“[Matos Sequeira] conhecia Lisboa como eu conheço as minhas preferências.” (Costa, 1976, p. 66)
Introdução. As festas da cidade de 1934
Lisboa, 1934. Organizadas entre 8 e 13 de junho pela Câmara Municipal, as Festas da Cidade foram o principal acontecimento cultural do ano. À semelhança de outras realizações desenvolvidas durante o Estado Novo, representavam uma tradição inventada, retomando e engrandecendo uma ideia da I República que não tinha tido seguimento. As primeiras Festas da Cidade datam de 1913, tendo como objetivo
tornar conhecidos os produtos do solo e da industria […] [por forma a] seduzir o estrangeiro, patenteando-lhe as bases continentais e coloniais da nossa futura prosperidade. […] [Contou com a] exibição cenográfica das nossas principais colónias, com seus naturais autenticos, suas danças […] [, a representação da] cenografia dos […] mais belos monumentos, com apresentação correlativa de todos os trajes e tipos populares portuguezes […], das casinhas rusticas provicianas cabanas, choças, etc […] [, a] encorpora[ção de] todas as figuras lembradas para espétaculos: - tipos portuguezes continentais e coloniais [, a] exibição respétiva [de elementos] verdadeiros ou muito bem reproduzidos [e ainda com a realização de] congressos, jogos, desportivos e atleticos, cavalhadas, exposições, concursos, distribuições de premios, etc (Câmara Municipal de Lisboa, 1911, p. 335-336).
Ainda que o programa destas Festas se focasse menos em Lisboa, suas gentes e tradições do que o de 1934, são inegáveis os pontos de contacto entre ambas as edições.
Este recuperar das Festas da Cidade entroncava no modelo propagandístico do Estado Novo e na sua recém-desenvolvida Política do Espírito, mas sobretudo no novo plano cultural da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Lisboa (CML), simbolicamente iniciado a 11 de maio de 1933 com a apresentação da proposta de criação do pelouro dos Serviços Culturais pelo então vereador Luís Pastor de Macedo (1901-1971). Ao longo das décadas seguintes, os serviços sob a sua alçada foram responsáveis pela realização, organização e edição de dezenas de exposições, conferências e obras de temáticas alusivas à história da cidade. Assim, não obstante as similaridades com a edição de 1913, a transição do regime político entretanto operada, da I República para o Estado Novo (com a Ditadura Nacional de permeio), concorreu para uma forte clivagem ideológica.
Tendo em conta [a] necessidade de ligação ao passado, as comemorações [de 1934 foram], inicialmente, o núcleo central que serve de pretexto para convocar os momentos eleitos da história e para consolidar esta nova prática cultural. [...] Decorrente desta específica apropriação de acontecimentos e figuras históricas, foi possível projectar um evento com um enquadramento originalmente religioso-profano […] para uma associação do elemento religioso […] com os elementos local […] e político-propagandístico (Melo, 2003, p. 312-313).
O notório engajamento ideológico da Comissão Administrativa da CML1 com o Estado Novo (Ferro, 1949, p. 13) encontrava-se patente em muitas das atividades programadas para esta edição das Festas, desde logo na escolha dos seus organizadores e na presença das mais altas individualidades do Governo nos diversos atos de inauguração. Mas também em pequenos pormenores, caso da missiva enviada pela autarquia ao Ministro do Interior propondo a realização de uma nova edição no ano seguinte2, da construção de três stands na Feira do Terreiro do Paço com o alto patrocínio do Ministro do Comércio e Indústria e da coincidência cronológica com a organização do I Congresso da União Nacional, que incluiu uma exposição documental no Palácio de Exposições do Parque Eduardo VII até 15 de junho. Enquanto na rua decorriam cortejos históricos representando a Lisboa dos tempos antigos, dentro do edifício propagandeava-se a obra dos primeiros anos do novo regime. Esta opacidade tornava difícil destrinçar a quem cabiam os louros da organização das Festas, a ponto de se afirmar em artigo do Diário de Notícias a respeito da edição do ano seguinte que
por maior que seja e mereça ser encarecido o esforço da comissão organizadora das Festas de Lisboa e dos seus colaboradores, a verdade é que o primeiro louvor a dirigir é ao Governo da Revolução Nacional, que tornou possivel a [sua] realização […] - restabelecendo, no País, a Ordem […]. As Festas da Cidade são, pois - e assim é de justiça considerá-las - um complemento da obra da Revolução Nacional (Festas da Cidade, 1935, p. 1).
Perante o sucesso obtido, a Câmara Municipal de Lisboa decidiu promover em 1935 um novo ciclo de Festas das Cidade. À semelhança do que ocorreria na Exposição do Mundo Português em 1940, a sua Comissão Executiva era constituída por personalidades da cultura nacional e lisbonense, que idealizaram um conjunto de “manifestações [que] [...] fizeram realçar no primeiro plano o sentido espectaculoso, a ressurreição histórica, o pitoresco, a lição social ou o deslumbramento” (Câmara Municipal de Lisboa, 1936, p. 248). Destacam-se o torneio de cavalaria no Claustro do Mosteiro dos Jerónimos (Figura 1), o Cortejo Medieval, o desfile das Marchas Populares, a Ronda dos Bairros, a Feira do Terreiro do Paço e a Lisboa Antiga.
Esta última constituiu-se como uma das mais importantes reproduções histórico-arquitetónicas projetadas e desenvolvidas em Portugal. Para compreender os seus fundamentos, importa recuar algumas décadas e olhar para a leitura que em Lisboa se fazia dos seus bairros antigos e para o modo como as exposições internacionais e o quadro mental da época preconizaram esta iniciativa.
Lisboa. Entre tradição e modernidade
Na Lisboa da segunda metade do século XIX, o surgimento e a confrontação de duas fações antagónicas no modo de encarar o passado, o presente e o futuro, marcou profundamente o modo crítico de pensar a cidade desde então.
O final da década de 1850 assumiu-se como um momento de viragem. Pela primeira vez desde o período pós-terramoto de 1755, foram desenvolvidos planos de melhoramentos que abrangeram a cidade como um todo3 ou por áreas, transcendendo a habitual práxis de pequenos empreendimentos isolados que se limitavam a regularizar traçados ou a resolver impasses urbanos. Embora limitados na aplicação prática, estas propostas revelaram-se determinantes para a elaboração dos masterplans das décadas seguintes. Respondiam às preocupações higienistas que fundamentavam os princípios aplicados noutras cidades europeias do seu tempo, assentes no desenho de largos arruamentos complementados por um mais eficaz abastecimento de água às populações e uma rede de escoamento de águas pluviais e residuais. A sua concretização afrontava a manutenção dos velhos bairros insalubres, focos das mortais epidemias de cólera que haviam grassado em Lisboa no segundo terço do século XIX. Para o efeito, previa-se a execução da ideia alvitrada em 1858 pelo engenheiro camarário Pierre Joseph Pezerat (1801-1872) de que
os bairros denominados particularmente Mouraria e Alfama pela estreiteza e mau alinhamento das ruas, pelas diferenças de nivel e pelo mau estado higiénico e architectonico [...] [fossem] demolidos e reconstruidos de novo em ruas largas, e bem alinhadas, praças arborizadas e edificios em boas condições higienicas (Pezerat Apud Silva, 1997, p. 426).
Numa época de reduzida valorização sociopatrimonial dos núcleos habitacionais mais antigos da cidade (Figura 2), este tipo de propostas seduzia pela forma como prometia resolver eficazmente alguns dos mais prementes problemas de salubridade da cidade e simultaneamente ir ao encontro das realizações da Paris haussmanniana então em desenvolvimento4, sinónimo de vanguarda e progresso. No entanto, a crónica falta de verbas impediria a consumação de alterações profundas no edificado e no urbanismo destes pontos sensíveis, nos quais se empreenderam apenas pontuais alargamentos de vias.
Enquanto isso, crescia um movimento que manifestava uma intensa preocupação com o estudo e com a salvaguarda do património arquitetónico monumental, inicialmente centrado na figura de Alexandre Herculano (1810-1877) e que aproveitou a rápida proliferação de jornais e de revistas científicas e literárias para divulgar os seus estudos e propósitos. Aos poucos, estas ideias estenderam-se também aos próprios burgos, marcando o início do desenvolvimento do ideal municipalista e da história local. No caso de Lisboa, sobretudo através da obra de Vilhena Barbosa (1811-1890), Júlio de Castilho (1840-1919) e Gomes de Brito (1843-1923). Os seus estudos incrementaram a consciência da importância do conhecimento da história e património lisbonense e potenciaram uma progressiva mobilização de algumas franjas da sociedade na sua defesa.
Esta nova corrente entroncou num fervilhar cultural particularmente intenso na segunda metade de Oitocentos, composto por quadrantes bastante críticos à realidade política e cultural lisbonense/portuguesa. Os projetos e as visões para a cidade eram vulgarmente escrutinados e depreciados em artigos de jornais, refletindo e propagando a profunda clivagem existente na sociedade da capital entre os que optavam pela intransigente defesa da cidade antiga e os que a consideravam um estorvo para a tão desejada modernidade. Pelo meio ficava uma maioria silenciosa, composta por aqueles a quem esta discussão mais interessava (nomeadamente os próprios moradores dos bairros antigos), mas a quem estava vedada por ser ainda maioritariamente restrita às elites políticas e intelectuais.
Lisboa chegou, assim, ao início do século XX num momento definidor para o seu pensamento urbanístico, no qual se impunha dar o salto de fé necessário para pensar a direção a seguir. No entanto, o panorama manteve-se inalterado. As ideias higienistas de demolições dos velhos bairros mantiveram-se vivas nas novas gerações de escritores5 e políticos, coexistindo com o crescente número dos que escreviam sobre a cidade, procurando alicerçar a sua identidade numa amálgama de matérias onde cabiam arquitetura, urbanismo, gentes, vivências, modos de fazer e tradições.
Se, no final do século XIX, esta questão era muitas vezes vista como um antagonismo entre ricos e pobres e/ou entre higiene e insalubridade, rapidamente se impôs uma duplicidade entre tradição e modernidade6, que dentro da própria urbe replicava a romântica separação entre campo/ruralidade e cidade/urbanidade. Esta ideia viria, por exemplo, a ser vincada no cinema a partir do início da década de 1930 com o conflito entre a Lisboa limitada pelo bairro (ou a uma escala menor, pelo pátio no interior deste), de pendor íntimo, contido, controlado, onde todos se conhecem e se estimam e a Lisboa das grandes avenidas e praças, movimentada, caótica, barulhenta e insegura, como se de um mundo exterior se tratasse (Baptista, 2005, p. 175).
O advento do Estado Novo traria novos desenvolvimentos a esta questão. Não obstante ter nele ocorrido o único caso de desaparecimento de um bairro antigo da cidade7, o modo como a exaltação da história da Lisboa capital do Império entroncou no discurso e na ideologia do regime potenciou o desenvolvimento pleno dos seus estudos e divulgação.
Estudo e encenação do passado
Ao longo do século XIX, nas principais revistas literárias e científicas (Archivo Pittoresco, Panorama, Occidente…) proliferaram os artigos sobre Lisboa e seus monumentos. Pela forma disruptiva como Júlio de Castilho desenvolveu (e publicou em livro) um estudo sistemático e multidisciplinar sobre uma parte da cidade, a edição do primeiro tomo de Lisboa Antiga8 (1879) marcar-se-ia como o ponto de charneira nos estudos da cidade, sendo vulgarmente considerada como o momento do surgimento de uma nova paradisciplina, a Olisipografia. Seguir-se-iam o segundo tomo da obra (a partir de 1884, dividido em sete volumes) e A Ribeira de Lisboa (1893). Castilho foi, então, tomado como o patrono dos modernos estudos olisiponenses e mestre para uma nova geração de investigadores. Entre outros, a partir do final do século acompanhá-lo-ia Augusto Vieira da Silva (1869-1951), engenheiro militar que dedicou grande parte da sua vida ao estudo das estruturas militares da cidade (plasmado nas obras Castelo de S. Jorge, A Cerca Moura, As Muralhas da Ribeira de Lisboa e A Cerca Fernandina). E, já no século XX, Gustavo de Matos Sequeira (1880-1962)9, que desde cedo mostrou particular interesse nos temas olisiponenses. Ganhou visibilidade em 1904, quando, ainda descrito como distinto fotógrafo amador, Júlio de Castilho decidiu tornar o seu estudo sobre a Igreja de São Mamede em capítulo na 2ª edição da sua Lisboa Antiga - O Bairro Alto de Lisboa, reconhecendo-lhe elogiosamente a autoria. “O trabalho do sr. Gustavo de Sequeira, hoje meu amigo, era tão conscienciosamente feito, tão metódico e tão exato, que entendi reproduzi-lo textualmente. Aqui vai pois, como preito ao meu amável colaborador e como ornamento à minha obra” (Castilho, 1904, p. 75-76).
Membro fundador da Secção de Archeologia Lisbonense da Real Associação dos Arquitetos Civis e Arqueólogos Portugueses, foi um dos promotores da muito elogiada Exposição Olisiponense, organizada em 1914 pela mencionada secção no Convento do Carmo. Começaria pouco depois a produzir uma extensa obra sobre a história de Lisboa (de entre a qual se destacam Depois do Terramoto (1916-1934) e O Carmo e a Trindade (1939-1941)), tornando-se num dos principais vultos desse campo. Matos Sequeira diferiu dos demais olisipógrafos ao não ter limitado a sua ação à escrita sobre a cidade, constituindo-se também num agente operativo que concebeu e desenvolveu um conjunto de iniciativas que deram corpo às suas investigações, nomeadamente feiras temáticas, a Lisboa Antiga e a Maqueta da Lisboa pré-terramoto de 1755, desenvolvida em parceria com o maquetista Ticiano Violante (1913-1970) entre 1954 e 195810.
A criação do Pelouro dos Serviços Culturais da CML em 1933 seria fundamental para a alteração do panorama dos estudos de Lisboa e para a concretização das ideias de Matos Sequeira. Apesar de não ter contemplado a criação oficial da figura do cronista da cidade existente em Madrid e Paris, encetou uma profissionalização informal da figura do historiador da cidade (o olisipógrafo) assente numa estratégia de exaltação e divulgação da sua figura e obra através da publicação de dezenas de estudos, da organização de conferências para um vasto público11 e da criação de um curso e de um gabinete de estudos olisiponenses, num processo que entroncava plenamente na ideia de Política do Espírito enunciada pela primeira vez por António Ferro (1895-1956) no ano anterior:
O desenvolvimento premeditado, consciente, da Arte e da Literatura é tão necessário […] ao progresso de uma nação como o desenvolvimento das suas ciências, das suas obras públicas, da sua indústria, do seu comércio e da sua agricultura. […] A Política do Espírito […] não é apenas necessária […] ao prestígio exterior da nação: é também necessária ao seu prestígio interior, à sua razão de existir. Um povo que não vê, que não lê, que não ouve, que não vibra, que não sai da sua vida material, do Deve e do Haver, torna-se um povo inútil e mal humorado. A Beleza - desde Beleza moral à Beleza plástica - deve constituir a ambição suprema dos homens e das raças. A literatura e a arte são os dois órgãos dessa aspiração, dois órgãos que precisam de afinação constante, que contêm, nos seus tubos, a essência e a finalidade da Criação (Ferro, 1932, p. 1).
Abandonando a categoria de obscuros escritores da história da cidade a que haviam sido vetados até então, os olisipógrafos foram tornados especialistas, eminências cuja avalizada opinião era solicitada para a tomada de muitas das decisões sobre o futuro da cidade. Chamados para a composição da maioria das comissões criadas para tomar decisões a respeito de questões históricas, patrimoniais e literárias, influenciaram como poucos o panorama cultural lisbonense do segundo terço do século XX.
Com ou sem Matos Sequeira ao leme, ao longo da I República esta atenta busca pelo conhecimento e exaltação da Lisboa do passado havia já extrapolado o campo literário, refletindo-se na organização de pontuais iniciativas como as Festas de Lisboa de 1913 ou o Mercado Seiscentista em 1925. Seria, no entanto, já no Estado Novo que a ação autárquica multiplicaria e engrandeceria este tipo de realizações, nomeadamente no contexto de festividades de índole popular, numa recuperação e reencenação de um passado que encarnava o ideal de um recrudescimento da importância das tradições, mas também do património arquitetónico. Profundamente intervencionado a uma escala nacional em campanhas de restauro que procuravam restituir a pureza da traça primitiva dos edifícios12, era notória a instrumentalização deste último para concorrer para “um horizonte ideológico preciso no conatural ideário político de Salazar, enquanto procura insuperável de devolução do país a uma essência «perdida»” (Acciaiuoli, 1998, p. 13).
Restauração13 foi o termo escolhido para caracterizar os primeiros anos de acção do novo poder político e que se deveria estender a todos os sectores da vida nacional. O restauro dos monumentos, além de ser uma actividade visível quase instantaneamente, permitia servir uma nova leitura da História pátria assente nos seus momentos de triunfo, verdadeira lição do valor e da raça lusa, sinais de garantia e confiança no Estado Novo, timoneiro seguro e legítimo da Nação (Neto, 2001, p. 13).
Em 1935, a Lisboa Antiga nasceu, assim, da confluência do movimento oitocentista de defesa patrimonial, do nascimento dos modernos estudos olisiponenses (e do cinema14) e da exaltação ideológica do Estado Novo de um passado selecionado, “que potencialmente trouxesse as marcas de um reconhecimento activo onde o presente se poderia integrar como se dele fosse um efeito” (Acciaiuoli, 1998, p. 13). Mas era igualmente tributária da arquitetura cenográfica erigida ao longo dos séculos em grandes realizações, caso das Joyeuse Entrées, festejos associados a entradas régias, comuns na Europa a partir do século XV. Até meados de Oitocentos, foi neste contexto que foram projetadas algumas das mais sumptuosas criações de arquitetura efémera, que então passou a ser maioritariamente concebida em exposições nacionais e internacionais, privilegiados palcos para novas experiências que se tornaram em lugares
muito particular[es] para se acompanhar o evoluir dos historicismos e ecletismos na segunda metade do século XX. […] [Os seus pavilhões] foram sempre um motivo de atracção e entusiasmo para os visitantes, a que se oferecia a ideia de ‘museu do mundo’. Um museu vivo que colocava ao alcance de todos uma visão panorâmica de várias arquitecturas do globo, assim como abria novos horizontes aos arquitectos do ecletismo, para quem as exposições foram lugares de manipulação e de experimentação, ou seja, campo de experiência em termos tecnológicos (novos materiais, novas formas de construir), e de manipulação de linguagens formais que permitiriam reviver o passado - lugares de futuro, as exposições foram simultaneamente, espaços de revisitação do passado (Souto, 2011, p. 107).
Realizada num tempo de vincada preocupação com o restauro (e com a reconstituição reinterpretada) do património antigo e de profundo questionamento sobre a definição identitária de estilos originais nacionais, é a partir da Exposição Universal de Paris de 1867 que se institui a edificação de pavilhões replicando as características da arquitetura de cada país. Mas foi também aí que surgiram as recriações/encenações históricas construtivas e/ou de vivências, tipologia onde a Lisboa Antiga se insere e terá encontrado inspiração. As exposições seguintes passaram a contar com
reconstituições históricas das velhas cidades com os seus monumentos, os seus recantos d’edificios famosos, construcções diversas, palacios aristocraticos, moradias burguezas, lojas, tavernas - tudo resurgido durante o espaço d’alguns mezes, com habitantes como outr’ora, vivendo dos mesmos misteres, e com todas as suas apparencias caracteristicas e movimentadas em dias determinados durante as festas organisadas por Artistas e Archeologos (O Paris antigo, 1900, p. 12).
Construídas de modo a simular pequenas aldeias compostas por edifícios encadeados e dispostas em torno de ruas ou praças, eram geralmente lugares autónomos, separados do restante espaço expositivo por muralhas ou pela própria fachada dos edifícios. Partindo do estudo das características das antigas arquiteturas e das vivências das cidades/países onde decorriam as exposições, estas estruturas de madeira e estafe correspondiam a encenações idealizadas ou a réplicas exatas de edifícios e monumentos de períodos históricos compreendidos entre a Idade Média e a primeira metade do século XIX, conforme a opção de cada promotor. Mais do que meros recintos encenados, eram espaços de diversão com restaurantes, lojas de ofícios antigos e outros equipamentos de fruição, em antecipação aos luna parks novecentistas.
Esta moderna tradição iniciou-se, assim, na Exposição Universal de Paris de 1867, onde foi construída uma pequena Village Autrichien com sete edifícios replicando a arquitetura austríaca. Teria seguimento a partir da década de 1880 com propostas que reproduziam as características da arquitetura local ou regional, caso do Borgo e la Rocca medievali, construído sob orientação do arquiteto português Alfredo de Andrade (1839-1915) para a I Exposição Nacional Italiana (Turim, 1884), da Old London Street (The International Health Exhibition, Londres, 1884) e da L’Ancienne Bastille (Exposição Universal de Paris, 1889). Seria, no entanto, a partir dos derradeiros anos do século XIX que se assistiria a uma plena proliferação deste tipo de propostas15, de entre as quais a Vieux Paris da Exposição Internacional de Paris de 1900, possivelmente a mais famosa realização do género (Figura 3). Salientando-se a ironia da recuperação de trechos antigos de uma cidade que poucas décadas antes os tinha perdido, arrasados em detrimento de uma moderna conceção urbanística, a Vieux Paris foi idealizada por Arthur Heulhard (1849-1920) e desenhada por Albert Robida (1848-1926) que, tal como Matos Sequeira, eram multifacetados agentes culturais com importante produção sobre a história da cidade para a qual a desenvolveram. Estendendo-se por 260 metros e dividido em três grandes quarteirões, aí se reconstituiu uma Paris desaparecida, de espaços, edifícios e vivências de diferentes eras.
Rien n’est curieux comme cette longue file de monuments et d’edifices, véritable petite ville, divisée em trois quartiers principaux, et reflétant dans la Seine uns profusion de tours et de tourelles, des cloches et des clochetons étagés au-dessus des toits. A côte des splendides palais modernes [...], le constraste est du plus vif intérêt pour tout le monde. Pour l’érudit, le lettré; l’archéologue, c’est une sensation rare que seuls, des artistes d’un gout éprouvé pouvaient leur offrir (Guide Armand Silvestre de Paris..., 1900, p. 124).
Esta tendência manter-se-ia intacta até 196716, em paralelo com a da reconstituição de aldeias, ruas ou bairros estrangeiros17, por vezes condensando arquiteturas de diversos pontos do globo18. Também em Lisboa, ainda que a uma escala substancialmente menor, se havia ensaiado a construção de um Bairro Árabe na Feira Franca de 1898, executada no contexto das comemorações do quarto centenário da chegada de Vasco da Gama à Índia.
Com a progressiva perda da pertinência da exibição das arquiteturas locais e nacionais enquanto elementos identitários de um povo, a presença deste tipo de construções passou a ser justificada sobretudo pela forma como continuavam a atrair a presença do público enquanto espaços de fruição. Não espanta, pois, que, a partir do final do século XX, tivessem desaparecido do panorama das grandes exposições para passarem a ser encontradas em parques temáticos19.
As festas da cidade de 1935 e a Lisboa antiga
Lisboa, 1935. A 4 de junho, três dias depois do início das Festas da Cidade, a Lisboa Antiga abria as suas portas, consumando o minucioso trabalho de investigação e organização de Matos Sequeira. Contava este já com experiência na planificação e organização de recriações dramáticas de tempos passados, nomeadamente o Mercado Seiscentista de 1925 (no Largo de São Domingos20) e as Grandes Festas da Curia de 1927, evocativas do século XVIII e onde o Pátio das Comédias foi pela primeira vez recriado.
Embora pareça plausível tratar-se de uma ideia já com algum tempo, a primeira conceção da Lisboa Antiga datará de dezembro de 1934, altura em que Matos Sequeira terá “começ[ado] a estudar o seu plano com caixas de fósforos para fazer o jogo dos volumes” (Milagres modernos…, 1935, p. 12). Replicando o modelo das recriações das grandes exposições internacionais, por uma questão de proximidade geográfica e cronológica é crível que a influência mais direta tenha sido o Pueblo Español de Barcelona (1929)21. No entanto, desde cedo afastou-se deste ao assumir não pretender uma reconstituição fiel, mas antes uma sugestão da cidade pré-terramoto que conjugasse a arquitetura de princípios de Setecentos com a indumentária seiscentista dos figurantes, por ser menos vulgar e mais fácil de ser reproduzida22. Por esta altura, o projeto era ainda provisoriamente designado por Reconstituição de um trecho da antiga cidade, termo que consta no timbre do papel que Matos Sequeira usava nas comunicações oficiais (Figura 4), fixando-se a sua denominação definitiva já depois da inauguração.
A primeira questão prendeu-se com a escolha do local:
No Parque Eduardo VII? No Páteo de S. Vicente? No Jardim Zoológico? Qualquer dêstes locais não convinha por variadissimos motivos? As dificuldades avulumavam-se cada vez mais, e o tempo ia passando. Nisto, faiscou a ideia do local em frente das Côrtes, onde, em tempos se levantou o convento das Francesinhas. A própria natureza do terreno prestava-se lindamente para a construção. Matos Sequeira, travando do braço de Pastor de Macedo, voltou ao local que escolhera, e ambos assentaram numa base definitiva. A Lisboa Antiga ficaria ali, désse lá por onde désse” (Milagres modernos…, 1935, p. 12).
Tratava-se de um terreno com mais de 8500m2 no gaveto da Calçada da Estrela com a rua das Francesinhas23, sobranceiro ao edifício da Assembleia Nacional (Figura 5). Outrora ocupado pelo Convento do Santo Crucifixo (das Francesinhas), demolido em 1911, para aí haviam sido projetados (e não executados) os edifícios do Palácio da Justiça (Rafael da Silva e Castro, 1876-1879?) e do Instituto Superior Técnico (Ventura Terra, 1916-1918) (Lourenço, Mégre e Silva, 2018). Apesar de não corresponder a uma primeira escolha, a localização privilegiada, o facto de estar devoluto há mais de duas décadas e a simbologia do local terão agradado a Matos Sequeira, que aí pôde reconstruir história num terreno por ela impregnado.
Prometemos cinqüenta centavos por cada peça inteira que aparecesse, para que as enxadas e picaretas se acautelassem na pesquiza, mas, pouco depois, tivemos de arripiar caminho na generosidade, porque os textos de bilha parece que nasciam no chão (Macedo e Sequeira, s.d., p. 278).
As obras iniciaram-se a 14 de fevereiro, mês particularmente ativo na preparação do terreno (mapeamento das canalizações e dos esgotos que passavam no terreno) e na compra dos materiais necessários para as construções. Desde cedo, Matos Sequeira deixou claro
que só com absoluta autonomia na construção do seu número poderia trabalhar. Deste modo, admissão ou demissão de pessoal, estabelecimento de empreitadas e sua verificação, fiscalisação do trabalho, a maioria das compras, contratos, etc. passaram a ser feitos diretamente [por ele] […] visto que só ele conhecia as exigências do seu numero, cujo projecto ia concebendo dia a dia24.
Nos três meses e meio que separaram a aprovação camarária da realização das festas (14 de fevereiro) e o seu início (1 de junho), surgiram na imprensa dezenas de notícias sobre sua a preparação. Vincando uma particular curiosidade sobre a Lisboa Antiga, procuraram documentar o estado da sua construção, sendo muitas vezes acompanhadas por fotografias do recinto numa fase embrionária, ainda mero emaranhado de esqueletos de madeira. Três dias depois do início das obras, O Século antevia as principais características do espaço e respetivas animações a desenvolver (As Festas da Cidade, 1935a, p. 1). A 13 de março, o mesmo jornal noticiou que “os trabalhos [...] encontra[va]m-se avançadissimos: interiormente os terrenos estão desentulhados, traçados os arruamentos e principiados alguns edificios” (As Festas da Cidade, 1935b, p. 4) e a 14 de abril que as obras do Pátio das Comédias haviam começado cerca de uma semana antes, estando já alguns dos outros edifícios a ser pintados (Festas de Lisboa, 1935a, p. 14). A 11 de maio encontravam-se em conclusão as obras de canalização e eletrificação do espaço (A Reconstituição de um trecho da velha Lisboa, 1935, p. 1) e no dia 26 havia-se já “termin[ado] [...] toda a construção de madeira […] est[ando] a concluir-se os revestimentos de estaffe [e] inici[ado no dia anterior] a decoração e arranjo dos vários estabelecimentos de diversões” (Festas de Lisboa, 1935b, p. 2).
Enquanto no terreno se ultimava a construção das estruturas, dos gabinetes dos serviços camarários eram expedidos ofícios25 para diversas entidades de modo a satisfazer a longa lista de elementos decorativos requisitados por Matos Sequeira, que incluía alabardas dos museus dos Coches e Militar, mobiliário do Palácio das Galveias, figurinos e cenários do Teatro D. Maria II e um inusitado conjunto de animais do Jardim Zoológico (um corvo, catatuas, araras, papagaios, um macaco e dois pavões).
Para a execução dos elementos do recinto, Matos Sequeira serviu-se do seu admirável conhecimento a história da cidade e respetivas fontes iconográficas, a partir das quais foram realizadas, na oficina dos modeladores, várias reproduções de modelos antigos de janelas, portas, brasões e capitéis existentes no Museu do Carmo. Sob direção de membros da Sociedade Farmacêutica, a botica do recinto replicava uma gravura antiga; por sua vez, o barbeiro reproduzia o desenho dos azulejos do palácio dos Condes da Torre, em São Domingos de Benfica. Para o centro da praça Nova, a principal do recinto, foi executada uma réplica da Fonte do Neptuno existente no Rossio até 1786, aproveitando-se também um velho poço que havia sobrado das demolições do Convento das Francesinhas.
A vasta equipa era composta por Soares O’Sullivan e Jesuíno Galhardo (responsáveis pela planta do bairro, com Matos Sequeira), o construtor civil Álvaro Rodrigues Oliveira (parte técnica da construção), Alfredo Rocha Vieira (desenho e decoração das construções), João Rocha (modelação), Henrique Martins (construção do Pátio das Comédias), Maia Loureiro (estudo de acesso ao recinto e de policiamento), Frederico Vilar (estudo da localização dos postos de abastecimento de água), José Carlos Santos (iluminação exterior), Madruga de Morais (iluminação interior), Ricardo Leone (conceção dos vitrais para a Ermida de Santo António), o pintor José Estevão Victória Pereira, os antiquários Carvalho & Aguiar, Nobre & Cª, Cristiano José Vicente e Silva Nascimento (cedência de objetos antigos para decoração), o serralheiro Vicente Joaquim Esteves (cedência da armação de ferro do poço), Cardoso Marta (edição do jornal) bem como a Fábrica Constância de Leopoldo Battistini (conceção dos azulejos) e a Casa Olaio (fornecimento de mobiliário), entre outros.
O recinto era integralmente muralhado, contando com seis portas (três de entrada e outras tantas de saída) e dois postigos de serviço (um para o teatro e outro para a figuração geral). Um conjunto de construções impecavelmente erigidas em estafe armado por uma estrutura de madeira transportava o visitante para a Lisboa da época barroca (Figuras 8 a 11). A entrada principal (Porta da Esperança) localizava-se no gaveto da calçada da Estrela com a rua das Francesinhas, junto à qual se implantava uma torre com 10 metros de altura. Franqueada a porta, duas pequenas escadarias davam acesso ao Chão da Torre e daí à praça Nova (Figura 5 e 11), onde se situava a Estalagem do Vicente, que servia pratos típicos do século XVIII, em louças, vidros e talhares especialmente desenhados para o efeito, com motivos a imitar o antigo26. A partir da praça, um labirinto de tortuosas ruas percorria o recinto, dando ao visitante uma noção de grandeza que o terreno onde se implantava não possuía. Nos extremos nordeste e noroeste, implantavam-se os Palácios dos Corte-Real e dos Correia-Salema. A poente erguiam-se o Convento da Saúde (onde figurantes trajadas de freiras vendiam doces na portaria) e o Pátio das Comédias (Figura 9), o principal edifício do recinto. Com cerca de 1000 lugares divididos em diferentes categorias, nele ocorria uma substancial parte da animação do recinto. Existia ainda a Casa da Câmara, a Cadeia do Tronco, uma escola e cerca de 50 lojas, ocupadas com oficiantes habituais à época, a maioria localizada na rua dos Mercadores, a principal via do recinto que o percorria no sentido nascente-poente.
Uma estalagem, um picheleiro, uma cocheira de alugueis, um cesteiro, dois livreiros, dois louceiros, um ensamblador, um perfumista, quatro adegas, um neveiro, um serigueiro, uma botica, um barbeiro, três doceiros, um mercador, uma capelista, um estanco, um tapeceiro, um barbeiro, um ervanário, um passarinheiro, dois gazeteiros, um bate-fôlha, uma almoeda; uma tenda, um vinhateiro, tecelões, um estábulo, dois almazens, o Mal-cosinhado, o jôgo do arco, um prateiro e ourives, um gibeteiro, um santeiro, um chocolateiro, vários funâmbulos e volantins de praça e um mercado com vários logares, tendas e alpendres de louças, frutas, flôres, etc (Visitem Lisboa Antiga…, 1935).
Sobre um dos arcos, um grande painel azulejado indicava que NO ANNO DA GRAÇA DE 1935 AOS 14 DIAS DO MEZ DE FEVEREIRO SE COMEÇOU ESTA OBRA A QUAL SE FEZ PARA AS FESTAS DA CIDADE POR MANDADO DA CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA.
Foi impressa uma pequena brochura desdobrável [com um mapa do recinto da exposição (Figuras 6 e 7), algumas fotografias e um texto explicativo para o visitante] e lançada uma coleção de postais a partir de um levantamento fotográfico do Estúdio Novais-Benoliel (Figura 9). Não faltou sequer a edição de um jornal, a Nova Gazeta de Lisboa: Pregoeyro de novas, espelho de vaydades, desenfado de ociosos, escolho de ruindades, pelourinho de abusos, & Mercurio universal, que contou com seis números dirigidos por Cardoso Marta. De escrita e estilo arcaicos, era “huma sucinta recopilaçaõ dos casos dignos de menção” (Ao Leytor Pio, 1935, p. 1), noticiando as atividades decorridas no recinto e a presença de seus mais ilustres visitantes. Merece especial destaque o Itinerário de quatro páginas inserto no primeiro número, possivelmente a melhor e mais exaustiva descrição do espaço.
Mais de três centenas de operários chegaram a trabalhar nas obras do recinto, que se prolongaram até à véspera da inauguração. Às 17 horas do dia 4 de junho, a Lisboa Antiga foi inaugurada, tendo Matos Sequeira guiado um conjunto de personalidades, cuja presença atesta a importância atribuída à realização.
Quando ali chegou pontualmente o sr. Presidente do Conselho, o almotacem vestido a rigor da moda de setecentos, entregou-lhe as chaves dessa porta de honra. Abriu-a o sr. Dr. Oliveira Salazar. E entrou seguido por quasi todos os membros do Governo - ministros do Interior, Justiça, Guerra, Marinha, Negocios Estrangeiros, Instrução e Agricultura - altas personalidades do Exercito e da Armada [...]; presidente e vereadores da Camara Municipal, Comissão de Festas, governadores militar e civil de Lisboa; o sr. Dr. Julio Dantas, presidente da Academia de Ciencias e muitos outros convidados de categoria […]. Matos Sequeira fez, como ninguém, de cicerone da caravana. Passo a passo, deu as explicações devidas e apontou quanto o Bairro tem de característico, e muitíssimo é (Festas da Cidade…, 1935, p. 1).
A inauguração teve direito a ampla cobertura pela imprensa nacional que exaltou longamente o mérito do trabalho de Matos Sequeira, imortalizando a ligação do homem à sua obra (Figura 10). A consonância neste reconhecimento foi transversal à imprensa, ao grande público e à própria edilidade, personificado no muito elogioso discurso de abertura proferido pelo então presidente, Daniel Rodrigues de Sousa, que afirmou ser “esta sugestiva reconstituição dum trecho da velha cidade […] só possível de erguer graças à ciência e à sensibilidade dum arqueólogo ilustre e dum lisboeta devotadíssimo como o sr. Gustavo de Matos Sequeira” (As Festas da Cidade, 1935c, p. 5).
Tal como em muitas das reencenações do género, o espaço era animado por atores e figurantes trajados a rigor que imprimiam um verismo histórico que pretendia submergir o visitante na Lisboa do passado (Figura 11). Para o efeito concorreu também um vasto conjunto de iniciativas que incluía a representação de clássicos do teatro português e espanhol, festas temáticas e populares, bailes e recriações históricas de julgamentos que tinham como réus as muitas personalidades em visita ao recinto.
Ao longo do período em que esteve em atividade, a imprensa manteve a ampla cobertura da Lisboa Antiga, com a tónica nestas iniciativas e na enorme participação do público. Segundo contas da autarquia, foi visitada por cerca de 180 000 pessoas, um número ainda mais impressionante se for tido em consideração que, na maioria dos dias, o recinto abriu apenas às 19 horas. Compreendendo a importância histórica desta realização, diversas instituições de ensino solicitaram à CML a cedência de ingressos para a realização de visitas de estudo. Os próprios serviços camarários foram exímios no aproveitamento da Lisboa Antiga para efeitos propagandísticos ao criar nela espaços de exposição e venda de publicações editadas pelo Secretariado de Propaganda Nacional, Conselho Nacional de Turismo, Sociedade de Propaganda de Portugal e pelos próprios serviços culturais da CML, de entre as quais os dois primeiros volumes da edição crítica da Lisboa Antiga - Bairros Orientais de Júlio de Castilho, acabados de imprimir. Mas também na forma como contactaram diversas companhias turísticas e de vapores procurando cativar a visita de estrangeiros de passagem pela cidade em troca de um desconto de 20% no preço do ingresso e da possibilidade de visitas fora do horário habitual de funcionamento.
O enorme sucesso levou a que diversos comerciantes que exploravam lojas no recinto se tivessem juntado e contratualizado com a autarquia a cedência da gestão do espaço e respetivas valências por mais dois meses para além da data prevista de encerramento, prolongando-a até 30 de setembro. Uma vez terminada a concessão, o recinto permaneceu devoluto durante alguns meses. Já em 1936, serviria ainda de cenário para o filme Bocage, realizado por Leitão de Barros (1896-1967) com a colaboração de Matos Sequeira na cenografia, diálogos e letra de canções, provando o caráter multifacetado desta parceria. Este aproveitamento não é casual, dado a Lisboa Antiga ser também um fenómeno contemporâneo, complementar e tributário do advento do cinema português, que acrescentou escala e vida à cenografia teatral, trazendo-a para a rua e com isso transformando a cidade no seu palco. Basta atentar a algumas das cenas dos filmes de cariz historicista ou popular da década de 1930 para se detetar a enorme semelhança entre a Lisboa Antiga e os cenários que para esse efeito foram criados na Tobis Klangfilm Portuguesa, representações de uma idealizada e típica Lisboa, sem referentes e, portanto, de todos. Mas os pontos de contacto com o cinema não se esgotam na cenografia, estendendo-se também à mencionada presença de figurantes e de atores em figurinos de época, numa encenação em toda a literalidade da palavra.
Não obstante as muitas vozes que se levantaram pela sua manutenção e o facto de o próprio presidente da autarquia ter chegado a aventar a possibilidade da sua reconstrução com materiais mais resistentes, a exposição acabou mesmo definitivamente desmantelada.
Do ponto de vista financeiro, a Lisboa Antiga deixou um pesado prejuízo para os cofres da autarquia. Neste particular, a ação de Matos Sequeira foi particularmente visada no relatório final das Festas da Cidade, elaborado a 22 de agosto de 1935 pelo engenheiro camarário Mário Santos. É-lhe apontada a falta de planeamento27 e o facto de ter tomado para si todas as contratações e compras, com isso elevando substancialmente os gastos ao não permitir que as tarefas fossem executadas pelos serviços camarários, que poderiam ter conseguido preços mais vantajosos por estarem mais familiarizados com o processo aquisitivo. Termina traçando um cenário catastrófico do ponto de vista financeiro (“a despeza efectuada com a construção e manutenção da Lisboa Antiga, é de cerca de 1.100.000$000 escudos. Em contra-partida temos uma receita de escudos 350.000$00”28), que acabaria por não se confirmar no apuramento final das contas29.
Natural reflexo da impressionante dimensão do evento, os mais de 850 contos de prejuízo destas Festas de Lisboa impediram a sua realização nos anos seguintes. No entanto, as edições de 1934 e 1935 foram pontos-chave do impulso da política cultural da CML. E, ao se ter constituído como “uma das mais enternecedoras, das mais belas e das mais educativas lições que o Municipio se propôs a dar à população da capital” (As Festas da Cidade, 1935c, p. 5)30, a Lisboa Antiga foi fundamental nesta missão de aproximar os lisbonenses à história da sua cidade.
O pós-Lisboa antiga. Projetos e realizações subsequentes
A forte adesão do público e uma (quase) unanimidade no aplauso à Lisboa Antiga potenciaram o surgimento de novas realizações do género em Portugal (ou de iniciativa portuguesa) ao longo da década seguinte, que encontraram a sua maior expressão em 1940, numa Exposição do Mundo Português ideologicamente mais impregnada do que as Festas da Cidade. Organizado pelo Secretariado de Propaganda Nacional, o recinto das Aldeias Portuguesas nela criado constituiu um panorama de conjunto das arquiteturas regionais portuguesas que materializava o “apoi[o] e acompanha[mento de] recolhas etnográficas, pesquisadas no terreno, que […] alimentaram […] um regresso à tradição, num misto de curiosidade e ideologia.” (Acciaiuoli, 1991, p. 216). O plano original, traçado por Raul Lino (1879-1974) “com o rigor e a erudição que se lhe conhecia - onde havia lugar para reconstituições fiéis de localidades a que não faltavam os pesados castelos - não [...] agrad[ou] completamente à visão literária de [António] Ferro que [...] desejava «um conto de fadas»” (Acciaiuoli, 1991, p. 218), motivo pelo qual o terá substituído por Jorge Segurado (1898-1990). Ferro, seu grande ideólogo, pretendia aqui criar “um Portugal pequenino, de trazer ao peito onde apetece[sse] colher indiferentemente rosas e casas. [No entanto, recusava a ideia de se tratar de] um cenário de revista” (Na Exposição de Belém, 1940, p. 2)31, mas antes de uma expressão viva da portugalidade, oferecida ao visitante por um espaço vivido por “camponeses autênticos, filhos da terra” (Na Exposição de Belém, 1940, p. 2)32 (e não por figurantes), que com eles traziam e desvendavam os saberes e fazeres tradicionais das suas regiões. Ao contrário da Lisboa Antiga, que pretendia a imersão num tempo outro, as Aldeias Portugueses colocavam o visitante num espaço outro, no “Portugal pequenino, que [foi] o pai do Portugal maior” (Na Exposição de Belém, 1940, p. 2)33 (Figura 12 e 17).
Ainda em 1940, em Coimbra, foi inaugurado o Portugal dos Pequenitos, um parque de miniaturas34 que, depois de mais de duas décadas de ampliações e de oito de atividade contínua, se mantém como a principal construção do tipo em Portugal. Idealizado por Bissaya Barreto (1886-1974) e projetado por Cassiano Branco (1897-1970) é composto por quatro núcleos (ou lições): Portugal Metropolitano (edifícios regionais), Casa de Coimbra, Secção Etnográfica Metropolitana (pavilhões regionais) e Secção Colonial e Insular (edifícios coloniais e insulares). Tal como Ferro nas Aldeias Portuguesas, Cassiano recusou a ideia de a sua obra
pode[r] ser considerad[a] um [mero] museu de miniaturas arquitectónicas de Portugal. [...] [Instou, pois, a que fosse apreendida a sua] feição pedagógica [...], inspirada nos métodos preconizados e defendidos pelos maiores pedagogos como Pestalozzi, Froebel, Montessori, e outros, e executada com o objetivo de ensinar a criança [...] [, considerando-a] uma biblioteca para crianças, para ser lida por todos os sentidos (Branco Apud Guedes e Nogueira, 2015, p. 23-24).
Projeto similar viria a ser desenvolvido em 1955 pelo arquiteto Eurico Pinto Lopes, técnico do Gabinete de Urbanização do Ultramar, para a gorada participação portuguesa na secção internacional no Children’s Park de Oakland na Califórnia, para o qual se programava
edificar um pequeno jardim infantil, tendo como motivos principais casas da Metrópole […] não só pelo seu significado regional [...] [mas também porque] esses elementos tradicionais da nossa arquitectura, ter[iam] com certeza em terras distantes da América, um lenitivo de saudade para os portugueses e o respeito e admiração dos americanos pela nossa arquitectura regional35.
Tal como nas Aldeias Portuguesas, procurou-se reproduzir um conjunto de edificações regionais ou coloniais que representasse o conceito de identidade portuguesa ao público. Extrapolando o contexto do mero interesse histórico-patrimonial, este tipo de realizações enquadrava-se num contexto profundamente mais complexo do que aquele em que assentou a conceção da Lisboa Antiga.
Enquanto isso, Matos Sequeira não abandonou o romantismo fora de tempo evidenciado em 1935. Para a Exposição do Mundo Português, idealizou uma reprodução da Casa de Santo António e o Bairro Comercial e Industrial (Figura 13), desenvolvido em parceria com o arquiteto Vasco Regaleira (1897-1968) e em colaboração com as Associações Comerciais de Lisboa e Porto e Industriais Portuguesa e Portuense. Composto por estabelecimentos comerciais, este bairro resultaria numa proposta híbrida, incompreensível na forma como pretendia exibir
uma porção do fácies antigo da urbe emporial que foi Lisboa, nervo e centro do comércio de quinhentos […] [, mas acabou por se constituir num] aglomerado de construções onde se fixaram vários tipos do habitat português, aproveitando sugestões arquitectónicas do Minho, da Beira, do Alentejo e doutras regiões […] oferece[ndo] uma série variada de aspectos do mais saboroso pitoresco (Sequeira, 1956).
Não obstante esta manifesta incongruência, é inequivocamente o caso que mais se aproxima da Lisboa Antiga no propósito e na fisionomia (Figura 14).
Voltaria ainda a desenvolver uma derradeira realização em 1943, com um conjunto de construções para a Feira Popular de Lisboa, então instalada no Parque de Santa Gertrudes, à Palhavã. Inicialmente pensada para ser uma reconstituição de uma antiga feira lisboeta, mudaria de configuração poucos depois e
ao improvisado pitoresco das tendas que procuravam dar réplica das barracas [dos mercados] de Belém e de Alcântara, houve que suceder, com a regularidade dos alinhamentos, o tijolo e o estafe, com as suas possibilidades de adorno, dentro do influxo deixado pela Lisboa Antiga [...]. Arcarias, chaminés historiadas, casario típico, com motivos populares portugueses, desde o beiral ao registo de azulejos, alinharam-se então, nas ruas ensombradas do Parque (Sequeira, 1949, p. 28)
, destacando-se uma reencenação fiel da Casa dos Bicos com os quatro pisos originais, antes ainda de a verdadeira os ter recuperado (Figura 15). Contrariamente às experiências anteriores, não se tratava de um recinto fechado, mas apenas de mero fachadismo de uma pequena fiada de construções.
Conclusão
Com a realização da Lisboa Antiga, Matos Sequeira procurou exaltar a cidade antiga através da encenação idealizada de uma realidade supostamente perdida, mas que, em rigor, ainda existia (Figura 16).
Na sua essência, diferia da Alfama de princípios de Novecentos na forma assética como foi concebida e na pacata presença de um conjunto de figurantes ciosos que tomavam o papel dos que nesses bairros viviam e cuja miserabilidade continuava a ser uma chaga para a cidade. De entre as 180 000 pessoas que pagaram 2$50 para visitar a exposição de Matos Sequeira, certamente apenas uma minoria ousaria entrar nos velhos e insalubres bairros da cidade para ver uma Lisboa Antiga real na qual, segundo Malheiro Dias, “a casa do pobre fica[va] n’uma viella ou betesga, nas alfurjas da velha judiaria, em recantos de sombra e de humidade, entre saguões immundos. A janella [...] quasi uma fresta. O ar [...] quasi uma hypotese. Já em vida, o pobre se vae habituando á valla comum, na promiscuidade dos casarões [destes bairros]” (Dias, 1905, p. 275).
Na prática, se na Paris de 1900 se recuperaram trechos recém-desaparecidos em nome dos novos ideais urbanísticos, na Lisboa de 1935 encenaram-se aspetos ainda presentes na cidade, mas que por serem incómodos se pretendiam expurgados.
Ainda que esta iniciativa se constituísse como uma romântica realização na senda do minucioso trabalho de investigação e do amor de Matos Sequeira (e dos demais olisipógrafos) à sua cidade, não pode ser dissociada do tempo nem do contexto em que ocorre, o de umas Festas de Lisboa realizadas pela Comissão Administrativa da CML com o apoio e a (omni)presença do Estado Novo. Mesmo apontando a uma mera recriação idealizada, todo o seu invólucro era o da apropriação da história da Capital do Império por parte da ideologia política vigente. E se dúvidas subsistissem, “entre as louças que [nela] se vender[am] ao publico, figura[ra]m uns pratos côvos, de azul ferrete, onde se l[ia] uma quadra em louvôr do dr. Oliveira Salazar, de recorte tão gracioso como popular [Ó meu rico Sant’Antonio / Bem me podias casar / De um e um fazias três / Como faz o Salazar]” (As Festas da Cidade, 1935d, p. 5).
A Lisboa Antiga é, assim, tributária da reapropriação do caminho de busca de identidade local e nacional e da consciencialização da importância do património da cidade, iniciado quase um século antes. É, portanto, fruto do seu tempo. De um tempo de encenada propaganda política em que o passado era entendido e tomado como legitimador do ideal de engrandecimento do país que o recém-criado Estado Novo procurava promover (Figura 17). Sem este contexto político-ideológico, ávido de aproveitar, incorporar e propagandear as suas realizações, dificilmente a olisipografia teria tido uma expressão relevante. E menos provável ainda teria sido Matos Sequeira conseguir reunir as condições ideais para a concretização desta sua reconstituição de um trecho da antiga cidade.
No entanto, a vida moderna não se extinguiu, coabitando com a tradição de forma mais ou menos pacífica, mais ou menos concertada. Num dinâmico encontro entre passado, presente e futuro, a Lisboa Antiga de Matos Sequeira era contemporânea da moderna Lisboa de Duarte Pacheco, de largas avenidas e novos bairros, uma vez mais revelando uma cidade com estados de alma contraditórios, mas complementares.