Introdução
A necessidade de expressão artística do homem esteve presente desde a Antiguidade e pode ser constatada na ornamentação dos artefatos, vestuários, edificações e espaços públicos, assim como nas práticas sociais, principalmente nas que refletem a dinâmica simbólica de sua visão de ser e estar no mundo como rituais, cerimônias e até mesmo seu próprio corpo. De igual modo à tradição da ornamentação parietal, os pisos também são elementos da cultura material que transcendem sua funcionalidade como um revestimento de superfície, apresentando-se outrossim como obras decorativas agregadas às edificações e espaços públicos, como por exemplo, os tijolos mesopotâmicos, os mosaicos gregos, romanos e bizantinos, os azulejos árabes e portugueses e os ladrilhos. Tais revestimentos estão presentes em grande parte das edificações consideradas como patrimônios culturais, que integram o conjunto de manifestações e objetos produzidos pela humanidade, impregnados de valores e que constituem a memória e os processos de identidade dos indivíduos.
Ao longo da história os ladrilhos foram-se transformando em um suporte de cargas culturais importantes (quesitos estéticos, memoriais e afinidades com os lugares) que, associados aos patrimônios edificados, atrelam-se aos valores reconhecidos nestes bens e mostram-se importantes para a sua conservação. Os estudos já publicados sobre esses elementos, geralmente, abordam a articulação entre a cultura material e a tecnologia envolvida em sua fabricação, assim como os paradigmas estéticos e arquitetônicos que utilizam os ladrilhos como um programa visual.
Tratando-se do contexto no qual se localiza a pesquisa, no campo do patrimônio em Manaus, destaca-se a produção literária de Otoni Mesquita que debruça seus estudos sobre os aspectos materiais, simbólicos e artísticos da cidade desde a sua fundação, no século XVII, até meados do século XX. Seu trabalho resgata a história da cidade através do seu processo de construção, revelando uma análise crítica das construções do período estudado, dando ênfase ao estilo artístico predominante na arquitetura manauara, o Ecletismo. Ainda dentro da perspectiva do estudo da arquitetura produzida em Manaus, destaca-se a dissertação de mestrado de Pollyana D’Avila Gonçalves Dias que desenvolve uma análise estética e histórica do Neogótico em Manaus, através de abordagens tipológicas e simbólicas dos elementos desse estilo aplicados em construções ecléticas do centro histórico de Manaus, como é o caso da Capela da Santa Casa de Misericórdia.
No tocante à temática dos materiais construtivos históricos, verifica-se que os estudos publicados até ao momento em Manaus voltam-se majoritariamente para a área da arqueologia da arquitetura, sendo realizados a partir de ações de monitoramento arqueológico de obras de restauro ou de revitalizações de trechos do centro histórico da cidade. Isto posto, é possível atestar a ausência de pesquisas no âmbito da constituição material dos edifícios históricos em Manaus e, por consequência, de reflexões sobre o uso do ladrilho hidráulico.
Nesta perspectiva, o presente estudo analisa os ladrilhos hidráulicos existentes nas áreas de piso do Hospital da Santa Casa de Misericórdia de Manaus e de sua capela, expondo a relação desses materiais com os ambientes, inclusive como um elemento regulador da hierarquia social do espaço. Pretende-se também analisar a importância da sua manutenção como um bem integrado à arquitetura da Santa Casa de Misericórdia, reconhecida como patrimônio cultural de relevância local e nacional.
Devido à escassez de estudos sobre a história do hospital e à perda da memória documental da instituição, a pesquisa baseou-se nos materiais da imprensa e aos relatórios governamentais do período provincial do Amazonas até a primeira metade do século XX. A análise dessas fontes históricas permitiu compreender como a imprensa local projetava e impunha a cidade e as suas transformações no período estudado. Dessa forma, ressalvando-se as motivações ideológicas e as estruturas de poder que estavam por detrás da produção jornalística, tais fontes forneceram valiosos testemunhos que permitiram a abordagem particular neste estudo.
Também foi de mister importância a utilização da iconografia para a apreensão dos aspectos da cultura material da Santa Casa no passado, sobretudo na análise dos materiais fotográficos disponíveis nos escassos relatórios de atividades do hospital publicados na década de 1920 e dos registros fotográficos realizados nos anos de 1990, de 2013, de 2019 e de 2020. Ademais, a entrevista por nós efetuada à engenheira Jane Fontenele, citada ao longo deste texto, insere-se na atividade de campo realizada em setembro de 2019, em Manaus, procurando combinar estratégias de observação direta e a aplicação de entrevistas semiestruturadas com agentes públicos vinculados com a gestão do patrimônio cultural da cidade.
A importância da pesquisa e a relevância do assunto, para a área da arquitetura e do patrimônio cultural, residem na ausência de estudos sobre os revestimentos dos prédios históricos de Manaus e no já constatado desinteresse em se pesquisar a história da Santa Casa e do seu edifício antes de seu fechamento, considerando ainda os danos causados pelo abandono do local. As informações contidas nessa análise contribuem em parte para o registro da arquitetura da Santa Casa e de seus elementos integrados, no momento em que o prédio se encontra em um avançado estado de degradação e buscam encabeçar novos ensaios que proponham detalhar e mapear esses revestimentos.
A análise da diversidade dos padrões de ladrilhos hidráulicos existentes na Santa Casa de Misericórdia traz dados novos e relevantes para as futuras deliberações sobre a sua restauração, reforçando a importância da manutenção desses materiais na arquitetura do hospital. A escassez de fontes históricas, plantas arquitetônicas e de catalogação dos revestimentos de pisos do prédio, somada à falta de acesso de determinadas áreas do complexo, que, inclusive, já foram demolidas sem a realização de um inventário cadastral, trazem a expectativa de que haveria uma diversidade maior de pisos revestidos com ladrilhos e de como esses materiais se integravam na arquitetura da Santa Casa, associando-se à sua história construtiva e aos aspectos simbólicos relativos à estética, valor e usos dos ambientes.
Assim, enseja-se que os resultados esboçados nesta análise contribuam para outras iniciativas de estudos da mesma natureza, já que tanto o tema da Santa Casa de Misericórdia de Manaus quanto o dos ladrilhos hidráulicos presentes na cidade estão longe de se esgotarem.
Os ladrilhos e o ecletismo
Os ladrilhos hidráulicos são peças de concreto utilizadas para pavimentação e revestimento de áreas externas e internas, podendo receber em sua superfície cores, padrões geométricos e relevos (NBR 9457. 1986). Sua utilização dá-se tanto pelo seu potencial ornamental, quanto funcional já que as peças apresentam alto grau de resistência a desgastes e permitem a expressão de diferenciados arranjos decorativos. As placas são constituídas por três camadas que correspondem à base de assentamento e ao suporte para o padrão decorativo, separadas por uma camada intermediária. No Brasil, adotou-se a nomenclatura de “ladrilho hidráulico” para as placas de revestimentos fabricadas a partir do cimento hidráulico (Gester, 2013, p. 23).
A técnica utilizada para a fabricação dos ladrilhos hidráulicos baseia-se na manufatura do banchetto, surgida na Itália no século XII. Com base nesta técnica, estima-se que os primeiros ladrilhos hidráulicos começaram a ser fabricados entre os séculos XVII e XVIII, utilizando-se uma mistura de cal compactada em um molde de ferro, depositando-se camadas de cores que formavam o desenho desejado, como, por exemplo, imitação de mármore (Gester, 2013, p. 28).
O fato que interessa na utilização do ladrilho hidráulico, no contexto da arquitetura brasileira, relaciona-se ao Ecletismo, que se expressou na produção arquitetônica do século XIX, como uma mistura de linguagens e simbologias formais que buscavam um sentido de modernidade. Cabe destacar que, no cenário brasileiro, o processo de modernidade dos movimentos artísticos e culturais intensificou-se a partir de 1870, tendo o país assistido ao surgimento de uma nova classe - a burguesia republicana - que encontrou no estilo eclético o meio mais eficaz para expressar a sua posição social e os seus ideais (Fabris, 1995, p. 73). Ainda nesse contexto de modernização, o Brasil discutia a formulação de modelos para a organização de uma identidade nacional que passava pela dicotomia do que é nacional (autêntico para uns, mas atrasado para outros) e estrangeiro (espúrio para uns e moderno para outros) (Oliven, 2001, p. 7).
A ideologia que orientou a Belle Époque brasileira respondeu ao “critério de gosto da elite dirigente, que deseja reproduzir no Brasil tipos e modelos admirados na Europa” (Fabris, 1993, p. 136). A necessidade de se criar vitrines de progresso e a espetacularização dos espaços das cidades atribuiu aos elementos constitutivos desse cenário uma importância fundamental, principalmente nos detalhes decorativos, que condensavam as tentativas de demonstração de prestígio e status social de seus habitantes e evidenciaram uma tendência de consumo de produtos industriais importados. Em Manaus, o período da Belle Époque foi caracterizado por um projeto de reformulação da cidade aos moldes das principais metrópoles do século XIX, que foi possível através dos lucros da exportação da borracha. Com um vasto capital de financiamento e investimento estrangeiro, a capital tornou-se a “Paris dos Trópicos”, alterando não somente sua arquitetura e espaços urbanos, mas também o comportamento da sua população:
Como resultado das mudanças ocorridas no final do XIX, surgia com o novo século outra cidade, que pode ser interpretada como a imagem da vitrine instalada, resultado de uma série de transformações. Todo processo de mudanças, com suas obras públicas, a introdução de novos costumes e a adoção de modernos serviços públicos podem ser simbolicamente compreendidos como um “rito de passagem” do processo de branqueamento pelo qual a cultura local despia-se das tradições de origem indígena e vestia-se com características ocidentais (Mesquita, 2019, p. 145).
Em um primeiro momento, a arquitetura provincial de Manaus adotou um ecletismo com predomínio do traço neoclássico com a utilização de esquemas simplificados devido às restrições de materiais, à mão de obra especializada e aos episódios de deficit financeiro da província após a sua autonomia administrativa, em 1850. A partir da Proclamação da República, em 1889, ampliaram-se as possibilidades construtivas na cidade, facilitadas pela abertura da navegação dos rios da bacia amazônica e pela riqueza produzida com a exploração da borracha. Consequentemente, a formação de um conjunto arquitetônico bastante eclético, principalmente na última década do século XIX até os anos de 1940 (Mesquita, 2019, p. 201), sofreu influência direta da mão de obra de operários e de artistas estrangeiros e da importação de materiais construtivos como o ferro, o vidro, os estuques e os revestimentos.
Um dos materiais industriais que proporcionava a estética moderna e elegante das construções locais era o ladrilho, que foi utilizado em larga escala em substituição dos revestimentos de pisos tradicionais como as tábuas, parquetes, taco e tijoleiras. Em um primeiro momento, os ladrilhos foram importados da Europa, mais especificamente, de Portugal, da França, da Alemanha e da Bélgica. A partir do século XX, as técnicas de manufatura do ladrilho hidráulico foram trazidas pelos imigrantes que se instalaram massivamente nas regiões sul e sudeste do Brasil, inaugurando a produção nacional desses materiais com a abertura das primeiras fábricas.
Cabe destacar que, inicialmente, os ladrilhos hidráulicos nacionais eram aplicados em residências mais populares enquanto as edificações institucionais, palacetes e fazendas eram pavimentadas com ladrilhos importados da Europa (Bortolaia, 2004, p. 15). De forma geral, os ladrilhos hidráulicos eram assentados tanto em cômodos de convivência comum - varandas, corredores e salões - como em áreas molhadas - cozinhas e banheiros - além das áreas externas como calçadas e pátios. Nos interiores, os ladrilhos apresentavam padrões decorativos e texturas lisas, já as peças das áreas externas, geralmente, apresentavam características mais simples, monocromáticas, sem desenhos e texturas (Castro, 2018, p. 24).
As variações tipológicas dos ladrilhos hidráulicos estão relacionadas com a dimensão das peças, formato, local de instalação e design, sendo que este último pode variar entre liso e desenhado (formas geométricas ou arranjos florais). Nos desenhos geométricos, verifica-se uma baixa variação cromática, sendo normalmente aplicadas duas a três cores no máximo. Já a composição floral apresenta padrões mais complexos e com maior policromia, implicando no aumento dos custos do produto final. Logo, quanto mais colorido é o ladrilho maior é o poder aquisitivo de quem o utiliza em seus pisos.
Os modos mais comuns de arranjo dos ladrilhos são a disposição das peças de maneira contínua no piso com arremate nos rodapés e o assentamento imitando um tapete, no qual as peças localizadas no meio recebem o nome de “centro” e as peças das bordas são as “faixas”. Essas últimas servem de acabamento ao centro como uma espécie de moldura e podem ser utilizadas com padrões diferentes do centro, permitindo uma gama diversificada de composições. Em relação à forma do revestimento, encontram-se ladrilhos quadrados, retangulares (faixas e rodapés), sextavados e oitavados.
A multiplicação de catálogos e almanaques comerciais facilitou o acesso aos padrões de desenhos utilizados em todo o mundo e, assim, é possível constatar a proliferação de designs comuns que foram comercializados por diferentes fábricas, principalmente as peças que apresentavam ornamentação e coloração mais simples. Outra hipótese para a utilização em massa de um desenho é o fornecimento de moldes de um mesmo artesão para vários fabricantes.
A Santa Casa de Misericórdia de Manaus foi o primeiro socorro público da cidade, criada no século XIX para assistir a população civil, principalmente os pobres, doentes, mulheres, crianças e indigentes. O início de sua história remete à criação do Hospital da Caridade através da Lei nº 244 de 27 de maio de 1872, em um prédio que seria construído de raiz para abrigar a nova instituição da província do Amazonas. A pedra fundamental do hospital foi lançada no dia 1 de janeiro de 1873, contudo, as obras do Hospital da Caridade arrastaram-se por 5 anos e, somente em 1878, parte do prédio foi entregue.
Em 4 de abril de 1880 foi promulgada a Lei Provincial nº 451 que autorizou a criação da Irmandade da Misericórdia para a administração do Hospital da Caridade, entregando a operação do nosocômio à ordem religiosa das Filhas de Santa’Ana, que já era responsável por outras Santas Casas instaladas no Brasil. O hospital iniciou seus trabalhos assistenciais inerentes à tradição das Misericórdias - recolhimento de indigentes, auxílio aos enfermos e aos presos, enterramentos, trato dos alienados e dos tuberculosos, asilo aos órfãos - e, posteriormente, tornou-se uma instituição de utilidade pública, prestando atendimento hospitalar a toda população do Estado e integrando-se na rede pública de saúde.
Até o final do século XIX, o prédio do hospital foi recorrentemente reformado e ampliado para acomodar um número maior de doentes e desvalidos devido ao aumento populacional ocorrido no período de exploração da borracha amazônica. Ao propor um projeto para a reconstrução da Santa Casa de Misericórdia de Manaus, em 19001, a empresa Antônio Januzzi Irmãos & Companhia vislumbrou uma edificação monumental, com acomodações de luxo para uma pequena parcela da população, apesar de sua vocação como uma casa de caridade para os pobres.
Visando substituir os pisos de tábua corrida, o arquiteto italiano definiu a pavimentação do hospital com ladrilho vitrificado da marca belga Boch Frères (mesma marca de mosaicos do Teatro Amazonas) e da alemã Willeroy, sendo recomendado no projeto que os cômodos mais nobres deveriam possuir ladrilhos com desenhos mais elaborados e, para as demais acomodações, ladrilhos com desenhos mais simples com cores neutras. Para os rodapés, foram especificadas peças de ladrilho de cerâmicas lisas e de cores análogas aos desenhos do piso de cada cômodo, com exceção dos ambientes nobres que teriam rodapés ornamentados (Diário Official, 1900, p. 17734). Observa-se claramente, na proposta de Januzzi, que o esquema de utilização dos ladrilhos, mais do que uma questão higiênica, era uma forma de distinguir socialmente os ambientes do hospital.
É possível afirmar que o caráter monumental do projeto de Januzzi equalizaria o prédio da Santa Casa com os principais edifícios públicos de Manaus, portanto, estaria imbuído de uma necessidade de dotar o nosocômio com acomodações adequadas para a sua função e de atribuir ao prédio uma estética compatível com os ideais de progresso implantados na capital do Amazonas.
A partir da análise de imagens e relatórios administrativos do Estado, verifica-se que os pisos em ladrilhos hidráulicos podem ter sido aplicados na Santa Casa de Manaus entre 1915 e 1920, durante as provedorias de Ayres de Almeida e Leopoldo de Moraes e Mattos. Cabe destacar que, nesse período, a utilização do revestimento remetia a uma preocupação com a salubridade dos ambientes, já que, em 1906, um relatório da Comissão de Saneamento de Manaus recomendou a utilização do ladrilho nas construções da cidade como um preceito higiênico para bloquear a umidade e as “emanações telluricas” (Correio do Norte, 1906). No caso do hospital, a utilização de pisos de madeira se mostrava inadequada segundo os preceitos higienistas da época, uma vez que possibilitava o acúmulo de sujeiras, insetos e matérias infecciosas, não permitindo a sua higienização correta e tornando propício o aparecimento de focos de fungos e o apodrecimento das peças.
Apesar das recomendações do setor público, de sanitarismo, a utilização dos ladrilhos nos prédios da cidade, fossem públicos ou privados, ainda estava condicionada a questões econômicas, já que esse material possuía um alto custo de aquisição devido à ausência de fábricas de ladrilho hidráulico em Manaus, durante o período provincial e da Belle Époque. Com o intuito de embelezar a cidade com o que havia de melhor no âmbito da construção civil e com uma ótima situação de prosperidade econômica, tanto o governo quanto uma pequena parcela da população com poder aquisitivo não economizavam recursos com materiais de acabamento e ornamentação de seus imóveis.
As casas comerciais e exportadoras anunciavam seus produtos importados nos jornais da capital e, dentre as mercadorias, observa-se a venda de “ladrilhos de mozaico” na casa comercial J. H. Andresen (Diário de Manaós, 1890, p. 4) e os “mozaicos hydraulicos para ladrilho”, fabricados pela empresa Amaral Guimarães & Comp., localizada no Rio de Janeiro (Jornal do Commercio, 1912, p. 8). Através de pequenos fragmentos de notícias é possível observar, a partir 1920, o funcionamento das primeiras produções locais como a Fabrica de Mozaico, localizada na rua Saldanha Marinho (Jornal do Commercio, 1913, p. 7) e uma manufatura localizada na rua Quintino Bocaiuva (Correio do Norte, 1909), o que pode ter popularizado o uso do ladrilho hidráulico na cidade e tornado os preços mais acessíveis.
A última grande obra no prédio principal do hospital (Figura 1) remonta à gestão do provedor e arquiteto Aloysio de Araújo que, em 1935, realizou a remodelação da antiga fachada para o seu aspecto atual e a reforma de espaços internos como a maternidade, salão principal e dependências das Irmãs de Sant’Anna. Essas intervenções foram as últimas a citarem a inserção de pisos de ladrilhos como substitutos dos antigos pisos de madeira. Desde então, as demais obras no complexo da Santa Casa (Figura 2) referem-se à construção de novos anexos como o prédio da maternidade e do pronto-socorro São José e reformas pontuais na capela.
Durante mais de 140 anos de funcionamento, a Santa Casa sofreu com constantes crises financeiras, quer pela má administração de seus gestores ou pela falta de repasse de recursos do poder público. Em 2007, a mais grave crise financeira da Santa Casa de Misericórdia encerrou os atendimentos de saúde e, mergulhada em dívidas, suas portas se fecharam, mantendo seu prédio inutilizado e de certa forma íntegro até o ano de 2017, quando se iniciou um movimento de depredação do seu edifício, restando em pé apenas as fachadas externas, algumas paredes internas e pisos. Em 2020, o hospital foi levado a leilão e arrematado por uma instituição de ensino privado de Manaus que se comprometeu em restaurar o edifício e a resgatar a sua função como hospital universitário, já que, com a criação da Universidade de Manaós, em 1908, as aulas práticas dos cursos de medicina, de odontologia e de enfermagem ocorriam na Santa Casa.
Análise dos padrões dos ladrilhos hidráulicos da santa casa de misericórdia e de sua capela
Partindo para a análise dos padrões de revestimentos do complexo hospitalar, é necessário esclarecer que as inspeções técnicas no local foram realizadas nos anos de 2013 e 2019. Entretanto, registros fotográficos do hospital dos anos de 1990 também foram utilizados como evidências visuais desses revestimentos a partir da disponibilização desse material na página eletrônica da instituição2. Devido à falta de segurança no local, os prédios do pronto-socorro e da maternidade não foram inspecionados nos anos citados e, com a demolição destes, no início de 2020, não será possível contemplar tais áreas para investigações futuras. Quanto à ordem da inspeção, esta análise priorizou apenas as áreas que visivelmente ainda preservavam seu revestimento em ladrilho hidráulico, sendo assim, iniciou-se com o prédio principal, no sentido do pavimento térreo ao superior, seguido do edifício da capela.
No pavimento térreo do prédio principal, verifica-se que boa parte dos ladrilhos remanescentes surgem por debaixo de camadas de tinta ou estão cobertos por sujeira. É possível constatar que, nessa área, se encontra uma diversidade maior de desenhos e cores (Figura 3), além de materiais com temporalidades distintas, reconhecidas pelos padrões do estilo Art Nouveau e Moderno. Os ladrilhos também concorrem com outros revestimentos como granilite, azulejo decorado e pedras de Lioz, podendo esse último ser o piso mais antigo do hospital. Com exceção dos ladrilhos sextavados no setor de banheiros e de um único piso em peças retangulares, ambos nas cores preto e amarelo, predominam ladrilhos de forma quadrada e ricamente ornamentados e seu uso ocorre nos salões, escadas, salas de cirurgia, lavanderia, corredores e áreas externas (Figura 4).
No pavimento superior observa-se um padrão ornamental bastante rico, o que coincide com as primitivas áreas de acomodações da primeira classe. Nos peristilos, as peças do centro do tapete apresentam motivos florais nas cores amarelo, vermelho e branco, alternando as peças da faixa que ora apresentam um motivo geométrico do tipo meandro, ora possuem losangos. Os rodapés repetem o meandro da faixa, na cor amarelo e vermelho ou apresentam motivos florais, nas cores vermelho, cinza e branco (Figura 5).
Alguns ambientes internos desse pavimento apresentam ladrilhos hidráulicos assentados de forma contínua, podendo algumas dessas áreas corresponder às antigas varandas e salões de refeições dos quartos de 1ª classe. Os desenhos das peças apresentam padrões geométricos, florais e motivos curvilíneos característicos do estilo Art Nouveau (Figura 6).
Partindo para a análise da Capela da Santa Casa, é possível observar que o pequeno prédio é um dos anexos mais antigos do hospital, construído no final do século XIX e reformado no início do século XX. Antes das depredações ao complexo, o piso da nave era em tabuado de madeira, mas após o roubo do material, revelaram-se os ladrilhos que estavam abaixo da estrutura. Segundo o setor de engenharia da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Amazonas3, é possível afirmar que a capela tinha sido construída no lugar onde outrora funcionou o necrotério do Hospital da Caridade e o piso de ladrilho hidráulico que estava embaixo do tabuado em madeira seria uma evidência desse uso primitivo do espaço.
Esta hipótese vai ao encontro do fato de a nave, um espaço importante de uma igreja ou capela, poder apresentar um padrão ornamental maior em relação aos demais cômodos, contendo pinturas parietais, movelaria, tetos e pisos elaborados. Observa-se que, relativamente aos desenhos dos revestimentos da sacristia, os ladrilhos da nave da Capela da Santa Casa possuem um padrão geométrico muito comum, em quatro cores - preto, vermelho, branco e cinza. Outro fato que chama a atenção é a paginação da nave, na qual as peças da cor cinza formam um retângulo próximo ao centro, contudo, assentadas no eixo perpendicular da parede lateral esquerda (Figura 7).
Na sacristia, uma pequena área localizada atrás do altar-mor possui ladrilhos no padrão de tapete, apresentando ornamentação com padrões curvos e florais no centro e na faixa (Figura 8). Separado por duas linhas de ladrilho branco, o restante do piso possui ladrilhos contínuos com ornamentação em motivos florais e rodapé em faixa grega, observando-se que, em toda a composição, prevalecem as cores verde, azul, branco e preto (Figura9).
Com o reconhecimento das áreas de ladrilhos hidráulicos remanescentes no prédio da Santa Casa e da capela e realizando-se uma análise comparativa com os registros iconográficos do início do século XX, é possível confirmar que os peristilos do pavimento superior, os corredores internos e externos, a capela e as interligações entre as alas hospitalares apresentavam piso de ladrilho hidráulico. Contudo, parte desses revestimentos foram substituídos por materiais contemporâneos ou recobertos por tintas, o que abre a possibilidade de resgate desses elementos em uma possível restauração.
Conclusão
O perímetro urbano no qual a Santa Casa está inserida é considerado como um sítio de relevância histórica, arqueológica e arquitetônica nas esferas municipal e federal, já que esta área corresponde ao núcleo pioneiro de formação da cidade, concentrando, no mesmo espaço, vestígios de ocupações humanas de distintas temporalidades. Em 1990, a Lei Orgânica do Município de Manaus4 determinou o tombamento da área denominada “centro antigo” para fins de proteção, acautelamento e programação especial, cabendo ao município proceder com medidas de trato e proteção desse perímetro. Ainda nessa esfera, o Decreto nº 7176 (2014) incluiu a Santa Casa de Manaus no rol das unidades de interesse de preservação do município que formam um conjunto de imóveis de valor significativo para a memória da cidade.
No âmbito federal, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) publicou a notificação de tombamento do Centro Histórico de Manaus no Diário Oficial da União nº 222, de 22 de novembro de 2010. Neste ato, foram definidas poligonais que preservam o traçado urbano e grande parte dos prédios públicos e privados que resguardam a arquitetura eclética e o desenho urbano racionalista do final do século XIX e início do século XX.
Com as ampliações dos conceitos e categorias no campo patrimonial, observou-se a necessidade de reconhecimento e meios de salvaguarda de bens que não se enquadravam na condição de arquitetura. Desde 1980, o IPHAN vem desenvolvendo ações para com os bens integrados, cuja definição refere-se aos objetos e obras de arte ou de ofícios tradicionais que “podem ser retirados e transportados com facilidade por não estar fixados ou fazer parte indivisível do imóvel tombado”5. O entendimento do órgão de preservação é que as ações de conservação e restauração do patrimônio cultural integrado estão intrinsecamente ligadas aos esquemas de valoração do bem arquitetônico a que estão atrelados e seu reconhecimento pode se dar tanto pelo seu caráter como documento histórico, artístico e cultural quanto pelas relações simbólicas e afetivas com esses elementos.
No caso dos ladrilhos hidráulicos sua carga cultural ultrapassa o reconhecimento de seus padrões formais e estéticos, inserindo-os no âmbito dos ofícios e saberes que estão relacionados à sua produção ainda que a mesma incorpore novas tecnologias. Importante salientar que, em vistoria realizada em 15/08/20136, o IPHAN do Amazonas destacou a diversidade de ladrilhos hidráulicos presentes no hospital e o bom estado de conservação que os mesmos apresentavam.
A arquitetura hospitalar demonstra-se como um espaço complexo, no qual convivem diferentes emoções que fazem parte da experiência humana - vida, morte, doença, cura, dor, alívio, trabalho - que são capazes de gerar sentimentos e sensações que conferem significados aos lugares e aos seus componentes. Os ladrilhos hidráulicos assentados ao longo dos caminhos de passagens, nas salas de espera, nas áreas de atendimento e nos locais de permanência prolongada da Santa Casa são portadores de uma notoriedade visual que desperta relações de identidade e significação com os lugares pelo sentido do olhar. As imagens construídas pelos ladrilhos hidráulicos são capazes de evocar outras imagens e podem induzir processos de reminiscências importantes no caso da Santa Casa de Misericórdia que já perdeu boa parte de seus elementos construtivos, documentos, livros, móveis, equipamentos médicos e obras de arte:
Mesmo quando os locais não têm em si uma memória imanente, ainda assim fazem parte da construção de espaços culturais da recordação muito significativos. E não apenas porque solidificam e validam a recordação, na medida em que a ancoram no chão, mas também por corporificarem uma continuidade da duração que supera a recordação relativamente breve de indivíduos, épocas e também culturas, que está concretizada em artefatos (Assmann, 2011, p. 318).
Por isso, é de mister importância o entendimento de que a preservação dos ladrilhos, por si só, não confere um sentido completo para um bem cultural sem que haja a salvaguarda da edificação da Santa Casa, já que, na relação entre os ladrilhos e a arquitetura “o monumento é o lugar no espaço, o suporte material para a fixação das imagens do discurso - imagens construídas na memória” (Oliveira, 2013, p. 99).
O estudo aqui proposto aborda uma das várias facetas do ladrilho hidráulico que, integrado na arquitetura da Santa Casa de Misericórdia de Manaus, promove uma relação entre a arte e a técnica, a funcionalidade e a ornamentação, o antigo e o moderno. Os ladrilhos da Santa Casa não fazem parte da paisagem da cidade, pois se escondem por detrás das grossas paredes de pedra do hospital, mas, como um bem integrado na sua arquitetura, acumulam uma multiplicidade de experiências e níveis de percepção dentro do espaço que se soma às demais experiências como patrimônio histórico do centro de Manaus.
Devido às condições de arruinamento de algumas estruturas, acúmulo de sujeira, presença de entulhos, intervenções inadequadas e demolições recentes, é possível que esta análise não abarque a totalidade de ladrilhos existentes na Santa Casa de Misericórdia. Um melhor entendimento da significância cultural7 desses bens implica uma avaliação mais profunda desses objetos e de ações incisivas de proteção e manutenção desses elementos, que devem partir conjuntamente dos órgãos que reconheceram o valor cultural da arquitetura à qual estão vinculadas, precedidas pela observação criteriosa de quem atribui valores a esses ladrilhos, quais são eles e por que o fazem a partir das escalas de percepção desses indivíduos.
Ainda que os instrumentos legais de preservação, que incidem sobre o patrimônio de Manaus, contenham diretrizes permissivas quanto às modificações dos ambientes internos das edificações tombadas, a preservação dos ladrilhos hidráulicos remanescentes reforça as referências históricas e simbólicas da arquitetura da Santa Casa a partir da compreensão de suas qualidades formais e estéticas, da sua identificação com os grupos sociais que frequentaram os espaços do hospital e das possíveis consequências de sua perda nos quesitos de ornamentação e ambiência da edificação.
Muito mais do que uma superfície, os ladrilhos da Santa Casa de Misericórdia de Manaus contam sua história, as relações de poder dos espaços da elite e da pobreza dentro de uma mesma arquitetura, das mentalidades da época e, acima de tudo, impedem o rompimento dos sentimentos de familiaridade e identificação da comunidade com o espaço que, por mais de um século, assistiu a população sob os auspícios da caridade.