Introdução
O associativismo tem raízes muito longínquas, pois desde muito cedo o Homem se revelou solidário, formal ou informalmente. Em família ou na tribo, em instituições ou organizações de inspiração religiosa ou meramente assistencial ‒ irmandades, confrarias, mútuas ou misericórdias, entre outras ‒, o sentimento de solidariedade foi sendo cultivado pelas comunidades, ao longo de séculos. Todavia, com o advento da Revolução Industrial, em finais de Setecentos, e o consequente desenvolvimento do capitalismo, surgiram novas formas de associativismo, cujo legado foi importante no desenvolvimento socioeconómico e cultural posterior.
Com efeito, à medida que o tecido empresarial se foi diversificando e consolidando, houve necessidade de criar e estruturar novos meios de solidariedade e de reivindicação, perante o avanço e os desmandos do sistema socioeconómico, na sua maior parte motivado essencialmente pela obtenção do lucro, por vezes à custa de injustiças e atropelos à dignidade humana. O incremento que a economia social ou o terceiro setor têm vindo a registar nas últimas décadas convida-nos a perspetivar as inovações institucionais e organizativas, no médio ou mesmo no longo prazo.
O estudo da evolução histórica do associativismo no Portugal liberal permite-nos remontar às raízes de conceitos que hoje se tornaram comuns, designadamente: economia social, economia solidária, economia do bem-estar, empresas sem fins lucrativos e responsabilidade social. Todavia se, na forma, institucionalização e relativa generalização, se trata de conceitos inovadores e de novas realidades, do ponto de vista dos princípios e da filosofia subjacente são, de algum modo, a continuidade e atualização do muito que já havia sido incrementado ao longo das duas últimas centúrias, como tentaremos demonstrar seguidamente.
Contexto político, socioeconómico legislativo
As primeiras décadas do século XIX foram de grande instabilidade e turbulência. Do ponto de vista político e militar, as Invasões Francesas (1807-1810), no âmbito da Guerra Peninsular, a Revolução Liberal de 18201, as Lutas Liberais (1828-1834), a Revolução Setembrista (1836) e as revoltas da década de 1840 (Maria da Fonte e Patuleia, em 1846 e 1847, respetivamente), entre outros movimentos revoltosos, não foram propícios ao desenvolvimento da economia e do próprio associativismo.
Apenas foram tomadas algumas medidas tímidas, como a criação da Sociedade Promotora da Indústria Nacional (1822)2, a extinção das corporações e da Casa dos Vinte e Quatro (1834), mas que não alteraram substancialmente o panorama económico do País. Com efeito, manteve-se a dependência da agricultura e grande parte da indústria continuou a utilizar tecnologia tradicional, maioritariamente em oficinas e manufaturas, com um reduzido número de fábricas em laboração.
Com a referida extinção das corporações e da Casa dos Vinte e Quatro, visou-se eliminar as restrições impostas por aquele sistema, reconhecendo-se que "a indústria Nacional, que para medrar carece de liberdade, que a desenvolva, e da proteção, que a defenda" (Decreto, 1834). A despeito das ténues medidas tomadas, a industrialização continuou a progredir lentamente até meados de Oitocentos, pelo que, por essa altura, as empresas e unidades industriais mais importantes pouco ultrapassavam as duas dezenas e meia e utilizavam, na maioria, tecnologia pouco atualizada, com escasso recurso à energia a vapor (Mendes, 1994; Rodrigues e Mendes, 1999, p. 355-367).
Com a Regeneração (1851) e o protagonismo assumido por Fontes Pereira de Melo (1819-1887) ‒ ao que não foi estranho o facto de se tratar de um engenheiro ‒ a industrialização adquiriu novo impulso. Assim, na segunda metade de Oitocentos, foi criado o ensino industrial, cujas escolas foram instaladas nas cidades onde o tecido industrial era mais significativo, efetuaram-se Inquéritos Industriais (1852, 1881 e 1890) ‒ fontes imprescindíveis para o estudo da temática ‒ realizaram-se exposições industriais em várias localidades (Guimarães, Aveiro e Coimbra, entre outras) e Portugal enviou delegações às exposições mundiais ou internacionais então efetuadas (Mendes, 1998a, p. 249-273). Além disso, foi progressivamente instalado o caminho de ferro, a partir de 1856 (inauguração do 1.º troço da Linha do Norte, entre Lisboa e o Carregado), fator importante para o desenvolvimento socioeconómico, na segunda metade do século XIX.
Não sendo possível focar aqui, em pormenor, os avanços da indústria entre a Regeneração e os inícios da I República (1910), pode afirmar-se que neste período se verificaram progressos significativos no setor secundário, já que, apesar de não se ter concretizado, propriamente, uma Revolução Industrial ‒ segundo o modelo britânico ‒, pelo menos houve industrialização (Mendes, 2010, p. 75-92).
Com efeito, ainda que não de forma generalizada, a indústria progrediu consideravelmente em certas áreas, com destaque para as do Porto e Vale do Ave, distritos de Aveiro, Guarda (sobretudo na Covilhã), Coimbra e Lisboa e algumas localidades do Alentejo e Algarve e, na última fase, no Barreiro, com a deslocação da Companhia União Fabril (CUF) de Lisboa para aquela zona (1908). Também foi neste período que, além das indústrias tradicionais ‒ têxtil, cerâmica, vidro, madeiras, metalurgia e outras ‒ se introduziram novas indústrias, já do âmbito da 2.ª Revolução Industrial, como as ligadas à produção e distribuição de eletricidade e indústrias químicas (cimento e adubos), para dar apenas alguns exemplos3.
Além do contexto político e socioeconómico ‒ mais especificamente industrial ‒ acabado de sumariar, deve também aludir-se ao quadro legislativo, igualmente relevante para o estudo do associativismo/terceiro setor, no período em foco. Entre outros diplomas legislativos a considerar, é pertinente evocar os de 1867, 1891 e 1896.
O primeiro (1867) reporta-se às sociedades cooperativas, uma das modalidades mais dinâmicas e praticadas no âmbito das organizações sem fins lucrativos. Como consta do artº 1º do referido diploma: "Sociedades cooperativas são associações de numero ilimitado de membros, e de capital indeterminado e variavel, instituidas com o fim de mutuamente se auxiliarem os socios no desenvolvimento da sua industria, do seu credito e da sua economia domestica" (Diário de Lisboa n.º 147, 1867)4.
Entre outros aspetos a reter deste diploma salientam-se: a) âmbito alargado do respetivo objeto: compra e venda aos associados de produtos, necessários à vida, matérias-primas destinadas à atividade económica (agricultura e indústria), construção de casas, concessão de crédito, etc.; b) possibilidade de admissão de todas as pessoas, sem distinção de sexo, maiores de 14 anos5; c) todavia, com a seguinte restrição, elucidativa acerca dos parâmetros jurídicos e mentais da época ‒ e que viriam a prolongar-se por muito tempo, até bem entrado o século XX ‒, quanto à secundarização dos direitos das mulheres: "As mulheres casadas carecem de autorização de seus maridos, nos termos das leis, para serem admitidas nas sociedades cooperativas" (Diário de Lisboa n.º 147, 1867).
Por sua vez, em 1891, foi promulgada legislação relativa às associações de socorros mútuos (Decreto, 1891)6 e associações de classe. Como se pode verificar pelos termos do preâmbulo do respetivo diploma, já então se faziam sentir os efeitos da industrialização e mecanização inerente, assim como a necessidade de os operários se defenderem dos malefícios que lhe estavam associados. Entre outras, as seguintes expressões são esclarecedoras: "Este diploma […] inicia uma serie de medidas regulamentares tendentes a ajudar, a nobilitar e a proteger o operariado portuguez, garantindo não só o seu trabalho productor mas todos os seus esforços de mutua protecção: associando-se, instruindo-se, socorrendo-se".
A dita proteção tornava-se imperiosa devido ao desequilíbrio entre capital e trabalho, bem como a substituição da mão de obra ou manufatura pela máquina. Assim, através do poder da máquina, "as condições do trabalho soffreram uma alteração radical, que logo se traduziu num desequilibrio incommodo" (Decreto, 1891).
Perante a depreciação dos serviços e da dignidade dos operários pelos donos das fábricas, fortalecidos com a máquina, seguiu-se a reação do trabalho. Reconhecia-se, no entanto, que a “luta” entre capital e trabalho não atingia, entre nós, a gravidade que havia alcançado noutros países, cuja explicação era dada nos seguintes termos: "Póde isso, em parte, atribuir-se ás boas e justiceiras condições que presidem ao trabalho nacional, e tambem póde ser devido a que, por ora, não temos uma industria poderosa". Este segundo aspeto, por certo mais significativo que o primeiro, advinha do que tem sido constatado por diversos autores, ou seja, que a industrialização portuguesa foi lenta e tardia. Acrescentava-se, porém, que se tornava necessário, para o bem comum, congraçar e irmanar capital e trabalho, "na certeza de que nada póde o trabalho sem o capital e nada vale o capital sem o trabalho".
Ao diploma acabado de referir outros se deveriam seguir, como se declarava no mencionado preâmbulo: "As providencias relativas ás associações de socorros mutuos, que são muitas, já hoje, e valiosas em Portugal, seguir-se-hão os regulamentos dos tribunaes de árbitros-avindores e do trabalho das mulheres e dos menores", esperando-se ainda que fossem regulamentadas, em breve, as associações de classe e a responsabilidade pelos desastres de trabalho.
De acordo com o artº nº 1 do diploma indicado, "As associações de socorros mútuos são sociedades de capital indeterminado, de duração indefinida e de numero ilimitado de sócios [embora não se pudessem organizar com menos de 25 sócios], instituídas com o fim de serem prestados auxílios mútuos entre os socios", nas seguintes situações: a) doença, impossibilidade temporária de trabalha ou funeral; b) pensões aos sócios permanentemente inabilitados de trabalhar; c) pensões aos herdeiro de sócios falecidos; e) qualquer outro fim das associações de previdência.
A exemplo do já referido quanto ao diploma das cooperativas (1867), também neste persistia a obrigatoriedade de as mulheres casadas precisarem de autorização de seus maridos para serem admitidas, acrescentando-se nesta exigência análoga em relação aos menores, cuja admissão tinha de ser concedida por seus pais ou tutores.
No diploma de 1896 ‒ revisão das disposições do de 1891, como já se disse ‒ mantêm-se estes últimos requisitos. É mais completo que o anterior e introduz medidas com vista ao reforço do controle e fiscalização, a fim de evitar abusos nos atos de gerência, além de outras normas de maior exigência. No respetivo preâmbulo é enfatizada a importância das associações em causa, nos seguintes termos: "As associações de socorros mútuos desempenham nas sociedades modernas um papel importante e concorrem para a solução racional de algumas das questões que interessam á parte da população menos favorecida de meios de fortuna".
Por outro lado, nota-se uma certa preocupação em definir conceitos, o que revela não se tratar de questões de sentido unívoco. Atente-se, por exemplo, na seguinte advertência:
Não é seu intuito acudir á miseria humana com o desinteressado impulso do sentimento intimo; a caridade é uma cousa a previdência outra. A mutualidade é a verdadeira combinação da fraternidade e da justiça. A sua base, para prosperarem e serem fecundas [as associações de socorros mútuos], é um contrato de seguro mútuo, do ut des, em que todos os socios põem em commum uma parte de seus haveres para se assegurarem, segundo presumpções ou calculos de probabilidade, contra os acasos de doença ou os desastres, que atribulam constantemente a humanidade.
Este diploma introduz ainda mais algumas inovações, designadamente: a) explicita as funções atribuídas ao tribunal arbitral e aos conselhos superiores e regionais; b) aumenta substancialmente a exigência do mínimo de sócios para constituir uma destas associações que, de 25 na legislação de 1891, passou para 500 (Lisboa e Porto), 400 (concelho de primeira ordem) e 250 (concelhos de segunda ordem); c) autoriza as associações de socorros mútuos a constituírem caixas económicas, através da formação, entre si, de ligas ou uniões e associações de socorros mútuos. Embora sob apertado controle, algumas das associações foram autorizadas a criar as referidas caixas económicas.
Evolução do associativismo no período liberal
Conceitos em perspetiva histórica
A história das organizações sem fins lucrativos em Portugal está ainda praticamente por fazer, pelo menos em termos de estudos de caso ou monografias. Todavia, aquelas foram muito importantes nos séculos XIX e XX, como o continuarão a ser no presente século. A propósito, recorda Peter Drucker: "Tanto quanto podemos prever, o sector de crescimento no século XXI nos países desenvolvidos não será o dos “negócios” (isto é, a actividade económica organizada). É provável que seja o sector social, não lucrativo" (Drucker, 2000, p. 18).
Do ponto de vista conceptual, tem-se avançado nas últimas décadas, embora mais sobre o passado recente do que acerca de períodos mais recuados, inclusive o século XIX. Uma das questões mais focadas reporta-se ao conceito de economia social7 e conceitos emergentes, nomeadamente os de: “sem fins lucrativos” (Drucker, 1994), “terceiro setor”, “sociedade civil” e “setor do voluntariado”, “responsabilidade social das empresas”, “empresas sociais” e “inovação social”. Todavia, "outros conceitos como os de «economia circular» ou «economia colaborativa» tendem a ser cada vez mais conhecidos na maioria dos países da UE, enquanto os conceitos de «economia do bem comum» ou «economia solidária» têm dificuldade em singrar no referido território geográfico-político, onde são quase desconhecidos" (Comité Económico e Social Europeu, 2017).
Registe-se, contudo, como aspeto positivo, o facto de Portugal ocupar lugar relevante no que concerne ao reconhecimento nacional do conceito “economia social” e outros com ele relacionados, pois situa-se no grupo de países em que aquele é amplamente reconhecido, a exemplo do que se verifica em Espanha, França, Bélgica e Luxemburgo. Em outros dois conjuntos de países da União Europeia8, o referido conceito tem um nível de reconhecimento moderado (1.º grupo) ou mesmo reduzido ou inexistente (2.º grupo)9.
O aludido reconhecimento, em Portugal, infere-se do número de associações do setor social existentes no País que totalizava 215 063, em 2014-2015, incluindo cooperativas e entidades semelhantes (24316), sociedades mútuas (4896) e associações e fundações (18675) (Comité Económico e Social Europeu, 2017, p. 23).
Já dispomos de vários estudos sobre “economia social”, mas que se reportam sobretudo às últimas décadas ou mesmo ao tempo presente10. Temos, no entanto, uma exceção, num interessante trabalho sobre os primórdios da economia social em Portugal, que bem merece breves palavras (Estivill, 2017a; Estivill, 2017b).
Como reconhece o autor ‒ Jordi Estivill ‒ a história da introdução precoce do conceito de economia social em Portugal não é muito conhecida (Estivill, 2017a, p. 30). Apesar disso, o autor tem a expectativa que a situação irá melhorar, afirmando: "À medida que avancem as experiências e a presença teórica da economia social, mais fácil será fazer com que a sua história seja menos opaca", interrogando-se, em seguida: "Chegou então o momento de questionar essa opacidade em Portugal?" (Estivill, 2017a, p. 21).
Aludindo às noções de “economia social” e “economia solidária”, o autor citado nota que aquelas "seguiram caminho diferente entre nós. Enquanto a primeira tem vindo a tomar um reconhecimento institucional, a segunda manteve-se invisível e só nos últimos tempos assume algum relevo" (Estivill, 2017a, p. 24-25).
Já nos referimos ao desenvolvimento industrial do Porto ‒ ainda que moderado ‒ nas décadas de 1830-1840. Nesse contexto e anos subsequentes, naquela cidade registou-se o aparecimento de "uma imprensa publicista, respondendo à necessidade de camadas específicas da população e promovendo o desenvolvimento económico" (Estivill, 2017b, p. 13)11.
Ora foi precisamente nesse meio que se introduziu, no País, o conceito de economia social. Tratou-se da publicação, na Revista Literária do Porto, em 1840, do primeiro capítulo da obra Ramond de la Sagra (1798-1871)12, intitulada Lecciones de Economia Social, dadas en el Ateneo Científico e Literario de Madrid (Sagra, 1840). Três anos depois (1843) foi publicado, na mesma revista, o sétimo capítulo da obra de Sagra (Estivill, 2017a, p. 25).
Note-se que, além de o uso do conceito ter sido então inovador em Portugal, a publicação do referido capítulo da obra do autor espanhol verificou-se no mesmo ano da sua edição (1840), na capital do país vizinho. A partir de então, outros autores ou publicações usaram a expressão de economia social como, por exemplo, António Alves Martins (1808-1882), futuro bispo de Viseu, logo em 1841, e o Jornal do Centro Promotor das Classes Laboriosas, em cujos números 6, 7 e 9 (1853), surgia uma secção intitulada precisamente “Economia Social”.
Relativamente à noção de economia social defendida por Sagra, atente-se nas palavras do autor:
La economía social […] debe ocuparse, á mi modo de ver, de los medios de mejorar la situacion material y moral del pueblo, ó mejor dito, es la ciencia del progreso social. La economia política, que mas bien deberia llamarse economia pública, al proponerse descubrir el orígen de la riqueza, y dar reglas para su aumento y distribucion, puede considerarse como uma ciencia auxiliar de la economia social, que la presta sus resultados ciertos é invariables, como materials para el edificio que construye, asi como se los ofrece tambien la estadística [posteriormente chamada estatística], la administracion, la industria en general, la agricultura, etc.
E acrescenta o autor: “La economia social pertenece á la categoria de las siencias político-morales; y tanto por su objeto, cuanto por las ciencias ausiliares que emplea en su marcha, debe colocar-se en el lugar de la escala de los conhecimentos humanos” (Sagra, 1840, p. 24-25).
Panorama geral do associativismo em Portugal no período em foco
Como salienta Vasco Rosendo, ao longo do século XIX o processo de criação de associações passou por duas fases: na primeira, surgiram os montepios (primeira metade de Oitocentos); na segunda, a partir de meados do século, verificou-se o grande surto de associações e socorros mútuos, tendo sido criadas, em poucas décadas, algumas centenas. Segundo o autor, relativamente aos montepios, "tratava-se de associações essencialmente votadas a garantir a subsistência dos herdeiros mais diretos dos seus associados, logo de tendência praticamente univalente, embora num ou noutro caso se vislumbrassem já tentativas de alargar o seu esquema de socorros a outras modalidades" (Rosendo, 1996, p. 289).
Houve montepios militares e montepios civis, alguns dos quais foram, de certo modo, continuadores das antigas irmandades e confrarias ‒ de inspiração religiosa ‒ como aliás se pode deduzir do próprio nome: Montepio do Senhor do Bomfim (Lisboa, 1807). Montepio de Jesus Maria José (Lisboa, 1822) e Associação do Montepio de Nossa Senhora da Rocha (Sé de Lisboa, 1843) (Rosendo, 1996, p. 305-306 e 309; Goodolphim, 1889, p. 74-78).
Apesar de, ainda na primeira metade de Oitocentos, terem sido fundadas outras associações mutualistas (Quadro 1), foi a partir da Regeneração (1851) que o número daquelas aumentou consideravelmente. Para essa evolução contribuíram essencialmente dois fatores: o já referido progresso da industrialização13 e o papel, em termos de educação e sensibilização, desempenhados por escritores e intelectuais bastante ativos e interventivos.
Entre outros, destacaram-se vários dos fundadores, dirigentes e colaboradores do Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas, fundado em finais de 1852, cujos estatutos foram aprovados no ano seguinte14: Sousa Brandão (que redigiu os referidos estatutos), António Rodrigues Sampaio (presidente de 1852 a 1863), José Maria de Casal Ribeiro (tesoureiro durante vários anos), Júlio Máximo de Oliveira Pimentel e o tipógrafo Francisco Vieira da Silva Júnior, mais tarde recordado como o “grande apóstolo da associação” em Portugal (Lázaro, 2019, p. 70).
Alguns liberais instruídos foram responsáveis por cursos noturnos para operários na sede do Centro Promotor: João de Andrade Corvo (Higiene Popular), Joaquim Tomás Lobo de Ávila (Aritmética e Geometria Elementares Aplicadas às Artes e Indústrias), José Maria Ponte e Horta (Mecânica Industrial), José Maria Grande (Elementos de História Natural) e Lopes de Mendonça (Economia Industrial) (Lázaro, 2019, p. 73).
Obviamente que os nomes de muitos outros defensores e promotores do associativismo poderiam ser referidos, bastando lembrar, por exemplo, Alexandre Herculano, defensor das “caixas económicas” (Herculano, 1982) e Costa Goodolphim, autor do livro intitulado A Previdência (1889), obra clássica e imprescindível para o estudo da temática.
Fontes: Mesquita, 2004, p. 1; Goodolphim, 1889, p. 51-56 e 112; Carvalho, 2013, p. 41, 47, 50; Fernandes, 1990, p. 221 e 237-238; Mendes, 1981, p. 604-605; Brás, 2000, p. 64-83; Mendonça, 2016, p. 85 e 87-88
Voltando ao Centro Promotor das Classes Laboriosas, note-se que não se tratava de uma associação como a maioria, mas sim de uma organização destinada a promover e fomentar a criação e o desenvolvimento de outras associações. É o que se pode ler no art.º 1.º dos respetivos estatutos: "O Centro Promotor […] é uma associação que tem por fim promover e realisar, quanto seja possivel, todas as instituições e benefícios necessários às mesmas classes".
Era abrangente quanto à admissão de sócios, já que podia acolher: "todas as pessoas, qualquer que seja a sua classe e graduação, ou as suas opiniões politicas ou religiosas". Entre outros objetivos, visava: a) promover a criação de socorros mútuos em todos os mesteres; b) difundir o ensino elementar, geral e técnico das artes e ofícios, especialmente a leitura, os princípios de cálculo e a geometria prática; c) organizar presépios ou casas de berços para as crianças pobres e asilos para idosos e desempregados; d) e promover o aperfeiçoamento moral e intelectual das pessoas pertencentes às classes laboriosas que, por falta de meios, não possam cuidar da sua educação (Estatutos do Centro…, 1853)15.
Distribuição geográfica e por atividade das associações
Tendo presente a já referida relação entre o nível de industrialização e o movimento associativo, não surpreende que, salvo uma ou outra exceção, tivessem sido criadas associações nas zonas de maior desenvolvimento industrial. Tal se verificou nos seguintes distritos, cujo número de associações mutualistas, criadas entre 1807 e 1903, foi superior ao dos restantes: Lisboa (194), Porto (109), Faro (15), Santarém (14) e Coimbra (9) (Quadro 2 e Gráfico 1).
Como o dinamismo associativo e do movimento operário registado em Lisboa e Porto ‒ onde também se encontrava sediado o maior número de associações ‒ já foi salientado em alguns estudos, não desenvolveremos aqui o assunto. Relativamente a Lisboa, além dos trabalhos citados de Vasco Rosendo, acerca do mutualismo, e de Rui Sequeira, sobre o Centro Promotor, outros têm sido publicados sobre a temática16.
Também em relação ao Porto, além de trabalhos mais recentes, continua a ser de leitura útil o artigo de José Pacheco Pereira (1981), no qual identifica dezassete associações de operários criadas no Porto, no curto período de 1852-1868. Referindo-se à heterogeneidade cronológica, quanto aos anos de criação das associações, esclarece o autor: "Há um efeito inicial de arrastamento, gerado pelo entusiasmo dos pioneiros do associativismo. Os grupos profissionais estão “maduros” para a organização associativa: existe a necessidade imperiosa de se dotarem de uma organização de defesa mais sólida e permanente e os fantasmas da Casa dos Vinte e Quatro" (Pereira, 1981, p. 139).
Dois outros distritos onde o movimento associativo se revelou relativamente pujante foram os de Faro e Coimbra. Em relação ao de Faro, aqui se concentravam 18 das 88 associações estabelecidas no Algarve, de 1870 a 1926. Para esse desenvolvimento contribuíram substancialmente as indústrias corticeira e conserveira (Mendonça, 2016, p. 80-82).
Quanto a Coimbra, não propriamente pelo dinamismo industrial mas por motivos de caráter cultural e educativo, também o associativismo registou um certo incremento, como revelaram estudos sobre a temática (Fernandes, 1990, p. 221-256; Mendes, 1981, p. 603-614). Entre outras, salientaram-se as associações ligadas à cultura e ao ensino: Sociedade de Instrução dos Operários (1851), a Associação dos Artistas de Coimbra (1861) e a Escola Livre das Artes do Desenho (1878) (Mendes, 1981, p. 604).
O movimento associativo na cidade muito ficou a dever ao mestre António Augusto Gonçalves e a Joaquim Martins de Carvalho, diretor de O Conimbricense ‒ importante órgão da imprensa local ‒ entre 1854 a 1898. A propósito da ação cívica e pedagógica das associações criadas em Coimbra na segunda metade de Oitocentos, enfatizava-se em periódico local:
Educar os operários, dar-lhes os conhecimentos próprios para os misteres que exercem e incutir-lhes o sentimento do que podem e do que valem ‒ formar associações locais de beneficência que, por diminutas prestações, ministrem aos artistas medicamentos e desvelos: eis a revelação de todos os nossos esforços e o resumo de todas as nossas aspirações17.
E comenta Rogério Fernandes: “As finalidades de tais associações não excluíam, por isso mesmo, o desenvolvimento de actividades de instrução elementar e profissional” (Fernandes, 1990, p. 233-234).
As associações que se foram constituindo, ao longo da segunda metade do século XIX, começaram por ser abrangentes, admitindo como sócios indivíduos de diversa condição social e profissional, de diferentes ramos de atividade: comércio, indústria, serviços, intelectuais, juristas, professores, etc. Esta mescla social e profissional verificava-se nas associações mutualistas como nas cooperativas e caixas económicas (Quadros 1 e 3).
Todavia, à medida que a industrialização foi progredindo e algumas empresas se tornaram mais dotadas de recursos, foi-se reforçando a consciência de classe ou institucional e as associações tornaram-se mais especializadas, embora muitas delas tivessem mantido uma certa abrangência na admissão de sócios (por exemplo, associações de artistas ou operários de vários ramos). Entre outros exemplos, encontramos associações de socorros mútuos e cooperativas (Quadros 2 e 3) ligadas às seguintes atividades: indústria têxtil, da cortiça, construção civil (carpinteiros e pedreiros), serralheiros, artes gráficas, comércio, sapateiros e barbeiros.
Numa altura em que as mulheres casadas só podiam integrar associações com a autorização dos maridos ‒ como já vimos ‒, é de referir a criação de associações destinadas exclusivamente a pessoas do sexo feminino, como a Associação Fraternal das Senhoras (Lisboa, 1852) e a Associação Conimbricense do Sexo Feminino (Coimbra, 1867).
Face ao ritmo da criação de associações na segunda metade de Oitocentos, constata-se, no país em geral, o que já foi sublinhado relativamente ao Porto: certa heterogeneidade na cronologia do movimento associativo. De facto, verificou-se uma maior intensidade na criação de associações no primeiro período da Regeneração (década de 1850), na segunda metade da década de 1870 e primeira da de 1880 (Gráfico 2).
Para essa evolução terão contribuído: no primeiro caso, a estabilidade política e um maior apoio governamental dedicado às questões industriais; no segundo, um certo acelerar da industrialização, também evidenciado em eventos levados a cabo nessa altura, como exposições industriais (em Portugal e o envio de delegações a exposições internacionais) e a realização do Inquérito Industrial de 1881. Foi ainda nessas duas décadas que se criaram 16 médias e grandes empresas industriais, de um total de 45 fundadas entre 1852 e 1875, o que corresponde a 36% (Mendes, 1998b, p. 84).
Responsabilidade social e valores no terceiro setor
Perspetivas recentes sobre valores e ética organizacional
Como nos recordou Benedetto Croce, “toda a história é história contemporânea” (Croce, 1943, p. 4-5). Daí que seja oportuno referenciar alguns dos estudos recentes sobre temáticas cujas raízes remontam, pelo menos, ao século XIX. Entre outras, podem referir-se a “responsabilidade social” e a “ética organizacional”.
No primeiro caso, trata-se de um conceito que começou a ser debatido nos Estados Unidos da América nos anos de 1950, mas que tem vindo a ser aprofundado nas últimas décadas. Como se pode ler num documento da União Europeia, "A maioria das definições descreve a responsabilidade social das empresas como a integração voluntária de preocupações sociais e ambientais, por parte das empresas, nas suas operações e na sua interacção com outras partes interessadas" (Comissão das Comunidades Europeias, 2001, p. 7; Marques e Teixeira, 2008, p. 152)18. Ora as referidas preocupações sociais eram também o ponto forte das associações oitocentistas, embora mais recentemente a questão ambiental tenha alcançado uma relevância que ainda não tinha naquela altura.
Note-se, porém, que, em certos casos, os responsáveis pelas empresas/organizações encaram a responsabilidade social não tanto por preocupações sociais, de justiça ou de equidade, mas com a expectativa dos "ganhos futuros que isso poderá trazer para a empresa" (Guimarães, 1984, p. 217). Daí a interrogação que, segundo esta perspetiva, se poderá formular: “Fazer o bem compensa?” (Costa, 2005, p. 67-89).
Relativamente à ética organizacional ou à ética nos negócios, esta tem vindo também a ser estudada e valorizada, enfatizando-se o princípio segundo o qual "it is not enough to just operate within the law, it is important to be ethical as well" (Gupta, 2004, p. 25)19.
No caso do mutualismo do século XIX, os seguintes princípios revelavam a existência de comportamentos éticos, nomeadamente: a) prática democrática; b) sufrágio interno; c) participação em assembleias ou exercício de cargos (Rocha, 2017, p. 85). Aquele também contempla dois dos três padrões que, segundo Polanyi, permitem integrar a economia nas diversas sociedades: reciprocidade e redistribuição, além da troca (Machado, 2010, p. 73; Polaniy, 2000). Por outro lado, numa obra em que se defende existir uma forma de “gestão europeia”, aponta-se, como legado importante, princípios da economia social pelos quais se orientavam os impulsionadores do associativismo oitocentista, como a tradição humanista. Sobre o assunto, pode ler-se:
Ces échos de l´Humanisme ‒ un mouvement intellectuel que marque la transition de l´Europe du Moyen-Age aux temps modernes ‒ ont retenti de tous les points du Continent; ils reflètent l´intérêt naturel de l´Europe pour la qualité de la vie, à la tous les niveaux de la société. Quelle que soit leur admiration pour la science e la technologie moderne, les Européens estiment que le progrès doit être au service de l´homme, e non l´inverse (Bloom, 1994, p. 27-28)20.
As associações do século XIX, contempladas neste estudo, reúnem os requisitos necessários para ser integradas no designado terceiro setor ‒ ou seja, nem público nem privado ‒, a saber: a) são entidades privadas; b) estruturadas por uma organização regular de atividades; c) não distribuidoras de lucro; d) autogovernadas de forma independente; e) voluntárias, livre expressão de cidadania, em nome de uma causa de interesse público (Parente, 2014, p. 16).
Associativismo oitocentista orientado por valores
Os pressupostos teóricos e princípios em que se fundamentava o associativismo no período em foco foram evoluindo, na segunda metade do século XIX. Inicialmente, foi relevante o papel desempenhado pelo já referido Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas, o qual "funcionou como grande pilar do movimento operário português, estando completamente integrado na sociedade liberal". Tratava-se de "uma associação paternalista dinamizada por alguns socialistas e liberais progressistas" (Lázaro, 2019, p. 67-85).
Os seus primeiros organizadores e promotores ‒ ente outros, António Rodrigues Sampaio21, Sousa Brandão, Lopes de Mendonça, Vieira da Silva Júnior e Júlio Máximo de Oliveira Pimentel ‒ estavam sintonizados com o sistema político da Regeneração e procuravam "advogar, perante o governo, os interesses das associações operárias" (Soares, 1883, p. 71). Como já foi sublinhado por César de Oliveira, tratava-se de "um prolongamento do projeto regenerador" (Lázaro, 2019, p. 73).
Nas primeiras duas décadas do período regenerador, ao avaliar pelo estipulado nos Estatutos do Centro Promotor, este visava promover a criação de associações de socorros mútuos em todos os mesteres ‒ pelo que não se restringia ao operariado industrial mas abrangia igualmente outros setores de atividade, como os serviços ‒ e centrava a sua ação no apoio solidário aos mais necessitados, em caso de doença, falecimento de familiar ou desemprego, mas também na educação e formação, ao nível elementar e técnico.
Na mesma linha se posicionava a Sociedade dos Artistas Lisbonenses (criada em 1839), cujos estatutos estipulavam, como fins: "1.º ‒ A protecção geral dos socios, dando que fazer aos que o não teem, quando o fundo da Sociedade assim o permitir; 2.º ‒ Alimentar todos os que por idade, molestia, ou desastre, se impossibilitarem de trabalhar" (Estatutos da Sociedade dos Artistas Lisbonenses, 1851, p. 256)22.
Como já foi salientado: "Entre nós, a associação será primeiramente mutualista, isto é, de mútuo auxílio e cooperação, mais tarde passará à fase de movimento sindicalista ou de defesa clara dos interesses da classe operária, face à entidade patronal; a última fase, de reivindicações de caráter político, dar-se-á nos finais do terceiro quartel de oitocentos" (Soares, 1883, p. 51)23.
A partir dos inícios da década de 1870, com o protagonismo assumido por uma nova geração ‒ José Fontana, Antero de Quental, Nobre França, José Tedeschi, João Bonança, Felizardo Lima e Eduardo Maia ‒, foi abandonada a atitude ordeira e assumido um discurso mais reivindicativo, já sob a influência da Associação Internacional dos Trabalhadores (fundada em 1864) e da Comuna de Paris (1871) (Lázaro, 2019, p. 76). Certamente que os novos defensores do associativismo também receberam influência do ambiente à volta das Conferências do Casino (1871) e da publicação da obra de Oliveira Martins24, A Teoria do Socialismo ‒ Evolução Política e Económica das Sociedades da Europa(1872)25.
No final da década de 1880, Costa Goodophim ‒ considerado o “apóstolo do mutualismo” ‒, já assume uma posição mais assertiva, em defesa da classe trabalhadora e dos valores de que deve estar imbuído o associativismo:
Um homem trabalha dez, vinte ou trinta annos, recebeu um salario, deixou de trabalhar, acabou, por conseguinte, o juro do seu capital, que era o trabalho. Mas a questão não se póde encarar somente pelo lado económico, tem de ser estudada no campo da moral, não considerando o homem simplesmente como uma machina, um punhado de oiro ou pedaço de terra. É um ser moral, intelligente, que se não atira á margem, como a besta estafada. Em todos os tempos, desde que a civilização expandiu os seus primeiros clarões, a sociedade tem procurado dar amparo aos desvalidos (Goodolphim, 1889, p. 155).
Também os tabaqueiros de Lisboa, cuja identidade assentava em três pilares ‒ igualdade, justiça e fraternidade (Brás, 2020, p. 68) ‒ revelam uma perspetiva mais ampla no processo reivindicativo. Alguns dos valores das associações em análise podem ser detetados, não só através das finalidades que se propõem alcançar ‒ e que constam dos respetivos estatutos ‒ como também de certos requisitos exigidos para a admissão de sócios. Como já foi notado,
Muitos são os estatutos destas instituições, especialmente no século XIX, que estatuem a necessidade de o sócio ser uma pessoa de honra ou da viúva que recebesse pensão, legada por morte se sócio, fosse reputada de honrada também. São determinações que presidem à esfera da conduta desejável numa sociedade e foram aqui replicadas durante algum tempo, nas normas das práticas de mutualidade (Rocha, 2017, p. 85).
Obviamente que o facto de as organizações em causa não se moverem essencialmente pelo lucro ‒ daí tratar-se de organizações sem fins lucrativos ‒ é igualmente um valor relevante a sublinhar. Acerca do lucro, já foi salientado: "Le profit vien trop tard pour servir de guide. La soit de profit est, en tant que motivation, trop limitée pour être instructive" (Hampden-Turner, 1992, p. 245).
Em conclusão: podemos afirmar, com Argudo Périz que, também em Portugal, "Desde sus orígenes en el cooporativismo del siglo XIX, a economia social ha “absorbido” nuevos sectores económicos y más formas organizativas para realizar todo o tipo de actividades humanas" (Argudo, 2002, p. 239).