Os registos de santos em azulejo fazem parte da paisagem construída de Lisboa desde o século XVII. Ainda assim, como constatam os historiadores Fernando Manuel Peixoto Lopes e Margarida Almeida Bastos, passam muitas vezes despercebidos. A obra da autoria destes investigadores, Devoção & Fé - Registos em azulejo na cidade de Lisboa (2019), resulta de uma década de investigação sobre este tema e a sua leitura vai, certamente, alterar a perceção do leitor sobre esses pequenos painéis repletos de informação e de histórias interessantes, assim como captar a sua atenção caso os encontre pela cidade.
Os registos em azulejo representam uma ou mais figuras de santos e/ou objetos devocionais e são aplicados nas fachadas de casas, palácios e igrejas, sejam estes espaços públicos ou privados. As suas principais funções são a proteção do lugar onde estão colocados e a devoção de que são objeto. No século XVII, a sua maioria foi produzida por artesãos, trabalhando com base em gravuras. Só poucos têm uma assinatura, mas existem alguns de grande valor artístico que podem ser atribuídos a mestres pintores como Gabriel Del Barco, Nicolau de Freitas e, da Real Fábrica de Louça, ao Rato, Francisco Jorge de Costa e Francisco de Paula e Oliveira.
Pequenos painéis cerâmicos com figuras religiosas, colocados no interior das igrejas ou capelas no século XVI, estiveram na origem dos registos em azulejos. Aos poucos, estes painéis começaram a ser aplicados nas fachadas exteriores dos edifícios. Segundo os autores deste livro, é possível que esta transição possa ter sido uma consequência do “desenvolvimento do culto das devoções” (p. 22), conforme promovido pela Reforma da Igreja Católica, tal como da reutilização de peças depois de terramotos e incêndios.
No decorrer da investigação, os autores constataram o desaparecimento acelerado dos registos na cidade de Lisboa, processo que decidiram ajudar a travar. Fizeram, assim, um amplo levantamento dos registos ainda in situ, dos que foram transferidos para outros locais e dos desaparecidos. Fotografaram, desenvolveram uma pesquisa alargada em vários arquivos e, para completar este trabalho de recolha e análise de dados, realizaram entrevistas. O resultado obtido conduziu à organização de dois inventários: o Corpus, que integra os registos de santos em azulejo datados do século XVII até o primeiro terço do século XIX, e um outro que diz respeito aos registos produzidos desde o segundo terço do século XIX até à atualidade. Estes inventários, assim como os registos fotográficos, constituíram a base material da análise apresentada. Em 2013, os dois autores tinham comissariado, no Museu de Lisboa, a exposição Devoções populares: registos em azulejo, da qual não foi possível publicar um catálogo, lacuna a que esta obra pretende responder.
Nesta investigação cruzaram-se diversos olhares e perspetivas - da história, da história de arte, da antropologia e da sociologia. A aplicação de uma metodologia interdisciplinar é uma das mais-valias desta publicação e resulta numa complexa abordagem, enquadradora do fenómeno dos registos nos contextos políticos, religiosos, sociais e culturais das sucessivas épocas. A partir de registos escolhidos como exemplos, os autores conduzem-nos, capítulo a capítulo, para um mundo de histórias sobre santos, anjos, Maria e Jesus, passando por objetos devocionais e por imaginários sublimes e assustadores.
O conteúdo do livro é extremamente variado. É um estudo profundo da matéria, uma obra de consulta que se afirma a partir de uma investigação muito rica. Na verdade, são vários livros reunidos num só e cujas funções podem não ser evidentes para o leitor, numa primeira análise. Neste sentido, apresentam-se as suas diferentes partes.
A primeira parte, com o título “Contexto cultural e social: do Antigo Regime à implantação do Liberalismo”, tem como ponto de partida as grandes preocupações do Homem - a morte, doenças, epidemias, catástrofes - para dar início a uma abordagem sobre as figuras de santos e dos objetos devocionais representados nos registos. Mas, no decorrer da leitura, os autores mostram como o receio das grandes calamidades, contra as quais se esperava a proteção dos santos, tanto resultou da condição da vida humana e da precariedade da vida social nestes tempos, como de uma “pedagogia do medo” (p. 61), instalada pelas autoridades da Igreja. Percebe-se que o que hoje nos parecem manifestações naïves da crença popular correspondiam ao programa da Reforma da Igreja Católica formulado pelo Concílio de Trento (1545-1563) contra a Reforma Protestante.
Um exemplo são as chamadas alminhas, pequenos painéis com desenhos simples e populares, que mostram as almas nas chamas do purgatório. Muitas vezes, aquelas integram a parte inferior de obras maiores com representações de santos e da Virgem Maria. Em alguns casos, a evocação do purgatório é feita pelas letras PNAM (Pai Nosso Ave-Maria), um apelo para os transeuntes rezarem pelas almas. Seguindo as doutrinas do Concílio de Trento, os crentes deveriam conduzir a sua vida com vista à morte. A atuação da Igreja e do clero contribuíram para inculcar o medo do inferno, do último julgamento e do purgatório na consciência coletiva, conjuntamente com a ideia de que, para o salvamento pessoal, seria necessária a intercessão dos santos e da Igreja. Neste sentido, os registos têm uma “função catequética” (p. 29), como os autores referem.
Não só a Igreja, mas também a política soube usar as figuras religiosas para interesses próprios, sobretudo a figura da Virgem Maria, cujas representações predominam nos registos dos santos em azulejo. Mas este facto não surpreende, uma vez que, como os autores explicam, “Nossa Senhora ocupou desde cedo um lugar único na doutrina da Igreja e no coração dos fiéis” (p. 25). Esta obra é, pois, rica em informações sobre o culto mariano e a sua história, especialmente em Portugal, nomeadamente a relevância da figura da Mãe de Cristo no universo dogmático da Igreja, as diversas invocações e as correspondentes histórias e rituais. Entramos neste universo a partir dos registos selecionados. Ficamos a saber que, no país, são conhecidas mais de 1500 invocações de Nossa Senhora. Pedia-se ajuda à Virgem para todas as aflições e necessidades, dado o seu papel de intercessora junto de Deus. O subcapítulo “Invocações em momentos de crise nacional” é especialmente dedicado à figura de Nossa Senhora que, desde a fundação da nação, serviu os interesses das diversas casas reais. Um lugar destacado cabe a Nossa Senhora da Conceição, representada em muitos registos, nomeada padroeira de Portugal e simbolicamente coroada Rainha como agradecimento pela ajuda prestada à Restauração da Independência, em 1640.
Assim, os registos revelam-nos a relação difícil resultante do entrelaçamento entre a vontade dos poderes religiosos e políticos ao pretenderem educar e dominar a população, e os fortes sentimentos e preocupações individuais. A formação de mentalidades não acontece passivamente e, deste modo, os registos apresentam-se como um convite à participação. Atos rituais, como rezar, fazer o sinal da cruz, colocar flores em frente de uma imagem santa, participar em procissões, romarias e círios, entre outros, incorporam as crenças nas mentes e nos corpos. Através da apresentação de diversos exemplos, os autores descrevem, de forma impressionante, a relação entre a crença popular e as práticas da cultura religiosa.
O segundo grande capítulo, “Outros contornos devocionais, do Liberalismo à atualidade”, aborda os registos do segundo terço do século XIX até ao presente. Deste período os autores identificaram 1170 registos de santos em azulejo, dos quais mais de 200 foram removidos devido a obras de remodelação dos edifícios ou por desinteresse de novos proprietários. De alguns, nem se conhece a iconografia. O levantamento e a avaliação iconográfica abrangem, assim, 1064 registos, listados no livro. A imagem da Virgem continua a ser a principal invocação, com destaque para Nossa Senhora de Fátima. Estes registos mais recentes diferem, em muitos aspetos, dos que foram produzidos e aplicados nos séculos anteriores. Para os autores, estas diferenças estão relacionadas com o progressivo abandono da produção artesanal, substituída pela industrial, assim como com os efeitos da secularização, da Revolução Industrial, das grandes mudanças económicas, sociais e políticas, e do progresso em muitas áreas da sociedade, como na saúde. A sua análise considerou a realização de entrevistas com os proprietários das casas onde tinham sido aplicados, constituindo um material antropológico muito rico que fornece histórias e dados concretos acerca das motivações subjacentes à respetiva compra e à escolha dos santos preferidos, assim como sobre as lojas e empresas onde os registos foram adquiridos e as fábricas onde foram produzidos.
Os autores concluem que os registos foram gradualmente perdendo a sua importante função de proteção face a preocupações comuns, como incêndios, terramotos e epidemias, em favor de assuntos de caráter mais individual, “relacionados com a história e as vivências pessoais e familiares dos encomendadores” (p. 111). É exemplo a ligação dos santos escolhidos com o nome do respetivo comprador ou encomendador. Em outras situações, o registo azulejar serve como suporte toponímico, informativo, anunciativo ou publicitário, como no caso do famoso painel na fachada do antigo armazém Grandela, no qual Santa Iria faz propaganda a uma marca de sabão com o seu nome. São ainda fornecidos exemplos de registos de comemoração, de registos em igrejas e congregações religiosas e de proteção das corporações, como os que incluem a imagem de São Marçal que, de protetor contra incêndios, se tornou patrono dos bombeiros. Mas não são só os velhos santos que adquirem novas funções, já que, com o decorrer do tempo, surgiram novos cultos, dos quais se destaca o de Nossa Senhora de Fátima. São ainda referidos os cultos relacionados com o Padre Cruz e com o Doutor Sousa Martins e, como exemplo de um culto regional, a Sãozinha. Os autores salientam também que, no século XIX, as preocupações de caráter higienista levaram à instalação de novos cemitérios em Lisboa, de modo que, nos jazigos e campas, os registos encontraram um novo lugar de comemoração e intercessão Post Mortem.
Invocações com intenção político-religiosa revelam-se como uma constante na história dos registos, sendo a análise deste fenómeno uma preocupação mencionada ao longo do livro, corroborada com referências a muitos exemplos, a par de ser observada a especial ligação ao Estado Novo e, respetivamente, à religião católica e à moral cristã, da qual a figura de Nossa Senhora de Fátima é a mais destacada. Muito ilustrativo é o exemplo da construção do Bairro da Quinta do Jacinto (1937), onde as casas foram edificadas com nichos para registos com imagens de “santos «do gosto oficial»“ (p. 116).
Os contributos dos dois grandes capítulos até aqui referidos são retomados no capítulo “Algumas Considerações”, onde os conteúdos centrais desta parte da obra se encontram muito bem sintetizados.
Seguem-se mais três capítulos, indispensáveis em qualquer abordagem clássica da azulejaria. Uma vez que a evolução estilística dos registos se enquadra na da azulejaria em geral, no capítulo “Questões de evolução estilística e autorais do século XVII à atualidade”, os autores explicam o desenvolvimento artístico dos registos através de diversos exemplos. A identificação de estilos é realizada, principalmente, a partir das molduras cujos motivos ornamentais e colorações indicam o período de produção. Este capítulo trata também da transição para a produção fabril, desde as primeiras fábricas até às produções industriais mais recentes. Neste período, os modelos, por excelência, de muitos e diversos painéis em azulejo, entre eles os registos, foram as gravuras históricas de santos produzidos através de técnicas contemporâneas (as xilogravuras, as gravuras em metal, mais tarde, a fotografia), algumas feitas a partir da pintura dos mestres. Os registos de santos em azulejo herdaram o nome das pequenas estampas de papel com imagens religiosas que eram vendidas aos crentes. No capítulo “Fontes de Inspiração”, os autores fornecem exemplos daqueles processos, contrastando os registos de santos em azulejo com as gravuras e fotografias dos quais foram copiados, concluindo que o seu reportório apresenta muitas variações, mas pouca criatividade.
O capítulo seguinte, “Fortuna Crítica”, escrito em coautoria com Álvaro Tição, refere as abordagens históricas de autores que escreveram sobre o azulejo em Portugal - José Queiroz, Vergílio Correia, Nuno Catarino Cardoso, Luís Chaves, Reynaldo dos Santos e Santos Simões - onde foram incluídas observações e reflexões sobre registos em azulejo, sendo também referidos os livros e artigos mais recentes sobre esta temática. Neste capítulo encontram-se ainda, resumidamente, os resultados da avaliação de fichas de colecionadores e de estudiosos da matéria.
A última parte do livro apresenta os 564 registos em azulejo que integram o Corpus, constituído por peças desde o século XVII até ao primeiro terço de século XIX. Estes registos foram distribuídos por três grupos: os que ainda se mantêm in situ, os que foram transferidos e os desaparecidos. Junto de cada fotografia encontram-se, sistematicamente organizadas, as respetivas informações. O Corpus, igualmente bem organizado, está complementado por um índice com a localização original e atual dos registos ou sobre as instituições para as quais foram transferidos. O Corpus pode ser consultado na Biblioteca DigiTile da Fundação Gulbenkian (https://digitile.gulbenkian.pt/customizations/global/pages/colecoes.html).
O livro conta ainda com uma nota de abertura de Joana Sousa Monteiro, Diretora do Museu de Lisboa, e com uma apresentação de Ana Paula Rebelo Correia, conhecedora do projeto e revisora científica do trabalho.
As longas listas de agradecimentos e créditos fotográficos testemunham, como os autores afirmam, que a obra resulta de muitos diálogos, discussões e apoios, e por isso mesmo, será de grande utilidade para todos os que se dedicam à investigação do azulejo e ainda para os apreciadores e para os curiosos.
Pela edição desta obra, o Museu de Lisboa foi distinguido pela Associação Portuguesa de Museologia - APOM - com o Prémio «Trabalho em Museologia», em dezembro de 2020. Em maio de 2021 recebeu o Prémio SOS Azulejo 2019-2020 na categoria «História de Arte - Inventário» pela edição do livro.