Introdução
[…] tratar de edifícios antigos é pois, em primeiro lugar, ter disponibilidade para entender uma realidade histórica em movimento, já que os edifícios se destinam, em geral, a instalações vivas, dedicadas às pessoas, constituindo por isso um precioso manancial de informação acerca da cultura e tradição dos povos (Appleton, 2003, p. 261-262).
Os materiais de construção são elementos constituintes das edificações que assumem uma rica variedade de papéis e significados. O descortinar desta riqueza equivale a investigar o que se esconde para além das evidências do elemento construído. Isto porque, no entrecruzar com a matéria palpável, revelam-se tecnologias, relações, estruturas, composições, saberes e conhecimentos que contribuem para a proteção humana e particularizam a arquitetura ao longo do tempo. A matéria aprimorada pela ação humana participa, assim, da singular exposição de modos e formas de construir e ocupar o espaço edificado, de expressões decorativas, modas e estilos, alguns de âmbito mais local (como a cal), mas muitos resultantes de viagens e migrações (como o gesso e o início da utilização do cimento), de necessidades, adaptações e disponibilidades que, entretanto, indiciam factos sociais, culturais e económicos, para além de recursos naturais, conforme existentes nas geografias locais e regionais.
A investigação realizada no Laboratório Nacional de Engenharia Civil sobre materiais de construção, respetivas técnicas de execução e aplicação e funções a cumprir, tem contribuído para a elaboração de critérios definidores da qualidade e aptidão para determinados usos destes elementos construtivos. Por um lado, visa-se salvaguardar a segurança, o conforto, a durabilidade e a sustentabilidade de edifícios e estruturas, como de barragens e pontes. Por outro lado, tem-se como objetivo precaver o desempenho dos materiais de construção em termos funcionais. Por exemplo, relativamente aos revestimentos, o desempenho funcional refere-se à proteção em relação à água, ao contributo para o isolamento térmico e acústico, aos efeitos de acabamento que, no caso de serem em paredes exteriores, têm também repercussão na envolvente urbana, remetendo para um âmbito estético. Contudo, nem sempre as intervenções realizadas - enquanto construção nova ou em edifícios pré-existentes - salvaguardam os critérios definidores de qualidade e aptidão ao uso. Isto reforça e torna imprescindível a realização de estudos técnico-científicos sobre estes materiais.
Mas, considerando que a conceção dos sistemas construídos se reporta à génese físico-química dos processos que definem a sua materialidade, é de notar que esta mesma tangibilidade transcende a iminente natureza dos processos ao transformar-se em cultura1. Isto é, relacionado com os sistemas de trabalho, escolha, decisão, aplicação, reparação e otimização dos materiais de construção, existe também uma componente sociocultural da sua manifestação e conhecimento.
Em particular, estas questões chamam a nossa atenção enquanto campo do património arquitetónico, designadamente no que se refere às questões de conservação, restauro e reabilitação, já que, para responder às necessidades (de espectro alargado) e às funcionalidades (mais ou menos sofisticadas), os modos e formas de uso dos materiais de construção repercutem-se em processos que importa conhecer, recuperar e registar.
Para tal, é necessário compreender os materiais de construção de interesse histórico a partir das suas características originais e evoluções posteriores, considerando, paralelamente, os seus significados2,3. Estes critérios de orientação são importantes para consolidar um processo de intervenção assente numa reflexão crítica (Henning, 2006; Jaenen, 2008), sobretudo mediante uma problemática de conservação, restauro e reabilitação do património que se complexificou e ampliou em consequência das dinâmicas socio-económicas e ambientais4.
Uma ampla gama de materiais, tais como a terra, a pedra, a cal, o gesso, os pigmentos, a madeira, o cimento, os materiais de origem vegetal e o metal, entre outros, compõem o património arquitetónico. Neste artigo privilegia-se a cal, o gesso e o cimento.
Face a uma experiência de investigação na área dos materiais construtivos de interesse histórico, visa-se identificar determinados aspetos que têm desafiado o incremento do diálogo entre as ciências da construção e as ciências sociais.
Cal, gesso e cimento como materiais constituintes dos edifícios
A cal e o gesso foram usados na construção de edifícios desde tempos imemoriais. Estes materiais simples, provenientes de rochas comuns, deram origem a argamassas e pastas com aplicação e propriedades diversificadas ao longo da história, em várias regiões e para diversos tipos de edifícios. Foram objeto de avanços tecnológicos consideráveis e de influências artísticas distintas, tornando-se, assim, repositórios de técnica e de cultura, objetos de estudo e testemunhos, requerendo preservação. A conservação de elementos de construção com estes materiais, exigindo conhecimentos e competências específicas, tornou-se uma área de investigação pujante e uma área profissional crescente.
Com a revolução industrial, o Homem adaptou e criou novos materiais, sempre almejando a maior resistência e durabilidade. Por finais do século XVIII surgia em Inglaterra a cal hidráulica, ligante que permitia obter argamassas com características semelhantes às dos tempos dos Gregos e Romanos, povos que conheciam as propriedades das terras vulcânicas para conferir hidraulicidade às argamassas. A cal hidráulica possuía a capacidade de endurecer em contacto com a água, mas as suas características estavam muito dependentes do tipo de matéria-prima usada (calcários contendo uma parte de argila). A procura por materiais ainda mais resistentes e de endurecimento (presa) mais rápido culminaram com a descoberta do cimento romano. Este novo ligante foi patenteado em 1796 por James Parker em Inglaterra (Weber et al., 2007), mas estava muito dependente das matérias-primas locais (Vale et al., 2019).
Estas limitações só foram ultrapassadas com a demonstração, em 1818, pelo químico francês Louis Vicat (Oliveira, Coimbra e Santos, 1995), de que a utilização de misturas artificiais de calcário e argila permitia obter um material com características constantes. A descoberta de Vicat foi a precursora para o surgimento dos ligantes artificiais, como a cal hidráulica artificial e o cimento Portland, que vieram revolucionar a construção no século XX.
Cal
A cal, que resulta da calcinação de rochas calcárias a temperaturas de cerca de 900°C, é usada como ligante há mais de 10 000 anos (Bentur, 2002; Veiga, 2017). Misturada com areia e água, forma as argamassas de cal que fazem parte da estrutura de grande parte dos edifícios mais nobres até às primeiras décadas do século XX, aglutinando pedras, blocos cerâmicos e elementos de madeira (Figura 1). Estas argamassas foram desenvolvidas e aplicadas para serem materiais resistentes, flexíveis e duráveis, compatíveis com os elementos que aglomeram, formando a estrutura dos edifícios que ainda hoje constituem os centros históricos das cidades e os seus monumentos (Figura 2). Evoluíram ao longo dos séculos, mas os padrões que se encontram estão mais relacionados com o local - por exemplo incorporando pozolanas naturais nas zonas vulcânicas - e com o tipo de edifício - mais ricas em cal e com agregados selecionados com maior critério nas construções mais nobres (Velosa e Veiga, 2016).
Argamassas de cal, com textura mais fina e areias mais selecionadas, aplicadas pacientemente em camadas sobrepostas de espessuras variáveis (mais finas do interior para o exterior - Figura 3), foram desde sempre aplicadas como revestimentos de paredes e tetos, principalmente nas zonas ricas em rochas calcárias e nos edifícios de maior importância. Nas casas mais pobres, ou em zonas mais afastadas dos depósitos calcários, usavam-se outros materiais e juntava-se alguma cal para conferir coesão e nobreza.
Os revestimentos de argamassas de cal moldam-se facilmente à forma do suporte e são relativamente deformáveis, acompanhando os movimentos das paredes sem fissuração descontrolada. Estas qualidades das argamassas de cal conferem-lhes também grandes capacidades decorativas. Os artesãos que as trabalhavam bem usavam-nas em efeitos decorativos, com texturas (esgrafitos) e fingidos de outros materiais, mais concordantes com a moda de cada época ou considerados mais nobres.
Conforme o gosto, o tipo de edifício e a tecnologia disponível, faziam-se fingidos de pedra ou de azulejo, esgrafitos ou stuccos em platibandas (Palma et al., 2020; Santos, Silva e Veiga, 2019; Veiga et al., 2019) (Figura 4). A evolução destas argamassas de revestimento ao longo do tempo em Portugal evidencia principalmente uma seleção cada vez mais cuidada dos constituintes e um melhor controlo das proporções entre eles nos períodos mais recentes. O traço volumétrico cal : areia de 1 : 3 é muito mais generalizado nos revestimentos da primeira metade do século XX, tornando evidente que existia uma medição das quantidades em obra.
Em meados do século XX, quando as argamassas estruturais em Portugal eram já de base cimentícia, os revestimentos de paredes continuavam a ser de cal. Nesse período, surgiu e difundiu-se pela região centro e sul do País, o gosto por uma técnica particular de fingido de pedra, muito sóbria e ao gosto modernista, designada por marmorite, feita com cal e agregados, em geral de natureza carbonatada como, por exemplo, o mármore (Martinho, Veiga e Faria, 2018; Veiga e Silva, 2019). Consistia numa pasta rica de cal, que podia ter adição de pigmentos minerais, onde se incorporavam agregados naturais de calcário, mármore ou de outros tipos de rochas e também resíduos de vidro. A pasta podia ser de cor branco-cinza ou outra, pela incorporação de pigmentos. Os agregados eram deixados à vista através de lavagem criteriosa, numa fase de pré-endurecimento, da película externa do ligante (Figuras 5 e 6). Este tipo de revestimento de fachadas surgiu em Portugal numa época em que eram usadas, nos países do centro da Europa (França, Bélgica, Alemanha) (Govaerts et al., 2015; Dekeyser, Verdonck e De Clercq, 2017), fachadas de revestimentos cimentícios à vista, com diferentes aspetos. Apesar da sua grande durabilidade, atestada pelo facto de se terem mantido em boas condições de conservação, nomeadamente com boa coesão e aderência, ao longo de várias décadas, estes revestimentos têm vindo, nos últimos anos, a ser desvirtuados por ações de reabilitação desinformadas (Figura 7).
Finalmente, a cal apagada, sob a forma de leite de cal, branca ou com adição de pigmentos, em geral minerais (óxidos de ferro e de outros metais), foi também, até ao início do século XX, a pintura mais usada em edifícios, nomeadamente nas vilas e aldeias do Alentejo e Algarve (Figura 8). O elevado pH na fase inicial de cura originava o afastamento de insetos e outro pequenos animais e conferia-lhe capacidades desinfetantes muito apreciadas (Menezes, Veiga e Santos, 2012).
A textura única deste tipo de pintura, a sua reflexão da luz, tão importante nos climas do Sul da Europa, e a sua diversidade plástica, muito contribuem para a identidade das cidades/espaços urbanos/espaços habitados. As cores e efeitos decorativos das pinturas de cal podiam tomar diversas formas: coloração total (por exemplo em tons ocre), ou com simples barras coloridas, ou ainda, nos casos mais elaborados, com fingidos ou pinturas murais (Figura 9).
As pinturas de cal eram, por vezes, aplicadas sobre as argamassas de revestimento em camadas sucessivas ao longo dos anos, sempre que a necessidade de manutenção, o gosto do seu proprietário ou a moda da época, o determinavam. Assim, é ainda possível, em estudos estratigráficos, identificar por vezes dezenas de camadas de pintura com diferentes pigmentos, variando com a cor pretendida e com o avanço das tecnologias. Na Figura 10 exemplifica-se com uma argamassa de cal de um edifício do Centro Histórico do Porto, em que se identificaram 15 camadas de pintura, com vários tons de castanho, amarelo, beje, branco e cinza. As camadas mais antigas têm pigmentos ocres (com base em terras contendo óxidos de ferro). As seguintes contêm zinco, bário e caulinite, enquanto as últimas camadas têm tintas mais modernas, já com óxido de titânio e pigmentos orgânicos.
Gesso
O material gesso é proveniente da calcinação, a temperaturas de cerca de 140° C, da rocha com o mesmo nome constituída por sulfato de cálcio dihidratado (Gárate-Rojas, 1999). Ao contrário do calcário, esta rocha não existe em Portugal com qualidade e em quantidades significativas. Provavelmente por essa razão, não foi usada, exceto esporadicamente e em obras de grande importância, até ao século XVIII (Freire et al., 2015).
No entanto, o gesso é abundante em Espanha, em França, em Itália e no Norte de África. É um material fácil de obter com gastos de energia moderados. A pasta de gesso aplicada lisa ou trabalhada de diversos modos, como revestimento interior de paredes e tetos, permite obter belos efeitos decorativos, ao gosto dos períodos barroco e neoclássico e dos estilos decorativos Art Nouveau e Art Déco, muito difundidos na Europa, ao longo do século XVIII até ao início do XX. Os artesãos e os artistas italianos, franceses ou espanhóis, contratados para a arquitetura e decoração de monumentos e edifícios importantes, trouxeram a técnica de trabalhar o gesso, em estuques lisos ou decorativos (Freire et al., 2020). Graças às suas vantagens técnicas, ao seu potencial estético e ao seu baixo custo, estes estuques acabaram por ser adotados de forma generalizada como revestimentos interiores de edifícios de todos os géneros, variando apenas a maior simplicidade ou a maior exuberância artística, conforme o tipo de edifício (Figura 11). Manteve-se ao longo do século XX e mesmo na atualidade, como um acabamento interior por excelência, liso ou com decoração muito sóbria, mas sempre associado a segurança, ao conforto e bom gosto. Com efeito, é um revestimento resistente ao fogo, com boas características térmicas e de regulação da humidade do ar e de acabamento muito fino.
Esta associação entre o gesso e o estuque usado em revestimentos interiores tornou-se tão completa, que os termos estuque e gesso quase se confundem em português, e se tornou entendimento bastante generalizado de que o termo estuque se aplica apenas a revestimentos de gesso.
Gesso e cal no revestimento interior de paredes e tetos
Os materiais de revestimento interior das paredes e tetos dos edifícios constituem grandes superfícies expostas, por isso com grande influência no conforto - visual, térmico, acústico, hígrico - e na salubridade dos espaços (Ranesi, Veiga e Faria, 2020). Esse impacto, mas também a sua grande visibilidade, tornaram-nos, desde sempre, elementos representativos da evolução técnica, do gosto e da cultura dos habitantes.
Os estuques lisos, mais simples, que ainda hoje constituem os revestimentos das salas e quartos (zonas secas) de muitas habitações, são compostos, na verdade, por pastas mistas de gesso e cal, já que estes dois materiais se complementam, compensando as características entre si. Por exemplo, a cal sofre retração durante o tempo de cura, enquanto o gesso tem expansão, originando assim pastas mistas de grande estabilidade; o gesso, por si só, endurece muito rapidamente com a secagem, o que reduz o tempo de trabalhabilidade; pelo contrário, a cal tem um endurecimento muito lento. Também a porosidade das pastas mistas é mais favorável ao controlo de humidade dos espaços interiores do que cada um dos materiais em separado (Ranesi, Veiga e Faria, 2020).
Do cimento romano ao cimento Portland
Entre 1796 e 1824 foram patenteados os modernos cimentos que mudaram o paradigma da construção nos últimos dois séculos. Os cimentos, a par da cal e do gesso, provêm de materiais naturais como o calcário e a argila. Enquanto o cimento romano era um material produzido a partir da calcinação a temperaturas abaixo da sinterização de margas argilosas (Gurtner et al., 2012) o cimento Portland é um material produzido a partir de misturas de calcário e argila, em proporções definidas e a uma temperatura de calcinação que atinge os 1450° C, para sinterizar os materiais em clínquer. Todavia, pouco se sabe sobre a utilização e o fabrico do cimento romano em Portugal5.
Este cimento caracterizava-se por ter um tempo de presa curto, o que o tornou muito apreciado no final do século XIX na Europa para ser utilizado nos revestimentos e ornamentos de fachadas de edifícios, esculturas arquitectónicas e na reparação de monumentos pétreos6 (Figura 12).
Sobre o fabrico do cimento Portland os registos históricos indicam que a primeira fábrica portuguesa começou a laborar em Alhandra, em 1894 (Oliveira, Coimbra e Santos, 1995). Este facto terá contribuído para a disseminação deste ligante em território nacional. O cimento Portland veio permitir ritmos construtivos mais consentâneos com o desenvolvimento industrial e económico do país, o que fez com que os ligantes tradicionais, como a cal, caíssem praticamente em desuso.
Em termos de características, o cimento veio permitir a obtenção de argamassas mais resistentes mecanicamente, de endurecimento mais rápido e de melhor resistência à ação da água líquida. No entanto, o seu uso indiscriminado, nomeadamente sobre alvenarias antigas, veio demonstrar ser um material incompatível com esses suportes, o que coloca desafios constantes na preservação do património histórico.
Âmbito e interesse de estudo dos materiais históricos a partir de uma abordagem multidimensional
Como assinala João Appleton (2003, p. 158), os edifícios antigos comportam neles próprios “uma parte da história da construção, quando não da própria História”, pelo que “os materiais e as tecnologias originais estão, portanto, e desde logo, a fazer parte do próprio projecto de reabilitação”. A temática da História da Construção tem, assim, assumido um interesse crescente (Melo e Ribeiro, 2011 e 2012; Mascarenhas-Mateus, 2011).
No entanto, na sequência do que nos diz Pierre Nora é interessante observar que:
A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado. [...] A história, ao contrário, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação para o universal. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória é um absoluto e a história só conhece o relativo (Nora, 1993, p. 9).
A par do fundamental e incontornável papel da história no estudo das construções, a partir da extração de informação e da construção de fontes de conhecimento, o estudo dos materiais que constituem os edifícios remete, também, para o interesse em proceder-se a uma reconstituição da memória tangível que se acoberta na matéria, caminhando igualmente para a recuperação da memória intangível ligada ao saber técnico-tradicional.
O olhar das ciências da construção no estudo dos materiais
Os métodos e as técnicas de diagnóstico in situ e laboratoriais prevalecem no processo de produção do conhecimento científico no campo das ciências da construção. O objetivo é definir as metodologias que enquadrem os processos de restituição da capacidade funcional e a integridade estética do património edificado. Assim, antes de se definir um protocolo de intervenção, deve-se procurar conhecer as condições originárias desses elementos construtivos. Visa-se fornecer respostas que permitam conhecer quais os materiais que constituem um dado objeto construído. Também importa obter conhecimento sobre a proveniência destes materiais, a sua delimitação temporal e a autoria, técnicas e tecnologias, a par do interesse em caracterizar o seu estado de conservação, os motivos da sua degradação e a respetiva interligação com o ambiente envolvente.
Os resultados obtidos ampliam e aprofundam a compreensão dos materiais de construção de interesse histórico, e o respetivo património arquitetónico, o que influi para atuar na sua conservação, restauro e/ou reabilitação. Mas também contribuem para influenciar a melhoria do desempenho dos novos materiais, procurando que estes sejam reversíveis, compatíveis e pouco invasivos, com boa durabilidade e equilíbrio de integração com o contexto envolvente (Menezes e Silva, 2020). Refira-se que a conservação dos materiais existentes, mesmo com recurso a consolidantes baseados em materiais tradicionais, eventualmente otimizados, contribui para a sustentabilidade construtiva ao evitar a sua destruição e consequente produção de resíduos, assim como os consumos necessários a uma reconstrução.
No entanto, qual é a recetividade social para o uso destes materiais, nomeadamente na intervenção em edifícios pré-existentes? Que oportunidades e que obstáculos se colocam ao emprego dos mesmos?
O diálogo entre diferentes campos de conhecimento científico no estudo dos materiais
Numa perspetiva de abordagem dos materiais de construção de interesse histórico que não esteja somente focada no objeto e na sua materialidade, vindo também a integrar as funções, os usos e os significados socioculturais que a matéria representa e nela são representados, outras questões se colocam e fazem eco ao âmbito socio-antropológico do estudo dos materiais construtivos7.
Pedro Prista (2014, p. 11 e p. 9), por exemplo, a partir da terra, da palha e da cal, reflete sobre as ressonâncias sociais destes materiais tradicionais e as construções que os integram “enquanto objetos de cultura em transformação, que falam sobre a sociedade onde existem e sobre a sua sustentabilidade”. Mais do que discutir sobre estes materiais em si próprios, os mesmos são tomados como pretexto para refletir, no caso da terra, sobre “as dimensões sociais da obra em taipa e das suas mudanças”, enquanto a matéria palha inspira uma reflexão sobre os “fenómenos sociais revelados pelas coberturas vegetais e pelo seu desaparecimento”, e a cal permite ao autor a “obliteração dos valores sociais da caiação pelo próprio processo da sua aparente consagração”. Ao descentrar o seu olhar da matéria cal e mesmo do resultado obtido com a pintura das paredes, Prista atenta, nomeadamente, no processo de caiação e alerta que, para além dos proveitos funcionais obtidos, o mesmo representa uma intricada relação entre o exterior e o interior das casas, nomeadamente no sul do país8.
Mas o testemunho dos materiais de interesse histórico está ameaçado pela voracidade da nova construção, pelo abandono e degradação das construções antigas, pelas adaptações descuidadas e pela reparação através da extração dos elementos antigos e respetiva substituição por elementos, tecnologias e métodos construtivos modernos. Um outro exemplo, também acometido pela dificuldade de registo dos elementos e técnicas preexistentes, é, ainda, o desconhecimento de grande parte da composição e técnicas envolvidas e a perda de conhecimento tecnológico tradicional (sobretudo na posse de artesãos já idosos). Neste infausto quadro, José Aguiar, por exemplo, ao falar da atualidade do uso de materiais tradicionais, saberes técnicos e artesãos da construção numa região do Algarve, observa que: “Impreparado para lidar com as inúmeras possibilidades de escolha do novo universo tecnológico (quando em vez de ocre ou do almagre tem de selecionar milhões de colorações possíveis), desterrando-se da sua própria cultura, acontece ao artesão transvestido em designer produzir maus desenhos de atrozes resultados estéticos […]” (Aguiar, 2008, p. 8).
Para o autor, a situação acima manifesta-se ainda a partir de um “paradoxo curioso”:
[…] os criadores certificados como tal (i.e. os projectistas, sejam eles licenciados em arquitectura, ou não), os que hoje formamos para poderem fazer escolhas conscientes perante a atomização das soluções possíveis, desconhecem e abandonaram, também eles, os antigos saberes, as lógicas das culturas locais e pré-modernas. Assim, quando restauram ou reabilitam, por desconhecimento, também estes produzem projetos e recorrem a materiais e tecnologias contemporâneas que são desadequadas à conservação da materialidade original de objectos que hoje já classificamos como património (Aguiar, 2008).
Neste sentido, é premente conhecer melhor os materiais e tecnologias adequados à conservação, restauro e reabilitação da concretude primordial do construído9, considerando questões de autenticidade, compatibilidade, eficiência e durabilidade. Mas, à compreensão da tangibilidade do obrado alia-se um domínio imaterial, do qual se destacam os saberes, técnicas e características de uso, execução e aplicação, considerando a sua valorização e salvaguarda10 (Costa, 2011). À recuperação deste conhecimento técnico alia-se um processo de restituição da experiência vivida e guardada como memória.
O testemunho oral dos artífices da construção é fundamental para aprofundar o conhecimento dos materiais e tecnologias. Com o objetivo de coletar tais testemunhos, os estudos realizados têm recorrido a uma metodologia de âmbito qualitativo, assente em métodos e técnicas que fazem recurso à entrevista semiestruturada e à observação, entretanto alicerçadas pelo registo de informação audiovisual.
À guisa de exemplo, sublinha-se que, nos estudos realizados sobre a produção, preparação e aplicação da cal tradicional, é relevante o papel de um conhecimento tácito, adquirido a partir de uma experiência que relaciona uma geografia de proximidade de recursos, o ambiente e a cultura material local. Como tal, trata-se de um saber incorporado ao longo do tempo, não existindo receitas. O conhecimento advém de um conjunto variado de perceções sensitivas afinadas com o decorrer do tempo e ligadas ao que se vê, ao que se ouve, ao tato e ao toque, ao odor e ao sabor (Menezes e Veiga, 2016).
A transmissão de conhecimento acerca da arte da cal é feita oralmente, através das gerações. Como exemplo, refira-se a consistência da cal que pode ser averiguada simplesmente com o recurso ao “dedo”: se este ficar totalmente coberto, a consistência não é ideal, por ser muito grossa, mas se o dedo ficar visível, a argamassa de cal está “temperada” e não “estala”, ou seja, está no ponto de aplicação. No entanto, na aplicação da cal há quem prefira uma consistência mais grossa por ter melhor aderência à parede, ou uma argamassa mais fina por minimizar os efeitos de fendilhação (Menezes, Veiga e Santos, 2012).
A ciência explica que “a durabilidade e bom comportamento das argamassas de cal depende em grande parte da sua microestrutura e das condições ambientais e climáticas no período inicial de aplicação”. Mas, quando se visa compreender melhor a utilização de materiais e técnicas tradicionais, depreende-se a importância do fator tempo devotado a “cada uma das tarefas e aos intervalos de espera para maturação da cal, para aperto da massa e para intervalo entre aplicação de camadas” (Veiga, 2020, p. 164). Em paralelo ao tempo do trabalho despendido nas várias atividades e respetivos momentos de espera, a estrutura da argamassa é consolidada pela sua lenta carbonatação e, posteriormente, ainda através de reações de autorreparação (dissolução e recristalização), também elas decorrendo ao longo do tempo. Não menos importante é o fator “humano” associado à obtenção da matéria, ao modo como se realiza a sua calcinação, moagem e armazenamento, à preparação da argamassa e sua aplicação, a par da atenção com a cura e proteção preambular. Isto é, “O saber de quem executava cada uma destas tarefas, o cuidado posto nelas e a importância que dava a esses trabalhos, tinham uma influência direta na distribuição dos poros e na ligação entre partículas e, portanto, também nas características da argamassa”. (Veiga, 2020, p. 164)
O duro esforço despendido no trabalho de produção e na aplicação dos materiais tradicionais pode, contudo, ser relativizado com determinadas conquistas trazidas com a industrialização dos processos tecnológicos. Todavia, o que se constata é o quão fundamental continua a ser o fator “humano” na garantia da qualidade destes materiais e respetiva aplicação.
Já relativamente ao conhecimento tradicional do trabalho em gesso, o estucador é quem domina a arte, sendo-lhe exigido um “elevado saber técnico e veia artística, associando conhecimentos de desenho geométrico e perspectiva, com a execução de elementos decorativos, bem como um forte domínio dos materiais envolvidos” (Santos, 2017, p. 8). Ainda que este ofício fosse exigente em termos de esforço físico (sobretudo na execução de tetos), costumava ser melhor remunerado do que em outros domínios profissionais da construção civil.
O estuque tradicional podia ser liso, em relevo ou ornato. Os estuques decorativos, trabalhados em relevo ou com técnicas elaboradas e complexas de fingidos e pinturas, são hoje utilizados apenas em trabalhos de conservação e restauro. Para manter o valor dos estuques originais, é fundamental aprofundar o conhecimento destas técnicas, que se encontram em desaparecimento, substituídas, na construção atual, por técnicas mais fáceis e rápidas, com recurso a produtos pré-doseados de gesso (ou mesmo sintéticos), por vezes aplicados por projeção e decorados com pinturas sintéticas.
Os artesãos que dominam a arte do estuque iniciaram-se no ofício ainda jovens, tal como se verifica com outros ofícios tradicionais da construção. Contudo, também como noutros ofícios ligados às tecnologias construtivas tradicionais, os mesmos são raros e muitos já têm uma idade avançada. O saber técnico-tradicional ligado à produção do gesso e à arte do estuque, tal como com outros materiais tradicionais, era transmitido oralmente de geração para geração, muitas vezes entre famílias, sendo influenciado pelas culturas construtivas, condições sociais e ambientais da época da sua manifestação e reprodução. Também aqui não havia receitas e mesmo aquando da realização do trabalho de estuque, normalmente no fim das obras, os estucadores não deixavam ninguém entrar no lugar onde estavam a decorrer os trabalhos até ao fim da tarefa, salvaguardando assim o segredo da sua arte (Santos, 2017). Uma das principais alterações no saber-técnico tradicional do estuque e impacto na construção relaciona-se também com o uso mais intensivo do cimento, desde meados do século XX, e que se estendeu, aos poucos, também aos revestimentos interiores.
Notas finais
O interesse aqui protagonizado pelo material palpável que permeia o património arquitetónico fundamenta-se na ideia de que, como refere Hugues de Varine, o “imaterial tem de ter um objecto, e um objecto não existe se não houver uma explicação, se não houver uma memória. Então, não é possível compreender o imaterial sem o material” (cit. por Carvalho, 2015, p. 153).
Deste modo, de volta ao objeto e à materialidade que o define, os interesses de conservação e reabilitação do património confrontam-se também com dimensões socio-antropológicas ligadas ao recuperar conhecimentos sobre as medições, materiais, ferramentas, desenhos, saberes, modos de fazer, aplicar e reparar. Isto porque, para conservar, restaurar ou reabilitar é preciso conhecer, levantar e registar informação relacionada com os materiais em si, mas também com as suas antigas técnicas e uso. Na recuperação deste conhecimento é atribuído significado, valor e poder de ação à experiência que, através do corpo e do gesto, é guardada na memória.
Propôs-se, assim, contribuir para uma visão o mais abrangente possível do objeto em estudo e análise. Através do diálogo entre estes campos de conhecimento, científico e técnico-tradicional, esta perspetiva pode ampliar as possibilidades de questionamento, abordagem e discussão, envolvendo as pessoas e influindo na melhoria da qualidade construtiva e da vida de quem habita e de quem trabalha, respondendo, paralelamente, aos desafios de conservação, restauro e reabilitação do património através dos seus materiais de construção de interesse histórico.