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Cadernos do Arquivo Municipal
versão On-line ISSN 2183-3176
Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.14 Lisboa dez. 2020
Introdução
Um olhar caleidoscópico sobre a Revolução de 1820 e as suas consequências
José Subtil*
*José Manuel Louzada Lopes Subtil, Universidade Autónoma de Lisboa, 1150-293 Lisboa. josesubtil@outlook.pt
O trabalho historiográfico sobre a Revolução de 1820 e a monarquia constitucional favorece a (in)distinção entre a sociedade do Antigo Regime e a do Estado Liberal, desde a análise dos mecanismos de poder, do ambiente político, educativo, económico e social que cimentaram, em grande parte, os fundamentos da sociedade contemporânea.
O Conselho Editorial dos Cadernos do Arquivo Municipal decidiu dedicar dois números à evocação dos 200 anos da Revolução de 1820 e indicar-me para coordenar o projeto que, desde a primeira hora, aceitei com gosto e honra. Os trabalhos foram muitos e a muitos ficou a dever a dedicação, o empenho profissional e a competência historiográfica.
Por isso, gostaria de comprazer-me e agradecer. Mostrar a minha grande satisfação pela superior qualidade dos dois números, com dezanove trabalhos e quatro recensões, que contribuem para um entendimento mais alargado e inovador do processo de construção do Estado Liberal a partir da revolução vintista.
E agradecer a todos os que escreveram para os dois números, Adelaide Brochado, Álvaro Costa de Matos, Ana Cristina Araújo, António Pedro Manique, Carlos Louzada Subtil, Carlos Manique da Silva, Eduardo Soczek Mendes, José Amado Mendes, José Guilherme Victorino, Luís Alves Fraga, Manuel M. Cardoso Leal, María Zozaya-Montes, Nara Tinoco, Nuno Camarinhas, Sandra Cunha Pires, Sónia Pereira Henriques, Telma Mattos Ruas, Teresa Fonseca e Thais Palmeira Moraes. Quero prestar a minha admiração e agradecimento porque foram eles que construíram os conteúdos destes números.
Mas quem os organizou, preparando as revisões científicas, a correção dos textos, a edição e a comunicação com os autores, foi uma equipe do Arquivo Municipal, competente e dedicada, a quem quero deixar os meus maiores elogios e obséquios: Denise Santos, Fernando Matos, Joana Pinheiro (design), Nuno Campos, Nuno Martins, Sandra Cunha Pires e, também, Pedro Cordeiro e Susana Santareno (comunicação). Na coordenação exímia, pronta e aturada desta equipe quero distinguir a Marta Gomes a quem me ligam já laços de amizade. Um agradecimento pelo apoio institucional da Helena Neves que soube, junto das instâncias de decisão, apoiar as muitas tarefas, algumas complicadas, para a edição online e em suporte de papel.
O número 14 destes Cadernos do Arquivo Municipal é caracterizado por uma vertente política, institucional e administrativa.
Abre com um artigo de José Subtil sobre o «Estado de Polícia, Revolução e Estado Liberal (1760-1865): “Em homenagem a António Manuel Hespanha”» onde se comparam os resultados do reformismo iluminista da segunda metade do século XVIII com os resultados do Estado Liberal passados 45 anos da revolução. A conclusão a que se chegou é de uma forte ligação entre os dois períodos embora a revolução induza a ideia de um corte radical com o Antigo Regime. A homenagem prestada justifica-se na medida em que António Manuel Hespanha foi o historiador que mais contribuiu para o conhecimento plural e multifacetado da construção e/ou da imaginação da construção do Estado, desde o século XVII até ao século XIX.
O trabalho de António Pedro Manique, «Parlamento, Governo e produção legislativa na primeira fase da Regeneração. Normas legais e práticas políticas», aborda uma das áreas onde se evidenciou a maior novidade política do novo Estado Liberal, ou seja, as práticas referentes à produção legislativa e as relações entre o Parlamento e o Governo, realçando o significado entre a “constituição formal” e a “constituição real” e os mecanismos informais de comunicação política para a aprovação dos projetos legislativos.
A investigação apresentada por Sónia Pereira Henrique, o «”O Arquivo Moderno do Ultramar”: herança administrativa da Revolução Liberal (1833-1910)», no seguimento e em complemento à sua tese de doutoramento, vem chamar a atenção para a organização de um arquivo da administração central que foi determinante para a monitorização e controlo do processo de colonização da monarquia constitucional revelando, também, aspetos do modelo de decisão e tramitação burocrática.
O trabalho de Nara Tinoco, uma investigadora brasileira que tem dedicado a sua investigação às biografias de desembargadores com exercício no Brasil, apresenta-nos, desta feita, o percurso político e administrativo de «José Joaquim Vieira Godinho (1728-1804): um natural das Minas Gerais na Universidade de Coimbra. Contributos para uma biografia» para evidenciar a influência da formação iluminista académica no processo da formação da consciência sobre a independência política do Brasil, neste caso no primeiro professor de Direito Pátrio, uma das fontes de legitimação do novo direito das Luzes.
Eduardo Soczek Mendes, também um investigador brasileiro, revisita no seu texto «Dos “bons tempos” à “última era dos mártires”: as petições de Alexandre Herculano em favor dos frades e das freiras», a questão da extinção das ordens religiosas e o confisco dos seus bens, tanto de mosteiros como de conventos, para enquadrar dois opúsculos de um dos mais notáveis intelectuais liberais a interceder a favor dos frades, ou seja, uma perspetiva sobre as contradições entre a visão do mundo, a consciência crítica e a inculcação religiosa.
Sandra Cunha Pires, escolhendo a área administrativa da saúde pública, a «Junta de Inspecção de Providências Contra a Peste: contributos para o estudo da administração da Saúde nas comarcas portuguesas no início do século XIX», oferece-nos o desenho de uma estrutura administrativa que engloba os órgãos centrais de decisão e as periferias executivas no combate à peste como um dos flagelos que mobilizava a atenção política e sanitária em todo o Reino.
No quadro geral dos seus trabalhos sobre a administração da justiça, Nuno Camarinhas, com base exclusivamente no espólio do Arquivo Municipal, traça-nos o sistema de organização da justiça em Lisboa na altura da revolução, «A administração da justiça na Lisboa de 1820 a partir da documentação do Arquivo Municipal», justamente para se entender o nível de intervenção do Senado da Câmara de Lisboa no provimento de lugares de cargos de juízes letrados.
O último texto deste número é de Manuel M. Cardoso Leal sobre a consolidação do ideal da revolução vintista, «Revolução de 1820: um ideal amadurecido na adversidade (1820-1870)», refletido politicamente nas experiências dos textos constitucionais, em especial, a Constituição de 1822, a Carta Constitucional de 1826 e o Ato Adicional de 1852. O autor concluiu ainda que, para além destas aprendizagens constitucionais, a derrota do absolutismo se deveu, também, ao consenso entre as fações liberais traduzido no fim dos permanentes conflitos e discórdias através do ato adicional de 1852.
O número termina com a secção Documenta, com um inventário dos atos eleitorais «Revolução Liberal: testemunhos evocativos de atos eleitorais (1820-1822)», recolha realizada por Adelaide Brochado e que serve de enquadramento eleitoral à revolução, uma das iniciativas mais inovadoras do liberalismo.
E conta, ainda, com duas recensões de José Subtil e Luís Alves Fraga sobre, respetivamente, José Alberto Silva e a Academia Real das Ciências e as atas do Colóquio de História Militar (2018) sobre o liberalismo e os militares.
O número 15 apresenta textos com um pendor social, cultural, de saúde pública e, sobretudo, educativo.
No plano social, começa com um artigo de Ana Cristina Araújo sobre «O Montepio Literário e a Revolução de 1820. Princípios mutualistas para professores e homens de letras (1813-1821)», uma associação que congregou professores e homens de letras e foi criada num persistente ambiente reivindicativo antes da revolução. Tendo por objetivo a mutualidade das respostas às várias necessidades da profissão (magros recursos, segurança no trabalho e falta de assistência social às famílias e aos próprios), a associação viria, mais tarde, a alargar o âmbito dos seus associados e a desempenhar um papel social inovador, marcando um movimento singular no quadro político dos ideais liberais.
Numa temática afim, segue-se o texto de José Amado Mendes, «Organizações sem fins lucrativos: responsabilidade social pautada por valores, 1820-1910», que se debruça sobre as organizações sem fins lucrativos que tiveram uma relevância considerável ao longo do processo de industrialização e o consequente crescimento de carenciados, desamparados, desempregados ou empregados violentamente explorados. Este movimento associativo, com um dinamismo assinalável durante a monarquia constitucional, contribuiu, de uma forma solidária e inovadora, no plano social, para atenuar as dificuldades da pobreza e da indigência.
Na área da educação temos três artigos. O primeiro, de Carlos Manique da Silva, «Os batalhões escolares do município de Lisboa: organização e práticas rituais (década de 1880)», relativo aos batalhões escolares do concelho de Lisboa e ao processo de militarização da infância posto em marcha nas escolas municipais com o objetivo de fazer de cada educando um “cidadão-soldado” capaz de cultivar as virtudes cívicas e patrióticas. Encontramos no texto o modelo de produção desta inculcação educativa através de práticas rituais e das relações entre a instrução militar, a educação física e a educação moral.
O segundo, da autoria de Telma Mattos Ruas, «O ensino primário em Lisboa durante a monarquia constitucional: contributos para o seu estudo», discute o constante debate sobre a centralização e a descentralização da administração do ensino primário como opções estratégicas para o sistema de ensino, tendo em vista dotar todos os indivíduos de conhecimentos elementares para o exercício da cidadania.
O terceiro, de Thais Palmeira Moraes, «Novo espaço educativo para a infância: o jardim de infância», retoma a conceptualização da idade da infância e integra essa temática ao longo do período Oitocentista, sobretudo, na parte final do século. O texto realça a emergência clara da criança como um ser diferente do adulto que exigia, portanto, modelos pedagógicos particulares e adequados à sua especificidade como os jardins de infância que emergem na década de 80 do século XIX, mas, também, a ideia de que a criança devia crescer, aprender e educar-se no seio da família.
Mudando de área temática, a escolha inusitada, mas com repercussões culturais e políticas, do trabalho de uma investigadora espanhola, María Zozaya-Montes, «¿Fueron las esculturas um débil instrumento de nacionalización em Portugal? Revolutión y monarquía em Lisboa y províncias (1820-1910)», conduz-nos para uma análise das esculturas no processo de criação do “estado-nação” ao fixar uma visão da história e permitir uma leitura pública e visual de representações de monarcas, políticos, heróis e acontecimentos, criando um ambiente simbólico propício ao desenvolvimento democrático. O artigo é percorrido por várias iconografias alusivas ao tema.
O penúltimo texto é de Teresa Fonseca sobre «O quotidiano popular lisboeta através das “Cantigas subversivas” (1828-1832)», em que escolhe as cantigas subversivas para sinalizar e analisar os ambientes de censura e perseguição, no período miguelista, contra a cultura popular e os locais de sociabilidade lisboeta onde se comia, bebia e dançava. Ao mesmo tempo procura-se conhecer melhor as características desta Lisboa popular numa conjuntura marcada pelo conflito e a luta política.
E segue-se o texto de Carlos Louzada Subtil, «O Conselho de Saúde Pública, uma imanência da Revolução de 1820”, onde se contextualiza o surgimento nuclear do Conselho de Saúde Pública, criado no tempo de Passos Manuel (1836), por causa dos receios das doenças contagiosas. Tornar-se-ia num importante organismo de regulação da saúde publica segundo o estilo de governo higienista, próximo de práticas vinculadas ao “biopoder” como dispositivo disciplinar estadualista.
O número termina com a secção Varia onde se apresenta uma relação detalhada sobre evocações da revolução com base nas fontes documentais do acervo do Arquivo Municipal de Lisboa, «Revolução Liberal: relação circunstanciada de testemunhos evocativos (18209-1823)», por Adelaide Brochado.
E uma inventariação, por Álvaro Costa de Matos, dos acontecimentos revolucionários cobertos pela Gazeta de Lisboa, «A Gazeta de Lisboa e a Revolução Liberal de 24 de Agosto de 1820: ensaio de formalização concreta», a sua mediação jornalística e as repercussões políticas na formação da opinião pública, acompanhadas com a reprodução de várias alegorias, textos transcritos e capas representativas das edições daquela publicação.
A fechar o número temos, ainda, duas recensões de José Guilherme Victorino e António Pedro Manique sobre, respetivamente, a Sociedade Propaganda de Portugal, de Pedro Cerdeira, e a historiografia política e cultural na época do visconde de Santarém, volume coletivo coordenado por Daniel Estudante Protásio.
O leitor, desde o especialista do século XIX até ao estudante de licenciatura passando pelo que aprecia a história mais recente, encontrará, estou certo, nestes dois volumes, conhecimento e matéria de reflexão para abordar com novidades a revolução vintista e o regime da monarquia constitucional.
Em nome de todos que fizeram os números 14 e 15 dos Cadernos do Arquivo Municipal, desejo o maior proveito na leitura dos seus textos, ficando-nos a satisfação por termos cumprido, tanto quanto soubemos fazê-lo, a evocação da Revolução de 1820 e o consequente regime liberal.