Introdução
Começamos o nosso trabalho recorrendo à afirmação muito pertinente da Professora Maria Cândida Proença no prefácio à obra que coordenou, O pensamento pedagógico republicano: antologia: “o século XIX foi, com justiça, considerado o século da educação” (2014, p. 9). Reconhecemos que as motivações políticas e as aspirações de ordem social oitocentistas espelharam com entusiasmo o encorajamento à adoção de reformas no sistema de ensino.
Na esfera política, a preocupação pela instrução pública manifestou-se logo nas primeiras sessões das Cortes de 1821. A primeira referência aludindo à sua relevância social e cultural foi feita pelo deputado Francisco Soares Franco durante a apresentação do Projeto de lei sobre a liberdade de imprensa1 (Portugal, 2020a, p. 40). Seguiram-se, no campo parlamentar, nesse mesmo ano e ao longo de Oitocentos, inúmeras reflexões sobre a importância da promoção da educação e da instrução para a construção da nova ordem moral e política. Terão sido suficientes as intervenções parlamentares para projetar o tema da instrução e educação para o primeiro plano de ação política?
A renovada sociedade formulada a partir das teorias do Direito natural e consubstanciada na construção contratual da sociedade civil a partir do consentimento dos indivíduos, para seu benefício mútuo, exigiu a participação cívica de todos os homens. Exigência, aliás, expressa nos textos constitucionais que legitimaram a regeneração política e, naturalmente, espelharam os princípios ideológico-políticos do liberalismo, assegurando aos homens/cidadãos direitos fundamentais para o exercício da cidadania. Para que fosse possível a compreensão dos direitos e deveres individuais conquistados, para que a colaboração do cidadão fosse requerida, foi imprescindível refletir sobre os objetivos do ensino, em particular da instrução primária.
O direito à instrução, valor essencial para a aprendizagem e para a formação cívica necessária ao desempenho público exigido, foi e é, presentemente para alguns, a mais importante faculdade concedida ao homem, ao cidadão, contribuindo, desse modo, para o ambicionado progresso da nação. A sua consagração jurídico-política foi fundamental para a sua concretização.
Patrocinar, desenvolver e, também, modernizar a instrução - ação promotora de formação e conhecimento académico - e a educação - aprendizagem de valores morais - para a mocidade expressaram vontade política e motivação social em Oitocentos. A decisão política de proteger e desenvolver a instrução e a educação foi evidente e essencial perante a nova ordem social. A ação política, em torno do mesmo propósito, convocou, inevitavelmente, a colaboração institucional de outros poderes além do Estado, como foi a Igreja. Consideraremos neste trabalho as questões da administração territorial, com o objetivo de compreender a sua influência e intervenção nas reformas educativas.
Sabemos que as reformas administrativas oitocentistas oscilaram ao longo da época contemporânea entre a centralização político-económica da ação executiva e a descentralização institucional promovendo a autonomia da administração municipal. É justamente no contexto do processo de oscilação do poder político entre a prevalência da centralização e adoção de medidas de descentralização que se devem compreender as diversas disposições legislativas sobre a reordenação jurídico-territorial, definindo as competências políticas atribuídas aos poderes municipais, que caracterizaram a evolução do sistema de ensino-aprendizagem português.
Todavia, importa sublinhar que as alterações político-administrativas estiveram dependentes das capacidades económicas e financeiras do Estado, determinando a maioria das vezes o seu recuo político. E o cenário nacional, como bem sabemos, revelou ao longo da época contemporânea profundas dificuldades na fazenda, que obstaculizaram a materialização das políticas públicas. E a instrução pública não ficou alheia às complexidades que caracterizaram as finanças do Estado, bem pelo contrário. As justificações políticas referiram, primeira e continuadamente, as impossibilidades financeiras à prossecução reformista. Mas serão os problemas financeiros o único entrave ao desenvolvimento da instrução pública? Ou encontraremos outras problemáticas que concorrem para a sua obstaculização? A estas duas últimas questões adicionamos a primeira interrogação que colocamos nas primeiras linhas deste trabalho. A essas interrogações tentaremos responder ao longo do artigo.
Comecemos pela discussão administrativa.
A questão administrativa. O eterno conflito político entre descentralização e centralização
A controversa questão da reorganização administrativa do território nacional provocou sempre na sociedade portuguesa oitocentista vivo debate parlamentar. A divisão territorial pretendeu, ininterruptamente, responder à modernização institucional do poder político, conciliando distintas especificidades: territoriais, populacionais, económicas e tributárias, escolares e culturais, considerando as imprescindíveis necessidades regionais, dando expressão aos pressupostos da descentralização do poder político. A controversa questão administrativa mantém, nos nossos dias, sentimentos, apreciações e opções políticas distintas, estimulando frequente disputa nos corpos políticos e na sociedade civil.
O debate nas Cortes Extraordinárias, durante a preparação das bases da Constituição e, continuamente, na elaboração do texto final da lei suprema, reconheceu a importância política da sua emancipação face ao poder central. E os textos constitucionais confirmaram essa prerrogativa. Todavia, a submissão institucional do poder municipal, alicerçada em questões essencialmente económicas e tributárias, manteve-se preservada juridicamente.
Os decretos de 26 e 27 de novembro de 1830, promulgados pela Regência do Reino estabelecido na Ilha Terceira, referentes à “criação das juntas de paróquia eletivas para a administração dos negócios de interesse local”2 e ao “modo de determinar a renovação das Câmaras Municipais”, encetaram a “primeiríssima organização administrativa do Liberalismo”, segundo o professor Victor de Sá (1985, p. 202)3.
A disposição legislativa de 26 de novembro definiu os procedimentos que conduziam à criação das juntas de paróquia, ao sistema eleitoral dos seus membros e à identificação das competências administrativas. O artº 17º assinalou as atribuições da junta de paróquia e o parágrafo identificado com o nº 3 assegurava à instituição local a ação de vigilância das escolas de primeiras letras e dos respetivos mestres. O incumprimento dos procedimentos escolares e pedagógicos, de acordo com o estipulado na lei, eram transmitidos superiormente para realização de averiguação pedagógica.
Nos Açores e na ilha Terceira, relevamos a criação de uma escola no Castelo de S. João Baptista para a instrução das primeiras letras (ler, escrever, contar e moral e doutrina cristã) aos aprendizes das oficinas do Trem (julho de 1830), o estabelecimento de uma escola de mocidade na cidade de Angra para o sexo feminino (março de 1831) e a concessão de autorização ao prefeito da província dos Açores para promover as reformas na instrução pública (janeiro de 1833). As ações legislativas ocorridas neste arquipélago, durante a Regência do Reino, serão sempre recordadas nos discursos políticos e homenageadas pelos açorianos em representações coletivas e individuais, enviadas às Cortes4.
Foi o decreto de 18 de maio de 1832 da autoria de Mouzinho da Silveira que provocou o aceso debate sobre a reorganização administrativa e territorial. Note-se, no entanto, que os debates políticos e civis sobre as reformas administrativas em Portugal foram, e são, sempre controversos.
O projeto reformista de Mouzinho da Silveira, influenciado pela legislação francesa napoleónica, apontou como órgãos prioritários à restruturação da Nação, a caminho da modernidade e do progresso, a Fazenda, a Justiça e a Administração.
Não pretendendo descurar a relevância filosófica das considerações políticas do legislador sobre o Erário Régio e a Magistratura, a nossa atenção focou-se, sucinta e especificamente, na análise sobre a restruturação da administração pública.
Apresentada institucionalmente como o “governo doméstico” da estrutura política, a entidade agregadora “cadeia que liga todas as partes do corpo social, e forma delas um todo” reconheceu a importância do órgão na nova ordem política e social que se instituiu após a Revolução Liberal de 1822. Clarificou a ideia de união subjacente ao espírito de comunidade que ampara as relações sociais e asseverou os interesses sociais, garantindo o bem comum e as utilidades públicas, em conformidade com os princípios liberais.
A proposta legislativa definiu distintamente as atribuições do poder administrativo, em consonância com a disposição constitucional de 1826. A reorganização administrativa assente na divisão territorial em províncias, comarcas e concelhos e na estrutura e organização pública que o sustentou, centralizando no prefeito, nomeado pelo poder régio, a execução legislativa. Coube ao prefeito, apesar das atribuições definidas aos órgãos colegiais - câmaras municipais, junta de comarca, junta geral de província - a autoridade político-administrativa. No caso da instrução pública, o estabelecimento de escolas, de instituições de caridade e de piedade, a superintendência pedagógica e didática dos professores e a fiscalização financeira das despesas foram competências atribuídas ao prefeito, evidenciando percetivelmente o centralismo político, descurando as exigências e as especificidades regionais frequentemente evidenciadas nos discursos políticos proferidos nas Cortes.
Foi na sequência da Revolução de Setembro de 1836 que se estabeleceu uma nova reorganização territorial e administrativa. Renovando os ideais liberais revolucionários, instituiu-se uma nova ordem político-administrativa, redesenhando o território nacional, dividindo-o em 17 distritos e 351 concelhos, em conformidade com o decreto de 6 de novembro desse ano.
Encetou-se a descentralização do poder, entregando ao administrador geral a superintendência dos estabelecimentos de instrução pública que não estivessem sob a responsabilidade do poder municipal. Face à anterior disposição, às câmaras municipais foi, também, atribuída a prerrogativa de estabelecer e supervisionar as escolas de ensino primário, assegurando anualmente informação sobre o seu desenvolvimento.
Com o intuito de prover a “primeira necessidade da época atual”, conforme é referido no preâmbulo do decreto-lei de 15 de novembro de 1836, promulgou-se a reestruturação do primeiro grau de instrução pública. O decreto determinou a criação dos estabelecimentos de ensino, em concordância com as disposições gerais do Código Administrativo, definiu os planos de estudos, metodologias de ensino e modelos de avaliação, indicou as competências científicas e pedagógicas à prática docente, regulamentou os procedimentos de remunerações e jubilações e recomendou a adoção de normas de direção administrativa. Considerando os pressupostos reformistas de Passos Manuel, coloca-se-nos uma pertinente questão: estaríamos perante a tentativa de criação de um sistema de ensino impulsionador de uma instrução mais massificada? Na verdade, constatámos vontade política, mas concluímos que o País estava ainda longe de assistir à implementação da instrução popular.
A complexidade do despacho estava bem evidenciada no artº 15º no parágrafo intitulado “Dos ordenados, e jubilações dos professores”. Tratou-se de uma disposição arrojada que impôs ao poder municipal a retribuição de uma gratificação no valor de 20 mil réis aos professores de instrução primária. O aditamento financeiro, particularidade dos princípios de descentralização político-administrativa, evidenciou confiança política do poder central na autonomia municipal e, simultaneamente, respeito pelos princípios liberais. Todavia, este ato descentralizador colocou o poder local perante dificuldades socioeconómicas insuperáveis.
O preço pela emancipação institucional revelou a insustentabilidade financeira das câmaras municipais. As representações coletivas, subscritas por professores primários ou pelo poder municipal, apresentadas nas Cortes, testemunharam a impossibilidade financeira das câmaras municipais para o cumprimento do decreto-lei de 15 de novembro de 1836.
Atentemos ao requerimento apresentado pelo deputado eleito pelo círculo de Castelo-Branco, Adriano Antão Barata Salgueiro, na sessão parlamentar de 15 de fevereiro de 1839, dois anos e três meses depois da promulgação do referido decreto.
A petição foi subscrita por professores primários, de ambos os sexos, da cidade de Lisboa. Exigiram, conforme estipulava a disposição legislativa, ao município de Lisboa, o cumprimento da disposição referente ao pagamento da gratificação anual no valor de 20 mil réis. Sublinhamos que a reclamação apresentada não se limitou a uma simples exposição reivindicativa. A comunicação enumerou e assinalou os procedimentos adotados pelos subscritores para a regularização da devida retribuição, indicando o recurso a distintas instituições (Reino, Fazenda e Magistratura), assim como apresentou as respostas e deliberações rececionadas. Todas apontaram para a indispensabilidade de as Câmaras Municipais darem rigoroso cumprimento ao disposto na lei.
A reclamação foi indeferida pelo poder municipal. O argumento sustentou-se no Código Administrativo de 1836, na parte que refere as atribuições das câmaras municipais. Essas disposições legais conferem aos representantes camarários eleitos a capacidade de decisão no que se refere ao investimento público, após análise, avaliação e discussão de rendimentos e despesas, considerando as contribuições fiscais (diretas, indiretas ou mistas) arrecadadas. Este procedimento possibilitou contornar o artº 15º do decreto de 15 de novembro, situação que explica os inúmeros pedidos apresentados e lidos na Assembleia Constituinte.
A carta de lei de 29 de outubro de 1840 foi o primeiro sinal de alteração ao quadro administrativo. Os poderes públicos, a sua nomeação e competências governativas foram reestruturados segundo os princípios de centralismo institucional.
Foi sob a autoridade do ministro do Reino Costa Cabral que o código administrativo aprovado em 18 de março de 1842 redefiniu nova organização territorial e administrativa. A ordenação do território nacional, em 21 distritos, 413 concelhos e 918.122 fogos, proporcionou o equilíbrio e a convergência dos poderes institucionais, sustentando a sua jurisdição na Carta Constitucional, conforme anunciado na Carta de lei de 29 de outubro de 1840.
Relativamente à instrução pública, o regimento administrativo de 1842 centralizou na figura institucional e política do governador civil a superintendência anual dos estabelecimentos de instrução primária e secundária e das instituições de beneficência e de caridade (artº 226º). As inspeções pedagógicas aos estabelecimentos de ensino primário ficaram sob a responsabilidade do administrador do Concelho (artº 243º).
Vinte e cinco anos separam o estatuto administrativo promulgado sob o governo de Costa Cabral (18 de março de 1842) e o código de Mártens Ferrão (26 de junho de 1867)5. Duas décadas e meia de intensa atividade política, na procura da estabilização do sistema monárquico constitucional, no encontro do equilíbrio económico e financeiro da Nação reunida sob um desígnio comum: progresso.
A Lei da Administração Civil de 1867 revalorizou os ideais liberais, recuperando os princípios políticos da descentralização dos poderes institucionais.
A reestruturação proposta concedia aos conselhos paroquiais, do mesmo município “ou de diferentes concelhos”, a possibilidade de associação para “criarem e manterem,” partilhando despesa e usufruindo da sua utilidade, “estabelecimento de beneficência ou de instrução publica”. Porém, a autorização para a sua fundação e administração mantinha-se sob a alçada do governador do distrito, o que põe em causa o princípio de autonomia.
Os artº 124º e 125º sob a epígrafe “Da receita municipal” possibilitavam a utilização dos bens desamortizados e respetivos juros para o desenvolvimento da instrução pública primária, em cumprimento com o disposto na lei de 27 de junho de 1866 (Portugal, 2020b, p. 268)6.
Relativamente à monitorização pedagógico-didática, coube ao administrador do concelho a superintendência escolar e a inspeção financeira dos estabelecimentos de instrução primária, das instituições de caridade e de piedade. Ao governador do distrito foram atribuídos os poderes de consulta das câmaras municipais e conselhos paroquiais sobre “quaisquer assuntos administrativos” considerados relevantes para a promoção local, permanecendo sob a sua jurisdição a supervisão de todos os “serviços administrativos dependentes do ministério do reino” excetuando o ensino superior. A imagem de descentralização dos poderes políticos desvaneceu-se na definição e atribuição dos poderes políticos, apesar do reconhecimento da dedicação e empenho político do ministro Mártens Ferrão em promover a instrução pública de nível elementar7.
O Código Administrativo decretado em 21 de julho de 1870 expôs no preâmbulo, de forma objetiva, a situação política da Nação, caracterizando o regulamento administrativo como uma peça fundamental para a descentralização política do Estado, atribuindo aos corpos administrativos competências político-administrativas, considerando a necessária simplificação processual e o aperfeiçoamento da organização dos serviços públicos.
No caso da instrução pública, os municípios, em conformidade com o código civil, eram responsáveis pelas despesas com os estabelecimentos de ensino primário, cabendo à Fazenda distrital comprometer-se com os encargos do ensino secundário. O governador civil conservou os seus imperativos de supervisão e fiscalização da instrução primária e secundária. Ao administrador do Concelho foram atribuídas também competências de monitorização pedagógica às instituições de ensino, de caridade e de piedade, assim como poderes institucionais, de forma a agilizar os procedimentos de natureza jurídica resultantes de testamentos ou doações que manifestassem vontade de instituir ou amparar instituições de educação e formação.
Importa sublinhar que o novo código administrativo encontrou na lei de 16 de agosto de 1870 a determinação política em satisfazer as necessidades sociais e culturais de investimento em políticas públicas de instrução, nomeadamente de nível primário. Sublinha-se também que se tratou do primeiro diploma saído do tão ambicionado Ministério dos Negócios da Instrução Pública, dirigido por D. António da Costa, criado em 22 de junho e extinto 6 meses depois.
Prosseguindo os fundamentos políticos da descentralização e de simplificação processual na área da administração pública, o Código Administrativo de 1878 deu passos significativos na afirmação da emancipação dos corpos políticos administrativos.
A atribuição à junta geral dos distritos e às câmaras municipais de competências para a fundação de estabelecimentos de “instrução e educação” e para a gestão financeira das instituições conferiu a independência económica institucional. Todavia, a autonomia conquistada refletiu-se significativamente nos orçamentos regionais, assinalando avultados prejuízos nos cofres municipais, criando óbvias dificuldades de investimento na instrução pública.
Essas dificuldades financeiras figuraram extensamente no prefácio ao novo regulamento aprovado em 1886, assinalando e justificando a adoção de medidas administrativas mais centralizadoras.
Clarificou as competências e atribuições das juntas no que concerne aos subsídios para os estabelecimentos de ensino, assim como determinou o carácter “provisório” para a fundação dos mesmos. Relativamente aos poderes camarários e às atribuições do governador civil, as competências anteriormente regulamentadas foram confirmadas, preservando, também, o respeito e o cumprimento legislativo específico para as suas ações.
Foi, sem dúvida, a questão económica e financeira que ditou o regresso a uma política mais centralizadora. No entanto, e apesar de determinante, não foram apenas as agruras dos negócios da fazenda que promoveram a oscilação político-administrativa. A responsabilidade deve ser repartida e partilhada entre os grupos sociais que representaram protagonismo político. A célere transformação das relações sociopolíticas, a constante e dinâmica aprendizagem de valores de cidadania e participação cívica que se exigiu a todos os homens, cidadãos, foram requisitos de difícil adequação à sociedade portuguesa que revelou na sua atuação falta de rigor e vigor revolucionário, excetuando o uso de um vocabulário rico onde as palavras progresso, utilidade, liberdade, felicidade, e civilização assumiram uma relevância mobilizadora no discurso e na comunicação política, incentivando a Nação a grandes feitos. Léxico essencial para compreendermos a ação popular.
A reivindicação e a ação popular
O processo entre a perfilhação de novas ideias e a sua apropriação social foi um caminho que se foi trilhando. O tempo histórico revelou-se essencial para a compreensão das permanências e das mudanças. As temporalidades explicaram a contradição entre pensamento e ação, e justificaram as manifestações públicas significativas de sentimentos díspares. Representações de felicitação e jubilação, a par de exposições reveladoras de profunda angústia e sofrimento, caracterizaram a sociedade portuguesa oitocentista.
A abertura da assembleia representativa da Nação em 24 de janeiro de 1821 deu expressão ao movimento peticionário. Influenciados, primeiramente, pelo sucesso militar e político da revolução de agosto de 1820 e pela filosofia iluminista, em nome dos direitos naturais e dos ideais liberais de liberdade política e igualdade social, cidadãos em nome individual ou em associação enviaram às Cortes cartas de felicitação e homenagem, afirmando o tributo e a congratulação pela regeneração política. As primeiras missivas remetidas e lidas no Parlamento assinalaram a glória e júbilo que caracterizou o ambiente festivo que se viveu na Nação entre março de 1821 e novembro de 1822. A par da exteriorização destes sentimentos, os signatários aproveitaram a oportunidade para formularem e apresentarem petições.
A petição, direito cívico consagrado nas constituições políticas portuguesas, assegurou ao homem/cidadão a sua emancipação, permitindo-lhe o desenvolvimento de competências cívicas de intervenção e participação pública no espaço político-social, que tanto ambicionou8.
A imagem captada retratou, com autenticidade e realismo, o panorama político, económico, social e cultural que o país atravessou nesse período. A fragilidade político-económica descrita contrastou com o entusiasmo e a determinação individual ou coletiva no progresso, na regeneração há muito pretendida.
As súplicas assinalaram distintos tipos de reflexões. As necessidades públicas na modernização institucional, na reorganização administrativa, na reforma do sistema fiscal, na definição de apoio social a viúvas, órfãos e desvalidos e na reestruturação do sistema de ensino foram alguns dos temas que revelaram persistente preocupação e disponibilidade cívica para participar na construção de uma renovada sociedade civil.
A inquietação social patente nas missivas foi reveladora da circunspecta atenção dos corpos políticos, de diversas corporações socioprofissionais e, também, das congregações religiosas. A recetividade para a participação cívica exigiu a aprendizagem dos valores públicos. E para tal, a premência da educação e da instrução impôs-se na discussão política e na reivindicação social, assumiu-se como exigência requerida por poderes institucionais e políticos e por cidadãos individuais.
Centremos agora a atenção nas reivindicações apresentadas pelos poderes municipais sobre a necessidade de promover o desenvolvimento da instrução pública, nomeadamente, no ensino primário.
Não obstante a reforma setecentista no sistema de ensino, no início do século XIX, a rede escolar nacional de instrução básica revelou diversos tipos de fragilidades, que determinaram o veemente movimento peticionário protagonizado fundamentalmente pelos poderes municipais. A principal razão que congregou os municípios foi a insuficiência de estabelecimentos de instrução primária, para ambos os sexos, que permitissem a aquisição de competências elementares para o entendimento dos deveres cívicos e o cumprimento político, tendo em consideração o progresso da Nação.
A este motivo adicionaram-se outros também relevantes para o desenvolvimento do sistema de ensino. A ausência de planos de formação para professores que sustentassem o desenvolvimento de competências pedagógicas e didáticas para a prática docente e a atualização dos planos curriculares e materiais de aprendizagem foram questões determinantes que a maioria dos concelhos reivindicou. Todavia, o problema mais difícil de atender foi os inúmeros requerimentos remetidos por professores e municípios apontando para as adversidades socioeconómicas que a classe profissional atravessou ao longo de todo o século XIX. As solicitações reivindicaram não apenas a equitativa remuneração para o exercício da função pedagógica, mas também para a justa retribuição nos procedimentos de aposentação e jubilação.
É a partir de 1836, conforme já mencionamos, que o artº 15º do decreto de 15 de novembro, atribuiu ao poder municipal a obrigação de assegurar o pagamento da gratificação suplementar à atividade de docência, no valor de 20 mil réis, aos professores de instrução primária. A medida reforçou, sem dúvida, a autonomia dos corpos políticos municipais, mas colocou-os sob pressão financeira que se revelou insustentável. Foram circunstâncias penosas de se ultrapassar apesar dos esforços políticos parlamentares e da ação do governo em atenuar os obstáculos financeiros suscitados pelo orçamento municipal.
A promulgação do decreto sobre a instrução pública em 20 de setembro de 1844 revelou a firme necessidade de reforma pedagógica e, igualmente, de alteração processual administrativa. O artº 9º assegurou ao poder camarário a possibilidade de se estabelecerem “gratificações, ou ordenados” aos párocos ou “a outros indivíduos” que comprovassem possuir habilitações específicas “moral e literária” adequadas à docência “nas freguesias, em que não houver professor público”. No entanto, o artº 26º assegurou a todos os professores de instrução elementar a gratificação anual atribuída pelo respetivo município, definindo ainda um valor suplementar aos professores com “mais de 60 discípulos” ou “40” ou “30”, reconhecendo a eventualidade de existirem classes com mais de 60 alunos nas cidades de Lisboa, Porto, Coimbra, Braga e Évora. Apesar destas iniciativas promotoras da instrução primária, continuava-se longe de se estar perante o efetivo desenvolvimento da educação popular.
A disposição legislativa de 1844 reconheceu, também, a valorização e a adoção de boas práticas pedagógicas, louvando publicamente a excelência didática dos docentes. No que diz respeito aos processos de aposentação ou jubilação, os procedimentos administrativos na sua generalidade permaneceram, praticamente, inalteráveis, não obstante o aditamento mais pormenorizado das normas a observar.
Apesar da reformulação da regulamentação jurídico-administrativa ter centralizado nos órgãos superiores de decisão parte considerável dos procedimentos de gestão, o poder municipal continuou a revelar dificuldades no cumprimento dos compromissos financeiros. Desse modo, compreendem-se os insistentes requerimentos de professores dos dois primeiros graus de ensino, primário e secundário, apresentados nas cortes constituintes em 1848 e no ano seguinte. As solicitações exigiriam, consecutivamente, às câmaras municipais de Viseu, Lamego, Resende, Braga e Lisboa, o pagamento adicional pelo serviço de exames.
Sobre as questões de natureza pedagógica, mencionamos o requerimento apresentado pelo deputado António Rodrigues Sampaio em 13 de fevereiro de 1850, em nome de um grupo de professores primários da região de Lisboa. O protesto incidiu sobre a necessidade de “melhoramentos” na instrução primária, designadamente aperfeiçoamentos pedagógicos e didáticos que permitissem desenvolver o ensino e a aprendizagem, atualizando as práticas educativas. Tratou-se de uma exigência também antiga, que demandava, simultaneamente, a necessidade de formação académica e pedagógica dos professores, indispensável à renovação pedagógico-didática e, essencial, ao desenvolvimento do ensino público, particularmente o ensino primário.
A experiência do ensino popular
O ensino básico continuava a ser a grande preocupação social e política no domínio da educação. E a atividade parlamentar demonstrou solicitude e revelou diligência permanente na ação legislativa e executiva. Os obstáculos económico-financeiros impossibilitaram de forma persistente a sua plena concretização. Porém, o ambiente político-económico a partir da segunda metade do século XIX revelou-se mais favorável ao desenvolvimento do sistema de ensino primário. E as vantagens de estabilidade foram aproveitadas para o progresso da Nação.
A renovação educativa chegou pelas mãos do autor da Leitura repentina: método para em poucas lições se ensinar a ler com recreação de mestres e discípulos. António Feliciano de Castilho, apreensivo com a pouca atenção dada ao ensino primário e perante a “necessidade de criarem escolas rurais de primeiras letras”, sob proposta da Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense, ensaiou, durante a permanência de sua família na Ilha de S. Miguel, um método de ensino, simplificando os procedimentos de organização curricular e os instrumentos didáticos9.
O método de aprendizagem começava pela fala e audição, seguindo-se a decomposição da palavra em letras e a sua separação fonética. E, por último, a construção da palavra, orientando o aluno para a sua escrita. Castilho contou com a colaboração do desenhador e escultor Manuel Monteiro, que desenhou 52 figuras do alfabeto, metodologia fundamental para que o projeto pedagógico e didático, pela mnemonização das letras através da representação figurativa, fosse acessível e permitisse uma aprendizagem compreensível e célere.
A aprovação académica e política do método de aprendizagem foi controversa, originando ”debates virulentos, animados pelo fogoso génio polémico de Castilho” (Castelo-Branco, 1977, p. 32). Todavia, deve ser sublinhado o esforço social, cultural e político do autor para diminuir a taxa de analfabetismo10.
Será interessante mencionar a portaria de 25 de outubro de 1852, autorizando experimentalmente a adoção do método na escola de ensino mútuo na Casa Pia de Lisboa, sob a responsabilidade do diretor da Escola Normal de Lisboa, Luís Filipe Leite. O ensaio educativo designou duas ações pedagógicas. A primeira ditou a aprendizagem da leitura e da escrita em 100 alunos “mais atrasados nos exercícios Escolares.” A segunda propôs a colaboração de 5 alunas nos “exercícios de leitura, que reúnam condições necessárias, para na qualidade de alunas mestras” possam ficar habilitadas à formação pedagógica e didática para a instrução do sexo feminino. Ambas as atividades ficaram sob a orientação do diretor da Escola, conforme disposto no primeiro artigo da lei. E para o “bom desempenho” da função educativa e administrativa, o decreto estabeleceu condições especificas para a prática letiva e para a subsistência do professor, atribuindo-lhe residência no espaço físico do campo escolar. Face à especificidade dos requisitos, interpretamos que a referida portaria se revelou essencial para o desenvolvimento do ensino popular e, simultaneamente, promoveu a formação de professoras de instrução primárias para exercerem o mester em escolas do sexo feminino.
Outras iniciativas municipais mereceram o reconhecimento e louvor dos representantes do poder executivo. Apontamos a satisfação revelada pelo ministro do Reino Fontes Pereira de Melo, em 1859, à incitativa político-económica da Câmara de Peso da Régua, em estabelecer uma escola noturna, para ensinar a ler pelo método pedagógico repentino11.
Iniciativa análoga teve a Câmara de Lisboa, em 17 de janeiro de 1860. O anúncio do estabelecimento escolar financiado pela Administração da Real Casa de Santo António estipulou distintas condições administrativas e pedagógicas. A escola primária sediada na rua de S. Vicente, nº 33, 1º andar, permitia receber 24 alunos. A definição de requisitos de matrícula, indicando prazos de candidatura e de idade de admissão dos alunos e horário escolar ‒ entre as 8 horas e as 13 horas ‒ constava na notícia. Assim como revelou a metodologia de instrução adotada ‒ método repentino - e o responsável pela formação pedagógica, o “cidadão” José Joaquim Serra (Campos, 1999)12.
Não obstante as diligências de incentivo ao desenvolvimento do ensino popular, a massificação da instrução e educação da mocidade necessária ao progresso nacional estava longe de atingir os objetivos ambicionados. Os avanços e recuos legislativos foram constantes. Atentemos a um exemplo significativo do retrocesso social na abertura da formação a toda a mocidade.
Em 6 de março de 1860, aproximadamente um mês e meio depois da participação do Município de Lisboa, o Ministério do Reino propôs que se examinassem as duas metodologias de ensino e aprendizagem em vigor: o método antigo e o método designado por português13. A portaria pretendeu, exaustivamente, avaliar o sistema de ensino e aprendizagem “considerando que uma das principais condições para o progresso do ensino primário é a excelência dos métodos adotados”. O propósito legislativo era a eleição do melhor método de ensino e aprendizagem.
O desígnio político e o procedimento académico impulsionado pelo executivo foram-se enredando em ações legislativas inconclusivas, desencadeando questões sobre o empenho e a vontade política em apostar na instrução primária, assim como levantou desconfianças sobre a idoneidade pedagógica da metodologia de ensino-aprendizagem.
Importa sublinhar que, a par das exíguas iniciativas públicas municipais de investimento na instrução popular, surgiram, também, ações particulares de promoção do ensino, embora igualmente reduzidas. Mencionamos a doação de José Maria do Casal Ribeiro em 1859, no valor de 10:000$000 reis, à Associação Promotora da Educação Popular, para a fundação de uma escola feminina primária, em memória de sua mãe, Maria Henriqueta Gomes do Casal Ribeiro14. E citamos a doação testamenteira à Nação, em 1866, de Joaquim Ferreira dos Santos, conde de Ferreira, para a construção de 120 escolas de instrução primária. Tais obras, sem dúvida promotoras do ensino popular, foram um valioso estímulo à educação e à instrução das gerações futuras e constituíram um testemunho de humanismo e generosidade. E como promoveu a instrução pública o município de Lisboa?
A ação da Câmara de Lisboa
Apontamos como ponto de partida, conforme já referimos, o aviso camarário datado de 17 de janeiro de 1860 anunciando a instituição de uma escola gratuita, para 24 alunos, sob a responsabilidade da Administração da Real da Casa de Santo António.
A iniciativa aplaudida pelo poder político central revelou-se socialmente mobilizadora, mas foi claramente condicionada. Manifestação contraditória? Sem dúvida, mas o espectro económico-financeiro foi determinante, como temos vindo a assinalar. As dificuldades financeiras pesaram na prossecução dos interesses sociais e das necessidades políticas. A relevância política da utilidade harmonizada aos benefícios sociais e culturais seguira um percurso sob o signo da moderação. A parcimónia explicou e fundamentou as ações político-económicas, mas não impediu que as expectativas sociais, individuais e coletivas, perdessem o seu intento. Simplesmente o caminho para progresso nacional foi sendo refreado.
O estímulo ao desenvolvimento da instrução pública coroava o principal objetivo de implementação e alargamento da rede escolar. A este fim adicionavam-se outras atribuições de carácter académico, administrativo e institucional. O concurso de professores, a assistência à atividade de docência, a supervisão pedagógica, a utilização de instrumentos didáticos adequados à promoção do ensino - aprendizagem, o registo administrativo dos processos dos alunos, a edificação ou adaptação de espaços físicos à prática de ensino, regulamentados em 27 de junho e 20 de julho de 1866, a aquisição de mobiliário específico, assim como a fiscalização financeira foram fazendo parte das atribuições políticas centrais e municipais, conforme expresso nas normas da administração pública15.
A listagem do corpo docente afeto ao ensino primário no distrito de Lisboa em 1867, conforme a "relação nominal por ministérios dos empregados do Estado e respetivos vencimentos" permite-nos analisar por concelhos a rede escolar.
Sob a direção do comissário geral de Instrução Primária, António Feliciano de Castilho, o distrito de Lisboa apresentava 158 lugares para colocação de professores, dos quais 137 estavam preenchidos16.
A cidade de Lisboa ofereceu lugar a 26 professores que se distribuíram pelas metodologias de ensino mútuo (dois professores e dois auxiliares) e simultâneo, lecionado por 18 professores nos bairros de Alfama (Cruz do Castelo, Santa Engrácia, Santo Estevão, S. Jorge e S. Vicente), Rossio (S. José, Santa Justa e Madalena), Bairro Alto (Encarnação, S. Mamede, Mercês e S. Sebastião da Pedreira) e Alcântara (Santa Catarina, Santa Isabel, Lapa, S. Paulo, S. Pedro em Alcântara e Santos-o-Velho). A rede escolar da cidade contava ainda com 17 mestras de meninas nos seguintes bairros e respetivas freguesias: Alfama (Santo André, Anjos, Santa Engrácia, Santo Estevão, Socorro e S. Vicente), Rossio (S. José, Santa Justa e Madalena), Bairro Alto (Encarnação, Mercês e Pena) e Alcântara (Santa Catarina, Santa Isabel, Lapa, S. Paulo e Santos-o-Velho), verificando-se falta de provimento na escola de S. Mamede, no Bairro Alto.
A Escola Normal Primária contava com seis professores para a formação pedagógica do corpo docente. O diretor, o secretário, o capelão e o prefeito acumularam funções administrativas com a prática pedagógica.
Mencionamos ainda fora das portas da cidade, os concelhos de Belém e Olivais que, no total, tinham 24 professores para uma oferta de 27 vagas (22 professores e 2 mestras). Ao concelho de Belém estavam adstritas as freguesias de Nossa Senhora da Ajuda, Benfica (Nossa Senhora do Amparo de Benfica e Porcalhota), Carnide (S. Lourenço de Carnide) e Odivelas (Menino de Jesus de Odivelas). As cinco escolas de instrução primária tinham os professores colocados.
Relativamente ao concelho de Olivais, a região oriental era mais extensa e compreendia as localidades de Bucelas, Camarate, Campo Grande, Caneças, Charneca (S. Bartolomeu), Fanhões (S. Saturnino), Frielas, S. João da Talha, Loures, S. Pedro de Lousa, Lumiar, Sacavém, Tojal, Unhos, Olivais (Santa Maria dos Olivais e Rossio da Freguesia dos Olivais) e Vialonga, representando no total 18 escolas, sendo que, em 1867, apenas duas registavam falta de provimento ‒ Charneca (S. Bartolomeu) e Marvila (S. Bartolomeu do Beato António) (Recenseamento geral…, 1881) 17.
Parece-nos, pela análise dos números indicados, que não se constata inequivocamente uma clara aposta no reforço do ensino primário no município de Lisboa. Apesar disso, há exemplos que revelam vontade política de estimular a ação educativa, como é o caso da escola pública feminina sediada na freguesia de Santo André, que acolheu de forma continuada a frequência dos alunos de ambos os sexos.
Analisando os mapas relativos aos anos letivos compreendidos entre 1865 e 1869 do Arquivo Municipal da Câmara de Lisboa, não nos foi possível estabelecer o percurso dos alunos em virtude da diversidade de critérios utilizados pelo professor. O apontamento não seguiu procedimentos rigorosos. A opção administrativa no tratamento da informação foi da responsabilidade dos professores. Todavia, destacamos que as ações de gestão diária foram realizadas de forma constante, tarefa que foi sempre exigida pelos poderes institucionais e foi cumprida pelo corpo docente.
A turma que iniciou o ano letivo de 1865-1866 era composta por 25 alunos. A sua constituição em outubro de 1865 era de 20 meninas e cinco meninos, identificados pelo nome próprio e apelido, o que significa que estamos perante um ensino misto, apesar da escola estar identificada como estabelecimento feminino. Nos dois primeiros meses, o nível de assiduidade revelou alguma constância, a média estimou-se, aproximadamente, em 23 presenças diárias, nos dois regimes letivos (manhã e tarde).
A partir de 15 de dezembro, assistimos a um decréscimo de presenças em sala de aula, fixando-se entre as 21 e 20 assistências. Contudo, não se registaram desistências. Julgamos, pela sequência diária de ausências, que alguns alunos estiveram impedidos de frequentar as aulas, provavelmente por questões de saúde. A título de exemplo, apontamos o registo de faltas de dois alunos: um do sexo masculino, que registou 12 faltas em outubro, 21 em novembro e 21 em dezembro, tendo regressado às aulas em janeiro; a outra estudante esteve ausente durante o mês de dezembro e os primeiros 8 dias de janeiro.
No princípio do ano de 1866, a turma registou um aumento considerável de matrículas, passando a sala de aula a contar com 45 alunos (33 meninas e 12 meninos). Número que voltou a aumentar na primeira quinzena no mês seguinte com mais 15 inscrições (38 meninas e 22 meninos).
Na segunda metade do mês de março, foram assinaladas duas desistências de duas alunas. E no mês de abril, assistimos a um aumento de 12 inscritos. O total de alunos era de 49 meninas e 24 meninos. Em maio matricularam-se mais oito estudantes (sete meninas e um menino) e desistiram quatro alunos, equilibradamente duas meninas e dois meninos. Em junho, mais três cessações e sete matrículas. Em julho, o registo de assiduidade assinalou sete novas matrículas e uma desistência. E no final do ano letivo, em agosto, o assentamento indicou 11 abandonos e 10 matrículas. A classe, que iniciou o ano letivo em 1865-1866, com 25 alunos, terminou o ano com 83. Não obstante a variabilidade de números de inscritos e desistentes, o nível de assistência às aulas estima-se nos anos letivos em apreço na ordem dos 80% de presenças.
No ano letivo seguinte, 1866-1867, o livro de presenças sinalizou no primeiro dia de regresso à atividade letiva, em 1 de setembro, a constituição da turma com 83 alunos, precisamente o mesmo número de alunos que terminou o ano letivo anterior. Mas a mesma volatilidade foi evidente nos mapas de frequência consultados. Testemunhemos os resultados. Em outubro registaram-se dois abandonos e matricularam-se mais três alunos. Em novembro cinco desistências e sinalizaram-se mais três matriculas. Em dezembro quatro desistências e cinco averbamentos. Em janeiro seis desistências e três inscrições e no mês seguinte exatamente a mesma avaliação. Em março quatro desistências e três matrículas. Em abril seis abandonos e quatro novas inscrições. Maio três desistências e uma inscrição e, em junho, 12 abandonos face a 11 novas matrículas. E no final do ano letivo em agosto seis desistências e três matrículas. A turma terminou com 66 alunos.
No livro de registos relativo ao ano letivo 1867-1868, destacamos uma interessante particularidade, pois apenas regista o número dos alunos, não os identificando pelo nome próprio ou apelido. Assim sendo, o livro, apresenta no dia 1 de setembro de 1867, uma pauta com 91 alunos matriculados, representando um acréscimo de 25 alunos relativo ao ano transato. O mês de novembro assinalou sete desistências escolares e oito novas admissões. Em dezembro somente uma desistência. Em janeiro averbaram-se cinco abandonos e quatro novas matrículas, e no mês seguinte cinco desistências e três inscrições. A inconstância formativa espelhou-se nos meses subsequentes. E março, cinco desistências e oito matrículas, em abril quatro abandonos e 13 inscrições. Durante o mês de maio quatro desistências e oito registos de inscrições. Nos últimos três meses de atividade letiva, registaram-se no total 31 desistências e oito inscrições, a classe completou o ano letivo com 81 alunos, tendo atingido uma máxima de frequência com 104 alunos.
No último ano letivo 1868-1869, a primeira folha do livro de frequência às aulas até indicava o nome da professora, Mariana Amália de Araújo Guimarães. Esta indicação permitiu-nos verificar que, no ano económico de 1867 no mapa da “Relação nominal por ministérios dos empregados do Estado e respetivos vencimentos“, a Professora auferiu 100$000 reis. O livro voltou a incluir o nome dos alunos. Nuns casos apenas figura o nome próprio, noutros é acrescentado o seu nome de família. A turma era constituída por 91 alunos e foi possível acompanhar o processo de evolução escolar dos alunos, com a indicação do aproveitamento nas disciplinas curriculares - leitura, escrita, aritmética, gramática, história de Portugal, doutrina sagrada, costura e lavores - e, ainda, a indicação sobre o comportamento dos alunos na escola. Em outubro averbaram-se seis desistências. E nos dois meses seguintes no total 11 desistências e sete matrículas (novembro: duas cessações e seis matrículas; dezembro: nove abandonos e uma inscrição). No primeiro trimestre 12 desistências e 19 matrículas. Em abril cinco abandonos e em maio quatro desistências e nove alunos inscritos. Nos últimos três meses de aulas, 21 desistências no total e 20 matrículas. Terminaram o ano letivo 87 alunos. Apreciando a última pauta e, particularmente, as colunas referentes ao aproveitamento escolar, é-nos difícil compreender com clareza os resultados obtidos (Relação nominal…, 1867).
Será interessante recordar que o decreto de 20 de setembro de 1844, no artº 26º, garantiu a todos os professores de instrução primária uma gratificação anual suplementar, facultada pelo respetivo município em função do número de alunos por turma. A lei estipulou a recompensa pedagógica e administrativa para turmas que ultrapassassem mais de 30 alunos, tendo presente a circunstância de, em algumas cidades do país, o número de alunos por classe exceder as três dezenas, como era o caso da escola de Santo André (Bairro de Alfama).
As explicações para o abandono escolar na ausência de informação adicional são meras especulações. A fraqueza física, as doenças virais próprias da idade escolar nos meses de inverno são as justificações mais plausíveis. Um outro motivo de natureza social relacionado com dificuldades de sobrevivência familiar poderia explicar a interrupção da atividade letiva, mas para tal seria relevante conhecer com mais pormenor os processos individuais dos alunos que frequentaram as escolas mencionadas. Apesar das incertezas, não podemos deixar de elogiar a disponibilidade, a energia e a determinação que pais e crianças colocaram na formação de valores morais e na instrução elementar, ainda que se possam, criticamente, discutir os procedimentos pedagógicos e didáticos que permitiram o retorno à atividade escolar no decurso do ano letivo dos alunos que estiveram ausentes durante largos períodos de tempo.
Situação diferente no que se refere ao abandono escolar foi a que observamos no registo de assiduidade dos alunos da Escola Central nº 1, secção 2 do município de Lisboa, num outro período cronológico.
Entre outubro e dezembro de 1884, a turma tinha cerca de 30 alunos do sexo masculino. E a variação de entrada e desistência foi diminuta, situando-se entre dois ou três abandonos escolares.
Na sequência da análise aos mapas de frequência da atividade letiva da escola feminina da freguesia de Santo André e da Escola Central nº 1, secção 2, considerámos interessante observar o sucesso escolar expresso nos livros de termos dos exames de instrução primária.
Consultámos para o efeito os livros de registo de Exame referentes a um outro período temporal, entre 1888 e 1894. As provas de exame respeitaram as disposições legais de 2 de maio de 1878 e 28 de junho de 1881. Foram realizadas 101 provas de exame, num universo de 52 alunos do sexo feminino e 49 do sexo masculino, tendo sido aprovados 83 alunos. Os restantes 18 alunos, por não terem obtido resultados positivos em todas as áreas disciplinares, foram averbados com a indicação “adiada”. Registámos 10 alunos aprovados com distinção, sendo quatro do sexo feminino e seis do sexo masculino. Atentemos por anos aos resultados finais (Quadro 1).
Considerando os resultados escolares animadores e constatando que a massificação da educação em Portugal estava ainda longe de se alcançar no final de Oitocentos, a nossa curiosidade focou-se nas propostas didáticas debatidas e autorizadas pelos sucessivos ministérios para a formação académica e para aquisição de competências morais e sociais.
A ação legislativa observou e refletiu, cuidadosamente, o propósito da formação nas vertentes da instrução e da educação. As sucessivas alterações publicadas a partir de 1 de outubro de 1857 tiveram em consideração a tipologia de ensino: público e privado e as competências a adquirir nos diferentes graus de aprendizagem. Respeitaram a idade dos alunos e os valores morais intrínsecos à sociedade que se pretende construir. Promoveram a modernização dos programas curriculares, a adoção de metodologias de ensino-aprendizagem diversificadas, a atribuição de prémios para projetos de investigação no âmbito pedagógico e didático e a aprovação de obras estrangeiras, assim como não ignoraram a premente necessidade de formação educacional dos professores.
Simultaneamente e de forma quase impercetível, asseguraram aos docentes autonomia pedagógica e liberdade de ensino-aprendizagem, garantindo, ainda, a superintendência dos órgãos políticos intermédios e centrais em relação à atividade escolar.
A instrução, sobretudo a primária, fazia-se acompanhar pela educação de valores morais e cívicos, essenciais às exigências políticas do estado liberal. A escola assume-se na sua dupla função: instrução e educação. É na união das duas palavras: instrução e educação que o progresso da Nação se pode materializar, asseverando ao homem/cidadão, a liberdade, a felicidade e, principalmente, a sua participação cívica.
Ideais humanísticos fundamentais à construção do Estado contemporâneo, essenciais à nova ordem moral e política que se pretendeu implementar e que continuou a estimular a sociedade civil. Ideais que se continuam a ensinar e a aprender. Porque a escola ensina, forma, e prepara as futuras gerações para os desafios de uma sociedade em permanente mudança.
Conclusão
A aposta no alargamento da rede escolar, através da criação de novos estabelecimentos de ensino para ambos os sexos, sob a responsabilidade municipal, o incentivo a novas práticas pedagógicas invocando a adoção de materiais didáticos adequados à faixa etária e aos novos estudos académicos, a introdução nos programas curriculares de atividades físicas complementares à instrução, a definição dos processos de inscrição e avaliação, a inclusão de alunos com deficiência no sistema de aprendizagem adequando-o às distintas necessidades, a reforma de um ensino-aprendizagem orientado para o desenvolvimento de competências profissionais, a preocupação política em promover formação especializada para a prática docente que tenha em conta as necessidades socioeconómicas de uma classe profissional verdadeiramente desamparada e ainda, a avaliação e restruturação do espaço escolar foram temas intensamente debatidos no campo político e social ao longo do século XIX.
Tentámos encontrar respostas para as questões que colocamos no início do trabalho. Ao enumerarmos e revisitarmos as principais preocupações político-sociais que mobilizaram a sociedade oitocentista, temos que admitir a complexidade da conjuntura política, económica e social. Da reflexão crítica do passado sobressaem, em perspetiva, problemas que se mantêm na atualidade.
De facto, a problemática político-administrativa entre descentralização e centralização foi, e talvez ainda seja, um tema muito complexo em que se revela difícil encontrar uma solução equilibrada. No caso da instrução pública e, principalmente, no grau de ensino primário, a necessidade e a preferência política orientaram-se pelo centralismo. A opção parece-nos compreensível considerando a premente necessidade de instruir que se confronta com uma grande percentagem de analfabetismo entre a maioria da população e a reduzida rede escolar.
No entanto, não podemos deixar de reconhecer a evolução social e política que ocorreu no século XIX no nosso país. No que à instrução e educação diz respeito, constatamos: a modernização do sistema de ensino e de aprendizagem, a gradual embora tímida massificação da instrução pública, o desenvolvimento de práticas pedagógicas e didáticas centradas no aluno para a aquisição de competências formais, a introdução nos planos de estudos de novas e modernizadas matérias científicas, a restruturação dos processos de formação de professores, o melhoramento e adaptação arquitetónica dos espaços escolares conformes as necessidades letivas, não descurando as questões relativas à subsistência dos docentes (remuneração, aposentação e jubilação).
Constatamos ainda que os problemas económico-financeiros sentidos na sociedade oitocentista ensombraram, de forma continuada, a concretização das reformas da instrução pública. Todavia, e apesar das grandes dificuldades financeiras, o poder legislativo aceitou e analisou com perseverança e solicitude um vasto número de requerimentos e propostas de reforma. O poder executivo, atendendo às necessidades políticas e sociais que demandavam o progresso, concretizou ações promotoras de incentivo às políticas públicas de instrução.
As autoridades municipais, acolhendo e dinamizando a participação popular, contribuíram na medida das suas possibilidades, para a edificação da nova ordem política e social e para o progresso da Nação.
Foram ações suficientes? Foram as possíveis numa sociedade em profunda mudança.