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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.20 Lisboa dez. 2023  Epub 30-Out-2023

https://doi.org/10.48751/cam-2023-20321 

Dossier

Os privilégios de impressão de livros na carreira do tipógrafo António de Mariz

Book-printing privileges in the career of typographer António de Mariz

Daniela Fernandes Santosi 
http://orcid.org/0009-0009-9202-8986

i Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 1069-061, Lisboa, Portugal. daniela-f-santos@hotmail.com


Resumo

No século inaugural da imprensa, o novo comércio do Livro potenciou o desenvolvimento de um setor que floresceu com incentivo régio e que cedo careceu de regulamentação, face a um novo ritmo de produção livreira. Neste contexto, surgiram os privilégios de impressão e venda de livros, que instituíam uma «lei privada» atuando em favor de um suplicante - o autor, o impressor, o livreiro ou o editor do livro - que garantia um exclusivo de impressão e de venda da obra impressa com privilégio. Ao longo do século XVI foram outorgadas centenas de privilégios em Portugal, impulsionando um sistema de petição e concessão de privilégios, que constituíram diferentes categorias. No presente artigo, apresentamos as principais características deste sistema e o impacto que a exclusividade de impressão de livros teve na carreira de um célebre tipógrafo português do século XVI, António de Mariz.

Palavras-chave: História do Livro Antigo; Tipografia; Privilégios de impressão; António de Mariz; Século XVI

Abstract

In the first century of the printing press, the new trade of the book enhanced the development of a sector that flourished with royal encouragement and soon had to be regulated due to the new pace of book production. In this context, the printing-privileges emerged, establishing a «private law» which acted in favor of a supplicant - the author, the printer, the bookseller or the editor of the book - and guaranteed an exclusive monopoly to print and sell the book com privilégio. Throughout the 16th century, hundreds of privileges were granted in Portugal, driving the evolution of a system of petitioning and granting the privileges of different categories. In this brief article, we present the main characteristics of this system as well as the impact that the exclusivity of book printing had on the career of a famous 16th century Portuguese typographer, António de Mariz.

Keywords: History of Old Book; Typography; Printing-privilege; António de Mariz; 16th Century

Introdução

O estudo da criação dos sistemas de privilégios de impressão e as decorrentes hipóteses sobre o surgimento de propriedade literária e intelectual são temáticas já conhecidas no contexto da História do Livro Antigo e da Imprensa. O impacto destes privilégios na carreira de livreiros e tipógrafos, ou no percurso de uma obra célebre, ocupou rapidamente um lugar na historiografia, incluindo até uma corrente dedicada a evidenciar a existência ou a ausência de uma conexão entre os privilégios de impressão e o Direito de Autor.

Afastados deste debate, encontramos estudos dedicados à análise da informação que os documentos de privilégio nos fornecem para a História da Imprensa e do Livro, cumprindo com um testemunho da importância destes documentos para conhecer e compreender o desenvolvimento do negócio da impressão e venda de livros impressos nos primeiros séculos da tipografia. De um modo geral, em todos os casos, encontramos frequentemente bem creditada a importância dos documentos de privilégio, seja através da contribuição com pistas sobre o percurso de livros e livreiros, para descortinar novas informações sobre o negócio das oficinas tipográficas ou como elemento probatório do apoio régio no desenvolvimento da imprensa.

Antes de avançar para os trâmites específicos desta investigação, aproveitamos a oportunidade para referir alguns dos investigadores que dedicaram, à História do Livro, estudos específicos sobre os sistemas dos privilégios de impressão que vigoraram nos vários centros tipográficos europeus. Um primeiro destaque é devido a Before Copyright, The French Book-Privilege System 1498-1526, de Elizabeth Armstrong, amplamente reconhecido, que incitou ao estudo dos privilégios como um sistema, reunindo os dados e tratando esta documentação como um todo (Armstrong, 1990). Além desta obra principal, também os artigos publicados em Privilege and Property, Essays on the History of Copyright, são bastante ricos em informação recolhida dos privilégios em variados arquivos na Escócia, Inglaterra, América do Norte, Berlim, Veneza, França e Roma, incluindo ainda algumas análises sobre as origens do privilégio de impressão (Deazley et al., 2010).

No âmbito das obras concretamente dedicadas a documentos de privilégio específicos, com o intuito de demonstrar a importância das informações contidas nestas fontes, destacamos o trabalho de Fernando Bouza, em particular «Dásele licencia y privilegio» Don Quijote y la Aprobación de Libros en el Siglo de Oro, que versa sobre o privilégio concedido a Miguel de Cervantes (Bouza Álvarez, 2012).

No panorama historiográfico nacional, vários autores contribuíram para o estudo dos privilégios de impressão. É o caso, a título de exemplo, de Ana Paula Megiani, Artur Anselmo, Fernando Guedes, Jorge Peixoto e Victor Gameiro Drummond, entre outros. Deste grupo, destacamos Jorge Peixoto, uma vez que é da sua autoria o primeiro artigo dedicado plenamente ao exame da informação extraída de uma amostragem de privilégios quinhentistas: Os Privilégios para a impressão de livros em Portugal durante o século XVI (Peixoto, 1966).

Reconhecendo a escassez de um estudo mais completo, que inclua todo o século XVI e extensivo ao reino de Portugal, apoiado simultaneamente nos documentos de privilégio tanto presentes na Chancelaria Régia como nos próprios livros impressos, partimos do princípio já instituído pelos exemplos supracitados e avançámos para a investigação proposta, cujos principais resultados apresentamos adiante. Demonstramos, também, a possibilidade de conhecer melhor os trâmites do negócio de impressores e livreiros através do estudo dos privilégios, utilizando para este fim um estudo de caso do tipógrafo António de Mariz, reconhecido como um dos impressores de maior relevo do século XVI.

De modo a identificar o máximo de privilégios possível, tendo em conta as conhecidas limitações de uma investigação expressivamente sustentada pela pesquisa de livros raros, foi preciso partir das pistas fornecidas pelos principais contributos historiográficos e avançar para as bibliografias do século XVI e para os catálogos de várias bibliotecas.

No sentido dos objetivos desta investigação, as mais importantes ferramentas de pesquisa foram, naturalmente, a Bibliografia de António Joaquim Anselmo de 1926 (Anselmo, 1977) e a compilação Iberian Books (Wilkinson, 2010), que permitiram assentar os fundamentos do nosso estudo: a localização dos livros catalogados apenas com a nota “Com Privilégio” ou livros cujo privilégio se encontra na Chancelaria Régia com um título relativamente definido. Os primeiros números reunidos surgiram do confronto entre os privilégios recolhidos na Chancelaria e as notas de privilégio na descrição dos livros feita por A. J. Anselmo.

Logo nesta primeira fase, surgiram alguns obstáculos. Em primeiro lugar, uma parte dos alvarás de privilégio presentes na Chancelaria Régia não se encontram impressos nos livros, criando um mistério em torno da concretização destas obras ou mesmo indicando o eventual desaparecimento de todos os exemplares que tenham sido, de facto, impressos. Em segundo lugar, os privilégios nem sempre foram incluídos nas edições impressas do livro antes da sua encadernação, apesar de expressamente obrigatório através do texto do próprio privilégio1.

Assim, não foram encontrados, na íntegra, todos os textos de privilégio para livros que se apresentam “Com Privilégio” na portada. Uma considerável parte dos livros recolhidos contém apenas esta nota, o que nos levanta várias questões: terá sido uma edição impressa antes da concessão de privilégio? Será uma segunda ou terceira edição de um livro cujo privilégio se encontrava na edição princeps? Para ser possível propor respostas a estas questões, foi preciso consultar todos os exemplares conhecidos dos livros que se encontram no nosso inventário sem o texto de privilégio.

Para corresponder ao desafio, alargámos a investigação para outras ferramentas de pesquisa online, utilizando bases de dados e catálogos digitais de bibliotecas com coleções de livros quinhentistas, em Portugal e noutros países europeus.

Durante a construção do corpus documental desta investigação, os privilégios de impressão foram, desde cedo, revelando informações sobre o estabelecimento e regulamentação do negócio do livro, de importância singular para a História do Livro Impresso, mas também apresentando novas luzes sobre o desenvolvimento dos negócios de impressores, livreiros, e até do estabelecimento da figura do editor. Pretendemos, com este breve artigo, apresentar as principais características de um recém-criado sistema de privilégios em Portugal, contribuir com os resultados da investigação sobre o conjunto de privilégios reunido e demonstrar a utilidade desta informação para o estudo de figuras proeminentes do período de consolidação da tipografia em Portugal.

I. Os privilégios de impressão

O privilégio de impressão de livros foi um instrumento legal significativo para o negócio do livro impresso, atuando essencialmente como a concessão do monopólio de impressão e venda de um livro para o autor e seus herdeiros, o impressor, o livreiro ou o editor. O desenvolvimento da produção livreira, bem como das técnicas e da qualidade desta nova arte, nos vários reinos europeus ao longo do século XVI, fomentou um aumento considerável na concessão de privilégios.

Estes monopólios surgiram na sequência dos primeiros exclusivos atribuídos no setor do livro impresso, nas últimas décadas do século XV, graças a Johann Von Speyer (ou Spira) que abriu, com o seu irmão Wendeley Von Speyer, os primeiros prelos na cidade de Veneza. O impressor alemão é reconhecido como o primeiro privilegiado com um «exclusivo de impressão», através do documento que recebeu do Senado de Veneza, em 1469, que instituía, em seu nome, a exclusividade de utilização da tipografia nesta cidade durante cinco anos.

Sem precedentes conhecidos de monopólios de impressão, esta mercê tem sido relacionada diretamente com a tentativa de atrair novos técnicos da imprensa para a cidade de Veneza, procurando desenvolver um setor que estaria a dar os primeiros passos nos centros culturais e políticos da Europa (Kostylo, 2010, p. 23).

Note-se que este privilégio conferia a Von Speyer o poder de utilizar a imprensa2, e não de imprimir um determinado livro, tratando-se, assim, de uma forma de privilegiar distinta do que foi sendo configurado a partir desse momento. Este monopólio aproximou-se do conceito de proteção de uma invenção ou de um objeto, que então já não se classificava como novidade3.

As décadas de transição para o século XVI foram o momento da instalação da tipografia noutros centros europeus, sustentada muitas vezes pelo apoio régio conferido ao estabelecimento do negócio de impressores e livreiros, como o panorama historiográfico nacional e internacional tem reconhecido e evidenciado nitidamente. Neste contexto temporal foram, também, criados diversos modos de fomentar o setor livreiro com privilégios régios atribuídos a tipógrafos e a livreiros. Em Portugal, o apoio de que dispôs Valentim Fernandes é um dos casos mais notórios (Dias, 1995). Entre escusas do pagamento da sisa e a possibilidade de ascender à categoria social de cavaleiro da Casa Real, os privilégios de impressão surgiram timidamente nos primeiros anos do reinado de D. Manuel I, como uma outra forma de beneficiar os interessados em participar na produção livreira.

Superando o primeiro exclusivo de Johann Von Speyer, estes privilégios já estabeleciam garantias da exclusividade de impressão e venda de um ou mais livros, em nome de um autor, impressor, livreiro ou editor. Atuavam como concessões de monopólios sobre um objeto - o livro impresso - garantindo ao privilegiado a possibilidade de usufruir dos lucros resultantes da impressão e venda destes livros, uma vez que proibia outros de imprimir ou vender a mesma obra. Limitava-se, assim, a circulação dos livros sem a permissão do privilegiado. Os primeiros privilégios do século procuravam, ainda de forma primitiva, instituir a exclusividade em nome de uma pessoa, escasseando nas condições que mais tarde foram impostas. Foi preciso o crescimento da indústria nas décadas seguintes, e o aumento da concorrência no negócio de materiais impressos, para serem organizados os elementos que vieram propriamente completar o privilégio de impressão, impondo limites na quantidade de obras que abrangia, no período de tempo da sua validade, na jurisdição e na liberdade daqueles que ousassem infringir esta «lei privada».

Em teoria, qualquer pessoa podia requerer um privilégio para o livro que pretendesse publicar. Desde o autor aos seus herdeiros, ao impressor de um livro, ao livreiro, ou ao editor agindo como custeador da obra, até várias pessoas funcionando em parceria. A publicação destas obras, obtido o privilégio, passaria a estar sob o controlo do privilegiado de acordo com os limites impostos nesta lei.

Naturalmente, havia vantagens na obtenção de um privilégio que confere um monopólio semelhante a uma espécie de «propriedade» temporária, ainda que não sejam comparáveis, um autor quinhentista e um “criador” de propriedade intelectual (Drummond, 2017, p. 198). Desde logo, na perspetiva de impressores e livreiros, a garantia de que as oficinas concorrentes estariam impedidas, por lei, de imprimir os mesmos livros, fortaleceria os argumentos do privilegiado contra edições não autorizadas. Adicionalmente, o privilégio facilitava o investimento na publicação dos livros, garantindo algum retorno financeiro, o que seria particularmente importante tendo em conta o elevado custo de uma edição no século XVI (Fonseca, 2019, p. 25). Além disto, o privilégio conferia, ainda, algum controlo da edição ao privilegiado, reservando-lhe a oportunidade de escolher a oficina na qual a obra seria impressa podendo, no entanto, mudar de oficina mantendo o seu privilégio válido, desde que dentro das fronteiras do reino. Por último, embora as evidências sejam diminutas para o século XVI, em teoria o privilégio poderia ser utilizado como um bem útil para troca, através da sua venda (Reyes Gómez, 2001, p. 188).

II. O processo de obtenção de um privilégio em Portugal

Para adquirir um privilégio de impressão em Portugal, o primeiro passo seria a elaboração de um requerimento, apresentando uma justificação para que o livro fosse considerado útil para a sociedade e merecedor de proteção régia.

Esta petição seria avaliada e, uma vez reunidos os critérios necessários, aprovada na forma da concessão do privilégio ao requerente. Em casos raros, encontramos a petição impressa antes ou depois do privilégio no próprio livro. Noutros casos o próprio alvará de privilégio alude às justificações fornecidas pelo privilegiado na sua petição, permitindo descobrir algumas das motivações e argumentos na origem da concessão dos privilégios.

No sistema de privilégios no reino português, tendo em conta os privilégios recolhidos até ao final do século XVI, os argumentos mais utilizados nas petições ou mencionados no privilégio incluem a precária situação económica do requerente, seja um autor que alega não ter os fundos necessários para investir na publicação das suas obras, ou um impressor que protesta contra o estado competitivo do negócio livreiro no reino; a utilidade que a impressão e publicação do livro teriam para a sociedade e/ou para os alunos na Universidade, evidenciando uma tendência conhecida para associar a impressão do livro à sua utilização (Macedo, 1975, pp. 183-221); e a condição de herdeiros do autor do livro, procurando manter o controlo da impressão da obra na família.

A justificação mais comum é aquela que alega as dificuldades financeiras do peticionário, dado o elevado custo de uma impressão. O primeiro exemplo da utilização desta justificação pode ser encontrado no privilégio datado de fevereiro de 1537, concedido a Baltasar Dias, o poeta madeirense, cujos rendimentos provinham apenas da venda das suas poesias, possivelmente em folhas volantes4. Segundo o privilégio de Baltasar Dias, este terá pedido esmola ao rei para que lhe fosse feita mercê e concessão do privilégio de exclusividade de venda das suas obras, já dotadas de licença para circular.

Ainda no âmbito do investimento financeiro, temos como exemplo a súplica feita por Filipa Cardosa, a única mulher com um privilégio de impressão em seu nome, tanto quanto foi possível apurar na documentação do século XVI. À data da concessão do privilégio, Filipa Cardosa já estaria viúva de Jerónimo Cardoso, bacharel em cânones pontifícios, autor de dicionários e vocabulários portugueses, mestre de fidalgos como Rui Gonçalves da Câmara, o filho do governador da Ilha de São Miguel; Manuel da Costa, lente na Universidade de Salamanca; e de D. Jerónimo Osório (Machado, 1747, pp. 488-489).

De acordo com o alvará de privilégio concedido a Filipa Cardosa, em 4 de julho de 1569, Jerónimo Cardoso terá dedicado 36 anos a escrever a obra, cuja impressão havia sido ordenada pelo rei em prol do “bem comum”5, mas não terá conseguido imprimir a obra em vida. Deste modo, obteve o privilégio de exclusividade de impressão e venda, durante oito anos, de Dictionarium Latino Lusitanicum..., impresso em 1570 pelo célebre tipógrafo da Universidade, João de Barreira, em Coimbra.

Além de uma petição bem justificada, a concessão do privilégio poderia depender, também, do peticionário. É comum surgir no privilégio, junto à identificação do suplicante e privilegiado, menções aos títulos honoríficos de impressores e livreiros, ao bom cumprimento da lei através da obtenção da licença para circular antes da petição do privilégio, e ao historial de privilégios do peticionário, concedidos no reino português ou no estrangeiro.

A petição do privilégio poderia ser feita em qualquer fase da produção do livro: após a concretização do manuscrito, durante a impressão do livro, ou mesmo depois da impressão do livro. O privilégio seria concedido mediante a avaliação do requerimento, e considerando os elementos do livro e a identificação do peticionário. No entanto, não dependia inteiramente do conteúdo do livro. É esta a diferença categórica entre o privilégio e a licença de impressão.

Sendo certo que um livro não poderia circular sem licença6, a maioria dos livros circulou, de facto, sem privilégio. As licenças de impressão do Santo Ofício, da Inquisição e do Desembargo do Paço funcionavam como uma autorização para o livro circular livremente, uma garantia, através da censura prévia, de que o conteúdo do livro estaria conforme as normativas vigentes. Já o privilégio, funcionando como garantia de exclusividade de impressão e venda do livro, colocava a obra em nome de uma pessoa, com um prazo e condições definidas. O privilégio, por si, só não permitia a liberdade de circulação do livro. A concessão de privilégios e de licenças de impressão, assim como a atribuição de uma taxa ao livro, eram, então, momentos distintos no percurso do livro, com diferentes objetivos e finalidades7.

III. Caracterização dos privilégios de impressão em Portugal

Se a petição do privilégio fosse aceite, o alvará de privilégio era então emitido, em nome do rei, e dirigido ao privilegiado na forma de uma graça régia, cabendo a este último fazer registar o documento na Chancelaria. A uniformização do conteúdo do privilégio foi progredindo ao longo do século XVI, ainda que, na viragem para a segunda metade do século, sejam escassos os privilégios sem condições impostas, ao invés da tendência para um privilégio mais simples durante as primeiras décadas quinhentistas. Os limites dos privilégios, como a jurisdição, o prazo, as exceções ao alvará e a liberdade dos infratores, funcionavam como elementos controláveis a partir dos quais a autoridade que concede o privilégio exercia o seu poder.

Qualquer privilégio vigorava num território limitado. No caso dos privilégios concedidos no reino português, e de acordo com a linguagem especificada no alvará, nenhuma outra pessoa poderia imprimir ou vender dentro das fronteiras do reino, incluindo a importação e venda da mesma obra em Portugal e respetivos senhorios. O privilégio régio abrangia a área de poder do rei8.

Quanto ao prazo, o sistema de privilégios português aproximou-se da tendência europeia para o limite de dez anos. Embora não seja o modelo mais comum, há exemplos de pedidos para um prazo específico solicitado na petição do privilégio9. Alguns privilégios não são justamente enquadrados nas categorias com os prazos como condição, nomeadamente os privilégios vitalícios10 e os privilégios que estabelecem um limite máximo de exemplares impressos sob a sua validade, ao invés de um limite temporal.

Tendo em conta as condições para a concessão do privilégio, o tempo de duração seria, em princípio, estabelecido consoante a avaliação de alguns fatores, tais como a utilidade e a reputação do livro e a quantidade de exemplares que seria necessário imprimir.

Findo este tempo, o privilégio estava automaticamente caducado, passando a ser possível a qualquer interessado procurar obter um privilégio para a mesma obra ou simplesmente imprimir o livro sem privilégio

Se, porventura, fosse do interesse do privilegiado obter uma prorrogação do prazo do privilégio, teria de utilizar outra petição para justificar os motivos deste pedido. Existem vários casos de prorrogações concedidas a privilégios portugueses ao longo do século. Por exemplo, perante o falecimento do autor Gonçalo Fernandes de Trancoso, o seu filho, Afonso, alegou carência de tempo para a impressão das obras previstas no privilégio, de modo a obter uma prorrogação para a impressão de Primeira, segunda e terceira partes dos contos e historias de proueito...11, como forma de justificar o direito da impressão destas obras na família.

As últimas condições encontradas nos privilégios quinhentistas incluem a exceção aberta à sua utilização por terceiros, expressa através de uma frase de formulário que dispensa os indivíduos que obtiveram licença do privilegiado das penas contidas no privilégio. Encontramos frequentemente, como pena, o pagamento de uma multa e a apreensão dos exemplares ilegais. As penas mais raras são o degredo e a excomunhão.

Concluindo o privilégio, encontramos alguns deveres impostos ao privilegiado, como a garantia de autorização dos censores, o estabelecimento do limite máximo para a taxa do livro, a limitação da quantidade de exemplares a imprimir, a obrigação da assinatura de um chanceler nos livros e, na esmagadora maioria dos casos, a obrigação de o privilégio constar no livro impresso antes da sua encadernação.

Feita esta desconstrução dos elementos que compõem um privilégio12, resta, portanto, considerá-lo como um todo, face aos elementos mais importantes no conjunto de privilégios reunido. Para este efeito, começamos por distribuir os privilégios em várias categorias, considerando a profissão reconhecida do privilegiado (Quadro 1). De seguida, estabelecemos o grupo de variações possíveis (Quadro 2).

Quadro 1 Categorias de privilégios 

Quadro 2 As variantes nos privilégios 

Os quadros acima apresentados são o resultado de uma simplificação do exercício de extração dos elementos que pertencem ao privilégio, eliminando o formulário, o que permite filtrar as informações mais relevantes para este estudo. As diferentes categorias correspondem à identificação do privilegiado, e a diferença entre “padrão” e “variante” alberga as componentes inconstantes em cada condição principal do privilégio.

Como mencionado, a maioria dos privilégios obteve um prazo de dez anos, uma multa de 50 cruzados e a confiscação dos exemplares ilegais, sendo este valor dividido igualmente entre a Câmara do Rei e o delator da infração ao privilégio. Assim, para que fosse possível compreender a justificação para condições diferentes, como um menor ou maior prazo e multa, com repartição diferente do valor, foi necessário criar antes o padrão.

Nestes moldes, ao longo da nossa investigação reunimos 238 livros impressos com privilégio em Portugal durante o século XVI. Uma fração considerável, mais concretamente 105 livros, contém apenas uma nota de privilégio na portada do livro: “Com Privilégio”. Este conjunto avultado de livros não influenciou o nosso estudo do mesmo modo que os restantes 133, cujas informações conhecemos na íntegra, em alvará de privilégio ou em resumos contidos na própria portada do livro.

Reunido um conjunto de privilégios, emergem algumas reflexões iniciais. O aumento da produção livreira ao longo do século XVI correlaciona-se diretamente com a concessão de privilégios em Portugal: na primeira metade deste século saíram dos prelos 50 livros com privilégio; na segunda metade, os valores registados foram de 188 livros. Ainda mais significativa é a diferença entre a década de 1541-1550, na qual registámos 15 livros com privilégio, e a década de 1551-1560, onde se apresentam 32 livros impressos com privilégio. A partir de então, o aumento foi gradual, mas constante.

Consideremos, em particular, os 133 privilégios para os quais conhecemos a categoria e as informações variantes do privilégio. Destes, cerca de 58% (o que corresponde a 77 privilégios) foram concedidos a autores e seus herdeiros; 20% (são 26 privilégios) aos livreiros e editores; iguais 20% para impressores; e, por fim, 3% dos privilégios estudados foram concedidos a parcerias entre impressores e livreiros, o que corresponde apenas a 4 desses 133 privilégios emitidos durante o século XVI.

Seguindo a tendência noutros sistemas de privilégios europeus (Pfister, 2010, p. 120), os autores adquiriram o maior número de privilégios quinhentistas em Portugal. Ao contrário do que acontece com os impressores e livreiros, é raro encontrar mais do que um privilégio concedido a um só autor. No entanto, para o caso de autores célebres, como foi o caso de Duarte Nunes de Leão e de Gonçalo Fernandes de Trancoso, foram outorgados vários privilégios em proteção das suas obras.

No entanto, para impressores, livreiros e editores, obter mais que um privilégio, ainda que não fosse prática comum, seria naturalmente mais vantajoso para o negócio.

De todos os casos que poderíamos destacar, tendo em conta a dimensão deste artigo, focamo-nos no caso mais evidente do tipógrafo que conseguiu colecionar o maior número de privilégios, em relação a todos os outros privilegiados, ao longo da sua carreira.

IV. Os privilégios de impressão na carreira de António de Mariz

António de Mariz tem sido reconhecido como um dos mais relevantes tipógrafos do século XVI português. Com uma das maiores produções de livros impressos associada à sua oficina estabelecida em Coimbra, o trabalho de Mariz é hoje comparado ao de João de Barreira e de Germão Galharde, e tem sido admirado não só pela quantidade, mas também pela qualidade, ou “apuro e correção” nas palavras de A. J. Anselmo (1977, p. 238), das suas impressões13.

A par do legado que deixou, na forma de uma produção impressa cuidada e bem guarnecida de tipos de caracteres e materiais decorativos, incluindo até uma marca tipográfica, António de Mariz é também um bom exemplo da presença das lógicas familiares por detrás dos negócios da cidade no Antigo Regime, naturalmente presentes também nos negócios mecânicos, desde o primeiro século de desenvolvimento da imprensa em Portugal14. Neste âmbito, tem sido mencionado o seu casamento com a filha de um dos notáveis impressores da Universidade de Coimbra, João de Barreira ou João Álvares. Persistem informações contraditórias quanto à identidade do sogro de António de Mariz, pai de Isabel João, atribuindo-se até esta confusão a um erro na escrita do sobrenome15. Seria certo, em todo o caso, que a dita Isabel João era filha de um tipógrafo. Existe acordo mais explícito na historiografia no que concerne ao reconhecimento feito da transmissão do negócio de família por António de Mariz para o seu genro, Diogo Gomes de Loureiro.

O “primeiro entre os tipógrafos portugueses do seu tempo”, como considerou A. J. Anselmo (1977, p. 238), foi engenhoso no negócio do livro impresso, utilizando os títulos honoríficos, os privilégios de impressão e as parcerias de edição a seu favor. Ao longo de 43 anos de carreira, estimando-se que os números de obras impressas rondam a centena, António de Mariz, dispôs de nove privilégios em seu nome, e de um outro privilégio em parceria com o livreiro Luís Martel.

Analisando as datas de concessão dos privilégios e da edição dos livros, nota-se uma propensão para o cumprimento de uma sequência temporal. Isto significa que o tipógrafo procurou sempre um privilégio quando se aproximava o prazo daquele que já detinha, mantendo-se, assim, sempre em posse de livros protegidos por privilégio, dos quais seria o único legítimo impressor e vendedor. De 43 anos de atividade tipográfica, António de Mariz completou aproximadamente 38 anos na posse de um ou mais privilégios simultaneamente.

O número de privilégios abaixo apresentado (Quadro 3), atribuídos ao tipógrafo, é estabelecido como um mínimo que foi possível recolher, através da análise do corpus documental, construído ao longo da nossa investigação. No entanto, arrolámos livros impressos na oficina de António de Mariz e com a nota de salvaguarda “com privilégio” na portada. Nestes casos, como noutros, é possível que estes livros tenham estado sob proteção de outros privilégios concedidos ao impressor, sendo igualmente plausível que o privilégio dos livros em causa tenha sido outorgado em nome do seu autor, ou de um livreiro ou mercador de livros. Mantemos, no entanto, a análise nos privilégios cujos textos conhecemos e que sabemos terem sido concedidos em nome de António de Mariz.

Quadro 3 Sumário dos privilégios concedidos a António de Mariz 

O primeiro exclusivo atribuído a António de Mariz foi concedido em nome do Arcebispo de Braga, D. Frei Bartolomeu dos Mártires16. Esta provisão apostólica, datada de 20 de outubro de 1565, protegia a obra da autoria de Frei Diogo do Rosário, Summa caietana tresladada em portugues..., da impressão e venda por outros que não tivessem licença do arcebispado para o fazer, justificando-se a concessão pelo trabalho e despesa que António de Mariz teria tido com a impressão do livro. Intitulado “impressor do arcebispo” neste documento, Mariz contava com a exclusividade da impressão desta obra durante dois anos, que usou em duas edições, em 1565 e 1566. Os exclusivos de impressão na forma de provisões apostólicas são raros no século XVI, apresentando prazos mais curtos do que os privilégios régios e uma jurisdição circunscrita à cidade de Braga e seu termo.

Os privilégios régios para a impressão de livros em nome de António de Mariz seguiram-se logo após o término do prazo da provisão apostólica. Quase exatamente dois anos após ter recebido a provisão para a obra de Frei Diogo do Rosário, a 23 de outubro de 1567, Mariz obtém o privilégio para Compendio e sumario de confessores..., com prazo de 10 anos17.

Ainda dentro do limite temporal deste último privilégio, a 24 de janeiro de 1572, é-lhe concedido um outro18, com prazo estabelecido em cinco anos, para Regras geraes, e ordem de celebrar as missas, da qual não são conhecidos exemplares. O alvará de privilégio, presente na Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, identifica Mariz como o “livreiro da Universidade de Coimbra”. Volvidos dois dias, no dia 26 de janeiro do mesmo ano, foi emitido outro privilégio em nome do tipógrafo, com prazo de cinco anos, para o Missale romanum ex decreto Sacrosancti Concilij Tridentini restitutum...19, perfazendo então três privilégios, com limites temporais concomitantes, na mesma pessoa.

No ano seguinte, concretamente a 20 de outubro de 1573, Mariz acumulou ainda mais um privilégio, em parceria com Luís Martel. Para a impressão de Manuale missalis romani ex decreto Sacrosancti Concilii Tridentini20. A portada da edição de 1577 informa que foi impressa “Cum priuilegio Sebast. I. Lusitaniae Regis”. As informações no corpo do privilégio comunicam, em nome do rei, que o Papa Pio V havia concedido um breve a autorizar a impressão de um missal novo. Assim, permitia a António de Mariz, impressor, e Luís Martel, seu livreiro, que imprimissem e vendessem este missal em Portugal.

Este privilégio é inserido no conjunto de quatro privilégios, para todo o século XVI, que foram concedidos a duas pessoas em simultâneo, a trabalhar em parceria. Neste caso, sendo atribuído a um impressor e a um livreiro, e conhecendo-se o papel de António de Mariz na obra, uma vez que os exemplares informam da impressão na sua oficina, é possível teorizar sobre o papel de mercador do livro, delegado a Luís Martel, livreiro de D. Sebastião, D. Henrique e D. Filipe I, e filho de Salvador Martel, um dos livreiros que impulsionaram a criação da Irmandade de Santa Catarina da Corporação dos Livreiros. Nem todas as parcerias de edição que adquiriram privilégio correspondem ao trabalho em conjunto de um impressor com um livreiro. Aliás, os restantes três privilégios foram atribuídos a: João de Molina e a Miguel Arenas (1584), ambos livreiros, para a obra de Frei Heitor Pinto, a qual teve várias edições protegidas por privilégio com vários impressores diferentes; Simão Lopes, funcionando como impressor, em parceria com Diogo Tavares, livreiro (em 1593); e novamente a Simão Lopes e Diogo Tavares (em 1594).

O surgimento de parcerias de edição nos privilégios pode ser explicado pelo aumento da concorrência no setor - que cresceu a par com o desenvolvimento da capacidade de produção livreira - e que, juntamente com a abertura de novas oficinas tipográficas, fez surgir a necessidade de criar um sistema de garantisse a celeridade de uma forma de impressão e venda do livro com privilégio, de modo a obter o melhor aproveitamento do período temporário de exclusividade de impressão. Uma parceria entre um impressor e um livreiro, especialmente tratando-se de profissionais bem-afamados e experientes na atividade, como seria o caso de António de Mariz e Luís Martel em 1573, não deve ser dissociada das vantagens que traria para o negócio de cada um, obtendo em exclusividade os lucros provenientes da venda de todos os exemplares.

Regressando aos privilégios em nome de António de Mariz, resta mencionar os últimos que são conhecidos: o privilégio presente em Historia das vidas e feitos heroicos & obras insignes dos santos..., de Frei Diogo do Rosário21, datado de 1576, com prazo de 10 anos; em 1579, o privilégio de Enchiridion missarum..., de João Dias, válido por seis anos; o privilégio concedido para proteção de um manual de orações que é, até à data, de edição desconhecida, datado de 1586, com prazo de 10 anos; o privilégio de Commentarii Colegii Conimbricensis Societatis IESV..., concedido por Filipe II em 1593, com limite de 10 anos; e, por último, uma prorrogação do privilégio de Enchiridion missarum..., que estendeu o prazo por mais três anos além dos que já haviam sido concedidos22.

A conclusão imediata a retirar do estudo dos privilégios de António de Mariz está diretamente ligada à lógica de manter sempre, pelo menos, um livro protegido por privilégio sob seu domínio, evidenciada pela clara sucessão cronológica dos prazos estabelecidos nos privilégios. Desta forma, o impressor garantia que dispunha sempre de um ou mais livros aos quais poderia recorrer, utilizando-os com exclusividade protegida por privilégio e garantindo assim a permanência de um meio de subsistência lucrativa num negócio que aumentou consideravelmente, nas últimas décadas do século, em concorrência.

Do conjunto de privilégios em nome de António de Mariz, destacamos um documento que suscita algumas questões interessantes. Trata-se do privilégio obtido por Mariz em 1593, para a impressão dos Commentarii Colegii Conimbricensis Societatis IESV. Estas obras da autoria dos padres jesuítas do Colégio de Coimbra, estariam, antes de mais, protegidas por um privilégio concedido inicialmente em 1575, por D. Sebastião, garantindo que “pessoa alguma não possa imprimir nem fazer imprimir os livros que eles fizerem, ordenaram ou transladarem, sem sua licença”23. Este privilégio, ainda sem quaisquer pistas de limitações temporais e de número de exemplares, foi reiterado em 1592, por Filipe II. Neste último documento, foi transmitido que o privilégio garantia a proteção de livros que os padres jesuítas teriam feito com comentários aos livros de Aristóteles, sob pena de uma multa no valor de 30 cruzados.

Ora, num alvará datado de 23 de abril de 159324, é instituído o privilégio concedido por Filipe II a António de Mariz, garantindo a exclusividade da impressão e venda de In octo libros Physicorum Aristotelis Stagiritae25 durante 10 anos, sob pena de uma multa avultada no valor de 100 cruzados, e comunicando a obrigação de incluir o alvará de privilégio na encadernação do livro.

Para explicar esta sobreposição de privilégios na mesma obra, protegida simultaneamente por um privilégio geral concedido em nome dos Padres da Companhia de Jesus, e um privilégio específico concedido a António de Mariz, cabe recordar um dos trâmites frequentemente presentes nos documentos de privilégios: apenas o privilegiado, ou a quem este concedesse licença, poderia imprimir ou vender os livros, no Reino, durante o prazo estipulado. Significará, então, que António de Mariz recorreu à autorização dos padres jesuítas para imprimir algumas edições, o que terá feito à sua custa26 da mesma forma que Simão Lopes27, mas não ficou por aí. O impressor procurou garantir parte da hipótese de negócio com estas obras, peticionando por um privilégio régio, e obtendo-o, de facto, em seu nome. Evidenciando este acordo, na edição de 159728, que inclui o privilégio de Mariz, a suma do privilégio em nome dos Padres da Companhia de Jesus indica que este documento seria comunicado ao impressor António de Mariz, com “todas suas forças”, e pelo mesmo tempo que é concedido aos Padres da Companhia de Jesus.

Os privilégios de António de Mariz não só constituem prova de uma habilidade para utilização do sistema de exclusividade de impressão criado em Portugal, em prol do seu negócio como impressor, mas são também um exemplo dos estudos que podem advir do reconhecimento desta documentação como fonte histórica válida e de elevado interesse para a História do Livro. Presente na forma de alvará ou de uma breve nota na portada do livro impresso, esta «lei privada» serviu de proteção para edições de livros, de medida reguladora do negócio livreiro e de garantia dos interesses de autores, impressores, livreiros e editores, e vigorou fortalecida pela crescente presença da imprensa na sociedade de Antigo Regime.

Conclusão

Neste artigo procurámos expor algumas das principais características da evolução de um sistema de privilégios de impressão em Portugal, que ocorreu durante o século XVI, o primeiro século do desenvolvimento da tipografia e do setor livreiro neste reino.

Em traços largos, apresentámos o processo de petição, concessão e utilização de um privilégio de exclusividade de impressão de livros, bem como os principais dados que resultaram da investigação feita sobre os privilégios quinhentistas em Portugal. A figura do autor, marginalizado criador da obra intelectual, surge com uma proeminência similar àquela revelada noutros sistemas em reinos europeus, sem assim provar, tanto no reino português como nos demais, um entendimento da conceção de autoria, nem tão pouco de um direito.

Procurámos, ainda, contribuir com alguns dados sobre o número total de privilégios quinhentistas em Portugal, verificando-se a existência de 238 livros que circularam com privilégio e de 133 documentos de privilégios com tipologia possível de definir.

Através da desconstrução de um alvará de privilégio, seguindo os passos dos primeiros estudos destes documentos, apresentámos diferentes formas de os sistematizar e caracterizar. Com este fim, utilizámos a informação contida no próprio documento de privilégio, conferindo maior destaque ao privilegiado.

Com o intuito de demonstrar as possíveis vias de análise a partir desta documentação, elaborámos ainda um breve estudo de caso sobre o impressor com maior número de privilégios reunido em seu nome, António de Mariz. Demonstrámos como é possível, através da análise dos documentos de privilégio, contribuir com informação importante para a compreensão da rede de negócios da tipografia e para o estudo específico de oficinas proeminentes do século XVI português.

Por fim, cabe mencionar que, no que respeita à História do Livro Antigo, e principalmente num estudo com as bases acima descritas, será inconcebível assumir os resultados apresentados como definitivos. Certamente será possível redescobrir mais um exemplar impresso, uma nova edição, ou ainda encontrar um documento de privilégio de impressão até hoje desconhecido. Será sempre em boa hora para a ciência que nova informação é utilizada para adicionar ao conhecimento sobre estas matérias, permitindo-nos compreender melhor os rumos do desenvolvimento da nobre arte da impressão.

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1 Da mesma forma que as licenças de impressão, cuja diferença para o privilégio de impressão será adiante estabelecida, que nem sempre foram incluídas no livro impresso.

2Como é sabido, Johann Von Speyer faleceu no subsequente ano de 1470, anulando-se automaticamente o documento emitido em seu nome, e assim relegando para a imaginação as consequências que um monopólio de utilização dos primeiros prelos em Veneza teria para o desenvolvimento do setor na cidade.

3Lembramos que, em 1421, o arquiteto Filippo Brunelleschi obteve, das autoridades de Florença, aquilo que tem sido recordado pela historiografia como uma “primeira patente”: um monopólio de utilização da sua invenção, Il Badalone, uma embarcação que facilitava a navegação pelo rio Arno dos materiais em mármore para a construção da cúpula da Catedral de Santa Maria del Fiore. Este monopólio teve um prazo de três anos, durante os quais nenhuma outra pessoa poderia construir de novo ou utilizar no rio Arno uma invenção semelhante à de Brunelleschi.

4Não são hoje conhecidos exemplares das obras de Baltasar Dias, pelo que não seria incomum tratar-se de literatura de cordel.

5BFLUL RES 211, Jerónimo Cardoso, Dictionarium Latino Lusitanicum..., Coimbra, João de Barreira, 1570.

6Embora a experiência nos mostre precisamente o contrário. Como é sabido, não é raro encontrar livros sem licença de impressão, o que não quer dizer, no entanto, que a autorização não tenha sido dada.

7Não obstante, existem alguns indícios que apontam no sentido de os privilégios serem, possivelmente, emitidos pela mesma instituição que a taxa e que uma das licenças obrigatórias: o Desembargo do Paço.

8A historiografia tem afastado desta realidade o caso dos privilégios papais, que, de acordo com o princípio do poder papal seria, em teoria, extensível a toda a Cristandade (Ginsburg, 2015; Armstrong, 1990).

9Foi o caso do Capitão Luís de Almeida, no privilégio já mencionado de 1579, que solicitou os dez anos como prazo para a impressão da obra.

10Terá sido o caso do privilégio concedido a Garcia de Resende, em 1536, para a impressão das suas obras, no qual é estabelecido um privilégio para durar enquanto o autor tivesse obras para vender. BNP RES. 18 A., Garcia de Resende, Lyuro das obras de Garcia de Resẽde..., impresso em Lisboa por Luís Rodrigues, 1545.

11ANTT, Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Privilégios, Livro 13, f. 249v., Alvará de privilégio concedendo a Gonçalo Fernandes Trancoso a exclusividade da impressão e venda de um livro, durante o prazo de dez anos.

12Uma forma análoga de analisar os privilégios foi proposta em 1966, por Jorge Peixoto, que dividiu o alvará de privilégio nas seguintes partes: a entidade que concede o privilégio, a identificação do privilegiado, o seu papel na execução do livro, a sua relação com a publicação do livro, a identificação da(s) obra(s) impressa(s), o prazo do privilégio, as exceções ao alvará, as penas e divisão da multa, o preço do livro e salvaguarda do privilégio, a identificação do redator do privilégio, o local e a data, a identificação do responsável pelo privilégio, e as assinaturas. (Peixoto, 1966, p. 268).

13Referimo-nos também à comunicação da autoria de Frei António-José de Almeida, que versa especificamente sobre os elementos decorativos das portadas de duas edições de Flos Sanctorum de Frei Diogo do Rosário, impressas na oficina de António de Mariz (Almeida, 2007).

14Para a temática da estratégia familiar no negócio livreiro nos séculos XVI e XVII, referenciamos o contributo de Jorge Fonseca (Fonseca, 2019, p. 109).

15Sobre esta diferença na identidade do sogro de António de Mariz, ver a hipótese colocada por Ana Maria Leitão Bandeira, que assume a possibilidade de uma confusão de apelido e atribuí o parentesco a João Álvares, baseando-se na informação transmitida por Venâncio Deslandes, que afirma que António de Mariz seria genro de João Álvares (Bandeira, 1995, nota 3, p. 50).

16BFLUL RES. 225, Pe. Frei Diogo do Rosario, Summa caietana tresladada em portugues..., impresso em Braga por António de Mariz, 1565.

17BNP RES. 2700 P., Rodrigo do Porto, Compendio e sumario de confessores..., impresso em Braga por António de Mariz, 1569.

18ANTT, Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Privilégios, Livro 9, f. 137v.-138, Alvará de privilégio concedendo a António de Mariz a exclusividade da impressão e venda de um livro, durante o prazo de cinco anos.

19ANTT, Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Privilégios, Livro 9, f. 137v., Alvará de privilégio concedendo a António de Mariz a exclusividade da impressão e venda de um missal, durante o prazo de cinco anos; BNE R/29108, Missale romanum ex decreto Sacrosancti Concilij Tridentini restitutum..., impresso em Coimbra por António de Mariz, 1573.

20BNP RES. 2890 P., Manuale missalis romani ex decreto Sacrosancti Concilij Tridentini..., impresso em Coimbra por António de Mariz, 1577.

21ANTT, Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Privilégios, Livro 9, f. 93, Alvará de privilégio concedendo a António de Mariz a exclusividade da impressão e venda de um livro, durante o prazo de dez anos; BNP RES. 4267 V., Pe. Frei Diogo do Rosario, Historia das vidas e feitos heroicos & obras insignes dos santos..., impresso em Coimbra por António de Mariz, 1577.

22ANTT, Chancelaria de D. Filipe I, Privilégios, Livro 3, f. 128v., Alvará privilégio concedendo a António de Mariz a exclusividade da impressão e venda de um missal, durante o prazo de três anos acrescentados ao tempo que já lhe teria sido concedido em privilégio anterior; BNP RES. 2516 P., Manuale missalis romani..., impresso em Coimbra por António de Mariz, 1596.

23Informação retirada do privilégio presente, por exemplo, na seguinte edição: BNP RES. 2810 // 1 P., Sylua diuersorum autorum qui ad usum scholarum selecti sunt..., impresso em Lisboa por Manuel de Lira, 1587.

24ANTT, Chancelaria de D. Filipe I, Privilégios, Livro 4, f. 30., Alvará de privilégio concedendo a António de Mariz a exclusividade da impressão e venda de um livro, durante o prazo de dez anos.

25BNP RES. 1446 V., In octo libros Physicorum Aristotelis Stagiritae, impresso em Lisboa por António de Mariz, 1592.

26Como indicado na portada da edição de 1592: “Typis et expensis Antonij à Mariz”.

27Responsável pelas edições impressas em 1593.

28BNP RES. 1133 V., In Duos Libros De Generatione & Corruptione, Aristotelis Stagiritae..., impresso em Coimbra por António de Mariz, 1597.

Recebido: 20 de Janeiro de 2023; Aceito: 14 de Julho de 2023

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