Introdução: Sidónio Muralha na “companhia dos homens”
Quando iniciámos pesquisas avulsas sobre Sidónio Muralha, há cerca de 20 anos, a sua obra (quase toda esgotada) e a sua vida (em boa parte desconhecida) convidavam à redescoberta. Continuava a ser um autor recomendado em programas escolares, integrado em manuais oficiais, citado pontualmente como figura cimeira do neorrealismo, mas quem o quisesse ler teria de “esgravatar nos alfarrabistas”.
Tudo mudou. Boa parte da obra de Sidónio Muralha foi estudada, primeiramente, com grande enfoque na infantojuvenil (Magalhães, 2011, pp. 129-151; Ribeiro, 2013), para depois se abordarem outros géneros (Noras, 2018, pp. 135-186; 2022, pp. 71-107). Por isso, não apresentamos uma resenha biobibliográfica, propícia nas introduções, mas resumimos esse rico percurso, remetendo para os mais atuais estudos muralhianos (Magalhães, 2022).
Nascido em Lisboa, muito jovem começou a publicar em periódicos diversos, sem evidente afinidade ideológica, vendo o seu talento reconhecido por autores de quadrantes opostos, como por exemplo Miguel Trigueiros (1918-1999) ou Alexandre Cabral (1917-1996) (Boschilia & Noras, 2022, pp. 16-17). Fez o curso geral de comércio, desenvolvendo carreira na área empresarial. Em 1943, partiu para o Congo Belga onde veio a ser quadro de uma subsidiária da multinacional Unilever. Especializar-se-ia em gestão organizacional, dedicando-se à família, entretanto constituída, com Fernanda Almeida (1917-1978). A guerra subsequente levou-o a uma vida quase nómada, fixando-se no Brasil, em 1962, onde passou a atuar como freelancer. Nesse país, em contacto com novo meio cultural, publicará regularmente. Após 1974, a revolução e o novo clima político, permitiram-lhe vasto sucesso na sua obra para crianças e jovens, editando cerca de dois livros por ano. Em 1982, morreu no Brasil, sem concretizar o “difícil retorno”.
Sidónio Muralha publicou 35 livros, numa rica versatilidade de géneros, entre romance, ensaio, crónicas, bem como conto e poesia, tanto para adultos como para crianças. Trata-se de 14 obras de poesia, sete trabalhos em prosa e 14 livros infantojuvenis, aos quais se deve juntar a publicação póstuma de um outro livro infantil e o último “poema-cartaz”, processos editoriais ainda acompanhados pelo autor. Salvo pequena parte da produção infantojuvenil, as reedições são escassas. No Brasil, pontualmente, lançaram-se opúsculos e folhetos. Em 2002, com o apoio do artista Miguel Barbosa (1925-2019), foi organizada uma antologia poética (Muralha, 2002), perspetivando a possibilidade da edição de outros volumes para outros géneros. Recentemente, foi possível reorganizar nova antologia da obra poética (Muralha, 2022). Permanecem inéditas as suas peças de teatro (salvo a publicação de Salva de Prata, 2013), às quais se junta um vasto conjunto de dispersos e uma abundante correspondência literária. O desafio da organização e publicação da “obra completa” permanece.
Esta vida nas letras, atravessando boa parte do século XX e três continentes, foi enriquecida pelo cultivo de uma prolixa rede de sociabilidades nos meios culturais e artísticos. Sidónio foi amigo íntimo de Alexandre Cabral, considerando-o “irmão”, esteve muito próximo dos principais nomes do neorrealismo, com quem se correspondeu, destacando-se, de entre outros: Joaquim Namorado (1914-1986), Carlos de Oliveira (1921-1981), ou, noutro contexto, Ferreira de Castro (1898-1974). Já no Brasil, privou, por exemplo, com Cecília Meireles (1901-1964), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) ou Caio Prado Júnior (1907-1990). Essas amizades artísticas não se cingiram à literatura. Sidónio foi letrista, por vezes assinando como Pedro de Araújo, e viu-se cantado por Amália Rodrigues (1920-1999) ou por Hebe Camargo (1929-2012). Todavia, esta análise ficaria curta se não lhe soubéssemos amizades criativas no campo das artes plásticas.
Naturalmente, nem todos os livros publicados oferecem particular beleza estética. Não é evidente até que ponto o autor literário influiu nos processos do design. No entanto, Sidónio mostrou-se preocupado com essa componente nas suas obras, aberto a novas experiências e atento ao talento dos “novos”. Em vários casos, deixou total liberdade às editoras na conceção gráfica. Hoje, conhecemos melhor a sua faceta de editor, na Giroflé, projeto onde, paradigmaticamente, artes e letras se juntavam ao serviço de uma “ideia nova” de literatura em português para os mais novos (Conte, 2022, pp. 209-227). Sem a ignorar, recordemos que a Editora Giroflé corrobora, mas extravasa o nosso foco de análise.
1. De Pavia a Pomar: a Ilustração e o compromisso Neorrealista
Os primeiros trabalhos de Sidónio Muralha encontram-se dispersos num vasto conjunto de periódicos, publicados entre 1935 e 1940. Esses jornais e revistas não foram ilustrados, com algumas exceções. No Jornal do Meio Dia, dirigido por seu pai, Pedro Muralha (1876-1946), o conto infantil “O Pardal Vaidoso” foi ilustrado com o desenho simples de um gato, possivelmente do próprio Sidónio (Muralha, 1936, p. 2).
Noutro registo, na revista nacionalista Juventude, um desenho acompanhou o poema “Aguarela Triste” (Muralha, 1939, p. 16), provavelmente da autoria de Óscar Pinto Lobo (1913-1995). Tratar-se-á de um dos primeiros encontros da poesia de Muralha com a imagética de um artista plástico. Tudo indica que Sidónio e Pinto Lobo não se conheceram. Pinto Lobo, próximo de António Ferro (1895-1956), veio a destacar-se no design na célebre Fábrica Olaio e na ilustração, em diversas instituições públicas. No poema de Muralha, o desenho exacerbou a imagética cristã, descurando a alegoria “terra-mulher”. Essa ilustração parece-nos pouco adequada a “Aguarela Triste”, já com marcas neorrealistas, apesar de publicada numa “revista nacionalista”.
Em 1941, graças ao apoio de Bento Jesus Caraça (1901-1948) (Muralha, 1949a, p. 6), conseguiu editar o seu primeiro livro. Beco (Muralha, 1941), assumido fruto da leitura de Gaibéus, terá sido escrito entre 1938 e 1939, quando o poeta procurava a sua voz, vindo a “assentar arraiais no campo neorrealista” (Cabral, 1970, pp. 66-67). Livro de estreia, de edição humilde, apresentou uma capa simples sem maior aprumo gráfico. Sidónio já se correspondia com os principais mentores do neorrealismo, discutindo com Cochofel (1918-1982) as dinâmicas do que veio a ser o Novo Cancioneiro1. É lícito supor conhecimentos noutros campos das artes. Nesta época, sabemo-lo amigo de Mário Dionísio (1916-1993) e de Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957). Anos depois, sobre Pavia, considerou:
[…] A dedicatória de um dos três desenhos que ofereceu o Pavia foi escrita a lápis e já quase desapareceu. Mais de um quarto de século passou mas eu não esqueço, - Seres verdadeiramente verticais como o Manuel Ribeiro de Pavia são tão raros que é impossível esquecê-los! […]2.
Com Pavia concretizou a primeira amizade criativa, embora menos prolixa que as restantes. O artista dedicou-lhe uma serigrafia, ainda existente na casa da viúva. Foi de Paiva, a bela ilustração da capa de Passagem de Nível (Muralha, 1942) e o desenho na guarda do conto “Maria e Manuel”, na antologia Companha (Muralha, 1943, p. 59), ambos, como não poderia deixar de ser, ao melhor gosto neorrealista.
Estas produções de Pavia porém, não obstante a qualidade, não assumiram particular inovação na ilustração editorial, no campo neorrealista ou fora dele. Em Passagem de Nível, o desenho parece resultar de uma adaptação de algumas serigrafias anteriores, explorando os temas da mulher e da maternidade (Figura 1). Embora os poemas convivam bem com as figuras desnudas de Paiva, a vinheta tanto poderia viver no livro, como fora dele, não tendo necessariamente resultado de uma leitura da obra. De modo algum queremos subvalorizar a linha gráfica de O Novo Cancioneiro e o cuidado estético que a coleção teve. Apenas salientamos um cânone figurativo semelhante à generalidade dos modelos ilustrativos das vanguardas.
A vinheta de conto “Maria e Manuel”, de novo com desenho de Pavia, deve ser entendida no contexto geral do design do livro, sóbrio, coerente, alinhado no seu compromisso artístico, sem o arrojo de trabalhos futuros. Esta vinheta ofereceu uma leitura mais evidente, do tema do conto, do que o caso anterior.
As condições do contrato de trabalho de Sidónio Muralha com a SEDEC, subsidiária africana da UNILEVER, estipulavam cerca de três meses de licença (congée) após cada três anos de trabalho. Ao abrigo desse congée, vamos encontrar o autor em Lisboa, pelo menos, entre dezembro de 1949 e janeiro de 1950. Foi neste período que conheceu ou retomou contacto com Júlio Pomar (1926-2018).
Entendemos que a relação de Sidónio Muralha com Júlio Pomar representa a primeira das três principais “duplas criativas” que desenvolveu. Nesse curto tempo, Sidónio reeditou os dois primeiros livros, publicou a primeira obra de literatura infantil, deu à estampa um novo livro de poemas e deixou inédita uma peça de teatro, num dos períodos mais intensos de criatividade e de publicações. Todos foram edições de autor, nelas investiu poupanças amealhadas no exílio.
A reedição conjunta de Beco e Passagem de Nível (Muralha, 1949a) foi acompanhada de uma elucidativa nota de autor sobre a génese do seu primeiro livro, a relação com o neorrealismo e a necessidade do exílio. Se os poemas não constituíram novidade, a vinheta de capa reveste-se de interesse. Trata-se, provavelmente, da menos conhecida ilustração de Pomar nos livros de Muralha (Figura 2). Uma figura geometrizada revela alguém em andamento, metáfora do “poeta de Beco e de Passagem de Nível”, arauto de uma poesia ativista.
Não sabemos exatamente quando Muralha e Pomar se conheceram. Não foi localizada correspondência entre ambos. Apesar da diferença de seis anos de idade, é plausível que se possam ter conhecido antes do exílio do poeta.
A participação de Júlio Pomar e de Francine Benoit (1894-1990) no livro Bichos, Bichinhos e Bicharocos (Muralha, 1949b) deve ser enquadrada nas sociabilidades do neorrealismo, onde os três se moviam, mesmo considerando relações prévias. A inovação literária, lúdica e pedagógica deste livro tem sido estudada, com natural enfoque no seu aspeto gráfico (Figuras 3 e 4). Atente-se nas considerações de Sara Reis da Silva:
[…] A relação ou a articulação das imagens com os poemas evidencia uma inegável originalidade […] reforçando a componente humorística dos textos, […] É o que sucede, por exemplo, com «Macacos» e com a fragmentação/distribuição de certas estrofes ou a inscrição de alguns versos a “legendarem” determinados quadros visuais, que ostentam um conjunto de figuras correlacionadas, delineadas a negro e azul escuro, uma estratégia que parece refletir algumas marcas de narratividade do texto […] (Reis da Silva, 2012, p. 8).
Plenas de objetividade, estas considerações resumem os principais aspetos da ilustração de Pomar neste clássico da literatura infantil: inovação pictórica; adequação ao/e reforço do texto e da sua verbalização; acompanhamento de tendências transformadoras na ilustração infantil e poética em geral. “Pedrada no charco” de uma literatura para crianças excessivamente moralista, a primeira intenção de Sidónio e dos seus correligionários foi divertir os leitores, seduzidos com poemas simples, carregados de laivos de crítica social, muito concretos, como, por exemplo, em “Papagaio” ou em “Joaninha” (Muralha, 1949b, pp. 11, 20-21), de entre outros.
Livro charneira, opus magnum, essa edição, de relativa raridade bibliográfica, procurada por colecionadores, tornou-se um objeto de arte. As inovações estéticas de vários dos seus livros oferecem-lhes um carácter quase irrepetível de objeto artístico, o qual, associado a pequenas tiragens, potenciou a sua valorização nos mercados alfarrabistas e de arte, aspeto a ter em conta na análise da materialidade do livro.
Estimamos em 1500 exemplares a tiragem de Bichos, Bichinhos e Bicharocos - número interessante numa edição de autor - com base numa carta da Livraria Sá Costa a Sidónio, em 19513. Os livreiros registaram “1383 exemplares”, dos quais, num semestre, foram vendidos 102, com um preço base de 22$50. A margem da livraria fixa-se nos 6$75, porém, por indicação do autor, alguns exemplares foram vendidos com desconto. Isso resultou num produto total para o autor de 1559$25 de vendas no semestre4.
Trata-se de correspondência que oferece um olhar pouco usual sobre a materialidade financeira do livro. Comparativamente aos 700 escudos de vencimento mensal de Sidónio, em 1943, o preço do livro não parece elevado para uma classe média remediada. Porém, Pedro Sidónio tinha a seu cargo mãe e irmãos, situação de família numerosa com apenas um rendimento, não incomum na época5. Será, pela consciência de tudo isso, que o autor pediu para baixar o preço do livro em 30%?
O livro infantil era significativamente mais caro que os dois títulos de poesia. A mesma missiva esclarece sobre o preço de venda ao público da edição conjunta de Beco e Passagem de Nível: 15 escudos; de Companheira dos Homens: 10 escudos6; ambos com tiragens menores e, como referimos, editados nesse breve retorno de Muralha a Portugal.
A capa de Companheira dos Homens (Muralha, 1950) também se inseriu neste conjunto de colaborações com Júlio Pomar. No poema que dá título à obra, a poesia tornou-se alegoria da vida. Ela é a “companheira dos homens”, “dormiu nos campos de concentração”, com todos nós partilha alegrias, dores e necessidades diárias. A imagem da capa resultou de leitura pictórica deste poema, onde uma mulher introspetiva olha a panela ao lume do fogareiro (Figura 5). Lembramos os versos de Muralha:
[…] E os poetas dão-se as mãos como se encontram as poesias / e se encontram as exigências de duas refeições todos os dias. / Que todos temos os mesmos problemas, as mesmas fúrias e dores, / e todos pagamos o mesmo juro nas casas de penhores, […] e todos transportamos tijolos para a casa começada / e lhe rasgamos as janelas e a desejamos arejada […] (Muralha, 2022, p. 77).
Alegoria da poesia, ela própria alegoria da condição humana, a mulher pomariana da capa relaciona-se com os diferentes cenários, de miséria social e humana, evocados no livro. Colorida em tons de azul e amarelo, o seu olhar penetrante pode perfeitamente ser o da rapariga da rua, vendendo violetas ao frio; ou até o da viúva do pescador, sem direito a mesada, nem sequer a “sardinha com pão”. Imagem totalmente alinhada com a gramática neorrealista na obra de Pomar, virá, tal como os desenhos de Bichos, Bichinhos e Bicharocos (Muralha, 1949b) a figurar em resenhas da sua obra gráfica. Na segunda edição, no mesmo ano, os tons azuis foram trocados por tons verdes, na mesma ilustração.
Ao contrário dos seus dois primeiros livros, a crítica não foi unânime na receção de Companheira dos Homens. Alguns consideraram que o poeta “insistia nos defeitos e escondia as qualidades” (Balanço da Poesia em 1950, 1951, p. 32), recensão curiosamente publicada num número de Serpente, ilustrada com desenhos de Júlio Pomar, alusivos a outros escritores.
A reedição conjunta de Beco / Passagem de Nível, de Bichos, Bichinhos e Bicharocos e as duas edições de Companheira dos Homens (Muralha, 1949a; 1949b; 1950) marcaram um período de forte criatividade do poeta e de uma ligação a Júlio Pomar, aparentemente interrompida, apenas, pela necessidade de regresso a África. A licença terminou em fevereiro de 1950.
A década seguinte marcou o duplo exílio do poeta. Sidónio não publicou nenhum livro entre 1950 e 1962, são raras as publicações em periódicos e muito escassas as cartas. Este “exílio das letras” relacionou-se com as condições materiais e humanas de África, com as dinâmicas familiares, bem como com a ausência prolongada dos companheiros da arte e da escrita, cuja proximidade era central no processo criativo muralhiano (Noras, 2020, pp. 37-73).
Ainda em 1950, foi levada à cena, na Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul, a peça A Salva de Prata (Muralha, 2013), a que Sidónio Muralha já não assistiu.
2. A dupla criativa com Fernando Lemos
Não sabemos se Fernando Lemos (1926-2019) e Sidónio Muralha se conheceram em Lisboa, em 1950, ou anos depois no Brasil. Entre os dois irá nascer a mais prolixa amizade criativa da carreira sidoniana. Quer se tenham conhecido em Lisboa, quer não, só em São Paulo estreitaram relações. Foi aí que ambos embarcaram na aventura da Editora Giroflé e iniciaram a dupla criativa mais duradora e produtiva, no que se refere à imagética das obras muralhianas.
A correspondência entre ambos aborda vários aspetos quer da dimensão editorial, quer da obra gráfica de Lemos, produzida para livros de Muralha. Como se tornará evidente, ao crítico e ao público em geral, tanto Júlio Pomar como Fernando Lemos representaram outra dimensão da arte no contacto com a literatura de Sidónio Muralha. Não nos querendo deter em juízos valorativos da qualidade artística, a dimensão autoral de ambos e o peso mediático que vieram a ter extravasou largamente os do escritor em causa. Simultaneamente, não só a qualidade dos trabalhos foi inegável, como em qualquer dos casos, ainda se assume “de referência” no contexto das respetivas obras gráficas. Por outro lado, se não existem quaisquer dúvidas da colaboração de Sidónio Muralha com Júlio Pomar no âmbito de afirmação do neorrealismo, a sua ligação artística a Fernando Lemos (e não só) aparenta ter sido desenvolvida num período de aproximação a outros movimentos de vanguarda, nomeadamente, ao surrealismo.
Fernando Lemos ilustrou oito livros de Sidónio Muralha, isto é, cerca de um quarto da bibliografia deste. Sete foram livros para crianças (um deles póstumo) e, o outro, um álbum de poesia. O único “livro adulto” desta dupla criativa, Os Olhos das Crianças (Muralha, 1963), é hoje mais conhecido pela força do poema, do que pelo título. Editado em 1963, foi resultado da parceria no layout entre Lemos e Maria Bonomi (1935-), na época já com reconhecimento nas artes plásticas. Foi concebido como uma capa de cartão onde se guardam 25 cartolinas castanhas com os 25 poemas impressos. Na capa, um lettering forte, confrontando-nos, tal como a mensagem dos poemas, Os Olhos das Crianças clamam “SOS”, lidos na vertical, nas grossas letras em verde e vermelho (Figura 6). Simples, eficaz, distinguindo-se dos demais e explorando os limites materiais do livro, esta edição continua a ser referenciada no âmbito do design (Coutinho, 2019, p. 125).
De qualquer forma, foi a colaboração inicial entre Lemos e Muralha a fazer furor e a transformar-se em modelo para trabalhos seguintes. Trata-se de A Televisão da Bicharada (Muralha, 1962), livro estreia da Editora Giroflé e da coleção Girafa, cujo formato lembra o animal, mimetizou uma caixa de lápis de cor (Figura 7). Numa tiragem de 10 mil exemplares, foi lançado a 9 dezembro de 1962, aplaudido pela crítica, quer literária, quer artística (Conte, 2022, pp. 218-220). Os desenhos representam animais em formas geométricas simples, suficientemente figurativos para serem reconhecidos pelos jovens leitores, mas, ao mesmo tempo, remetendo para as gramáticas abstrata e moderna da arte. As imagens acompanham o texto reforçando situações non-sense e de humor, bastante características da escrita de Muralha (Figura 8).
Amplamente reconhecido, A Televisão da Bicharada venceria o primeiro prémio para “apresentação gráfica de edição avulsa” na II Bienal do Livro e Artes Gráficas, integrada na VII Bienal de São Paulo, em 1963. O formato inovador marcou o modelo da Giroflé-Girafa. As ilustrações haveriam de acompanhar o sucesso da obra, pelo menos até à 9ª edição, já na Editorial Nórdica, e lançaram o mote para o sucesso do modelo criativo entre os dois autores, repetido em álbuns futuros para crianças.
Televisão da Bicharada (1962) foi o segundo livro infantil publicado por Sidónio Muralha, vindo quebrar um hiato editorial de 12 anos. A par de Bichos, Bichinhos e Bicharocos (Muralha, 1949b) trata-se, por certo, da sua obra mais citada e recomendada em contextos escolares, neste caso com uma influência semelhante, para o Brasil, à da do primeiro título em Portugal.
A dupla criativa Sidónio Muralha / Fernando Lemos foi a força motriz na base da Editora Giroflé, projeto pioneiro de literatura infantil, liderado por ambos juntamente com Fernando Correia da Silva (1931-2014). De acordo com Jaqueline Conte (2022, pp. 209-227), a Giroflé extrapolou o conceito tradicional de editora, baseando-se num modelo por assinatura, procurando editar regularmente um boletim pedagógico e apostando na qualidade literária dos autores, aliciados a escrever para crianças. Pouco poderemos acrescentar a esse estudo. Nele se esclarece que Fernando Lemos foi o diretor gráfico da empresa, concebendo o formato esguio do “livro girafa” e desenhando o logotipo. Sidónio dedicou-se a tempo inteiro à editora no primeiro ano de funcionamento, investindo nela parte substancial das poupanças. Todo o trabalho de Lemos foi acompanhado por Sidónio, cujas ligações aos meios literários facilitaram contactos com escritores. Em 1964, fazendo frente a um clima político e a uma situação financeira adversos, os sucessos artísticos corresponderam ao fracasso comercial, ditando o fim da editora (Conte, 2022, pp. 220-225).
Soçobrada a aventura da Giroflé, os dois amigos continuariam a ter uma relação próxima, materializada nos trabalhos editados em Portugal, depois de 1974. Foi na Livros Horizonte que vieram a encontrar uma parceria duradoura. Para a coleção “Pássaro Livre”, Sidónio Muralha recomendou a colaboração de Fernando Lemos, logo em Todas as Crianças da Terra (Muralha, 1978a). Aí, a criatividade do artista extravasou melhor os limites do figurativo, propondo às crianças uma memória da revolução do 25 de Abril, associada à mensagem universalista da busca da paz universal. No Brasil, as edições póstumas não recuperaram as ilustrações originais. Trata-se do único livro de Muralha traduzido para espanhol e para inglês.
Seguiu-se Voa Pássaro Voa (Muralha, 1978b), recuperando para o público português parte dos poemas de Dança dos Pica-Paus (Muralha, 1976a) e de A Televisão da Bicharada (Muralha, 1962), a par de composições originais. Os desenhos de Lemos são novos, remetendo, aqui e ali, para o livro anterior, no trabalho que mais se aproximou dos tempos da Giroflé, embora sempre num formato tradicional, explorando tonalidades do azul.
Terra o mar visto do ar (Muralha, 1981a) aproximou-se bastante da gramática e ilustrativa de Todas as Crianças da Terra. Numa mensagem universalista, o poeta procurou transmitir os valores e traduzir preocupações marxistas para crianças, num livro muito criticado por isso. Com variações em tons de vermelho e branco o artista faz-nos ver o mundo desigual, poluído e em guerra, pelos olhos das crianças, a quem se pede esperança e coragem para moldar um mundo melhor, um “outro mundo possível”.
Entretanto, em Helena e a Cotovia (Muralha, 1979b), os desenhos de Lemos revestiram um carácter mais figurativo numa aproximação a um bestiário tradicional, próximo das figurações infantis, afastando-se em parte das formulações anteriores. O mesmo podemos dizer do livro póstumo O Rouxinol e a sua Namorada (Muralha, 1983), cuja capa simula os desenhos das crianças a quem se destina.
No ano anterior, o único livro em francês de Muralha, Film en couler (Muralha, 1982a) recuperou o espírito artístico de A Televisão da Bicharada (Muralha, 1962). Aparenta ser a obra que melhor se aproxima da produção plástica de Lemos (Coutinho, 2019, pp. 166-167). O controlo criativo foi total. O livro foi produzido por Muralha e por Lemos, o qual acompanhou e pagou a edição gráfica, acertando depois contas com o amigo7. Em carta se esclarece que a impressão de 1000 exemplares custará 90 mil cruzeiros, e o trabalho de Lemos se fica pelos 25 mil8.
A capa de configuração geométrica desvenda pouco da gramática decorativa interior, aproximando-se de um imaginário animalista semelhante ao dos livros anteriores, com desenhos em vermelho e branco reforçando os objetivos lúdicos e didáticos do livrinho (Figura 9). Paradigmaticamente, o último livro infantil editado em vida de Sidónio Muralha fez parte da sua longa parceria com Fernando Lemos. Esta obra resultou de um texto escrito quando o autor viveu na Bélgica, demorando cerca de 20 anos a publicá-lo.
3. Outras danças no Brasil
Diana Carneiro (2022, pp. 193-208) mapeou a ilustração da obra muralhiana, editada no Brasil, para crianças e jovens, enquadrada no contexto da ilustração brasileira do século XX. Esse artigo teve enfoque nos livros que continuam a ser reeditados pela Editora Global. Essa análise foi acompanhada pelo levantamento das biografias dos ilustradores de tais edições. Fora dessa análise ficaram as edições dos anos 70, e todos os trabalhos noutros géneros editados no Brasil.
Naturalmente, vários casos seguiram um design comum, como, por exemplo, Êsse Congo que foi Belga (Muralha, 1969), primeiro livro em prosa do autor. No entanto, devemos assinalar a capa concebida pelo pintor J. Toledo (1947-2007), em tons de verde e amarelo, de clara influência surrealista, tal como “surrealistas” são “as visões muralhianas do Congo Belga dos brancos”, segundo o redator da badana (Muralha, 1969). Esta colaboração, com outro autor do panorama artístico brasileiro, na época dando os primeiros passos, deve ter partido da iniciativa da Editora Brasiliense, sendo alheia ao escritor. Muralha aparentemente não conhecia Toledo.
Todavia, para além de Bonomi e de Fernando Lemos, já referenciados, vamos encontrar, nos livros de Muralha, diálogos com outros artistas, com quem conviveu diretamente. A parceria mais interessante deste período foi desenvolvida com o arquiteto Joaquim Guedes (1932-2008), em edição do autor, no livro-poema Quando São Paulo só tinha quatro milhões de habitantes (Muralha, 1966). Ode, quase epopeia, dedicada a São Paulo, a obra apresentou um longo poema em 19 cantos de verso livre. Projeto maturado pelo poeta em aparente conjugação com Os Olhos das Crianças (Muralha, 1963) e O Pássaro Ferido (Muralha, 1972a) (Noras, 2020, pp. 54-58) resultou num objeto literário diferente, assumidamente próximo do álbum poético. Juntamente com Regina Dias Aguiar (?-?), Guedes concebeu uma ilustração de capa baseada na força imagética das letras e dos números em explosão (Figura 10), a qual se vai repetindo ao longo livro, em folhas de guarda, acompanhando os cantos do poema. A pequena edição de 500 exemplares deve ter esgotado rapidamente. Em Portugal, foi considerado «[…] volume graficamente notável […]» (Coelho, 1967, p. 8), uma nova tentativa de repensar a dimensão material do livro de poesia, alinhada com o seu tempo.
No campo da poesia, seguiu-se O Pássaro Ferido (Muralha, 1972a) publicado pela Editora Nórdica, fundada no Rio de Janeiro por Jaime Bernardes da Silva (1933-), jornalista e editor, também responsável pela paginação do volume. Foi o regresso a uma edição tradicional, com garantias de colocação do livro à venda em Portugal. De menor qualidade em relação aos projetos gráficos anteriores, na capa o livro apresentou a imagem de um pássaro dourado sob fundo azul. Nada indicia ter existido qualquer contacto com Júlio Pomar para inclusão das suas representações de Sidónio na contracapa, reproduzindo obras de arte do acervo do retratado. De Georges Klopotowksi (?-?), responsável pela capa, quase nada sabemos. Designer ativo no Brasil, supomo-lo contratado pela editora, sem ligação a Muralha.
Já em Curitiba, a edição de Crianças sem Ano Internacional (Muralha, 1979a) resultou num volume mais cuidado, de formato de bolso. A bonita imagem de capa apresenta uma criança a chorar, com eco na história da arte ocidental. Propositalmente, lembra a arte africana, nas cores, nas feições da criança e na conceção estética. Ensaio-depoimento de denúncia perante as atrocidades quotidianas sobre as crianças, a componente gráfica da edição foi encomendada pelo autor ao designer Luiz César Valentim (?-), estabelecido em Curitiba, cuja obra desconhecemos. Encomenda com maior ou menor intervenção do escritor, nada sugere uma relação próxima ou qualquer cumplicidade artística.
No campo da literatura infantojuvenil, resultando de encomenda editorial, a biografia de Monteiro Lobato, «para os alunos lerem e os professores também», (Muralha, 1970) foi ilustrada por Alice Prado (?-?). Trata-se de uma artista com carreira na ilustração, cuja obra nos é quase desconhecida, que, aparentemente, colaborava com a Editora Brasiliense, para quem assinou outros trabalhos (Martins, 2013, p. 98). Os seus desenhos não destoaram do carácter lúdico-didático da história, onde Muralha sucessivamente recorreu a personagens do universo lobatiano para contar a vida do seu autor. Nota-se o mesmo tipo de pesquisa por parte da ilustradora. Nas novas edições do livro, já na Editora Nórdica, optaram por manter ilustrações originais simplificadas, o que atesta a qualidade do design.
A Dança dos Pica-paus, o trabalho, traduziu-se numa abordagem mais naturalista da figuração dos animais e das situações representadas nos textos. Neste caso, também desconhecemos quaisquer outros dados sobre a ilustradora Isabel Pires (?-?), possivelmente contratada pela Nórdica, a quem Sidónio não se refere. Nas edições atuais, as ilustrações ficaram a cargo de Eva Funari (1948-), caso estudado por Diana Carneiro (2022, p. 202), como expusemos.
Saliente-se que, nos “livros brasileiros”, apenas Alice Prado e Fernando Lemos viram os seus desenhos reeditados noutras edições, para além da original.
4. “Os desenhos que Abril mostrou”
A revolução de 1974 permitiu a redescoberta da obra de Sidónio Muralha e, enfim, o sonho mais palpável de um regresso definitivo. Desde o início da década de 70, viajava a negócios regularmente para Portugal, onde, entretanto, editara mais dois livros.
A antologia de Poemas de Sidónio Muralha (Muralha, 1971), publicada pela Inova, resultou numa edição cuidada, na coleção dirigida por Armando Alves (1935-), sobejamente conhecido no nosso panorama editorial. Num formato usual, a capa invoca a “infância sem infância” nas duas crianças a brincar na rua, através de fotografia tratada com tons de verde e de negro, os mesmos de todo o design. No conjunto da obra muralhiana, Poemas não se destaca visualmente, nem será dos trabalhos mais marcantes de Armando Alves, mas cumpriu a função.
Mais circunspecta, sem autor conhecido, foi a linha gráfica da coleção “Textos Vértice”, onde se inseriu, sem maiores preocupações visuais, O Homem Arrastado (Muralha, 1972b). Alegoria da guerra fria, escrito a partir de uma fotografia da guerra do Vietname, aliás, incluída na guarda do livro, tratou-se do único romance do autor.
4.1 “Ilustrações na berlinda” para todos os tamanhos
No entanto, depois de 1974, Sidónio viria a publicar regularmente dois ou mais livros por ano e se, boa parte, resultou da colaboração com Fernando Lemos, devemos assinalar outras parcerias no mundo das artes.
O primeiro livro infantil editado em Portugal, depois de 1950, foi O Companheiro (Muralha, 1975a), com chancela da Futura. Trata-se de uma história política, sobre o Estado Novo, dominado pelo “senhor fascista”, e sobre a resistência personificada no “homem de chapéu verde” assassinado pelos PIDEs antes da revolução, essa “grande festa do povo”. O livro pretendeu homenagear os diversos resistentes mortos pelo fascismo, aludindo diretamente a José Dias Coelho (1923-1961), a Catarina Eufémia (1928-1954) e a Humberto Delgado (1906-1965), bem como resumir de forma didática a dicotomia entre ditadura e revolução, assumindo uma posição óbvia. Por iniciativa do editor, os desenhos foram confiados a Avelino du Carmo (1952-), hoje com carreira mais ligada à cenografia. As suas ilustrações do “homem do chapéu verde” são simbólicas do livro e do período revolucionário a que se reporta, fazendo alguns autores confundir o título da obra (Silva, 2011, p. 171). Caricaturais e figurativas, as ilustrações pecaram sobretudo por escassas, gerando um livro onde grandes manchas de texto não seduziam os mais pequenos.
Embora com a chancela de “A Comuna”, A Amizade bate à porta (Muralha, 1975b), parece-nos concebida para a mesma coleção. Teve um formato idêntico ao de O Companheiro (Muralha, 1975a) e o mesmo texto na contracapa, alertando para a necessidade de esclarecimento político aos mais novos, carácter vincado nos diferentes estudos (Silva, 2011, p. 171; Ribeiro, 2013, pp. 51-60). A narrativa foca o fim da guerra colonial (ou de libertação) e a necessidade de cooperação com as novas nações (correspondentes às antigas colónias). Este apelo à solidariedade entre os povos foi ilustrado por Tóssan (1918-1991), artista experimentado, um dos principais criadores no design gráfico em Portugal, tal como caracterizou Susana Silva:
[…] Tóssan é mais um exemplo de um ilustrador de espírito irreverente e avesso a qualquer regra pedagógica, facto que o afastou da Escola Superior de Belas Artes, para se ligar, de forma autodidacta a várias áreas, tendo desempenhado funções enquanto edição para a Infância enquanto pintor, ilustrador, decorador e gráfico […] (Silva, 2011, pp. 130-131).
Serão essas fórmulas gráficas, plenas de humor, aprimoradas nos anos 50 e 60, então adaptadas para o texto de Muralha sobre relações entre os povos, num libelo contra o racismo (Figura 11). Ilustrações figurativas, simples, a preto e branco, acompanham o intuito universalista do texto (Silva, 2011, p. 171). Tal como em O Companheiro (Muralha, 1975a), a ilustração parece-nos curta para a extensão do texto. As novas edições, destes dois livros, produzidas recentemente no contexto do centenário muralhiano, procuraram novos autores e novas interpretações9.
Marcante neste período da obra de Muralha, com uma projeção assinalável na sua obra, semelhante aos “Bichos” ou a “TV da Bicharada”, em 1976, foi publicada a narrativa Valéria e a Vida (Muralha, 1976b). Primeira e principal aproximação do autor aos valores ecologistas e às preocupações ambientais, escrito para uma realidade brasileira, com esse assunto cada vez mais na ordem do dia, o livro venceu a edição inaugural do «Prémio O Ambiente na Literatura Infantil», instituído pelo Governo Português, sendo amplamente divulgado nas escolas. A primeira edição, rapidamente esgotada e reeditada, foi ilustrada por Soares Rocha (?-?), com carreira no ramo desde os anos 50, ligado a «representações ainda na linha da BD integrados numa linha de ilustração naturalista estilizada» (Silva, 2011, p. 184). Os desenhos de Valéria e a Vida inseriram-se nessa linha estilística, mais figurativa e naturalista por oposição aos restantes livros de Muralha da mesma coleção, por exemplo os ilustrados por Fernando Lemos, ou no caso da reedição de Bichos, Bichinhos e Bicharocos (Muralha, 1977c), com reproduções estilizadas dos desenhos originais de Pomar. Quer no Brasil, quer em Portugal, as edições mais recentes de Valéria e a Vida optaram por renovar as ilustrações, com novos autores e outras gramáticas estilísticas. Veja-se, por exemplo, a aproximação ao universo de Beatrix Potter (1866-1943) os desenhos de Inês Oliveira (1979-) para as reedições da Gailivro (Muralha, 2004).
Próximos desta linha conceptual, embora de certo já com maiores influências da pop art, em voga nessa década, podemos referenciar os desenhos de Ana Machado (?-), para Sete Cavalos na Berlinda (Muralha, 1977a). Essa antologia de contos infantis integrou a coleção “Plátano de Abril” associada ao contexto de renovação literária propiciado pela revolução democrática (Silva, 2011, pp. 167-168; Gomes, 2020, p. 46). Entre uma linearidade figurativa, o caricatural e o fantástico, Ana Machado explorou o humor e os trocadilhos do autor, nos dez desenhos que acompanham cada um dos contos, escolhendo para a capa aquele que ilustra o conto que deu título à coletânea. Novamente, nada indica que tivesse havido contacto entre Sidónio Muralha e a artista, mesmo na correspondência com o editor10. No Brasil, vários contos deste livro foram editados separadamente (Carneiro, 2022, pp. 200-204).
Resta-nos referir Catarina de Todos Nós (Muralha, 1979c), onde Sidónio Muralha retomou o género biográfico para um público escolar e um tema de cariz político, muito próximo da linha narrativa de O Companheiro (Muralha, 1975a) (Gomes, 2020, p. 46; Ribeiro, 2013, pp. 85-86). Pela mão da Editorial Caminho, o design e a ilustração couberam a Teresa Dias Coelho (1954-), apresentou um registo figurativo, quase naif, simulando a imagética do “desenho infantil”. As ilustrações são escassas, comparando mal com a fluência ilustrativa da segunda edição. A capa (repetida como desenho final) é a proposta mais interessante, ao associar um retrato imaginado de Catarina Eufémia ao arco-íris, numa leitura artística do texto de Muralha. Com uma abordagem completamente distinta, no ideário imagético, a ilustração da segunda edição foi confiada a Pedro Penilo (1964-), concebendo-a em formato de álbum, com notórias aproximações à BD e subtis referências à história da arte ocidental (Muralha, 2021b).
4.2 As capas de dorindo de carvalho para o “escritor-andarilho” e o “último cantar” com Victor Palla
“Do outro lado das letras”, poderíamos supor mais uma dupla criativa entre Sidónio Muralha e Dorindo de Carvalho (1937-), materializada nas diversas, e visualmente atrativas, capas que vestem os livros de poesia e de prosa do primeiro. Porém, o artista não privou com o escritor11. O seu trabalho foi articulado com a Editora Prelo, resultado da leitura dos livros, bem como de um posicionamento estético mais próximo do neorrealismo, desses dois fatores nasceram leituras novas nas capas de quatro dos livros do autor.
Nesta altura, Dorindo de Carvalho já era ilustrador e capista com obra consolidada, francamente reconhecida no âmbito das coleções “Três Abelhas” e “Livros de Bolso” da Europa América, cuja colaboração com a Prelo, viria a reforçar uma «linguagem visual [que] parece resultar de uma particular síntese de influências associáveis a correntes tardias do surrealismo e do neo-realismo» (Silva & Rosa, 2018, p. 5). A sua escolha para ilustrar Muralha pela editora de Viriato Camilo (?-?) não foi surpreendente. As capas de A Caminhada (Muralha, 1975c) e O Andarilho (Muralha, 1975d), com formulações figurativas de um homem nos caminhos do mundo, tiveram maiores afinidades com influências surrealistas. Em Poemas de Abril (1974), o fundo negro realça a força do cravo vermelho e do trevo verde, essas “quatro folhas de trova”, cantadas pelo poeta, irrompendo das trevas. Por fim, integrada na antologia da sua obra gráfica, (Silva e Rosa, 2018, p. 44), a capa para Mulher Submissa (1975e) conferiu uma leitura evidente ao título antitético do livro, ensaio em defesa do feminismo contemporâneo, brilhantemente interpretado pelo artista (Figura 12).
As capas de Dorindo não esgotaram a colaboração de Sidónio com os melhores desenhadores e capistas portugueses, ainda que por intermédio das editoras. Todavia, em 26 Sonetos (Muralha, 1979d) o design reproduz a linha simples da coleção, sem grandes preocupações artísticas. Seria no último livro lançado em vida, a coletânea de contos Do Outro Lado da Rua (Muralha, 1982b), com a chancela da Livraria Ler, que Muralha encontrou Victor Palla (1922-2006). A pintura da capa assinada por Palla, com ressonâncias do primeiro conto, facilmente viveria fora daquele livro, ligando-se no traço e no registo cromático aos outros livros da coleção, também confiados a Palla. A capa de Do Outro Lado da Rua (Muralha, 1982b) também tem figurado em antologias do seu autor (Coutinho & Martins, 2011, p. 97). As potencialidades imagéticas de escrita de Sidónio Muralha influenciaram os mais diversos artistas ao longo de décadas, como decorre desta multitude de contributos.
5. O espírito de Curitiba e a dupla criativa com Key Imaguire Junior
O chamado “terceiro exílio” de Sidónio Muralha, corresponde à sua fixação em Curitiba, entre 1978 e 1982, após um novo casamento com Helen Butler (1931-). Nesse período, veio a editar uma série de seis livros de poesia, na qual longos poemas são dedicados a familiares diretos, ao grande amigo Alexandre Cabral, a Lisboa e a Luís de Camões. Foram edições rudimentares em offset, de 300 a 500 exemplares. Não sabemos se as letras azuis em fundo branco destes livros agrafados foram escolhidas pelo autor, ou pela tipografia. Seguramente, estes volumes de imagem e forma pouco cuidadas não impressionaram Key Imaguire Junior (1946-), arquiteto, professor e designer paranaense, com quem o poeta concretizou uma última dupla criativa.
Poder-se-á considerar que as edições produzidas com ilustração e conceção de Key não são propriamente livros. Tanto Poema para Beatriz (Muralha, 1981b) como Valéria, Valéria (Muralha, 1981c), impressos em duas páginas de um papel grosso, acabamento semi-mate, com desenhos simbólicos, parecem folhetos. Folhetos ou livros, exploração dos limites da materialidade de literatura, oferecem ambos uma experiência de leitura bem diferente das folhas brancas e azuis das edições da Tipowest ou da Litéro-Técnica. A disponibilidade total do texto numa única página (com o folheto aberto) traz ao leitor outra dimensão do poema, à qual Key associou um barco para Beatriz (“a filha quebrando amarras”) e um pião para Valéria (“a neta brincando”). Em qualquer dos cenários, as edições de Key Imaguire, acompanhadas por Sidónio, vieram incorporar uma leitura artística e criativa em relação aos textos anteriormente ausente. Refira-se que a tradução italiana de Orietta del Bene (?-?) de Poema para Beatriz teve uma edição bilíngue na Prelo (Muralha, 1977b), simplesmente ilustrada na capa com uma fotografia da filha do poeta na praia.
Sidónio Muralha adoeceu em dezembro de 1982. No seu leito de hospital, ainda se agarrando à vida, teve oportunidade de ver as provas do poema-cartaz Cântico à velhice (Muralha, 1982c). Trata-se da sobreposição do último poema de Sidónio, dedicado à velhice sobre a fotografia (de autoria não identificada) de uma velha mulher com um cajado. Libelo da sobrevivência perante as agruras da vida, personificadas na “velha portuguesa enfrentando o tempo com seu cajado”, ao mesmo tempo valorizava a “última idade e a primeira”, porque “os velhos são as crianças do futuro”, esse poema parece ter decorrido da imagem exposta no escritório do autor, agora usada no cartaz (Figura 13). Key Imaguire concebeu o design e o formato deste “poema-cartaz”, incluído depois na generalidade das bibliografias do poeta e referenciado nas antologias do cartaz de intervenção cultural e política. No fundo, Cântico à Velhice foi a única colaboração entre Sidónio e Key a figurar na “lista oficial” de obras do escritor, reconhecendo os seus méritos como poesia visual, marcando a exploração de outros meios de transmissão e de fruição da poesia.
Key continuou a busca de divulgação da obra do seu amigo, organizando uma coletânea de poesias eróticas inéditas (Muralha, 1986) e publicando, em conjunto com a Fundação, outros folhetos de poesia e de prosas de Sidónio Muralha (1984a; 1984b). Trabalhos que não atingiram a qualidade dos anteriores.
Conclusão: as iconografias em/de Sidónio Muralha
A partir de um poema de Sidónio Muralha é título de uma serigrafia de Álvaro Carmenes (?-), artista uruguaio, relendo “Poema para Beatriz”, como alegoria do século XX. Recorrendo a um excerto do texto, o serígrafo extrapolou os limites entre poesia e arte visual. De um monólito sai uma imagem de uma folha, quase pessoa escrita, a par de diversas vinhetas com ícones pop e momentos históricos bem conhecidos do século passado (Figura 14). Produzida pelo Club de Grabado de Montevideo, este será um exemplo dos caminhos a percorrer para localização de obras e de autores para uma iconografia completa da obra (e da vida) de Sidónio Muralha.
Nesta reflexão, alicerçada em fontes múltiplas e na investigação atual, não procurámos esse exercício. O nosso objetivo foi o de seguir as relações artísticas do autor através dos livros publicados. Parece-nos ter ficado demonstrada a existência de, pelo menos, três duplas criativas, entre Sidónio Muralha e diferentes artistas plásticos, designadamente: Júlio Pomar; Fernando Lemos; e Key Imaguire Júnior, em fases distintas da sua vida e momentos diferentes da sua obra. Isso, de modo algum, invalida outras relações importantes do poeta nos meios artísticos que, embora possam ou não ter resultado em ilustração dos seus livros, não tiveram o impacto, desses três casos. De tal, são testemunho a amizade e parcerias com Manuel Ribeiro de Pavia, no início da carreira; com Maria Bonomi, na Editora Giroflé, já no Brasil; ou, com Miguel Barbosa, nas viagens a Portugal, nos anos 70.
Ao mesmo tempo, foi notória, geralmente por iniciativa editorial, a associação dos livros de Muralha, nos diversos géneros e para os diversos públicos, a nomes importantes das artes, da ilustração e do design, quer em Portugal, quer no Brasil, personalidades que o escritor não conheceu, ou pelo menos com quem não privou. Refiram-se, por exemplo, J. Toledo, Tóssan, Teresa Dias Coelho, Dorindo de Carvalho, ou Victor Palla. Será necessário maior esforço investigativo, para entender melhor um conjunto de outros nomes, aparentemente desconhecidos, ou com obra circunstancial. Tiveram uma experiência episódica na ilustração de livros de Sidónio Muralha? Desenvolveram percursos nas artes mais circunspetos? Tratar-se-ão de autores por descobrir?
Propomos um mapa para tais caminhos, uma hipótese de interpretação da iconografia da obra de Sidónio Muralha. Ficaram de fora trabalhos como o de Álvaro Carmenes, as capas da discografia com letras de Sidónio, a figuração do próprio poeta em caricaturas, desenhos ou esculturas. Serão as pistas a seguir futuramente.
Reiterando tudo o que já foi exposto, por vontade própria e/ou secundado pelos editores, salvaguardadas diversas formas de experimentação, Sidónio Muralha procurou nas imagens que acompanham os seus textos: «nunca trair os homens seus velhos companheiros» (Muralha, 1972a, p. 12). Na arte em geral, e na literatura em particular, manteria constante o compromisso neorrealista em prol de uma transformação igualitária da sociedade.
Referências bibliográficas
Bibliografia ativa de Sidónio Muralha
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Muralha, S. (1941). Beco (1ª ed.). Edição de autor.
Muralha, S. (1942). Passagem de nível (1ª ed.) [vinheta na capa de Manuel Ribeiro de Pavia]. Tipografia Atlântida.
Muralha, S. (1949a). Beco / Passagem de Nível (2ª ed.) [vinheta na capa de Júlio Pomar]. Edição de autor.
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Muralha, S. (1963). Os olhos das crianças [layout de Maria Bonomi e de Fernando Lemos, foto de Dulce G. Carneiro]. Edição de autor.
Muralha, S. (1966). Quando São Paulo só tinha quatro milhões de habitantes [capa e diagramação de Joaquim Guedes e Regina Dias de Aguiar]. Gráfica Martinez.
Muralha, S. (1969). Esse Congo que foi Belga [capa de J. Toledo]. Editora Brasiliense.
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Muralha, S. (1984a). Roteiro [desenho Fernando Lemos, programação visual Key Imaguire Junior, folheto]. [s.n.].
Muralha, S. (1984b). As Crianças e os Monstros [programação visual Key Imaguire Junior, folheto]. [s.n.].
Muralha, S. (1986). Poesias inéditas, eróticas e líricas [apresentação e edição de Key Imaguire Júnior a partir de acervo de Helen Muralha, Offset]. [s.n.]
Muralha, S. (2002). Obras Completas do Poeta [prefácio Nelly Novaes Coelho, capa de Miguel Barbosa]. Universitária Editora.
Muralha, S. (2004). Valéria e a vida. (5ª edição) [considerando todas as editoras e ilustradores; ilustrações de Inês Oliveira]
Muralha, S. (2013). A Salva de Prata. Nova Síntese - Textos e Contextos do Neo-Realismo, (13), 371-388.
Muralha, S. (2020, julho). O Companheiro (2ª ed.) [ilustrações de Irene Sá]. Página à Página.
Muralha, S. (2021a). A amizade bate à porta (2ª ed.) [ilustrações de Gabriela Sotto Mayor]. Trinta-por-uma-linha.
Muralha, S. (2021b). Catarina de Todos Nós [ilustrações de Pedro Penilo]. Editorial Avante.
Muralha, S. (2022). Poesia Reunida [introdução de Roseli Boschilia e de José Raimundo Noras (pesquisa e revisão); curadoria e nota de abertura de: Helen Anne Butler Muralha, Jaqueline Conte (revisão), Priscila Angélica Santos, fotografias de João Urban, edição autorizada e supervisionada pela Fundação Sidónio Muralha (Brasil)]. Busílis & Trinta-Por-Uma-Linha.