Competente e consistente estudo resultante de uma inédita tese de mestrado, lançado no ano transato sob chancela da Imprensa de Ciências Sociais, este livro leva-nos à descoberta de um pioneiro, Leonildo de Mendonça e Costa, idealizador e impulsionador da Sociedade Propaganda de Portugal (doravante SPP) que, independentemente dos obstáculos e das incompreensões com que se debateu, levou a cabo uma pletora de iniciativas conducentes a uma tomada de consciência relativamente a fatores que, de outro modo, teriam sido ignorados.
Pesado fardo de uma associação «tão patriótica que deveria ser apolítica», na visão do seu fundador, formada por particulares, monárquicos e republicanos que se prestaram a fazer aquilo que os poderes públicos ignoravam com indiferença, progressistas de timbre regenerador perseguindo uma agenda desenvolvimentista, preconizando transformar Lisboa no «Cais da Europa», perante um potencial turístico inaproveitado e o inevitável atraso do país.
Tendo «o estrangeiro como bitola», replicando conceitos importados de Áustria e da Suíça, almejando a uma nova e promissora «indústria das viagens», pretendia a SPP, no seu cosmopolitismo, proceder a um inventário dos incontáveis melhoramentos a introduzir e à concomitante propaganda no sentido de «dizer o que ver aos turistas», obtendo, no exterior, visões positivas de um «Portugal visto pelos estrangeiros».
Dicotomia essencial nesta análise, como bem exemplifica Pedro Cerdeira (2019), autor com mais dois trabalhos publicados sobre este tema, estamos perante um expoente de modernidade numa época em que, paralelamente às projeções, sempre adiadas, de crescimento económico, se verifica uma tendência de «homogeneização de um gosto burguês», de um novel espírito de vilegiatura eivada de nacionalismo, vendo na incursão turística uma «síntese de todos os ideais», de um país mitificado em que tudo estava por fazer, a falta de meios e de iniciativa imperavam e o turismo não era visto como uma competência governamental.
Entre planos viáveis, antagonismos vários e um mercado irrelevante, enfrentando inúmeras deficiências no terreno, em termos de acessos, de transportes, de serviços, de condições sanitárias, a par de uma obsoleta e quase inexistente oferta hoteleira para além dos principais centros urbanos, alguns progressos foram, todavia, logrados pela SPP. Destaque-se, por exemplo, o seu importante Boletim (revista que, por si própria, mereceria um estudo específico no campo comunicacional), os primeiros guias, mapas e manuais, dedicados aos viajantes, a captação de testemunhos de escritores franceses, ou o apoio à estadia de pioneiros da cinematografia inglesa, que vieram a fixar imagens inéditas dos seus trajetos.
Com cuidado prefácio de M. Luísa Sousa, ao longo de sete capítulos analisando-se a criação, o programa, o contexto, o impacto e a atividade, designadamente propagandística da SPP e do seu fundador, até à extinção da Monarquia, encontramo-nos perante uma investigação teórica e documentalmente bem conseguida apesar de algumas limitações: a pesquisa incidiu, essencialmente, na consulta de periódicos da época e de um acervo epistolar existente no Arquivo Municipal de Lisboa - Arco do Cego.
Mas vejamos, em paralelo, algumas questões, tentadoras, para as quais uma leitura mais abrangente deste livro também nos convoca: o que pensaria sobre o tema a família real e a nobreza viajada, e qual terá sido a sua influência no curso da SPP? Tratou-se de um projeto essencialmente burguês, como o autor pressupõe? Tendo o príncipe herdeiro como presidente de honra da sociedade (e um fidalgo da Casa Real na direção), terá existido um pensamento mais estruturado dessas elites relativamente à emergência do turismo como fator de desenvolvimento?
Respostas para as quais seria necessário aceder-se a outros acervos e testemunhos, por exemplo de diplomatas então em exercício, era acima de tudo aos epígonos do regime que interessava a reputação externa do país e da Coroa, o «evitar falsas noções sobre a Pátria», também o combate à decadência, preconizado pela Geração de 70 e pelos Vencidos da Vida.
Mas também neste registo, para lá de uma brevíssima abordagem às questões associadas ao reaportuguesamento, que Silva Gaio, e mais tarde Lopes Vieira e Sardinha viriam a teorizar com denodo, só uma breve passagem do livro nos remete também para o Ultimatum e para o período de rutura correspondente (p. 73-74). Quando perante a humilhação sofrida, «ao retrato de um povo deprimido correspondia o de uma nação decadente» (síntese de João Leal, cuja inclusão na bibliografia é de saudar), também no que diz respeito ao pensamento indutor, nas suas correlativas associações por via da literatura, necessariamente do Garrett das Viagens, do Eça d’ A Cidade e as Serras, do Ramalho da continuação das Farpas, fica-se aquém da necessária contextualização dos eixos e influências que, em contraponto, no plano cultural, se fizeram sentir no ethos da SPP e no despertar relativo a conceções emergentes nesse período, em torno do pitoresco regional, por exemplo, e na sua relação com as artes plásticas e decorativas.
Ocorre indagar se seria também inteiramente legítima a interpretação local relativamente às condições, também deficientes, doutros destinos turísticos há muito pertencentes ao Grand Tour. Ter-se-á, também neste caso, tratado de um primeiro reflexo de aculturação centrado num sentimento de inferioridade, por contágio de visões estrangeiradas e seu contraste com as condições debilitantes no país da piolheira (na nunca esclarecida, se verídica, frase de D. Carlos), em que se pretendia, sem condições objetivas, replicar modelos de países considerados mais avançados, mas nem por isso superiores em termos civilizacionais (para além da pobreza endémica)?
Remetem-nos tais questões, igualmente, para o facto de se observar neste estudo uma análise demasiado estanque, fragilidade cujas balizas temporais se terão justificado numa dissertação de segundo ciclo, mas que, em edição revista, mereceriam um cotejo mais abrangente, entre o esteio lançado pela SPP e seus reflexos a posteriori, vide a sua influência na ação dos promotores que se lhe seguiram, justificando a inclusão de mais um capítulo.
Tendo esta obra vindo colmatar uma lacuna essencial: a investigação relativa à génese do turismo português encontrava-se de forma fragmentada e dispersa por abordagens superficiais, constantes da bibliografia, somente na página 33 se observa uma breve resenha de desenvolvimentos posteriores, o que acaba por inibir a visão de um todo, contínuo, ou seja, do que há de comum e de diferente para melhor se analisar o fenómeno, até do ponto de vista das oportunidades perdidas ao longo deste processo.
Apesar da criação da Repartição de Turismo, em 1911 (término da análise empreendida por Pedro Cerdeira), aquilo que parecia ser uma nova era de sensibilização dos poderes públicos para esta realidade, na prática, só a partir de teses defendidas durante o primeiro congresso nacional dedicado ao tema, em 1936 (organizado sob a égide da SPP, por Luís Lupi), acabaram por ser estabelecidas certas prioridades que, mais tarde, António Ferro veio a sistematizar através do SPN e que alguns viram como uma apropriação. Outro visionário, cujo pensamento sobre os contornos e problemas ligados ao turismo cremos só ter tido paralelo em Leonildo Costa - ambos jornalistas e experimentados viajantes afinal - são notórias as coincidências de pontos de vista que este livro tem o mérito de suscitar, vejam-se, por exemplo, os potenciais turísticos do Algarve e da Nazaré, assumidos como prioritários na agenda de cada um. Eventual desafio para futuras incursões neste domínio, esta conceção recorrente do turismo como “indústria nacionalista por excelência” (frase proferida por Ferro), conduz-nos ainda a formular uma última hipótese, desviando-nos intencionalmente do objeto que aqui nos trouxe: de que a I República, com as suas prioridades e clima de agitação, interrompeu um projeto que estaria em vias de evoluir, no sentido daquilo que a SPP preconizava, mas que só através do Estado Novo pôde definitivamente ser alicerçado.
Apodada em 1908, pelos seus detratores, como «sociedade de camas para pernoitar» permitindo-se criticar as atuações que considerava lesivas por parte dos governos, mas efetuando propostas concretas, a leitura deste trabalho leva-nos, em suma, a uma conclusão imperativa: apesar do transitório abrandamento da atividade da SPP e da substituição de alguns dos seus protagonistas com a queda da Monarquia, todo um edifício conceptual relativo ao turismo já havia sido esboçado nas suas linhas mestras por esta organização, ou seja, como acentua o autor, «mesmo que falhassem as realizações o plano estava delineado»: o grande alcance, enfim, da visão de fundo destes precursores.
Anote-se, a terminar, alguma surpresa pelo facto de, paralelamente aos periódicos citados, a Ilustração Portuguesa não ter sido incluída nesta pesquisa, consulta, que cremos teria permitido apreender estas realidades de forma ainda mais alargada. Acrescente-se a ausência de um índice remissivo, que se teria revelado muito útil dada a diversidade de assuntos e intervenientes neste estudo de grande mérito.