Introdução
A efeméride do bicentenário da Independência do Brasil vem sendo marcada por uma série de eventos e publicações que buscam revisitar esse fato histórico, discutindo seus antecedentes, bem como suas consequências políticas, econômicas, sociais e culturais, como o que se apresenta neste dossiê. Nesse sentido, propõe-se no presente artigo uma discussão que busca relacionar a emancipação política brasileira e as tentativas de eliminação do entrudo como prática de comemoração do Carnaval. A partir da análise de um conjunto documental diversificado, que inclui relatos de viajantes, dicionários de época, jornais, obras literárias e documentos oficiais, como posturas municipais, alvarás, leis e decretos, trabalha-se com a hipótese de que a perseguição ao entrudo seria também o rechaço a uma identidade portuguesa e a busca por uma “brasilidade”, fundamentada no ideal de civilização, aos moldes de outras nações europeias.
De acordo com Pimenta (2006, p. 71), “no mundo colonial, o substrato identitário da colonização portuguesa era marcado por coexistência de identidades coletivas múltiplas e de variada abrangência, cuja interelação se desenvolvia seguindo os padrões mais amplos de reprodução e complexificação do Império Português”. Até a Independência, não havia uma noção de identidade nacional brasileira, colonos portugueses também eram mineiros, paulistas, baianos, dependendo da base territorial específica de sua existência no conjunto do Império, estando essa heterogeneidade subordinada no plano identitário à nação portuguesa (Pimenta, 2006). É nesse sentido que seu lugar de origem era entendido como sua pátria, enquanto o Brasil era o país ao qual pertenciam, dentro dessa grande nação que era a portuguesa (Berbel, 1999; Jancsó & Pimenta, 2000)1.
Tendo como componente fundamental “a identificação da grande comunidade integrada por todos os súditos do mesmo rei (de Portugal), gravitando em torno de sua imagem, da dinastia e da sede da monarquia, portadores - ao menos oficialmente - da religião católica”, a nação portuguesa era “a mais estável e abrangente identidade coletiva em vigência no mundo português” (Pimenta, 2006, p. 71). Contudo, a partir de 1822, com a emancipação política do Brasil, a fonte original da legitimação da soberania territorial na América portuguesa foi suprimida. Representando uma solução provisória para o problema da legitimidade territorial, o império de D. Pedro I era uma espécie de “continuidade na ruptura”, precisando gerir “múltiplos e eventualmente conflitantes interesses das oligarquias dominantes, que se expressavam de modo desigual no vasto território brasileiro” (Magnoli, 2003, p. 286). Esse descontentamento das elites regionais, sobretudo no que tange a centralização do governo imperial, levou-as a conspirar contra a unidade política do império brasileiro, chegando a invocar a origem lusitana de D. Pedro I e a afirmar que o país estaria ainda atrelado aos interesses da antiga metrópole (Magnoli, 2003). A grande quantidade de portugueses que faziam parte do quadro administrativo do país, bem como sua proximidade com o imperador fez com que aumentasse a desconfiança em relação ao governante, bem como a hostilidade contra seus conterrâneos. O antilusitanismo foi assim “um dos caminhos utilizados para o reconhecimento de uma nacionalidade brasileira a sobrepor-se às fidelidades regionais predominantes no período anterior à Independência” (Souza, 2005, p. 136-137).
A partir de 1831, com a abdicação de D. Pedro I, o país passaria “por um processo de nacionalização dos quadros dirigentes do Estado e a identidade brasileira é, assim, contraposta e polarizada à identidade lusitana, visto que a restauração do ex-imperador - mais do que nunca vinculado a grupos lusos - ainda era um projeto altamente viavel” (Feldman, 2008, p. 37). Dessa forma, a vaga construção da nacionalidade “implicava um corte com o passado colonial do qual os portugueses ainda residentes no Brasil eram vistos como herdeiros”, mesmo após a morte do antigo imperador (Souza, 2005, p. 137).
Ao discutir o processo de formação identitária da nação brasileira, tomando a Independência como ponto de partida e a abdicação de Pedro I como o de chegada, Ribeiro (2002) destaca que o “ser brasileiro” foi constituindo-se como uma construção histórica, oposta ao “ser português”, ao mesmo passo em que a tradição e a cultura portuguesa, arraigadas nas instituições, no cotidiano e nas mentes do Brasil, subsidiavam atitudes ambíguas, numa “curiosa oscilação entre a imitação e a rejeição do ‘ser português’” (apudNeves, 2003, p. 184). É importante destacar que, entendida enquanto discurso e construída a fim de se criar uma consciência de unidade, a identidade nacional é elaborada a partir da diferença em relação ao outro. De acordo com Reis (2006, p. 12):
As identidades são relacionais e mudam em cada relação. A identidade precisa de algo fora dela, da alteridade, outra identidade, que ela não é, e nessa relação com o outro, as identidades são construídas. Uma identidade exclui, cria o exterior. Ela é uma homogeneidade interna, um fechamento. É um ato de poder. As identidades são construídas no interior do jogo de poder e da exclusão. Não são naturais, mas difundidas em lutas históricas.
No caso da incipiente nação brasileira, o outro era Portugal e a construção de sua identidade teria que levar em conta a “herança portuguesa e, ao mesmo tempo, apresentar o brasileiro como alguém diferente do lusitano” (Fiorin, 2009, p. 17). É nesse sentido que os festejos de Momo engendrariam esse duplo sentido identitário, enquanto herança e na qualidade de diferença, como veremos a seguir.
Entrudo e carnaval na construção identitária brasileira
O Entrudo foi a maneira como o Carnaval chegou ao Brasil, através do colonizador português. Do latimintroitus, designa o período de introdução à Quaresma, data cristã assinalada pelos quarenta dias que antecedem à Páscoa. Uma série de brincadeiras e festividades que acontecia nos três dias anteriores à Quarta-feira de Cinzas e que, segundo a análise de Julio Carlo Baroja, “só tem sentido como catarse preparatória para justificar a entrada na quaresma” (apudSohiet, 1998, p. 3).
No Novo dicionário de língua portuguesa, de 1861, Eduardo Faria indica que durante esses três dias era “uso em alguns países divertir-se o povo banqueteando-se, molhando-se uns aos outros, empoando-se e fazendo outras peças jocosas” (apudFlores, 1999, p. 149). Era também o momento de se “comer lautamente carne antes da quaresma” (apudFlores, 1999, p. 149). Interessante destacar que, em outubro de 1550, por meio de alvará régio, D. João III determinava que “até ao Entrudo de 1551 possam cortar e vender carne na corte e na cidade de Lisboa, a carne de vaca a 6 reais, o arratel, o carneiro e porco a 7 reais, mesmo que estes preços sejam mais elevados do que contém a ordenação”2 e, em abril de 1552, o rei ordenava que não houvesse taxa sobre a carne em todo o reino até ao Entrudo de 15533. Tais evidências demonstram a marcante presença da data no calendário português. Conhecido como “dias gordos”, justamente pela abundância de vinho, carne e sexo, o Entrudo contrapunha-se aos quarenta dias de abstinência, jejum e penitência que caracterizavam a Quaresma.
O poeta lisboeta Antônio Serrão de Castro (1610-1684), no soneto Festas Bacanais, destacava a multiplicidade de atividades que caracterizavam os folguedos de Entrudo, celebração regada pela abundância de comidas, pregação de pilhérias e sátiras, arremesso de água, laranjas e farinha. Vejamos abaixo:
Filhós, fatias, sonhos, mal-assadas,
Galinhas, porco, vaca, e mais carneiro,
Os perus em poder do Pasteleiro,
Esguichar, deitar pulhas, laranjadas.
Enfarinhar, pôr rabos, dar risadas,
Gastar para comer muito dinheiro,
Não ter mãos a medir o Taverneiro,
Com réstias de cebolas dar pancadas.
Das janelas c’ um tanho dar na gente,
A buzina tanger, quebrar panelas,
Querer em um só dia comer tudo.
Não perdoar arroz, nem cuscuz quente,
Despejar pratos, e alimpar tigelas,
Estas as festas são do gordo Entrudo4
Abarcando uma diversidade de diversões e de jogos, os folguedos variavam de uma região para outra e traziam costumes típicos do lugar. Segundo Ferreira (2006, p. 12), “muitas dessas diversões possuíam características agressivas, possivelmente herdadas dos charivaris medievais, durante os quais certos grupos de pessoas criticavam as atitudes que desviavam da norma social através de zombarias e pancadarias simbólicas”. Nesse sentido, analisando a cultura cômica popular na Idade Média e no Renascimento, Mikhail Bakhtin (1987, p. 8) destaca o potencial libertador das festas, em especial do Carnaval medieval, ao expor ao ridículo e ao riso as regras e crenças estabelecidas em determinada época. Penetrando o povo “temporariamente no reino utópico da universalidade, liberdade igualdade e abundância”, durante o Carnaval ocorria “o triunfo de uma libertação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, regras e tabus”. Desse modo, o riso cômico, carnavalesco, era dotado de uma força renovadora e regeneradora positiva e podia também ser vislumbrado nas brincadeiras de Entrudo.
Ao destacar a dimensão grotesca do Entrudo, o escritor luso Júlio Dantas, em artigo publicado na Gazeta de Notícias, em 21 de fevereiro de 1909, declarava que “nós, portugueses, nunca compreendemos que o entrudo pudesse ser uma festa d’arte como na Itália da renascença, ou uma festa d’espírito como na França de Luis XIX [sic]. O nosso entrudo foi sempre, desde o século XVII, fundamental e caracterizadamente porco. E mais: boçal, imundo, desordeiro e criminoso” (apudAlbim, 2006, p. 160).
Ignorando a visão carnavalesca de mundo que transcende o sentido progressivo ao regenerador da vida, Júlio Dantas não compreendia que “no realismo grotesco do sistema de imagens da cultura cômica popular, a grosseria do princípio material e corporal manifesta um caráter positivo e afirmativo na sua universalidade, ludicidade e utopia” (Miranda, 1997, p. 131). Como destacou Bakhtin (1987, p. 17), “a abundância e a universalidade determinam por sua vez o caráter alegre e festivo (não cotidiano) das imagens referentes à vida material e corporal. O princípio material e corporal é o princípio da festa, do banquete, da alegria, da ‘festança’ ”. De acordo com Rachel Valença (1996, p. 10):
Desde o século XVII, os portugueses brincavam nas ruas de Lisboa um carnaval diferente. Correndo desordenadamente de um lado para o outro, atirando ovos crus, líquidos de toda espécie, farinha e substâncias menos limpas nos transeuntes, os lisboetas e habitantes da cidade do Porto participavam de um tipo de carnaval característico da Península Ibérica e que daí passou para as Américas portuguesa e espanhola, popularizando-se entre nós.
Ao que tudo indica, uma das primeiras referências ao Entrudo em Portugal encontra-se num documento de 1252, no reinado de D. Afonso III, embora não propriamente relacionado com as festividades carnavalescas, mas com o calendário religioso (Barros & Costa, 2002). Já no Brasil, ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII são escassas as referências à festividade, mas sabe-se que em Pernambuco o Entrudo já era festejado desde 1553. Por ocasião da Primeira Visitação do Santo Ofício em Olinda, em depoimento às Denunciações do Santo Ofício, Diogo Gonçalves relembrava que o proprietário da terras do Engenho Camaragibe “ofereceu aos seus trabalhadores como almoço numa terça-feira de entrudo, algumas tainhas secas” (Silva, 2016, p. 27). No Ceará setecentista, por ocasião do nascimento do Infante D. José, a Câmara de Aquiraz parabenizava a rainha D. Maria I, informando que tinham sido feitas “‘demonstrações de alegria que couberão na pobreza da terra’. A exemplo do ritual adotado para comemorar os casamentos reais, as festividades em Aquiraz, constaram de três noites sucessivas de luminárias, e três dias de ‘entrudo’ ” (Moura Filha, 2007, p. 5). Já no extremo sul do Brasil, o comerciante inglês John Luccock, em sua passagem pela região, no ano de 1808, registrava em seu diário a ocorrência dos folguedos pré-Quaresma, a que “chamam de entrudo, durante os quais munem-se de umas bolinhas ocas feitas de cera colorida, do tamanho e forma de uma laranja, enchem-nas d’água e lançam-nas uns nos outros até que os combatentes ficam totalmente molhados” (apudFerreira, 1970, p. 10).
Ao adentramos ao século XIX, as referências à prática do Entrudo passam a ser abundantes, sobretudo as de caráter crítico ao folguedo. Por essa época, a vida na colônia americana mudava radicalmente, afinal a transferência da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro, em função da expansão napoleônica pela Europa, levaria a uma série de transformações em solo colonial. Desde o fim da exclusividade comercial com Portugal, a partir da abertura dos portos às nações amigas, à vinda da Missão Artística Francesa, que incentivava o desenvolvimento das artes no agora Reino Unido a Portugal e Algarves, gradativamente a colônia foi se tornando uma metrópole interiorizada e o Rio de Janeiro a capital do vasto império português (Dias, 2005).
Além disso, todo o aparato administrativo do Estado também se transferira para além mar, onde foi necessário criar instituições que sobrepunham a antiga ordem colonial. Em maio de 1808, por exemplo, criou-se o cargo de intendente-geral da Polícia da Corte e Estado do Brasil, a fim de garantir a ordem pública. A proposta de combater os distúrbios urbanos não somente por uma lógica meramente punitiva, tornava a civilidade um instrumento de controle social, através de medidas necessárias para o ordenamento do espaço público, focadas em três eixos: urbanização da cidade, civilização da população e garantia da tranquilidade pública (Gagliardo, 2014). Apesar disso, é importante destacar que “durante a década de 1810 a Intendência de Polícia do Rio de Janeiro não expressava preocupações com a folia que antecedia a Quaresma, embora interviesse em outros aspectos da vida nas ruas” (Kraay, 2015, p. 442)5 e que a Gazeta do Rio de Janeiro, periódico oficial da Corte no Brasil e o primeiro a circular na cidade, entre os anos de 1808 e 1822, jamais mencionou problemas em decorrência do Entrudo.
As primeiras demonstrações de descontentamento com o antigo costume vieram já no contexto da Independência. Dias antes de D. Pedro decidir permanecer no Brasil, contrariando as ordens das Cortes de Lisboa, nascia no Rio de Janeiro o jornal O Compilador Constitucional Político e Literário Brasiliense. De propriedade de José Joaquim Gaspar do Nascimento e de João Batista de Queirós, o periódico se posicionava contrário ao Entrudo, afirmando que:
Já se tem passado dois entrudos depois de proclamar-se a constituição; e bem desejarmos que ela dando juízo aos povos fizesse-lhe não chegar a um terceiro brinquedo de entrudo, ou de insultos, restos de superstição, e barbaridade antiga, que já foi banida das mais civilizadas Nações da Europa, a quem devemos imitar, esforçando-nos para logo as igualarmos nas melhores e principais coisas, usos e costumes, que os não podermos exceder: nisto é que cuidam os legítimos constitucionais, e não em dispendiosas loucuras, e desordens e mortes, como as que sempre se fazem pelo entrudo, por isso dizem os Mouros, que os Cristãos ficam loucos três dias em todos os anos, até que no quarto dia seus Sacerdotes lhe metem o juízo na cabeça, ou lhes dão a cinza no dia próprio6.
Em função do descontentamento com a permanência da Corte no Brasil, em agosto de 1820, eclodira a Revolução do Porto. Movimento revoltoso, de cunho liberal, levou a instituição das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, extinguindo o Estado absolutista e instituindo uma Monarquia Constitucional em Portugal. A fim de elaborar e aprovar uma constituição, as Cortes se reuniram em janeiro de 1821, apenas com deputados portugueses, e aprovaram as Bases da Constituição, documento inspirado no modelo espanhol (Constituição de Cádiz), que orientou os trabalhos para a elaboração da carta magna (Berbel, 2006). Ao acatar suas exigências, e partir do Brasil, em abril de 1821, deixando seu filho como príncipe regente, com “todos os poderes para a administração da justiça, fazenda e governo econômico”, resolvendo “todas as consultas relativas à administração pública” (Brasil, 1889, p. 72), D. João VI ordenou que se procedesse as eleições dos deputados que representariam o Reino do Brasil na Constituinte em Lisboa. As Cortes, contudo, tomaram uma série de medidas que visavam restaurar a antiga condição colonial e acabaram por exigir o retorno imediato do príncipe regente a Lisboa, fazendo com que as divergências entre os parlamentares dos dois reinos se acentuassem (Berbel, 2006). Reverberando as discussões que se faziam premente e com o objetivo de criticar o Entrudo, O Compilador Constitucional Político e Literário Brasiliense fazia referência aquilo que deveria ser a preocupação de legítimos constitucionais: nos igualarmos às civilizadas nações europeias extirpando antigas e bárbaras tradições. Vale destacar que, se mostrando favorável ao retorno do príncipe regente a Portugal, o jornal acabou por ser suspenso em maio de 1822, por ordem de José Bonifácio, preocupado com a governabilidade do Reino do Brasil (Sodré, 1999; Lustosa, 2010).
No caso de Portugal, embora proibido desde 1734, o Entrudo ainda não havia sido banido dos costumes da população. Em edital de 25 de fevereiro de 1808, o intendente geral da Polícia Lucas Seabra da Silva, ressaltava a necessidade de se observar os decretos, de 6 de fevereiro de 1734 e 4 de fevereiro de 1735, que proibiam “toda qualidade de jogos de Entrudo” e estipulavam “castigos em Pena de prisão, e pecuniárias à arbítrio desta Intendência, nos casos menos graves; ou para serem demorados na Cadeia à ordem do Governo deste Reino, quando assim o exija a gravidade de circunstância” (Portugal, 1808). Já na capital do Império do Brasil, em 1826, o Diário do Rio de Janeiro publicava uma declaração de Antônio José da Rocha (no impedimento do Oficial Maior) que, em conformidade com o edital da Intendência Geral da Polícia do ano anterior, proibia “o jogo do entrudo dentro do Teatro”, bem como “gamelas e bacias com águas, dispostas pelas ruas para se molhar violentamente as pessoas que passarem, e do que muitas vezes resulta desordem”7. No ano seguinte era publicada outra proibição ao “jogo do entrudo, pelas ruas e mais lugares públicos; por ser contraditório a geral demonstração do luto que nos cobre”. A reprovação ao folguedo não era em função da prática em si, mas por não ser uma ocasião propícia para a demonstração de alegrias, provavelmente, em virtude do falecimento da Imperatriz Maria Leopoldina, em dezembro de 1826, e informava que “as rondas, patrulhas e soldados de polícia dispersarão moderadamente os indivíduos livres, ou escravos que forem encontrados neste jogo”, e orientava a prisão daqueles que “sendo previamente advertidos para se absterem dele, não obedecerem prontamente”8.
Em relatos de sua viagem ao Brasil, entre os anos de 1828 e 1829, o clérigo inglês Robert Walsh contava que no período que precedia a Quaresma, os brasileiros se entregavam ao Entrudo com “desenfreada hilaridade”.
Um amigo me trouxe para fazer uma visita, e a primeira saudação que recebemos foi uma chuva de ovos verdes e amarelos lançados em nossos rostos, por todas as belas fêmeas da família. Fomos então convidados para as varandas das janelas, e vimos todos aqueles na rua cheios de meninas, espiando e observando a aproximação de alguma vítima. Quando algum aparecia, era assaltado em todas as direções, e fugia jorrando de água, e seu chapéu e casaco cobertos de cascas de ovos verdes e amarelas. Se ele parasse por um momento, sem ver ninguém, e tirasse o chapéu para tirar o molhado, alguma menina risonha, perdida em uma janela superior, estava pronta com uma bacia de água, que desceu sobre ele em um lençol; se corria para o lado oposto para evitá-lo, recebia outro; e se ele pegou o meio da rua estreita, provavelmente recebeu os dois juntos (Walsh, 1830, p. 279)9.
Ao assinalar o forte protagonismo das mulheres nas brincadeiras de Entrudo, Walsh demonstrava um certo estranhamento, afinal eram “as garotas brasileiras naturalmente pensativas e retraídas; mas nesta estação elas mudam seu caráter, e sua seriedade e timidez são por três dias, perdidos em alegria inextinguível” (Walsh, 1830, p. 380)10. O entusiasmo com a brincadeira das molhadelas era tamanho que, segundo ele, “um dos jornais reclamou seriamente, que as fontes de água se esgotariam, e os habitantes, pelo seu desperdício profuso nesta ocasião, ficariam sem esse artigo necessário da vida” (Walsh, 1830, p. 381)11.
A partir da transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro (1808), muitos estrangeiros aportaram no Brasil, em busca de comércio, em expedições científicas ou missões artísticas, a exemplo de Walsh, e acabaram por deixar suas impressões sobre usos e costumes da terra. Outro caso foi o do comerciante Ernest Ebel, natural de Riga, capital da Letônia, na época controlada pelo Império Russo, que viveu no Rio de Janeiro, no início do período imperial, e registrou diversos aspectos da vida naquela cidade, inclusive a respeito do Carnaval. Em sua visão, o Entrudo “era uma brincadeira absurda a que se entregam não só conhecidos mas toda a sorte de gente”. E ai de quem não gostasse de cair na brincadeira! “Dois oficiais estrangeiros quiseram entrar à força numa casa, de onde haviam recebido um banho involuntário; foram repelidos com tal furor aquático que, de golpe se lhes arrefeceu o ânimo e, ante gargalhada geral, tiveram que bater em retirada; noutra ocasião, chegou-se mesmo a facadas” (Ebel, 1972, p. 38).
Destaca-se que entre 1808 e 1821 a população do Rio de Janeiro quase dobrou de tamanho. Segundo Walsh, os estrangeiros (que passaram a ser tão numerosos no Rio de Janeiro) pareciam ser os principais objetos de ataque e nem sempre apreciavam. Em função disso, haviam sido publicados editais que proibiam a brincadeira nas ruas e nos teatros. “Guardas, portanto, foram colocados em todas as partes da cidade; mas a ‘sociedade civilizada’ do Rio não lhes deu respeito, e por fim também se juntaram na diversão nacional” (Walsh, 1830, p. 381)12.
Com o aumento da população e diante da presença de estrangeiros acostumados a outros tipos de manifestações carnavalescas, o Entrudo passou a ser caracterizado como um bárbaro costume, inimigo da civilização. Em correspondência ao Diário Fluminense, primeiro periódico oficial da Corte, em nome do bem público e de sua própria conveniência, sob a assinatura de O Entrudado, questionava-se: “Qual será o motivo porque tendo desaparecido dentre nós tantos abusos, ainda se conserva o pernicioso divertimento do malvado entrudo? Será por ventura em respeito à sua diutrunidade que se tolera os seus desgraçados efeitos de prisões, desordens, doenças e mortes?”13.
Alegando ser uma vítima do divertimento, o correspondente recorria ao redator do jornal, pois “suas reflexões sempre tão judiciosas, e cheias de conceito, jamais deixarão de ser bem acolhidas das autoridades a quem elas se dirijam, fazendo assim V. m. mais um serviço ao público, e obséquio ao seu atento admirador”14. Embora apelasse para a influência do redator junto às autoridades a fim de suprimir a brincadeira, o Entrudado desconsiderava seu arragaimento junto à população, que permanecia se entregando ardorosamente à folia, até mesmo aqueles que por ofício deveriam coibi-la.
“Todos os anos a experiência mostra os perigos do entrudo; e o entrudo é suspirado como uma estação de prazer”, afirmava O Espelho Diamantino15. Primeiro periódico voltado ao público feminino a ser publicado na Corte, O Espelho Diamantino semeava a preocupação entre seu público leitor, ao advertir que:
Estão à porta os dias da grande colheita dos Boticários, dos Cirurgiões, dos Médicos, dos Sacristães, dos Andadores, dos Sineiros enfim, dos Coveiros. As apoplexias, os estupores, as tízicas, as febres malignas, etc, etc, já se dispondo para se mostrarem francamente no meio das furiosas Lupercais, a que o povo se entrega nesses desgraçados dias. Quantas vítimas cairão? Em quantos minutos sairão da vida para a morte; das delícias, dos furores, das danças e das embigadas para o medonho, e eterno silêncio das sepulturas?16.
Vale lembrar que as mulheres eram grandes entusiastas do jogo do Entrudo, como vimos no relato de Walsh. Fossem elas filhas da elite ou pertencentes às classes populares, tinham no folguedo um momento tanto de diversão, quanto de ganha-pão, exercendo muitas vezes um papel de protagonistas. Jean-Baptiste Debret, integrante da Missão Artística Francesa, trazida ao Brasil por D. João com a finalidade de criar uma escola de Belas Artes no Rio de Janeiro, em seu retorno à França, publicou o livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, onde registrou que:
Os únicos preparativos do carnaval brasileiro consistem na fabricação dos limões de cheiro, atividade que ocupa toda a família do pequeno capitalista, da viúva pobre, da negra livre que se reúne a duas ou três amigas, e finalmente das negras das casas ricas que todas, com dois meses de antecedência e à força de economias, procuram constituir sua provisão de cera (Debret, 1940, p. 219).
Embora seguisse o ordenamento de uma sociedade altamente hierarquizada e escravista, na qual “senhoras de qualidade acham graça em molhar um negro que passe” (Ebel, 1972, p. 38), sem que, provavelmente, o mesmo pudesse revidar, podemos afirmar que o Entrudo era um folguedo plural, do qual participavam ricos e pobres, brancos e negros, escravizados, livres ou libertos, homens e mulheres, crianças, jovens, adultos e velhos. Ao que parece, o próprio imperador foi um entrudesco inveterado. Em sua crítica ao entusiasmo da população brasileira com o jogo e seu desrespeito frente aos editais que buscavam reprimi-lo, Walsh justificava que “de fato, não era de se esperar que eles agissem de outra forma, como o próprio imperador deu o exemplo. Ele gosta tanto disso, que jogou todo o entrudo, com seus filhos e amigos” (Walsh, 1830, p. 381)17. Em outra ocasião, D. Pedro estava em viagem para Bahia, a fim de convencer os baianos a se incorporarem ao exército que ia combater a sublevação da população de fala espanhola na região platina contra o governo imperial (Lustosa, 2006)18. A viagem que se extendeu de 4 de fevereiro a 1 de abril de 1826, abarcou o período do Carnaval daquele ano e, em conversa com Francisco Gomes da Silva (mais conhecido como Chalaça), Henrique Garcez Pinto de Madureira perguntou se eles haviam jogado o Entrudo, revelando ser esse um costume esperado da vida cortesã (apudKraay, 2015). O perfil festeiro do monarca também foi rememorado pelo jornal Correio da Manhã, no século seguinte: “No carnaval de 1825 a atriz Stela Sezefreda (futura esposa de João Caetano) foi detida pela polícia por ter jogado limão de cheiro na carruagem que conduzia D. Pedro I, que por sua vez foi um folião impenitente, exemplo que seguiria mais tarde seu filho, ambos dados à larga ao jogo do entrudo”19.
Folieiro, de pulso firme, um tanto autoritário e bastante sedutor. Impulsivo e romântico, D. Pedro I era capaz de grandes ódios e muitos amores (Carvalho, 2007). Largamente saudado nos anos da Independência, a partir de 1826 sua popularidade cairia vertiginosamente, tanto em função do excessivo número de portugueses em cargos do império brasileiro, quanto de seu envolvimento na crise sucessória do trono português, com a morte de D. João, que acabou por gerar grande mal estar na opinião pública brasileira (Malerba, 1999). É nesse momento que um sentimento antilusitano se fortalece no seio da nova nação e a abdicação do trono pelo monarca é entendida como a verdadeira emancipação, ao significar a liberdade total do “jugo português” (Ribeiro, 2002).
Como vimos, até a Independência do país não existia uma “identidade brasileira”, os brasileiros eram portugueses de além mar. O que havia eram portugueses dos dois Reinos, ambos pertencentes à mesma nação. A disputa pela hegemonia do império, sobretudo no que tange a organização administrativa do reino do Brasil e os conflitos de interesses entre as partes, é que levaram as elites do centro-sul a reagir e se organizar em torno do príncipe regente, contra as exigências de Portugal, levando a cabo o corte dos laços que os uniam à antiga metrópole. É nesse sentido que Jancsó e Pimenta (2000) argumentam que, quando das Cortes de Lisboa, inexistia a ideia de “nação brasileira”. É ao longo do Primeiro Reinado e em volta aos acontecimentos relativos à abdicação de D. Pedro que tem início a formação identitária da nação. As rivalidades antes amenizadas pelo discurso de “laços de irmandade” seriam agora potencializadas, enfatizando-se as diferenças entre brasileiros e portugueses, a fim de fornecer uma identidade ao novo país (Ribeiro, 2002).
Embora não haja nenhuma evidência explícita que relacione as críticas ao Entrudo a um sentimento antilusitano, pode-se perceber que é nesse momento que as proibições ao folguedo se intensificam, tanto na Corte, quanto nas demais províncias brasileiras. Em 1829, a Intendência da Polícia do Rio de Janeiro publicava edital lembrando a todos de se abster de praticar o Entrudo publicamente, bem como dentro do Teatro, onde era “inteiramente vedado tal divertimento”, afinal não devia uma “[...] sociedade civilizada, onde a conduta dos cidadãos é regulada pelas leis, que tem por único fim a sua felicidade e cômodos, tolerar divertimentos com o caráter de publicidade, quando deles e de seu abuso pode resultar transtornos à ordem pública, e ataques à segurança individual”20.
O edital proibia o jogo do Entrudo público e ordenava que aqueles que fossem pegos praticando-o deveriam ser advertidos e, posteriormente, repreendidos, caso fossem reincidentes na infração. Entre os negros, de forma alguma deveria ser tolerado o divertimento, fazendo-os dispersar e prender os que insistissem. No ano seguinte, a Intendência da Polícia voltava a lembrar a todos de não jogar publicamente o Entrudo, a fim de não perturbar a ordem pública. Recomendava, ainda, ao Sr. Coronel Comandante da Imperial Guarda da Polícia que ordenasse às patrulhas a vigia sobre os escravos e seus ajuntamentos21. Há de se ressaltar aqui o medo das elites brancas de levantes negros aos moldes do ocorrido na Revolução Haitiana. Embora os conflitos entre senhores e escravos não fosse novidade, “para as elites proprietárias, a revolução de São Domingos unificou todas as ameaças em um só corpo e uma só cor, o negro” (Sampaio, 2016, p. 79). Dessa forma, ao possibilitar uma quebra provisória das hierarquias vigentes, o Entrudo era tido como propício ao ajuntamento e fuga de escravizados, representando a ameaça de subversão à ordem social.
A fim de normatizar o espaço urbano e definir regras de convivência, em 1830 foi elaborado o Código de Postura Municipal do Rio de Janeiro, revelando a “direção da política municipal de civilizar o império em termos de limpeza, saneamento, moral pública, organização e embelezamento do espaço público” (Abreu, 1999, p. 219). De acordo com Beatriz Weber (1992, p. 8), formulados pelas autoridades locais, esses códigos serviriam para regular o dia a dia da população: um “conjunto de normas que estabeleciam regras de comportamento e convívio para uma determinada comunidade, demonstrando a preocupação com a preservação da ordem e a segurança pública, incluindo aí as relativas à saúde pública”.
Destaca-se que os prejuízos à salubridade pública era outro argumento utilizado pelos críticos ao Entrudo. Nesse sentido, a fim de convencer os concidadãos a abandonar “um divertimento sempre mau por qualquer lado que seja encarado”, em fevereiro de 1831, o jornal Astréa publicava um parecer da Comissão de Salubridade da Sociedade de Medicina, onde ela convidava os “Srs. Facultativos” a lhe comunicar os casos de doenças decorrentes do velho costume. A referida ação tinha como objetivo:
[...] redigir um mapa demonstrativo das moléstias, e das mortes originadas direta, ou indiretamente pelo jogo do Entrudo, a fim de poder bem conhecer e avaliar a importância d’esta fonte geral de enfermidades, assinar-lhe o lugar que lhe compete na categoria de causas morbíficas que devem ocupar o cuidado da Higiene pública, e fazer bem patentes e assinalados seus terríveis efeitos22.
José Martins da Cruz Jobim, Christovão José dos Santos, José Mariano da Silva, Claúdio Luiz da Costa e Joaquim José da Silva, assinavam o parecer e justificavam que tal ação permitiria conhecer “com a evidência dos fatos os danos públicos e particulares causados por um costume inveterado que, apesar de fazer a delícia de muita gente, é contrário à razão e aos hábitos doces e polidos que devem caracterizar um povo civilizado”23. Por meio de um discurso cientificista, que buscava a “civilização” como modelo a ser seguido, médicos e higienistas tinham em vista oferecer subsídio à repressão ao Entrudo. Dessa forma, em novembro daquele ano (sete meses após a abdicação de D. Pedro I), a Câmara Municipal do Rio de Janeiro adotava a postura que proibia o antigo costume:
Fica proibido o jogo do entrudo dentro do Município, qualquer pessoa que o jogar incorrerá na pena de dois a doze mil réis, e não tendo com que satisfazer, sofrerá de dois a oito dias de prisão; sendo escravo sofrerá oito dias de cadeia, caso seu Snr. o não mande castigar no calabouço com cem açoites; devendo uns e outros infratores serem conduzidos pelas Rondas Policiais à presença do Juiz para os julgarem à vista das partes, e testemunhas que presenciaram a infração. As laranjas de entrudo que forem encontradas pelas ruas ou estradas serão inutilizadas pelos encarregados das Rondas. Aos Fiscais com seus Guardas também fica pertencendo a execução desta Postura. E para que chegue a notícia de todos se mandou publicar e afixar o presente edital24.
Seguindo o exemplo da Corte carioca, outras províncias utilizaram a mesma postura e também condenaram a brincadeira. Em Porto Alegre, extremo sul do Brasil, por exemplo, no final de janeiro de 1832, os Termos de Vereança adotaram, “para ser incluído no Código de Posturas, um artigo proibindo o Entrudo aprovado na Câmara Municipal da Capital do Império” (Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1994). De acordo com Álvares (2014, p. 15-16),
O Entrudo, visto à época como uma manifestação bárbara e lusitanizada, avessa ao caráter nacionalista do Brasil Império, deveria na visão das autoridades e de parcelas da sociedade, ser substituído por práticas festivas civilizadas e, em um primeiro momento, como posteriormente se comprovou, análogas às cortes da Europa Ocidental não-ibérica [...].
Imbuído de um ideal de civilização, propunha-se a extinção da antiga prática e a introdução de novas formas de comemoração carnavalesca, aos moldes de outras nações europeias. Discursando a favor do Carnaval, mas contrário aos folguedos de Entrudo, o Espelho Diamantino afirmava que:
É justo que hajam tempos de folga, em que o povo respire: o carnaval é festejado em toda a Europa, e os modernos italianos, herdeiros das tradições de seus maiores, se hoje não reproduzem as Bacanais d’então, entregam-se com tudo à uma licença autorizada pelo seu Governo que os leva bem longe da seriedade de seus costumes ordinários. As farças, as máscaras, as caricaturas são permitidas, e altas pessoas se dão ao público em espetáculo com toda ostentação do mais brilhante luxo. Se em lugar do maldito cruzamento de mil taboleiros de bolas d’agua (limões de cheiro) se permitissem entre nós as mesmas farças, haveria de certo mais prazer, e menores perigos. [...] Os estrangeiros zombam de nós dizendo, os Portugueses, e os Brasileiros perdem o juízo em três dias do ano, e no quarto vão com cabeça baixa, vestidos de preto pedir aos Padres nas Igrejas, que lhes deêm juízo pondo-lhes cinza na cabeça. É com esta axicalhação, que eles mofam de nós nos excessos de entrudo, e invertem depois o objeto da religiosa cerimônia da Igreja no dia das cinzas. - Digam daqui a diante, que o carnaval no Rio de Janeiro oferece divertimentos, que provam o accessit da civilização25.
Antiga tradição lusitana, motivo de chacota entre estrangeiros, momento de maior liberdade e protagonismo para as mulheres, propício para o “ajuntamento de escravos”, o Entrudo causava medo por uma possível quebra no ordenamento social, distanciando-se cada vez mais do projeto de nacionalidade das elites, que promoveram a Independência do país. Principais beneficiários da abdicação de D. Pedro I, embora tivessem apoiado o príncipe regente quando da separação de Portugal, “na década seguinte, se opuseram cada vez mais contra o absolutismo, contra a extrema centralização do poder e contra a política de predileção pró-portuguesas do imperador” (Gonçalves, 2013, p. 60). No plano das ideias, engendraram uma identidade pautada no modelo externo e que fosse “capaz de legitimar as aspirações de inserir o Brasil no contexto das nações civilizadas” (Neves, 1999, p. 24), onde a própria estrutura do Estado acomodava grande parte dos defensores desse ideal, uma vez que “os homens letrados-ilustrados majoritariamente buscavam seu lugar nas funções públicas para o reconhecimento e ascensão pessoais, considerando que naquela época não se separavam funcionalmente o intelectual do político” (Gonçalves, 2013, p. 61).
À vista disso, e atendendo aos anseios de civilização, em 1855, surgiria o Congresso das Sumidades Carnavalescas. Inspirados nos carnavais franceses e italianos, um seleto grupo de jovens (vários pertencentes ao “mundo das letras”, como José de Alencar, Manuel Antônio de Almeida, Pinheiro Guimarães, Augusto de Castro, Laurindo Rabelo) criou a primeira sociedade carnavalesca no Brasil. Prestando contas aos associados, a diretoria da agremiação enfatizava “a entronização do Carnaval europeu, que se fixou entre nós no impulso dado pelas Sumidades Carnavalescas e cuja púrpura esplêndida afugentou para sempre o manto andrajoso do praguejado Entrudo”26. Em prol desse projeto civilizatório, mudava-se o “caráter do ritual brasileiro, transformando-o numa cópia do modelo europeu veneziano” (Schwarcz, 1998, p. 427), no qual os espaços da elite e do povo na cidade eram demarcados, até mesmo durante o Carnaval (Ferreira, 2000). É nesse sentido que Malerba (2020) vislumbra o processo de Independência do Brasil, sua constituição enquanto nação e a elaboração de uma consciência de unidade no “fazer-se de uma classe social, nascida crioula, mas que se diferenciava a partir de interesses econômicos de classe proprietária de terras, de escravos e beneficiária da maior condição colonial”, possuidora de traços identitários fluidos: “monarquista convicta quando esperava de Lisboa a nomeações e distinções honoríficas[;...] republicana quando vislumbrou no [movimento] potência para enfrentar a pressão tributária da Coroa[...]; abraçou a Independência pela via conservadora, quando a metrópole [se mostrou um] obstáculo [para] seus interesses. [...] Em 1888, [com a abolição da escravatura, o regime] monárquico já não [mais interessava para essa] classe, [latifundiária e escravista] que interrompeu o império com um golpe, [... proclamando a] República”. Foi essa classe que buscou moldar um ideal identitário para o Brasil, rechaçando as origens portuguesas, com vistas às civilizadas nações europeias.
Conclusão
À procura da construção de uma identidade nacional, de coesão em meio às disputas políticas entre “brasileiros” e “portugueses”, aos riscos de uma fragmentação territorial, de manutenção dos privilégios oriundos do latifúndio e do sistema escravista, adotava-se a herança lusitana de festejar os dias que antecediam a Quaresma, mas renegava-se sua principal manifestação: o Entrudo, fortemente arraigado nos costumes da população.
A constituição do “ser brasileiro” ia, assim, opondo-se ao “ser português”. Buscando romper com a tradição e a cultura portuguesa, a construção da nação brasileira, no século XIX, almejava em seu projeto político a vinculação à ilustração ocidental. À vista disso, no lugar do Entrudo foi proposta uma festa diferenciada, aos moldes dos carnavais franceses e italianos, portadores desse ideal de civilização.
Expressa por meio de um novo modelo de festa, a das sociedades carnavalescas, essa “brasilidade” ia sendo aos poucos construída ligada ao projeto de Estado e de Nação das elites que promoveram a Independência do país, calcado em princípios de segregação de gênero, raça e classe social, manifestos no novo Carnaval e que, até hoje, permeiam a sociedade brasileira.