Introdução
Em Portugal, é depois da instauração definitiva do regime liberal (1834) que se faz sentir a necessidade da educação física e por via de três setores: militar, médico e escolar (Estrela, 1972). É igualmente importante referir que, no decurso da segunda metade do século XIX, se regista, progressivamente, uma mudança na orientação da educação física. Com efeito, a perspetiva higiénica e militar dá lugar a uma “insistente preparação militar” (Estrela, 1972, p. 25). Num certo sentido, a defesa da educação física mais não constituirá do que um aspeto da campanha de educação promovida pelas elites da burguesia com o intento de criar uma consciência nacional. De resto, nos anos de 1870, emerge a ideia de que a introdução da instrução militar nas escolas primárias contribuiria para a regeneração militar e defesa do país, conforme perspetiva Luís Jardim, vereador do Pelouro da Instrução da Câmara Municipal de Lisboa:
Ao falar da educação física, não deve esquecer que é conveniente alargar a instrução primária com a educação militar. Este exercício melhora as condições físicas do aluno, dispõe a população a aceitar o organismo militar da Alemanha, da Suíça, e, razão principal hoje tão pouco atendida, acaba com a repugnância do nosso povo pelo recrutamento, repugnância tão arreigada, que é uma das principais causas da emigração (Jardim, 1877, p. 26).
E se é apenas nos anos de 1880 - período durante o qual decorre em Portugal a primeira grande experiência de descentralização do ensino - que a ginástica passa a integrar o currículo da escola primária (grau complementar), não sem suscitar polémica e alguma oposição, em particular pelo facto de a medida se estender ao ensino feminino, não menos importante é assinalar os esforços do município de Lisboa para introduzir, desde o decénio precedente, a educação física e a ginástica militar na escola. Com efeito, a partir do ano letivo de 1875/76 é inscrita no orçamento do referido município uma verba destinada a esse fim, exclusivamente alocada, porém, à Escola Central n.º 1 (Garcia, 1882). A razão prende-se com a circunstância de se tratar de uma escola erigida por iniciativa municipal, a instâncias de Elias Garcia1, vereador do Pelouro da Instrução; trata-se, aliás, da primeira escola graduada2 a ser inaugurada em Portugal (1875). É clara a crença de Elias Garcia: a de que a difusão dos ideais republicanos passava, obrigatoriamente, pela existência de uma escola primária renovada e capaz de ministrar um programa enriquecido. A ideia subjacente é a de articular a educação física, intelectual e moral - o conceito de “educação integral” (Nóvoa, 2005). Desse ponto de vista, o entusiasmo pela organização escolar graduada - adotada em todas as nações cultas e baseada nos princípios da divisão do trabalho para a otimização dos resultados (Pozo Andrés, 1999) - traduzia a possibilidade de responder com eficácia ao desígnio de escolarizar um elevado número de crianças e de promover os princípios republicanos. Facilmente se percebe o significado simbólico que encerra inaugurar uma escola graduada com várias classes, muito diferente, na verdade, de criar uma escola unitária. Efetivamente, os edifícios das escolas graduadas constituirão espaços privilegiados para a realização de celebrações cívicas e rituais escolares (Maclaren, 1986)3 (a exemplo das paradas e desfiles militares).
Ao longo do ciclo descentralizador, que vigora entre 1881 e 1892 e é enquadrado pela reforma de António Rodrigues Sampaio (Lei de 2 de maio de 1878), o município de Lisboa agirá de moto próprio, isto é, excedendo os poderes e as competências transferidos da administração centralizada (Silva, 2008). As vereações que se vão sucedendo, sobretudo até meados dos anos de 1880, são levadas “pelo desejo [...]de dotar a cidade de Lisboa com todos os aperfeiçoamentos que possuem os países mais cultos da Europa” (Diário do Governo nº 84, 1886, p. 1022).
É nesse novo contexto político que deve ser entendida a organização dos batalhões escolares nas escolas municipais de Lisboa, em 1882, sendo então vereador do Pelouro da Instrução Teófilo Ferreira4, o qual, não obstante ser monárquico, concretiza os intentos de Elias Garcia. Esta circunstância - a do diferente posicionamento político dos citados vereadores - sobreleva o valor da referência educativa estrangeira, se quisermos, a ideia de que a melhoria da educação passava pela apropriação dos modernos métodos pedagógicos; deve, portanto, ser compreendida no quadro de redes educativas internacionais (Mignot e Gondra, 2007). Uma questão que emerge, aliás, do pensamento de Teófilo Ferreira:
Pelo que toca aos batalhões fui também eu que os organizei em Lisboa, obtemperando o entusiasmo com que semelhante instituição era acolhida nalguns países estrangeiros que visitei.
Devo, todavia, confessar à Câmara que em assuntos de instrução há algumas inovações que compartilham das eventualidades e caprichos da moda (Ferreira, 1890, p. 22)5.
Ora, as palavras de Teófilo Ferreira, proferidas na Câmara dos Deputados à entrada da última década do século XIX, num momento em que se sente o regresso às políticas de centralização6, tornam patente, por um lado, o alinhamento com as nações cultas da Europa e, por outro lado, uma inflexão na forma de perspetivar os batalhões escolares. No que concerne à primeira ideia, o exemplo francês é referencial. Sublinhe-se, desde logo, a coincidência temporal das experiências não obstante as diferenças de escala7. De facto, o Decreto de 6 de julho de 1882, assinado pelo ministro Jules Ferry, introduz em França os batalhões escolares, sendo de aceitar o seu desaparecimento em 1891 (Brouzac, 2004)8. Mas não significa isso admitir uma evolução paralela. Pelo contrário, ao longo do texto procuraremos assinalar variações, enfatizando, assim, a diversidade das experiências em função dos contextos e dos atores9. Por outro lado, e recuperando as últimas palavras de Teófilo Ferreira, é clara, ao longo dos anos de 1880, uma mudança na forma como os batalhões escolares são encarados por parte de diversos segmentos da sociedade. Com efeito, de um entusiasmo inicial com a instrução militar prematura dos alunos (embora não consensual) evolui-se para uma situação de descrédito relativamente às vantagens pedagógicas de “começar na escola geral a educação especial do soldado”, para adotar a expressão de Adolfo Coelho (Fernandes, 1973, p. 458).
Aquilo que parece ser importante enfatizar é que a implantação dos batalhões escolares traduz a possibilidade de “pensar a nação” (Anderson, 2005)10 em função do ensino das virtudes cívicas, de um conjunto de práticas e de discursos morais e patrióticos. Porém, é útil considerar, na linha da argumentação de Nicolas Mariot, que o “entusiasmo cívico” não pode ser unicamente lido como uma “vontade” oficial. Quer dizer, para ser eficaz tem de ser “un enthousiasme manifesté dans une situation civique reconnue comme telle par les participants” (Mariot, 2008, p. 138). De resto, do ponto de vista histórico não é possível cometer à escola apenas funções de reprodução e de integração.
Evocando agora o percurso histórico dos batalhões escolares do município de Lisboa, impõe-se dizer que o móbil da sua introdução parece estar muito ligado à tese, recordamos, já defendida por Luís Jardim nos anos de 1870, de regeneração militar do país. Não se trata, porém, de uma situação semelhante à registada em França, no sentido em que, entre outras condicionantes, a derrota de 1871 frente ao exército prussiano terá criado as condições para a emergência dos batalhões escolares (Brouzac, 2004). Albert Brouzac fala, inclusive, em sentimento de “revanche” (2004).
O que estava em agenda, na verdade, era a familiarização da juventude com o serviço militar, algo que, entre outros aspetos, pressupunha uma importante componente de exibição dos chamados “soldados-alunos”, particularmente associada a momentos solenes e a festividades. A este respeito, atente-se na forma como é descrita uma das primeiras aparições públicas dos batalhões escolares do município de Lisboa:
Quando em 24 de dezembro último 1882 se procedia, na sala do risco do Arsenal da Marinha, à distribuição dos prémios aos alunos das escolas centrais e paroquiais do município, a guarda de honra a suas majestades era feita pela 1ª companhia de soldados-alunos municipais, que em número de 80, perfeitamente armados e equipados, ostentavam um garbo marcial e uma correção de evoluções dignos de entusiástica receção, que nas ruas, durante a solenidade, e depois dela, significava por toda a parte a consagração fremente e sentida do povo da capital à civilizadora e patriótica cruzada que o município encetava a bem da nossa regeneração militar (O Batalhão Escolar..., 1883, p. 98).
Além de exaltar o entusiasmo da população, o articulista procura evidenciar o aparato da celebração cívica, operado, designadamente, através das posturas corporais, das coreografias e da simbologia associada ao fardamento. Na verdade, como notou Rosa Fátima de Sousa, “os batalhões escolares simbolizavam uma das finalidades primordiais da escola pública: a celebração cívica” (Sousa, 2000, p. 108). Nesse sentido, ajudaram a reforçar o imaginário e a instituir uma memória nacional. Não se estranha, assim, o investimento inicial do município de Lisboa no apetrechamento dos batalhões escolares, adquirindo no estrangeiro armamento (referenciais, neste caso, eram as armas adotadas nas escolas de Paris) e outros equipamentos (O Batalhão Escolar..., 1883) (Figura 1).
Num momento inicial, porém, a importância concedida aos uniformes, insígnias e armamento - notoriamente simbólicos e cénicos - esconde fragilidades organizativas. Aliás, contrariamente ao sucedido em França (Brouzac, 2004), os batalhões do município de Lisboa nunca terão regulamentação muito definida e consistente11. Por outro lado, e esse é mais um aspeto distintivo relativamente ao caso francês, a tutela municipal sobrepor-se-á à autoridade militar12. De facto, e não obstante os instrutores e professores de exercícios ginásticos e militares serem militares de carreira, há uma hierarquia de comando cujo topo é ocupado pelo vereador do Pelouro da Instrução13. A sentida indefinição regulamentar, não obsta a que, até ao ano de 1886 (momento a partir do qual é evidente o declínio dos batalhões escolares), o município consiga implementar a instrução militar nas 16 escolas centrais ou graduadas do sexo masculino e em algumas escolas unitárias (Boletim…, 1887)14.
Mas, mais do que dar atenção à organização dos batalhões escolares, para a nossa agenda de investigação é sobretudo importante olhar com especial cuidado para o seguinte: i) o ideário da celebração cívica associado aos grandes eventos da história da nação; ii) a forma como as práticas militares penetraram no quotidiano escolar.
Vejamos, em primeiro lugar, que forma revestiu a reverência cerimonial pública votada aos feitos/heróis da nação; se preferirmos, o modo como o imaginário nacionalista se preocupou com esses temas (eminentemente cívicos), no sentido de dotar a nação de uma história. É evidente, porém, que a ideia de formar “bons patriotas” não se reduziu à militarização da juventude. Na verdade, como sustentou Pierre Arnaud, “l´idéologie de l’enseignement sera pénétrée d’une idée-force: les devoirs envers la Patrie” (Arnaud, 1997, p. 43-44). Significa isto dizer, no que respeita ao desenvolvimento do ensino, que disciplinas como a história, a geografia e a educação cívica serão instrumentalizadas com o referido escopo.
Entre as várias celebrações que contaram com a presença dos batalhões do município de Lisboa, destaca-se a que ocorreu na capital, em 16 de setembro de 1885, em particular pela duração dos festejos (os quais se prolongaram por uma semana) e pelo tom apoteótico dos mesmos. Tratou-se da receção oficial a Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens, elevados à categoria de heróis nacionais, depois de mais uma viagem de exploração em terras de África. Contextualize-se que a expedição tem particular importância para a afirmação de Portugal na África Central, num momento em que a sua hegemonia nessa zona do globo é seriamente ameaçada. Ora, a Câmara Municipal de Lisboa desempenhou um relevante papel nas referidas celebrações (organizadas pela Sociedade de Geografia de Lisboa), associando-lhes os batalhões escolares:
Uma comissão da Câmara aguardará os ilustres exploradores no seu desembarque. Em seguida ao desembarque no Arsenal da Marinha, a Câmara receberá os ilustres exploradores na sala grande do seu paço, e o presidente lerá uma pequena alocução felicitando-os em nome da cidade pelo seu regresso e serviços [...]
Em dia oportunamente designado serão convidados os ilustres exploradores a passar em revista o batalhão escolar e a receber-lhe a continência15.
Note-se que o que está aqui em questão é o estabelecimento de elementos simbólicos, enaltecendo e popularizando as grandes figuras da nação - o culto dos heróis - no sentido de consolidar uma identidade cultural. Aliás, na linha da investigação de Anne-Marie Thiesse, uma nação digna desse nome devia apresentar: “une histoire établissant la continuité avec les grands ancêtres, une série de héros parangons de vertus nationales, une langue, des monuments culturels [...]” (Fontaine, 2014, p. 55).
Podemos entender melhor o efeito da referida celebração, se tivermos em mente o investimento a que obrigou e, mesmo, as alterações que provocou ao quotidiano escolar. De facto, a presença dos batalhões foi organizada com cerca de quinze dias de antecedência, sendo determinado que, para os ensaios, a Escola Central nº 8 receberia os pelotões de diversas escolas16. Por outro lado, por ordem do vereador do Pelouro da Instrução, e no sentido de se cumprir a necessária preparação para o acontecimento, foram suspensas na mencionada escola as aulas de canto coral e de desenho17.
Outra festividade comemorativa associada ao percurso da nação, e na qual os batalhões escolares tiveram importante participação, foi a do 1º de Dezembro, destinada a celebrar anualmente a Restauração da Independência de Portugal. Em 1886, por exemplo, foi a própria “Comissão 1º de Dezembro” a solicitar à Câmara Municipal de Lisboa a presença dos batalhões18. O que se constata, porém, é que a partir do referido ano - que corresponde ao apogeu da política educativa do município no ciclo descentralizador (Silva, 2008) - começam a surgir reticências relativamente à exibição pública dos “soldados-alunos”. A esse respeito, é elucidativo um episódio sucedido no âmbito da mencionada comemoração do 1º Dezembro de 1886. Com efeito, a situação decorre do facto de a comissão executiva da Câmara Municipal de Lisboa ter deliberado, em tempos, “não permitir que os batalhões escolares tomem parte em atos que não sejam puramente escolares”19. Ora, esta questão é debatida em reunião da Câmara, sendo que os vereadores, não obstante dirimirem argumentos a favor e contra a decisão da comissão executiva, acabam por aprovar (por unanimidade) a participação dos batalhões na festa do 1º de Dezembro. Há indícios, todavia, de que algo está a mudar. Por exemplo, o vereador Matoso Santos lembrava que “não convinha que a comparência do batalhão escolar naquela solenidade fosse muito demorada”20; por seu turno, Elias Garcia achava, do mesmo modo, que se devia anuir à pretensão da “Comissão 1º de Dezembro”21, “mas sem forçar ninguém para isso, isto é, que não sejam obrigados a ir os alunos cujos pais o não desejem”. É, sobretudo, por via da centralidade do corpo e da educação física no âmbito dos discursos educacionais produzidos a partir de finais do século XIX (Carvalho, 2005) que se registará uma inflexão na forma de perspetivar os batalhões escolares. Um assunto ao qual regressaremos.
Seria, no entanto, redutor pensar que a exibição pública dos batalhões se circunscrevia a celebrações cívicas da índole das que acabámos de descrever (muito associadas ao fomento do patriotismo). Há, de facto, outro tipo de manifestações públicas em que o que está em causa não é, propriamente, a “imaginação nacional”. Referimo-nos, em particular, à ideia da formação do caráter moral. São exemplo, a presença dos batalhões: i) em funerais de alunos das escolas municipais; ii) a policiar espaços públicos; iii) em sessões de comunhão de alunos de instituições assistenciais.
Mas é evidente que a instrução militar de per si pressupunha a interiorização da disciplina, da ordem e do respeito. É nesse sentido, e não tanto na possibilidade de a juventude saber manejar armas, que um prestigiado oficial sublima o valor da instrução militar, referindo-se, ainda, à obediência, a qual, na sua perspetiva, deveria “nascer do sentimento do dever e não do temor do castigo” (Sarmento, 1882, [p.1]).
Práticas militares no quotidiano escolar
Atentemos, agora, na forma como as práticas militares penetraram no quotidiano escolar. O exemplo da Escola Central nº 6, na qual se achava sediado o 1º Batalhão Escolar, constitui um bom ponto de partida. E se é certo, conforme afirmámos, que a tutela municipal se sobrepõe à autoridade militar, não menos verdadeiro será assinalar a autonomia de que gozavam os oficiais na organização da instrução militar - a referência, aliás, é a Escola do Exército22. Essa ideia, entre outras, emerge na seguinte passagem, assinada por Joaquim Emídio Xavier Machado, no momento em que se torna responsável pela instrução militar e pelo ensino da ginástica nas escolas centrais nos 6 e 11:
O material de guerra, uniformes, equipamentos e outros artigos militares acham-se no melhor estado de conservação [...]
Foi também para mim objeto de agrado a maneira como encontrei montadas a escrituração e outras disposições de serviço [...]
Na questão militar propriamente dita, tudo me parece conforme com as leis gerais do Exército e, porque as práticas seguidas nessas escolas revelam para mim acerto e progresso, nenhuma dúvida tenho de as continuar, certo de que procuro a utilidade do ensino23.
No entanto, é muito crítico em relação à organização da ginástica, segundo refere, “o preliminar indispensável da instrução militar”24. Nesta fase histórica, há uma ideia que começa a ganhar corpo: a de que importava autonomizar a ginástica dos exercícios militares (logo, criar duas categorias específicas de professores). Alfredo Dias, professor de ginástica nas escolas municipais de Lisboa, aborda essa questão, chegando, inclusive, a propor um curso de formação de professores de ginástica (Dias, 1887). Do seu ponto de vista, a Câmara “parodiava” o ensino da referida disciplina, adiantando ainda que, em Lisboa, o único ginásio organizado era o da Escola Central nº 1; servia, no entanto, “mais para exercícios militares que propriamente para ginástica, isto devido à forma por que as coisas estão organizadas” (Dias, 1887, p. 54).
A melhor imagem que traduz aquilo que Alfredo Dias pretendeu enfatizar - a orientação militar da ginástica escolar e, num certo sentido, o despropósito de uma instrução militar como um fim em si mesma - é-nos dada pela pena de Adolfo Coelho. É, ao mesmo tempo, um retrato impressivo sobre a forma como a instrução militar configurou o quotidiano escolar; a crítica de Adolfo Coelho resulta do conhecimento que tem da orientação dada à educação física em vários países europeus, particularmente na Alemanha.
Eu reconhecera que esses exercícios imbecilizavam os rapazinhos. Assisti à instrução militar naquelas escolas, e visitei por 1883 (e ainda depois) as aulas de quase todas as centrais já então criadas em Lisboa, e vi ali muitos alunos hirtos, sorumbáticos, mecanizados, por efeito dessa instrução, e conversando com alguns colhi a confissão suficientemente clara de que os instrutores lhes inspiravam receio de algum castigo, sem que os levassem a tomar a sério os exercícios, e a respeitar quem os instruía (Coelho, 1911, p. 29).
Por outro lado, as fontes devolvem a ideia de que a integração da ginástica e dos exercícios militares no currículo trouxe consigo dificuldades, no sentido em que não se ajustou à vida escolar. É notória, por exemplo, a inexistência de articulação entre os horários de uma determinada matriz do currículo (leitura, aritmética, caligrafia…) e os horários da ginástica e dos exercícios militares. A transcrição que se segue elucida bem essa clivagem:
Os exercícios [militares], que duram uma hora, terminam às 5 da tarde; hora bem pouco conveniente na estação atual à retirada de muitos dos alunos [...]
As lições nesta escola acabam às 2 da tarde, podiam pois, e com bom resultado, começar os exercícios militares um quarto de hora depois; e deste modo os mencionados alunos chegariam a suas casas ainda de dia.
Declínio da instrução militar nas escolas municipais
A partir de 1886, é evidente o declínio da instrução militar nas escolas municipais de Lisboa. Entre outros fatores, alguns deles já enunciados, a perturbação causada à vida dos alunos (e das famílias) concorrerá para esse estado de coisas, não obstante os esforços (por vezes conjugados) dos diretores das escolas centrais e dos professores de instrução militar. Atente-se no seguinte relatado:
O diretor disse que tendo escasseado a frequência aos exercícios militares, apresentando alguns alunos sempre motivos de escusa e chegando até a faltar às aulas nos dias daqueles exercícios, procurara, de acordo com o respetivo professor, obstar a este inconveniente. Lera, por isso, uma carta do Exmo. Sr. João de Melo Pereira de Vasconcelos, em que este se pronuncia no sentido de haver uma lição às quintas-feiras [feriado escolar] e outra em dia letivo, não pré- -fixado no horário mas combinado com o diretor, prevenindo sempre com antecedência o respetivo inspetor militar26.
Mas, como se disse, é sobretudo por via da centralidade do corpo e da educação física no âmbito dos discursos educacionais produzidos a partir de finais do século XIX que se regista uma inflexão na forma de perspetivar a instrução militar. De facto, em 1886, no quadro da discussão do projeto de reorganização das escolas centrais e unitárias do município de Lisboa, constata-se a força do argumento higienista. As posições são fraturantes no seio da própria vereação republicana. Com efeito, Teófilo Braga, admitindo não querer “melindrar” o colega Elias Garcia, refere que “nenhuma ginástica deve ser ensinada [...] quando não for subordinada a um programa fisiológico”27. Numa outra perspetiva, sustenta que “subordinar os movimentos da ginástica militar à espingardinha, ao pelotão [...]era criar um princípio de subserviência e não de obediência!”28.
Em maio de 1891, fundando-se na preocupação com a saúde dos alunos, a Comissão Administrativa não terá quaisquer dúvidas em responder negativamente ao pedido do Real Ginásio Clube Português no sentido de os batalhões escolares e das respetivas bandas participarem numa festa militar; não obstante, a direção do Real Ginásio prestou garantias de que os alunos não sofreriam “pela fadiga [...]nem pela insolação”29.
Considerações finais
A experiência dos batalhões escolares no decurso dos anos de 1880 elucida bem até que ponto o município de Lisboa foi capaz de explorar as margens de autonomização, tendo em vista a idealização de uma determinada política educativa. Por outro lado, aquilo que também se afigura muito interessante é o facto de o conhecimento educacional - à medida que se difunde e não obstante manter um certo grau de integridade - poder adquirir novos significados em função dos contextos e dos atores (Howlett e Morgan, 2011); a referência internacional, como vimos, são os batalhões de Paris.
Constatámos, ainda, que a questão da certificação política não é completamente estanque. Dizendo-o de outro modo, se são sobretudo as correntes republicanas a defender a introdução da ginástica e dos exercícios militares na escola, a verdade é que encontramos também monárquicos a pugnar por essas mesmas ideias. E não será menos importante sublinhar que há uma inflexão de posições num período de tempo muito reduzido. Aliás, uma personalidade como Teófilo Ferreira assinala, justamente, a efemeridade de algumas inovações pedagógicas.
Não obstante o referido, os batalhões escolares do município de Lisboa constituirão referência para futuras experiências, nomeadamente, no decurso da I República - o papel histórico que desempenharam está, sobretudo, associado à ideia de fomento do patriotismo (Pintassilgo e Silva, 2015).