privados portugueses medievais; já na Universidade do Porto, não podemos deixar de considerar o padre José Marques6 que deu o seu contributo à Paleografia na historiografia nacional, tendo sido o responsável e fundador do Curso de Especialização em Ciências Documentais e coordenador da sua Secção de Ciências Documentais. Mais recentemente, de frisar a tese defendida por Maria João Oliveira e Silva sobre a Chancelaria episcopal da Catedral do Porto7.
Desde 2006, contamos com as dissertações do mestrado em Paleografia e Diplomática, lecionado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, sob égide de Bernardo Sá-Nogueira, como o caso da análise da grafia manuelina por Teresa Coelho8, o contributo no mesmo mestrado de Mário Costa9 e ainda a análise da escrita humanística de Jorge Paulo10 ou a nossa própria dissertação sobre a grafia que agora aqui expomos.
No panorama internacional, chega-nos em maior número o contributo dado por variados autores: é o exemplo das obras publicadas por Armando Petrucci11, Edmond Reusens12, Paola Martini13, Agustín Millares Carlo14, Jean Mallon15, Vittorio Lazzarini16, entre outros.
Contudo, mais que uma análise simples de grafia, interessa-nos compreender e relacionar essa análise com a influência que essa mesma escrita pode ter sofrido e as causas e consequências do seu surgimento. É nesse contexto que pretendemos aqui abordar a letra joanina: quais as suas características; como e quando surgiu; com que propósitos; que influências sofreu; que consequências trouxe ao panorama cultural de então. Estas são algumas das questões a que pretendemos dar respostas nas próximas páginas, tornando possível, por meio da Paleografia, analisar a política de legitimação de uma dinastia.
Pretendemos por isso comparar a grafia que apelidámos de joanina, por ter surgido aquando da subida ao trono de D. João I como veremos, com aquela que existiu antes dela, no reinado de D. Fernando. Para isso, utilizaremos como ponto de partida e observação elementos característicos de uma e outra grafia, mais visíveis em determinadas letras.
Para podermos caracterizar a grafia temos, além dos contributos de Jean Mabillon17 para definir a feitura das letras, os apoios que Borges Nunes nos fornece na “Introdução” ao seu Álbum de Paleografia18 e os contributos de Coimbra, já nomeados.
A ideia de que de facto existia uma letra joanina herdeira da bâtarde francesa, não era nova aquando da nossa investigação de mestrado: já Borges Nunes tinha avançado com essa possibilidade e com essa denominação, ainda que nunca tenha seguido para a análise paleográfica e comparação de grafias de forma a comprovar tal facto. Através da análise paleográfica de um conjunto de grafemas e manchas de texto, seguindo uma metodologia anteriormente aplicada em teses em Paleografia por outros autores, cabe-nos a tarefa de o comprovar cientificamente e descortinar em que medida foi uma forma de legitimação.
Desde sempre e para uma melhor compreensão das grafias, houve uma tentativa dos historiadores e em particular dos paleógrafos, em tentar classificar as escritas, fosse segundo critérios geográficos, cronológicos, culturais, fosse de acordo com a morfologia dos grafemas ou ainda com a tipologia documental que pretendem originar. Exemplo disso foram os esforços encetados por Cesare Paoli19, dividindo a evolução das escritas em três períodos, assentes em critérios essencialmente cronológicos e geográficos. Já Battelli20 partiu dos locais produtores de cultura para fazer uma divisão baseada também ela em três períodos. Por seu turno, Maurice Prou recorreu aos critérios morfológicos para dividir as escritas em Maiúsculas, Minúscula e Assentada21.
Dentro das questões morfológicas poderemos ainda considerar um conjunto de variáveis como o ductus, a rapidez de escrita (cursiva ou caligráfica), entre outras considerações. Por fim, no que respeita à caracterização da escrita com base na tipologia documental que vai originar, não podemos deixar de considerar por exemplo a escrita livresca e a escrita documental, as mais usuais.
Pretendendo por isso desenvolver uma comparação de grafias, de forma a determinar o surgimento de um novo tipo de letra e delimitar quando tal sucedeu, teríamos de recuar cronologicamente ao período onde ainda não se fazia notar o novo cânone que pretendemos analisar, e como tal ao reinado fernandino.
Tendo este tido o seu término em 1383, considerámos por bem recuar até ao início da década anterior, de forma a termos temporalmente um período confortável de análise. A definição do termo cronológico da nossa análise afigurava-se mais complexa, pois pretendíamos apurar quando esta escrita deixa de ser apenas uma letra de Chancelaria Régia e passa a ser usada também nos diplomas privados, lavrados por tabeliães.
Para isso teríamos de ir ao início do século XV, mas achámos que não seria necessário ir até ao final do reinado de D. João I. Rapidamente a documentação compulsada nos demonstrou que, nos primeiros anos de Quatrocentos, a influência da letra de Chancelaria nos registos particulares era uma realidade e por isso determinamos analisar a documentação até 1420.
Quanto ao corpus documental a analisar, em primeira observação teríamos de nos focar nos documentos emanados da Chancelaria Régia, escritos por escrivães régios. Era aí que eram feitos os documentos a mando do rei e era aí que se notavam as alterações referidas por Carvalho Homem, no Desembargo22. Desta forma, todos os arquivos que tivessem documentação régia, seriam profícuos à nossa investigação, entre eles o Arquivo Municipal de Lisboa.
Como refere Teresa Pereira Coelho, “cada estilo de escrita tem um significado histórico que reflete as ideias diretrizes dominantes no meio intelectual ou no espírito da época”23, e é precisamente esse o propósito que aqui queremos demonstrar.
LISBOA E O REINO NA TRANSIÇÃO DE TREZENTOS PARA QUATROCENTOS
O século XIV no reino de Portugal, ainda que conturbado social, demográfica e economicamente, foi um tempo de estabilização do ponto de vista cultural: particularmente na língua falada na medida em que a escrita, ainda que tivesse conhecido um grande aumento no uso quotidiano, fruto também da burocracia da governação, era ainda e continuaria a ser por longo período instável na forma e no ponto de vista gramatical24.
A partir do século XV, um pouco por toda a Europa registou-se um incremento do dinamismo como que em resposta aos tempos pouco abonatórios que se fizeram sentir na centúria anterior25. Deste vigor resultaram repercussões a vários níveis, não sendo a escrita uma exceção: o desenvolvimento demográfico nas cidades pela população que fugia dos campos e da fome, o desenvolvimento das trocas comerciais e com elas a necessidade de passar a escrito e registar, de contabilizar e o crescimento e estabilização dos Estudos Gerais na cidade de Lisboa, depois de um século de itinerância entre Coimbra e a “sempre nobre e leal cidade”.
Surge uma necessidade cada vez mais premente do uso do documento escrito, do registo, promovido também pela estabilização da Universidade e um aumento dos escolares26, o que permitiu igualmente o desenvolvimento da escrita joanina e do Desembargo. O Estudo Geral viria a ser, como referiu Marcello Caetano, o “centro intelectual da Revolução”27.
Se a morte de D. Fernando trouxe um período conturbado de Crise de Sucessão, criou por oposição a possibilidade do surgimento de uma nova dinastia e de um novo governo, mais preparado, constituído por letrados e mercadores na sua maioria ligados a interesses estabelecidos em Lisboa. O Dr. João das Regras, João Afonso d' Azambuja, Martim Afonso, João Gil, Martim da Maia, entre outros28 são apenas alguns dos nomes sonantes que surgem com a nova governação.
Estas mudanças são sinal da necessidade de D. João I rodear-se de homens competentes e da sua confiança, ainda mesmo enquanto regente e defensor do reino e apesar da inexperiência de todos da administração central29. O novo monarca procurou manter as boas relações com os homens-bons de Lisboa, através de um conjunto de privilégios: exemplo disso foram as missões diplomáticas atribuídas ao antigo chanceler-mor, Lourenço Eanes Fogaça, de modo a controlar de alguma forma o acesso ao poder.
De reter também que no seu reinado aumenta o número de tabeliães30 e escrivães, muitos deles acedendo ao cargo não só pelos seus conhecimentos de escrita, mas por questões de vassalidade e clientelismos31.
O casamento de D. João I não pode ser alheado desta realidade de legitimação do poder e mudança política, social e cultural: D. Filipa de Lencastre trazia da Corte inglesa a cultura, a diplomacia e outras influências que passou para a sua nova Corte e para os seus descendentes. A transmissão da memória escrita, a organização de arquivos, a cópia de manuscritos, que noutros reinos como Inglaterra se fez a partir dos séculos XI e XII32, em Portugal tomou um novo fôlego com a Ínclita Geração, elevando a cultura da Corte e do reino, tornando-se numa dinastia de homens cultos, educados e preparados a governar e transmitir a sua cultura a outros, com novos ideais, valores e doutrinas políticas e morais.
Aos novos membros do Desembargo, juntava-se um oficialato moldado à imagem do rei. É neste contexto que terá surgido a nova grafia, a joanina.
Se, de início, com o aumento do oficialato, o Desembargo esteve um pouco sem rumo33, numa fase posterior verificamos o desenvolvimento das funções dos desembargadores de forma independente e idónea34. Como refere Maria Helena da Cruz Coelho35, com o novo monarca, a máquina burocrática tornava-se mais operante. Com a importância cada vez maior dos Estudos Gerais no reino e a frequência, essencialmente de religiosos, da Universidade, o clero começava a estar mais presente no Desembargo36.
Todos estes fatores seriam essenciais à legitimação do novo monarca e do novo modelo de governação, continuado pelo príncipe herdeiro, D. Duarte.
A Dinastia de Avis foi de resto uma Corte culta, facto para o qual a ideia de unicidade em redor de uma língua única e comum foi fundamental.
ANÁLISE PALEOGRÁFICA DA LETRA JOANINA
No território português, desde o século VIII até ao século XIII, podemos contar com escritas “nacionais”, escritas que foram comuns a vários espaços: a escrita visigótica, seguida da escrita carolina. Posteriormente, dar-se-ia uma transição para a escrita gótica. Esta, por sua vez, teria algumas variáveis em Duzentos e Trezentos. Refere inclusive Borges Nunes37, que em Portugal viríamos a ter influências da gótica até aos séculos XVI e XVII. A gótica traz consigo a solenidade exigida aos livros sagrados de luxo, angulosa, cuidada, com contrastes entre traços grossos e finos. Refere o mesmo autor que em Portugal a gótica foi mais comum em títulos e não tanto no corpo de texto.
Em alguns países, como Itália, a escrita gótica foi de resto um estilo que variava conforme o ambiente em que era feito: na chancelaria, no notariado, no uso comercial Em Portugal tal não se fez sentir desta forma, mas sim com o fenómeno que Borges Nunes apelida de original da gótica: o surgimento das “bastardas”, traços que segundo o autor se caracterizam por serem caligráficos derivados de cursivos.
Ao longo do século XIV começa a surgir um conjunto de registos mais cursivos, abandonando algumas tendências que até então se faziam sentir de caligráficas menos solenes. Assim, as hastes e caudas começam a dar lugar a laçadas mais prolongadas, imprimindo um tom de velocidade à escrita.
Com o fim da Crise de Sucessão de 1383-85, mas particularmente e de forma definitiva com o casamento de D. João I com D. Filipa de Lencastre, é visível uma mudança na escrita usada na Chancelaria Régia, com o aparecimento daquela que apelidamos de letra joanina influência da letra bâtarde mas também da grafia gótica e que perdurará por cerca de um século.
Já no final do século XV e início do século XVI veríamos surgir uma vez mais uma nova forma gráfica, a escrita manuelina, de acordo com o que foi comprovado pela dissertação de mestrado de Teresa Coelho38. Com este novo cânone têm início as escritas humanísticas, letra sobre a qual podemos ter mais informes na dissertação de Jorge Paulo39.
Levar a bom termo a nossa pesquisa pela mudança de paradigma na letra com o novo reinado de D. João I, implica, como já referimos, começar a análise da grafia uns anos antes, ainda no reinado do Formoso, de forma a podermos contemplar as alterações do ponto de vista paleográfico que se fizeram notar na grafia usada na Chancelaria Régia.
Neste breve ensaio que aqui fazemos, não podemos abordar letra a letra40 todo o alfabeto, pelo que iremos escolher alguns grafemas mais ilustrativos da mudança, como o caso das letras h, m, z, g, s e r.
Não poderemos também fazer uma análise exaustiva das abreviaturas usadas e da numeração, mas interessa-nos particularmente recorrer à novidade que surge neste período e, segundo Borges Nunes41, prática que surgiu no nosso reino: o uso do R para simbolizar o número 40 e o b como forma de determinar o número 5, que deveria ser representado com um v, de acordo com a numeração romana.
Terminada esta tarefa, passaremos a uma breve análise comparativa de três excertos documentais: um de letra não joanina, um de semi-joanina e um de joanina. Por fim, restar-nos-á caracterizar a nova grafia com base nas comparações que realizámos da análise letra a letra e da análise de excertos, e retirar algumas conclusões.
Antes da análise das letras que referimos anteriormente, queremos dar a conhecer o corpus documental e os intervenientes na escrita: interessam-nos particularmente os documentos régios emanados da Chancelaria, como já exposto. Um conjunto de razões levam à preferência por esta documentação, a começar pelo facto de terem explicitamente a indicação no escatocolo de quem os escreveu (“escrivão a fez”), permitindo-nos detetar grafias, tendências e continuidades ou ruturas no manejo da pena. Além disso, a haver uma ordem de alteração da grafia, esta começaria pela escrita que saía da Chancelaria e pelo novo corpo de desembargadores.
Deste modo, a tipologia documental à nossa análise pouco significa, na medida em que não se observam alterações nas grafias conforme os tipos de documentos a lavrar.
Porém, alguns problemas podem afigurar-se, nomeadamente a divergente distribuição de documentação em cada fundo, resultante de vicissitudes variadas, corolário do passar dos séculos. Outro problema é a dificuldade de identificar os protagonistas da escrita: se no tabelionado temos o sinal que nos permite associar a um nome, no caso da escrivaninha régia apenas temos o nome do escrivão e quando nos aparecem nomes comuns como por exemplo Álvaro Gonçalves é difícil determinarmos carreiras, formação e informações de cariz social e económico, sendo que temos apenas à nossa disposição a análise paleográfica da escrita de cada um para os diferenciar.
Começando a análise no início da década de 70 do século XIV e considerando os fundos de que dispomos no Arquivo Municipal de Lisboa, podemos contar com documentos de grande utilidade aos nossos propósitos no Livro 2º de D. Fernando (19 documentos), Livro 1º de D. João I (70), Livro 2º de D. João I (31), Livro de provimento de ofícios (11), Livro 1º de Cortes (9), Livro 1º do alqueidão (5), Livro 1º de emprazamentos (4), Livro 1º de sentenças (3), Livro 1º dos místicos de reis (1), Livro 1º de quitações e desistências (1), Livro 1º do Hospital de S. Lázaro (1).
Nestes fundos compulsámos um conjunto de 156 documentos que se mostram úteis ao nosso estudo sobre a mudança da letra. Destes registos, 112 são de letra já joanina, conquanto 17 são de letra não-joanina e os restantes de uma grafia que demonstra a transição do modelo utilizado no reinado de D. Fernando para o novo modelo do novo monarca, à qual chamámos semi-joanina.
Os registos de letra não-joanina dizem respeito essencialmente ao Livro 2º de D. Fernando, particularmente instrumentos datados na década de 70 da centúria de Trezentos. Existem apenas 2 documentos de cânone não--joanino a estarem presentes no Livro 1º de D. João I. Quanto à grafia de transição, a semi-joanina, esta aparece não só no Livro 2º de D. Fernando, como no Livro 1º de D. João I, na sua maioria para os anos de transição e da Crise Sucessória.
Destes 156 registos documentais, apenas 46 não são despachados por desembargadores régios, sendo portanto os restantes 110 alvo de subscrição do Desembargo; aqui contamos com duplas habituais de trabalho, como Rui Lourenço e João Afonso (8 documentos), Fernão Gonçalves e Vasco Gil Pedroso (4), Álvaro Gonçalves e Martim da Maia (3), Diogo Martins e Vasco Gil Pedroso (3), Martim da Maia e Gonçalo Peres (2), Gonçalo Peres e Martim da Maia (2), João Afonso d'Azambuja e João Afonso de Santarém (2), Vasco Gil de Pedroso e Diogo Afonso d' Alvernaz (1), ou ainda Rui Lourenço e Álvaro Peres (1).
A solo temos como nomes que mais aparecem Fernão Gonçalves (13 documentos), Fernão Martins (7), Lourenço Eanes Fogaça (6), Rui Lourenço (6), João Afonso (escolar em leis) (5), Vasco Gil de Pedroso (4), Gil Martins (3), Rodrigo Eanes (ouvidor) (2), Álvaro Rodrigues (2), entre outros.
No que respeita a escrivães a lavrar nestes pergaminhos, temos 65 homens diferentes a produzir, destacando-se pela quantidade documental Álvaro Gonçalves (20 documentos), Gonçalo Caldeira (18), Vasco Eanes (9), Álvaro Eanes (7), Lançarote (6) e Fernão Peres (6), todos eles com grafia joanina e a produzirem apenas eles mais de 1/3 da documentação em análise. Estêvão Domingues (5) e Vasco Vicente (4) estão entre os de letra não-joanina e semi-joanina que mais produzem, respetivamente.
Querendo dar particular destaque aos fundos do Arquivo Municipal de Lisboa, não podemos deixar de frisar que também no Arquivo Nacional Torre do Tombo poderíamos recorrer a vários fundos que nos permitiriam detetar a mudança repentina na grafia logo com a regência, mas principalmente com a subida ao trono de D. João I. É o caso de fundos como as Gavetas e a Coleção Especial em particular, mas ainda fundos como a Sé de Viseu, Mosteiro de Alcobaça ou Cabido da Sé de Coimbra.
ANÁLISE LETRAS g, h, m, r, s e z
A seleção destes exemplos, além de se justificar com a impossibilidade de neste espaço fazermos uma análise mais exaustiva e de mais letras, relaciona-se também com o facto de serem estes os exemplos mais notáveis da mudança que existiu na grafia do reinado de D. Fernando para o de D. João I; deste modo, colocaremos lado a lado exemplos de letras de um e outro tempo e explicaremos o ductus da letra e as alterações que sofreu.
Ao analisar uma grafia, deparamo-nos com algumas dificuldades na forma de adjetivar os seus traços constitutivos, promovendo o uso de expressividades como “cauda”, “barriga”, “cabeça”, expressões que, não sendo especialmente científicas, se tornam uma necessidade de linguagem.
Nestes exemplos da letra g, podemos analisar (Figura 1) as diferenças na forma de fazer o grafema no reinado de D. Fernando para o reinado do rei de Boa-Memória. A principal diferença com que nos deparamos nos g's anteriores a 1383 é a cauda, muito mais fechada no tempo de D. Fernando em relação aos g´s do reinado joanino, em que é feito um só traço, da direita para a esquerda, terminando com um leve remate ascendente.
O g do reinado fernandino conta na sua constituição com 4 traços principais, conquanto no reinado joanino a letra passa a ter apenas 3 lineamentos.
De frisar ainda que há um maior contraste de traços grossos e finos nas letras que são feitas no tempo da Segunda Dinastia, bem como uma maior verticalidade e angulosidade das três partes constitutivas do traço da letra (Figura 2).
No conjunto de figuras acima impressas (Figuras 3, 4 e 5), podemos observar em comparação os h's do reinado fernandino, com os do reinado joanino. As diferenças nesta comparação de meio e fim de reinado do Formoso ou de início e meio do de Boa-Memória são notáveis, na nitidez do ductus do traçado da letra.
Ainda que, tal como podemos observar nas figuras 4 e 5, quer num quer no outro reinado as letras sejam feitas com três traços constitutivos, ressalta à observação a angulosidade e tamanho da cauda do h do tempo de D. João I. Efetivamente, no h, mesmo que seja esta uma letra essencialmente de meio de palavras, notamos uma imponente cauda, que desce na linha, colocando-se no espaço entrelinhas ou interpondo-se muitas vezes na linha inferior de texto, num traço (nº 2, figura 5) que começa a ser ligeiramente curvo da esquerda para a direita, continuando em sentido descendente para a esquerda, rodando depois em contracurva, formando a cauda da esquerda para a direita.
A letra m é porventura aquela em que mais se denota a angulosidade e verticalidade da letra joanina, à semelhança da letra n, que pelos motivos já expostos anteriormente, aqui não analisaremos. A grande disparidade entre os m's de D. Fernando e de D. João I é a aparente descoordenação na feitura do grafema na letra fernandina, com traços de tamanhos díspares.
Ainda que divirja a letra m de início/meio e fim de palavras (Figura 6), todas elas são feitas, no reinado joanino, a partir de três traços com arranque de traço oblíquo da esquerda para a direita em sentido ascendente, descendo depois até à linha, onde se inicia o traço seguinte, com a mesma lógica de escrita. Os traços além de mais verticais que no reinado fernandino, que apareciam até de forma mais arredondada na parte superior da letra, aparecem agora de forma muito mais paralela entre si, denotando a ideia de angulosidade.
Por fim, de frisar, à semelhança da letra h e outras (como o caso da letra z), no que respeita aos m de final de palavras, que terminam com uma sumptuosa cauda que se inicia no terceiro traço constitutivo do m (Figura 7), e tal como o h, é feito um traço oblíquo descendente da direita para a esquerda, ocupando o espaço interlinear ou até da linha inferior, com contracurva da esquerda para a direita, ainda em sentido descendente.
Tal como a letra m, também o r se comporta de forma diferente se analisarmos o grafema a início/meio ou final de palavra (Figura 8). De notar que os r's de meio de palavra joaninos são bastante mais semelhantes aos r's de imprensa que utilizamos hoje, com o segundo traço que o constitui (Figura 9) a fazer a ligação e início da letra seguinte. Por oposição, os r's de final de palavra fernandinos aparentam a um til (~), conquanto os do reinado joanino parecem um 2, extremamente angulosos nos dois traços que o constituem (Figura 9), por oposição ao traço singular que caracteriza o r de final de palavra fernandino.
Uma vez mais, as letras joaninas têm uma maior verticalidade e contraste de traços grossos e finos em relação às fernandinas.
De referir ainda que, ainda que por vezes surjam r's compridos a ocupar o espaço entrelinhas nos pergaminhos joaninos, sucede com menos frequência do que nos habituam as peles do reinado anterior.
A letra s demonstra uma grande evolução nos traços constitutivos do grafema de um para o outro reinado. No caso dos s's de início e meio de palavra, somos confrontados com a mudança de um traço constitutivo no reinado fernandino (segundo exemplo da figura 11), para dois traços constitutivos no reinado joanino (segundo exemplo da figura 12), ainda que ambos sejam compostos por um traço descendente. De referir ainda que o s de início ou meio de palavra joanino é muito mais comprido que o fernandino, ocupando, à semelhança do que já verificámos anteriormente, o espaço entrelinhas ou até a linha inferior.
É, no entanto, no s de final de palavra que melhor notamos as alterações no grafema, com um aumento da angulosidade e do contraste de grossos e finos da letra: se o s do reinado fernandino (primeiro exemplo da figura 11) é composto de um só traço, com uma laçada invertida, da esquerda para a direita, subindo, faz depois uma curva para a direita. Por sua vez, o s de final de palavra joanino (primeiro exemplo figura 12) assemelha-se a um B atual, sendo caracterizado por três traços constitutivos, o primeiro deles descendente a curvar junto à linha ligeiramente para a direita; o segundo traço deste s inicia-se junto do começo do primeiro traço, com sentido descendente e curvando esquerda-direita-esquerda, terminando na direção de onde começou, mas a meio do primeiro traço; por fim, neste ponto inicia-se a terceira parte da letra, com movimento igual ao segundo traço, mas cujo término se dá junto à linha, ligando num traço mais fino com o final do primeiro traço.
A última letra por nós escolhida para esta breve análise é o z. A escolha deste grafema prende-se com a particularidade que tem na semelhança a outras letras joaninas no que respeita à cauda da letra que ocupa o espaço entrelinhas. Assim sendo, no caso do z poucas diferenças notamos nas letras que compõem o meio ou fim de palavra no que respeita a esta cauda, contudo, a diferença entre o meio e fim de palavra dizem respeito ao corpo da letra, que por vezes aparece “deitado” sobre a linha, assemelhando-se a um n com uma cauda (figura 13).
Quer num, quer noutro reinado, as letras caracterizam-se por terem dois traços constitutivos, conforme podemos analisar na figura 14. O traço descendente que constitui a cauda do z no caso joanino é, contudo, de maior sumptuosidade que no caso fernandino. Também no corpo principal da letra, o z joanino é mais anguloso e retilíneo nos traços que o constituem.
*****
Neste conjunto de seis letras analisadas e comparadas, verificamos que, no caso dos h, m e z ,todos são constituídos por uma cauda que se inicia com um traço oblíquo descendente da direita para a esquerda, curvando em seguida da esquerda para a direita, sendo mantido sempre em aberto e ocupando todo o espaço entrelinhas ou inclusive muitas das vezes ocupando o espaço da linha seguinte, colidindo por vezes com traços de outras palavras.
No que respeita aos r e s, de frisar principalmente as alterações nos de final de palavra, com mais traços na sua execução e uma maior angulosidade e paralelismo entre traçado.
ANÁLISE COLETIVA DA LETRA
Se a análise letra-a-letra nos permite entender o ductus da grafia e verificar as diferenças traço-a-traço, ela não nos permite ter, contudo, uma visão global da letra no documento; por isso, urge fazer uma análise de alguns excertos com várias linhas, para que possamos ter uma perceção do espaço que a grafia ocupa no pergaminho, o espaço entre linhas, as margens e a sua angulosidade.
Para isso, serão usados os mesmos documentos de onde foram retiradas as letras que analisámos anteriormente, recorrendo a exemplos do reinado de D. Fernando, e por conseguinte não-joanina, exemplos de documentos do período de interregno e regência (aquilo que apelidamos de semi-joanina), e por fim, exemplos do reinado de D. João I, já do cânone joanino:
Se analisarmos os documentos expostos supra, verificamos que, imediatamente quando D. João I chega ao poder, mesmo que ainda na regência, há uma alteração no aspeto dos pergaminhos e na grafia. É o que sucede quando comparamos os documentos das figuras 15 e 16.
Na figura 16, documento lavrado em 1384 e como tal na regência do Mestre de Avis, a angulosidade da letra em relação ao documento da figura 15, ainda no reinado de D. Fernando, é evidente. Neste último, a letra caracteriza-se por ser bastante mais arredondada, com uma menor verticalidade do traçado.
Também no que respeita ao espaço ocupado pela escrita no documento da figura 16 verificamos disparidades para o documento de 1370, uma vez que o corpo da letra no primeiro é mais fino e pequeno que no segundo, dando uma falsa perceção de uma letra mais caligráfica. Também o espaço entrelinhas aparenta ser diferente em ambos os exemplos por o corpo da letra ser mais pequeno, ainda que haja já algumas hastes e caudas a ocupar o espaço entrelinhas.
Ainda que nestas imagens não se consiga ter a perceção, se analisarmos os documentos que estão disponibilizados online pelo Arquivo Municipal, verificamos que ainda não existem grandes alterações no tamanho e no espaço deixado nas margens, sendo ligeiramente maior no caso da fig. 16, em relação ao documento do reinado fernandino, mas com pouca diferença face ao que se irá detetar a partir de 1385. Há ainda uma maior concentração de palavras por linha no documento de 1384, havendo menos espaço entre elas.
Nos exemplos das letras s e r, ainda não se detetam alterações significativas, verificando-se, contudo, já uma alteração na angulosidade, verticalidade e caudas dos m, h e z's.
A partir de 1385, coincidindo com a subida ao trono de D. João I e por isso já como rei e não como regente, com as alterações fomentadas no Desembargo e nos homens que estão na escrivaninha como já referido no início deste texto, e após o matrimónio e o estabelecimento de relações diplomáticas com Inglaterra, verificamos o estabelecimento por completo do novo cânone.
Ainda que alguns nomes do Desembargo de D. Fernando se tenham mantido em funções, aos oficiais de carreiras de pouca duração sucediam novos homens, com formação universitária e que iriam firmar longas carreiras na administração do reino42.
Como forma de comprovar o novo cânone, podemos analisar a figura 17, um documento produzido cinco anos após o início do reinado e em que várias alterações são visíveis face à fig. 16 e, principalmente, face ao documento da fig. 15, do reinado de D. Fernando: se por um lado começam a surgir letras maiúsculas a meio das palavras e linhas, uma característica da letra e da documentação escrita com o novo cânone joanino, começam também a surgir margens de 4 a 6 cm de cada lado, acompanhadas de espaço superior e inferior do documento também superior, a rondar os 2 a 4 cm no cabeçalho e chegando aos 10 ou mais cm de rodapé, onde passa a constar a assinatura régia, com a palavra El Rey, ao contrário do habitual na década e reinado anteriores.
O aumento das margens e o facto de não se aproveitar todos os centímetros de um material caro e precioso como era o pergaminho, denota uma maior importância dada aos documentos oficiais emanados da Chancelaria Régia e também transmite a ideia de sumptuosidade, riqueza e poder do novo rei.
No que diz respeito ao espaço entrelinhas, também ele se torna maior nos pergaminhos joaninos, frequentemente com espacejamentos de 1 cm, ocupados pelas aparatosas caudas e hastes que caracterizam a nova grafia, em contraste com o corpo de letra mais pequeno, como referido supra.
A própria escrita é agora feita em linhas mais direitas, com as palavras mais concentradas e juntas entre si, e denota-se um maior cuidado na preparação dos pergaminhos, bem como na cor da tinta utilizada, frequentemente mais acastanhada escura, sendo por isso dado um maior cuidado e atenção ao aparato dos suportes e aspetos formais, numa maior teatralidade da produção oficial, quando comparada com o reinado anterior.
Como já referido, na análise letra-a-letra, os r's de meio de palavra já não são compridos a ocupar o espaço entrelinhas, passando a ser curtos e a fazer a ligação com a letra seguinte e, no fim de palavra, a assemelharem-se a 2 e não a um ~. Os s passam a ter um aspeto de B, continuando compridos a ocupar o espaço interlinear a meio de palavra, à semelhança dos i, que são cada vez mais longos no reinado joanino.
Uma escrita de Chancelaria nunca poderá ser uma escrita caligráfica, uma vez que há demasiados documentos para serem despachados. Tem por isso de ser necessariamente uma escrita cursiva. Contudo, a angulosidade dada à escrita joanina e a inclinação dos grafemas dão-lhe um aspeto caligráfico, apenas contrariado quando observamos a sua ligeira inclinação para a direita, indício de velocidade na escrita.
Deste modo, podemos sintetizar as características das três etapas que aqui descrevemos como letra do reinado fernandino (até 1380), semi-joanina (1380-84) e joanina (a partir de 1385) na seguinte tabela:
Em síntese do que já foi sendo demonstrado, sobre as novidades implementadas pela escrita joanina e pela nova documentação emanada da Chancelaria Régia, temos a notar os seguintes elementos:
alteração da forma de datação dos documentos;
o rei assina a documentação de forma consistente, no espaço inferior do pergaminho, onde é aposto o selo da Chancelaria e cujo espaço de margens é significativamente superior;
aparecimento de letras maiúsculas a meio de palavras;
aparecimento de novas formas de abreviar, principalmente as abreviaturas de traço sobreposto para indicar nasal ou vogal e abreviaturas de -ar/-ra, -er/-re, -ir/-ri, com-/-us, e de o sobrescrito;
a pontuação continua a ser pouco frequente, ainda que apareça mais vezes o / como valor de vírgula;
numeração utilizada apenas na datatio e em numeração romana;
peles usadas no pergaminho com um tratamento mais cuidado, mais geométrico, com tinta mais carregada a contrastar com o fundo do suporte.
O facto da nova grafia ser cursiva, ainda que com aspeto caligráfico como já mencionado, faz com que divirja da bâtarde, que tem um cariz caligráfico. Contudo, não podemos deixar de notar que a letra joanina vai ser influenciada por aquela grafia.
Ainda que não tenhamos nenhuma prova escrita de ordenação régia sobre a obrigatoriedade de alteração do cânone da letra na Chancelaria, somos levados a acreditar que tenha havido uma imposição da alteração, na medida em que a mudança é total e imediata com o novo monarca. Provavelmente, tal deveu-se à necessidade de marcar a diferença entre a dinastia que cessava e a que se iniciava, através de uma mudança formal na documentação oficial régia, fruto também da nova organização da Chancelaria e do novo engenho administrativo.
Os numerais b=5 e R=40
Num exercício não publicado, Borges Nunes43 dá alguma importância à sobreposição gráfica entre v e b, que surge com o reinado de D. João I, e a nova letra utilizada na Chancelaria Régia. Ademais, além desta troca de v por b, também na numeração romana o número 5 passar a ser escrito com b, em vez de v.
O facto de atribuirmos esta característica à letra joanina deve-se a não encontrarmos nas escritas de outras chancelarias régias contemporâneas esta confusão e utilização de b em vez de v para designar 5 (à exceção de França, em que a escrita bâtarde tem esta tendência, ainda que nunca haja uma confusão total entre o b e o v, tal como em Inglaterra, provavelmente pela mesma influência da bâtarde, fruto de relações político-diplomáticas que se faziam notar). A joanina apresenta desde início as letras b e v muito semelhantes, e essa é a sua novidade e o que de mais importante nos traz em relação a outras grafias da época.
No final do século XIV, o v começa a ser feito com um traço de arranque, da esquerda para a direita, em ângulo consigo próprio, tornando-se cada vez mais semelhante ao b, ainda que seja uma confusão apenas do ponto de vista gráfico e não fonético. A disseminação da confusão entre v e b vai ser dominante no início do século XV, na universalidade dos escrivãos da Chancelaria, com algumas reações numa minoria mais culta. O 5 transforma-se então em b e não num v semelhante a b, como até então, uma vez que no final do reinado fernandino já os traços de ataque dos v deixam de ser simples traços de ataque e passam a ser traços constitutivos da própria letra, ainda que de forma inconsciente, segundo Borges Nunes.
Entre 1410 e 1440, não conseguimos detetar se há ou não regra no uso entre b e v, pelo que “temos de concluir que as duas figuras se tornaram formalmente idênticas e indistinguíveis como tais. Só como figuras, note-se; não como significantes”, como refere Borges Nunes44.
Esta confusão vai estar presente na documentação apenas até cerca de 1460, com exceção da confusão em termos do número 5, como ressalva o professor já citado: “o período de ambiguidade b/v produzirá, a certa altura, na mente dos escrivães, a trasladação do v para o b como figura significante de 5 ( ) a letra numérica de cinco passa, em Portugal, a ser vista mentalmente como b e não como v”, o que se encontrará na documentação até ao final do século XVII, ainda que, com o surgimento dos numerais em árabe, comece a ser cada vez menos comum. Este fenómeno de confusão entre b e v não é, contudo, caso único a nível nacional: basta retermos os exemplos da confusão que por vezes surge entre o c e o t.
No que respeita à problemática do R=40, esta derivou de uma passagem do X aspado para o R. Dúvidas houvesse, uma vez mais a paleografia portuguesa deste período, e sob o cânone joanino, demonstra uma assaz originalidade.
Por outro lado, podemos admitir não só a influência do X aspado mas também do XL que significava 40. A questão do X aspado é de origem peninsular e não meramente portuguesa, estando presente a partir da centúria de Quatrocentos nos documentos oficiais. Ainda assim, a passagem do X aspado para o R a significar 40, é unicamente portuguesa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma escrita de Chancelaria Régia pressupõe a necessidade de não se perder muito tempo na redação documental pretende na verdade assegurar a autenticidade dos documentos públicos e, como tal, a necessidade de uma escrita rápida; é aqui que a letra joanina ganha a sua característica particular e diferente da letra bâtarde, utilizada na época na região do Ducado de Borgonha. Não podemos por isso deixar de relacionar tal facto com as relações diplomáticas com Inglaterra, de onde vinha Filipa de Lencastre, bem como com a aliança com o Ducado de Borgonha.
É legítimo afirmarmos por isso que, influenciada pelas políticas de alianças e relações diplomáticas encetadas por D. João I, poderia estar a adoção da nova grafia.
Ainda que a joanina possa ter tido influência da bâtarde, também tem diferenças, nomeadamente na questão caligráfica-cursiva e no material que era preparado para a escrita: o “talhe da pena, que é oblíquo, torna-a numa escrita também mais comprida, pontiaguda e inclinada para a direita”45, proporcionando ainda assim uma leitura clara, apesar das caudas e haste no espaço entrelinhas.
Se na Chancelaria a mudança de grafia se fez de forma muito rápida, essencialmente no período de transição da regência do Mestre de Avis, o mesmo não podemos referir em relação à sua influência nos meios externos à Chancelaria, nomeadamente no tabelionado; no notariado apostólico a adoção da joanina foi relativamente rápida. Contudo, os tabeliães apenas na primeira década de 1400 começam a recorrer à nova grafia, demorando uma média de 20 anos para a utilizar.
Sendo a legitimação de uma nova dinastia um processo de comunicação política, longo e constante, pode concretizar-se de várias formas e revestir-se de variados argumentos. Se, por um lado, a tentativa de retirar crédito aos principais opositores, nomeadamente o rei de Castela, é uma dessas faces do processo de tornar lícita a nova governação, de outras formas se reveste este procedimento de validação, como o encontramos na cronística de Fernão Lopes: o apoio do povo ao Mestre expresso nos acontecimentos que tiveram lugar em Lisboa ou em Cortes, e tão bem mostrado na obra do guarda-mor da Torre do Tombo, ou a própria “vontade de Deus”, com as vitórias bélicas, são outros elementos de tornar legítimo o novo monarca e os seus sucessores. Como bem sabemos, Fernão Lopes e as suas crónicas não podem, de todo, ser vistos como insuspeitos, mas são sem sombra de dúvida parte do processo de comunicação e legitimação da nova dinastia.
Além dos processos orais de legitimação, temos aqui presente, na alteração brusca do funcionalismo e oficialato do Desembargo e na grafia lá utilizada, uma face visível do processo de legitimação, desta feita por meio da escrita, formal, perdurável no tempo, objetiva.
Nesta mudança no tipo de letra temos a presença do simbolismo e da mensagem que tal acarreta, enviada pelo rei a todos os membros do seu reino que da documentação emanada da Chancelaria dependessem. Assim, a mensagem enviada pelo rei de mudança, de poder e controlo chegava a todo o reino e a vários tipos de recetores: ao clero, à nobreza, aos concelhos, à universidade.
O documento escrito torna-se por si só num espelho do plano de consagração levado a efeito pelo novo monarca. A comunicação e o processo de legitimação continuaram por todo o reinado e exemplo disso foram as expedições para o Norte de África, demonstrando todo o potencial da nova dinastia, com os infantes a encabeçar o projeto régio.
Documentos completos exemplificativos:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FONTES
MANUSCRITAS
Arquivo Municipal de Lisboa
Chancelaria Régia, Livro 2º de D. Fernando.
Chancelaria Régia, Livro 1º de D. JoãoI.
Chancelaria Régia, Livro 2º de D. João I.
Chancelaria Régia, Livro 1º de sentenças.
Chancelaria Régia, Livro 1º dos místicos de reis.
Chancelaria Régia, Livro 1º de Cortes.
Chancelaria da Cidade, Livro de provimento de ofícios.
Chancelaria da Cidade, Livro 1º de quitações e desistências.
Casa de Santo António, Livro 1º do alqueidão.
Casa de Santo António, Livro 1º do Hospital de S. Lázaro.
Administração, Livro 1º de emprazamentos.
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Submissão/submission: 17/07/2018
Aceitação/approval: 13/11/2018
NOTAS
FERREIRA, Ana Cristina Pereira da Silva A escrita na legitimação do poder: a letra joanina e a Dinastia de Avis. Contributos paleográficos. Cadernos do Arquivo Municipal. 2ª Série Nº 10 (julho-dezembro 2018), p. 47 70.
1 CENCETTI, Giorgio Lineamenti di storia della scrittura latina. Bolonha: Casa Editrice prof. Riccardo Patron, 1954. p. 5. 2 COSTA, Avelino Jesus da Álbum de Paleografia e Diplomática portuguesas. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade, 1990. 3 SANTOS, Maria José Azevedo Da visigótica à carolina: a escrita em Portugal de 882 a 1172: aspectos técnicos e culturais. Coimbra: [s.n.], 1988. Tese de doutoramento em História, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. 4 NUNES, Eduardo Borges Álbum de Paleografia portuguesa. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1969. vol. I; NUNES, Eduardo Borges Abreviaturas paleográficas portuguesas. Lisboa: [Faculdade de Letras da Universidade], 1981. 5 GUERRA, António Joaquim Ribeiro Os diplomas privados em Portugal dos séculos IX a XII. Lisboa: CH-Universidade de Lisboa, 2003. 6 MARQUES, José Práticas paleográficas em Portugal no século XV. Revista da Faculdade de Letras, Ciências e Técnicas do Património. Porto: Faculdade de Letras da Universidade. I Série Vol. I (2002), p. 73-96. 7SILVA, Maria João Oliveira e A escrita na catedral: a Chancelaria Episcopal do Porto na Idade Média. Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa; Porto: Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória, 2013. 8 COELHO, Teresa Existiu uma escrita manuelina? Estudo paleográfico da produção de escrivães da Corte portuguesa 1490-1530. Lisboa: [s.n.], 2006. Dissertação de mestrado em Paleografia e Diplomática, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 9 COSTA, Mário Fernando da Silva Estudo paleográfico de um manuscrito quinhentista da Crónica de D. Fernando de Fernão Lopes. Lisboa: [s.n.], 2006. 10 PAULO, Jorge Ferreira A escrita humanística na documentação régia portuguesa de Quinhentos. Lisboa: [s.n.], 2006. Dissertação de mestrado em Paleografia e Diplomática, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 11 PETRUCCI, Armando Funzione della scrittura e terminologia paleografica. In Palaeographica Diplomatica et Archivistica. Studi in Onore di Giulio Battelli. Roma: Edizione di Storia e Letteratura, 1979. I. 12 REUSENS, Edmond Élements de Paléographie. Louvain: Chez L'Auteur, 1892. 13 MARTINI, Paola Supino La Paleografia latina in Itália da Giorgio Cencetti ai giorni nostri. In Un secolo di Paleografia e Diplomatica (1887-1986). Roma: Gela, 1988. p. 37-80. 14 MILLARES CARLO, Agustin Paleografia española. Ensaio de una historia de la escritura en España desde el siglo VIII al XVII. Barcelona: Editorial Labor, 1929. vol I. 15 MALLON, Jean De l'ecriture, recuil d'études publiées de 1937 a 1981. Paris: Éditions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1986 e MALLON, Jean Paléographie romaine. Madrid: [s.n.], 1952. 16 LAZZARINI, Vittorio Scritti di Paleografia e Diplomática. 2ª ed. Padova: Antenore, 1969. 17 MABILLON, Jean De re diplomática libri V. Paris: Lutecina-Parisiorum, 1681. 18 NUNES, Eduardo Borges Introdução. In Álbum de Paleografia. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1969. p. 18. 19 BATTELLI, Giulio Lezioni di Paleeografia. 3ª ed. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1986. p. 46. 20 Idem, Ibidem, p. 47-48. 21 PROU, Maurice Manuel de Paleographie latine et française. Paris: Auguste Picard, 1924. 22 HOMEM, Armando Luís de Carvalho O Desembargo Régio (1320-1433). Porto: INIC-Centro de História da Universidade do Porto, 1990. 23 COELHO, Maria Teresa Existiu uma escrita manuelina? Estudo paleográfico da produção de escrivães da Corte Portuguesa 1490-1530. Lisboa: [s.n.], 2006. Dissertação de mestrado em Paleografia e Diplomática, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. p. 11. 24 MARQUES, A. H. de Oliveira Portugal na crise do século XIV. In MARQUES, A. H. Oliveira; SERRÃO, Joel, dir. Nova História de Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1986. vol. IV, p. 402. 25 COELHO, Maria Helena Cruz O campo na crise do século XIV. In MEDINA, João, dir. História de Portugal. Alfragide: Ediclube, 2004. vol. IV, p. 104. 26 MARQUES, A. H. de Oliveira Portugal na Crise do século XIV. In MARQUES, A. H. de Oliveira; SERRÃO, Joel, dir. Nova História de Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1986. vol. IV, p. 419. 27 CAETANO, Marcello apud HOMEM, Armando Luís de Carvalho Uma crise que sai d'«a crise», ou o Desembargo Régio na década de 1380. In Portugal nos finais da Idade Média. Estado, instituições, sociedade e política. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. p. 192. 28 Idem, Ibidem. p. 194 e 197. 29 COELHO, Maria Helena Cruz D. João I. Lisboa: Círculo de Leitores, 2005, p. 38. 30 Temos a este respeito, e no seguimento de uma investigação no âmbito do doutoramento, dados sobre a existência de mais de 130 tabeliães diferentes só para Lisboa no reinado joanino, face aos 60 tabeliães existentes entre 1370 e o fim do reinado de D. Fernando e apesar da tentativa de diminuição do número de oficiais, sendo que destes 60 apenas 30 deles transitam de um reinado para o outro. Dados atualizados em maio de 2018. 31 HOMEM, Armando Luís Carvalho Gama Barros, historiador das instituições administrativas. In Portugal nos finais da Idade Média. Estado, instituições, sociedade e política. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. p. 43. 32 CLANCHY, Michael T. From memory to writing record. England 1066-1307. 2ª ed. Oxford: Blackwell Publishing, 1993. 33 HOMEM, Armando Luís de Carvalho Gama Barros, historiador das instituições administrativas. In Portugal nos finais da Idade Média. Estado, instituições, sociedade e política. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. p. 36. 34 Idem, Ibidem. p. 39. 35 COELHO, Maria Helena Cruz D. João I. Lisboa: Círculo de Leitores, 2005. p. 154. 36 HOMEM, Armando Luís de Carvalho O Desembargo Régio (1320-1433). Porto: INIC-Centro de História da Universidade do Porto, 1990. p. 243. 37 NUNES, Eduardo Borges Álbum de Paleografia portuguesa. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1969. p. 20 e seguintes. 38 COELHO, Maria Teresa Existiu uma escrita manuelina? Estudo paleográfico da produção de escrivães da Corte Portuguesa 1490-1530. Lisboa: [s.n.], 2006. Dissertação de mestrado em Paleografia e Diplomática, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 39 PAULO, Jorge Ferreira A escrita humanística na documentação régia portuguesa de Quinhentos. Lisboa: [s.n.], 2006. Dissertação de mestrado em Paleografia e Diplomática, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 40 A este respeito, para uma análise de todo o alfabeto, abreviaturas e numerais, remetemos para a nossa tese de mestrado, intitulada Análise paleográfica de uma escrita de Chancelaria Régia: a letra joanina, 1370-1420 [Em linha]. Lisboa: [s.n.], 2012. [Consult. 17/07/2018]. Disponível na Internet: http://repositorio.ul.pt/handle/10451/6951 41 Ainda que nunca tenha publicado, Borges Nunes deixou no seu espólio “um exercício de metodologia para a história da escrita em Portugal: as origens da letra numeral b (=5)”. O referido artigo foi-nos facultado por Bernardo Sá-Nogueira e o original julgamos estar nas mãos de familiares de Borges Nunes. 42 HOMEM, Armando Luís de Carvalho Portugal nos finais da Idade Média. Estado, instituições, sociedade e política. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. p. 182. 43 NUNES, Eduardo Borges Um exercício de metodologia para a história da escrita em Portugal: as origens da letra numeral b(=5). Lisboa: [s.n.], 1979. Exercício não publicado que consta do espólio de Borges Nunes, ao qual tivemos acesso aquando da investigação de mestrado, possibilitado pelo professor Bernardo Sá-Nogueira. 44 Idem, Ibidem. 45 NUNES, Eduardo Borges Um exercício metodológico para a história da escrita em Portugal: as origens da letra numeral b (=5). Lisboa: [s.n.], 1979. Exercício não publicado, espólio de Borges Nunes.