Introdução
Na euforia dos dias que se seguiram ao 25 de Abril de 1974, José Afonso, entrevistado na rua para a Radiotelevisão Portuguesa, afirma: “[…] Acho que temos de passar a uma fase menos emotiva e temos que trabalhar, organizar sobretudo as camadas populares, formar comissões e creio que neste momento é preciso congregar uma frente de esquerda e organizar sobretudo as bases”1.
Naquele momento, mais do que o contentamento pela escolha da canção “Grândola, Vila Morena” como uma das “senhas” para o arranque do movimento militar, o que sublinha é a necessidade da consciencialização, mobilização e organização popular.
José Afonso tem 44 anos e havia mais de dez que editara o disco «Baladas de Coimbra», um pequeno EP de 45 rotações por minuto, com duas canções, «Menino do Bairro Negro» e «Os Vampiros», que seriam proibidas pela Censura. A primeira dessas canções evoca a infância miserável e o ambiente degradado dos bairros populares do Porto e a segunda, “desempenhou uma função de agitação e combate contra a ditadura” (Salvador, 2014, p. 177). Estas duas canções marcam o início da nova canção política em Portugal.
Algarve: um espaço e um tempo
Já professor em Lagos, em 1958, vivencia a campanha galvanizante do general Humberto Delgado, candidato da Oposição. Em carta de 30 de setembro ao seu irmão João, refere que “Embora não admirasse totalmente o Humberto, gostei da sua capacidade de loucura com que se propôs, pessoalmente, representar e conduzir as causas perdidas…” (Santos, 2002, p. 272).
A esta apreciação não são alheias as suas convicções antimilitaristas. Durante o período em que prestou serviço militar fora o pior classificado no curso de Oficiais Milicianos, por falta de aprumo militar e desajeitada aptidão para o manuseamento de armas e cumprimento dos regulamentos e rotinas do quotidiano militar. Em carta aos pais, desabafa: “A espingarda que me foi confiada e que tenho de tratar como se tratam os cavalos de corrida é um mistério intrincado para mim, com culatra, cursores, percutores, cavilhas de segurança e o diabo a sete. E isto que tanto repugna à minha natureza pacífica e contemplativa! […] um civil para estes indivíduos é um idiota, um «paisano» […]” (Salvador, 2014, p. 188).
Profundamente civilista e pacifista, estes são traços profundos no travejamento da sua personalidade e da sua atitude política.
O regime recupera rapidamente da crise aberta com a campanha de Delgado, em larga medida por atavismo das oposições tradicionais. Mas, em 1961 e 1962, o desvio do paquete Santa Maria e de um avião da TAP que espalhou propaganda antifascista sobre Lisboa; a tentativa de assalto ao quartel de Beja, para a partir daí derrubar Salazar; a crise académica e as manifestações de Maio de 1962 revelam novas formas de luta e a convicção crescente que o regime só seria derrubado por meios violentos. Abrem-se processos de diferenciação nas oposições tradicionais e surgem novas organizações, que contestam a prática política pouco audaz e reformista do PCP.
José Afonso acompanha este processo de esquerdização, que coincide com mudanças na sua própria criação musical. Desloca-se a Coimbra com canções que rompiam com o tradicional fado de Coimbra, introduziam novas e ignoradas toadas, dispensavam a guitarra e resgatavam a viola, renovavam o ambiente musical. Eram as baladas. Um crítico musical refere: “escutam-se esses sons arcaicos e essas sonoridades moças e fica-se com a sensação de ter ouvido algo que ainda não tinha sido descrito ou narrado por vozes tão singulares, como evocadoras, tão humanas como poéticas”2.
É o disco intitulado “Baladas de Coimbra” onde se incluem “Menino do Bairro Negro” e “Os Vampiros”.
Por esses anos, continua radicado em Faro, embora passe a ser acompanhado à viola por Rui Pato, estudante, filho do seu amigo Albano da Rocha Pato, que se revela com mestria um exímio intérprete da inovação que as baladas traziam à sua criação musical.
Progressivamente, vai abandonando a ligação aos organismos culturais da Universidade de Coimbra, fosse o Orfeão ou a Tuna Académica, começando a partir de 1959 a cantar com maior regularidade em meios populares, de forma desinteressada e espontânea.
Fundamentalmente professor, interessado pelos seus alunos, sensível às realidades sociais envolventes, desenvolve com muitos deles relações de amizade. Como reconhecerá mais tarde, “Eu não via senão o ensino, isto é, uma certa libertação das pessoas, numa formação pedagógica que não se cingisse apenas a programas e livros” (Santos, 2002, p. 150). No fundo estava subjacente a ideia da Educação Cívica, tão cara a pensadores como António Sérgio, de extração republicana e ideário socializante, de que era leitor.
O que Sérgio traz à reflexão pedagógica são os princípios da Educação Nova, em que são fundamentais os valores da liberdade, do autogoverno educativo, da autonomia do aluno, da valorização do espírito crítico, do respeito pelas suas necessidades, do interesse pelos métodos ativos, em que os alunos participem, cooperando entre si. Valores que vão constituir como que uma segunda grande trave-mestra do seu pensamento.
Irrequietos e inconformados
Entre os alunos dos cursos noturnos da Escola Industrial e Comercial de Faro, tanto da cidade como de Olhão, cultivou grandes amizades, como com António José Matias ou Luís Benvindo, jovens irrequietos e inconformados, que despertaram politicamente com a campanha do general Delgado. Constituíam, com outros, um núcleo de jovens trabalhadores e estudantes, como António Barracosa, Francisco Seruca Salgado, Sotero Cabrita ou Daniel Ferramacho (Santos, 2011, p. 44). Era um grupo à margem do PCP, de cujas conceções, métodos e referências ideológicas discordavam. Foi, porventura no ensino, e junto deste grupo em particular, que foi maior o envolvimento político de José Afonso no Algarve.
Frequentava também em Faro uma tertúlia no velho Café Aliança, onde se juntavam jovens intelectuais, como Luiza Neto Jorge ou António Barahona da Fonseca. Luiza lecionava no liceu da cidade. Estivera envolvida no associativismo estudantil na Faculdade de Letras de Lisboa e era militante do PCP, embora desligada organicamente no Algarve (Salvador, 2014, pp. 180-181). Aí participavam também António Louro, já então entusiasta das artes de palco; António Bronze ou ainda Gastão Cruz, colega de Luiza em Lisboa, mas natural de Faro. Partilhavam, num convívio irreverente, ideias e aspirações, reagindo contra o ambiente social e político claustrofóbico.
Através desta tertúlia, conheceu os poetas António Ramos Rosa, que havia pertencido ao MUD Juvenil (Movimento de Unidade Democrática) e Casimiro de Brito, que animavam um dinâmico movimento literário no Algarve, com ligações a Lisboa, que ficou conhecido como “Poesia 61”, título de uma coleção de cadernos de poesia, onde editou Luiza, Casimiro de Brito, Gastão Cruz, Maria Teresa Horta ou Fiama Hasse Pais Brandão e que representou o lavrar de um caminho estético que se diferenciava da tradição poética neorrealista, atraído pelo surrealismo, mas procurando caminho para além dessas fronteiras, a que não eram alheias novas correntes de pensamento.
Em Faro, como em Lisboa, esta irrequietude tanto se colocava na criação poética e literária, como na atitude política. Se culturalmente era marginal e eruptiva, na contramão dos cânones instituídos, era, do ponto de vista político, claramente de oposição ao regime e aos seus valores tradicionais e conservadores.
O ano letivo de 1961-62 é o da crise académica em Lisboa e em Coimbra que, a partir do Algarve, acompanham com interesse. José Afonso perceciona as mudanças que se estão a verificar no perfil dos estudantes. São, como diz, “menos pitorescos, mas mais conscientes” (Pimentel, 2010, p. 61). Era de uma nova geração que se tratava, menos agarrada ao tradicionalismo da praxe, menos boémia e cábula, mais integrada na vida escolar (J. A. S. Marques, 1976, pp. 35-37). Era uma geração mais aberta aos problemas e às novas correntes de pensamento contemporâneo, designadamente ao existencialismo. Isto traduzia de algum modo as próprias mudanças sociais que discretamente vinham ocorrendo no país, em que começavam a aceder à Universidade filhos de uma pequena burguesia recente, que resultava do processo de terciarização ocorrido com o lento crescimento industrial. Em consequência desse novo ambiente verifica-se uma significativa ampliação do ativismo estudantil, cuja hegemonia deixa de ser exclusivamente do PCP, embora a sua influência continue forte, para passar a ser partilhada com outras correntes, designadamente socialistas de esquerda, embora pouco estruturadas ainda, quase inorgânicas (Madeira, 1996, pp. 369-370).
É com uma tese sobre o pensamento de Sartre, “Implicações Substancialistas na Filosofia Sartriana”3, baseada principalmente na obra “O Ser e o Nada”, de 1943, que José Afonso conclui em 1961 o curso em Ciências Histórico-Filosóficas. Considerada uma das obras fundamentais do existencialismo francês, o seu autor fora há muito caluniado e proscrito na União Soviética, mas constituía um exemplo do intelectual militante que se levantara contra a ocupação da França pelos nazis ou em defesa da independência da Argélia. O fascínio de José Afonso em relação a Sartre assenta também no impacto do diálogo entre existencialismo e marxismo. Dessa relação, reportando-se a si, dirá bastante mais tarde:
O marxismo, em sentido lato, não esgota o que eu penso, muito embora continue a reconhecer as suas descobertas fundamentais, como o conceito da alienação, a mais-valia, até mesmo a luta de classes. E há ainda o existencialismo. Fiz aliás a tese de licenciatura, má, sobre Sartre, e em particular sobre O Ser e o Nada. De resto nunca disse que era marxista, stricto sensu - aliás seria incapaz de ler alguma coisa como O Capital, no seu conjunto. O meu envolvimento nas coisas foi sempre de carácter existencial, a partir da observação directa de situações que me revoltaram e que têm a ver com o mundo do trabalho, da família, ou com noções muito gerais como a luta anti-imperialista, o direito dos povos à autonomia, etc.4.
Esta tensão permanente configura também um dos traços marcantes do seu pensamento e da sua atitude cultural e política, para que contribuiu o ambiente que viveu intensamente em Faro e que se cruzou fecundamente com as novas realidades trazidas pela crise académica de 1962.
“É ali que há um salto dele”
A conjuntura política do período que vai entre a campanha de Delgado e a crise académica foi fundamental para uma mais acentuada deslocação à esquerda do cantor. Hélder Costa, que o conheceu por esta altura, quando estudava em Coimbra e José Afonso apenas se deslocava aí esporadicamente, assinala:
Em 1962 temos o luto académico. As equipas de futebol e hóquei juntaram-se ao protesto. Entretanto, surge um convite para o Orfeon ir aos Estados Unidos. Muitos cederam. Chamaram o Zeca e convidaram-no a ir. Ofereceram-lhe molhos de notas, mais a garantia da edição de dois discos, e ele, que era o gajo mais bizarro, respondeu que não queria nada disso. E não foi. E ali há um salto dele. Dá-se uma radicalização. Era muito emotivo, muito sensível e não gostou da tentativa de o humilharem a esse ponto. E criou-se uma determinação de outro estilo5.
É a partir desta altura que se intensifica a sua intervenção musical. Frequentemente acompanhado de Rui Pato, que tanto se desloca ao Algarve, como ambos calcorreiam o país, atuando tanto em instituições locais, como na Misericórdia de Tavira, na receção aos caloiros na Faculdade de Medicina de Lisboa ou na Queima das Fitas em Coimbra. Desta colaboração dirá José Afonso: “O Rui Pato ajudou-me nas situações de maior responsabilidade perante públicos mais exigentes ou nas gravações. Comecei a cantar o que me vinha à cabeça, nas praias do Sul ou em curtas deambulações por terras de província, onde ampliei, fora do ambiente universitário, as minhas experiências mais duradoiras” (Salvador, 2014, p. 167).
Uma dessas deslocações é, em maio de 1964, a Grândola, para atuar com Carlos Paredes na Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, a “Música Velha”, que assinalava o seu 52º aniversário. É Hélder Costa, natural daquela localidade, ao tempo a iniciar um processo de rutura com o PCP, de que era militante desde 1961-62 e que, apesar de ter passado a estudar em Lisboa, encena o grupo de teatro da coletividade, que o aborda nesse sentido, abrindo caminho ao convite formal endereçado pela Direção. Porém, José Afonso, ao aceitar o convite, adverte: “Pessoalmente interessa-me que não seja dado um carácter de exibição no estilo «variedades» à apresentação das minhas canções e que tudo decorra no clima de solidariedade que a vossa agremiação se propõe incentivar para além duma simples finalidade recreativa”6.
A Direção tinha uma composição popular, como era habitual naquele tipo de entidades. O presidente era empregado de escritório e o vice-presidente, comerciante; o tesoureiro era operário corticeiro e o diretor da banda, barbeiro. Havia entre os restantes elementos um carpinteiro, um carteiro e um motorista7.
O folheto de divulgação da iniciativa revela um grau bastante significativo de informação e detalhe em relação a José Afonso e à sua obra, ao referir:
Embora mantendo ainda nas suas canções os sentidos musical e interpretativo de Coimbra, Dr. José Afonso revela-se um inovador. Através das suas belas e estranhas baladas, perpassa todo o sentido poético-trágico da sensibilidade do nosso povo. Pela primeira vez através deste cantor-poeta de temática iminentemente popular a canção portuguesa encontra um caminho certo. É autor de grande número de canções, tais como «O meu Menino é de Oiro», «Os Vampiros», «Bairro Negro», etc., que têm constituído grande êxito na rádio e televisão (Pimentel, 2010, p. 74).
Nessa sessão cantou pela primeira vez “Cantar Alentejano”, composta de véspera, sobre o assassinato pela GNR de Catarina Eufémia, assalariada agrícola de Baleizão, acontecimento ocorrido dez anos antes, evidenciando bem o tipo de intervenção que quis ter. O ambiente em Grândola impressionou-o muito. Em carta aos pais refere:
Se alguma vez tiver de deixar esta terra, é a lembrança dos homens que conheci em Grândola e noutros lugares semelhantes que me fará voltar. A Sociedade Grandolense é um casinhoto antigo com meia dúzia de divisões, uma orquestra, um grupo cénico e uma biblioteca. A Direcção […] já promoveu a realização de palestras e concertos em que colaboraram o Alves Redol, o Romeu Correia, o Lopes-Graça e o Rogério Paulo. As autoridades não só lhes têm recusado o mínimo apoio como têm entravado outras tantas iniciativas deste género (Salvador, 2014, p. 109).
Na verdade, só a propósito das comemorações do 52º aniversário da “Música Velha”, o seu Grupo Cénico apresentou três peças - “O Delator”, de Maria Teresa Horta; “O Doido e a Morte”, de Raul Brandão e “A Gota de Mel”, de Léon Chancerel. A Censura, no entanto, atrasara-se, pois pretendia proibir a representação da peça “O Delator”8. Noutra sessão, um sarau de música coral, atuou a Academia dos Amadores de Música, de Fernando Lopes Graça.
José Afonso agradece a José da Conceição, vice-presidente da Direção, a calorosa receção que teve em Grândola e, na carta, junta a letra para uma canção inspirada pela sua passagem por aquela vila alentejana que aquele lerá publicamente ainda no curso daquelas comemorações. A primeira das quadras dizia: “Grândola vila morena/Terra da Fraternidade/O Povo é quem mais ordena/Dentro de ti ó cidade” (Madeira et al., 2023). Nascia assim, a canção “Grândola, Vila Morena”. Numa entrevista vai dizer mais tarde:
As relações humanas existentes naquela sociedade eram de tal ordem que não cheguei a saber quais eram os membros da sua direcção. Havia uma distribuição de responsabilidades que me deu a ideia, talvez simplista, de que uma sociedade socialista seria assim. Uma sociedade sem desigualdades, em que as pessoas assumiam conscientemente o papel que lhes cabia. Por ampliação desse contacto é que fui levado a fazer uma canção dedicada a Grândola9.
Com esta canção, José Afonso celebra efetivamente o espírito de cooperação e solidariedade, a importância da intervenção cultural nas associações populares. Eram verdadeiras escolas informais de formação e consciencialização cultural e política, espaços alternativos ao sistema e ensino da ditadura, num país que em 1960 registava uma taxa de analfabetismo de 33% da população.
Ao contrário das associações de estudantes onde se bebiam e afirmavam novas correntes do pensamento contemporâneo, pelas coletividades populares de cultura e recreio perpassava, contornando a censura e a vigilância policial, uma vincada cultura oposicionista de expressão neorrealista, sob a influência direta do Partido Comunista. A deslocação de José Afonso a Grândola constituiu uma das suas primeiras atuações fora de meios estudantis, em ambiente operário e popular, onde a presença do trabalho clandestino do PCP se fazia sentir e constituía uma poderosa alavanca na resistência antifascista.
No entanto, por esses anos, os grupos com quem se relacionava em Faro iam-se dispersando. Entre os jovens trabalhadores, António José Matias passara a estudar em Lisboa; Luís Benvindo emigrara para França; Barracosa, mobilizado para a guerra colonial. Dos que frequentavam a tertúlia do Café Aliança, Luiza Neto Jorge e António Barahona separaram-se e partiram para França e Moçambique, respetivamente, ainda em 1962. Também nesse ano António Ramos Rosa viera para Lisboa. Em 1964, meses depois de se ter deslocado a Grândola, também José Afonso, acompanhado por Zélia, natural da Fuzeta, com quem acabara de casar, parte para Moçambique devido a “Instâncias da família, filhos crescidos, decepções e mais decepções neste país imundo”10, como desabafa a Albano da Rocha Pato.
São dolorosos os três anos passados em Moçambique, um ano em Lourenço Marques e dois na cidade da Beira. Sempre em conflito com as autoridades, vigiado e pressionado não deixa de se envolver em atividades culturais e de se aproximar de certos meios africanos locais. Em Lourenço Marques, distancia-se dos velhos oposicionistas brancos, que, na maioria, aí se haviam radicado, sem que nunca tivessem rompido com a tradição colonial do republicanismo. É, pelo contrário, o único branco a colaborar no Centro Associativo dos Negros, onde dá aulas de alfabetização. No entanto, o Centro vai ser dissolvido pouco depois e José Afonso recambiado para a cidade da Beira. Nesta cidade, colabora com a restrita intelectualidade progressista no Cineclube local e participa na peça “A Excepção e a Regra”, de Bertold Brecht, cuja representação é permitida, a troco da sua atuação num sarau de fados de Coimbra para a elite local (Santos, 2002, pp. 178-180). O ambiente continuava a ser sufocante. A elite branca, por um lado e, por outro, o racismo e a exploração colonialista da imensa maioria negra; a vigilância permanente e as pressões da burocracia colonial trazem-no de volta ao continente. Intimidado e saturado, põe antecipadamente fim ao contrato administrativo que tinha. Congeminara longamente esse regresso. Nas vésperas de embarcar desabafa em carta a Albano da Rocha Pato: “Estes gajos são asquerosos, miseravelmente vampiros e quando não enchem a mula à custa da formiga ajudam ao festim, como vulgares capatazes de quintas alheias. É preciso evitar que alguns destes trânsfugas se lembrem de habitar a metrópole depois da varridela. As patas têm-nas carregadinhas de merda e as emanações contaminam quem deles se aproxima”11.
Os anos de Moçambique são, no entanto, particularmente importantes no aprofundamento da consciência anticolonial e na determinação política de combate ao regime. O contacto com a realidade colonial marca-o profundamente.
“Gostava de me movimentar dentro duma certa margem de invenção”
Entre o seu regresso em agosto de 1967 e o 25 de Abril de 1974 intensifica de forma extraordinária as suas atuações em meios populares, estudantis também, muito na Margem Sul, entre o Barreiro e Setúbal. Aí se radica, como professor, para ser rapidamente expulso do ensino e viver de explicações e cantorias, percorrendo o país. O carácter antifascista das suas atuações é iniludível. Acompanhado de Rui Pato, atua, por exemplo no Barreiro, a 11 de novembro de 1967, no Pavilhão do Luso Futebol Clube, numa iniciativa da respetiva Comissão Cultural e do Cineclube local. Com o pavilhão cheio, apesar da vigilância policial, pedia-se com insistência que cantasse “Os Vampiros”. José Afonso é acompanhado em coro num entusiasmo fervilhante12. Mas, em consequência, são presos nos dias seguintes todos os elementos da Direção do Cineclube. Nessa sessão José Afonso é abordado por um militante do PCP que lhe propõe que adira ao partido. Recusa, alegando
[…] que não poderia ser elemento do Partido Comunista por várias razões, uma das quais é que eu era da classe pequeno-burguesa, portanto, a única coisa que eu sabia de certeza, que eu conhecia de certeza, eram as minhas próprias limitações. Poderia vir a fraquejar na prisão se um dia fosse preso e denunciar colegas e camaradas e isso, seria para mim uma experiência de que eu não me sairia bem. Nunca perdoaria a mim próprio esse momento de fraqueza (Salvador, 2014, p. 109).
Continua, todavia, a colaborar com o PCP. Aceita atuar em coletividades, associações e encontros pelo país. Em muitas circunstâncias deslocava-se gratuitamente de comboio, com o apoio discreto da organização comunista entre os ferroviários.
José Afonso era determinado na ideia da unidade antifascista, da colaboração desinteressada com qualquer força que se dispusesse a combater o regime e tanto o fazia com o PCP, como com os sectores católicos progressistas que se começavam a expressar numa importante militância contra a ditadura e a guerra colonial ou com os novos sectores políticos, resultantes dos processos de diferenciação no campo das oposições, que se distinguiam do Partido Comunista pelo seu radicalismo e pela crítica ao modelo soviético. Como reconhece, apesar da colaboração com o PCP: “também gostava de me movimentar dentro de uma certa margem de invenção e pressentia que havia outras forças na Margem Sul, embora as mais presentes fossem, obviamente, as do Partido Comunista” (Salvador, 2014, p. 109).
Em agosto de 1968 atua, por exemplo, em Viana do Castelo, no Clube Fluvial Vianense, a convite de José da Conceição, o mesmo que em 1964, na Direção da “Música Velha”, o convidara a ir a Grândola, donde se ausentara ao sentir o cerco policial pela sua atividade antifascista. Este, grande amigo de Hélder Costa, iria acompanhá-lo na fundação do grupo «O Comunista», constituído nesse ano em França, a partir de uma cisão no Comité Marxista-Leninista Português, que se formara em 1963-64, em consequência de uma cisão no PCP. A “noite de arte”, como a iniciativa era apresentada, constava da atuação de José Afonso, acompanhado de Rui Pato e de Manuel Freire e foi atentamente vigiada pela PSP que, diligentemente, informou a PIDE do seu carácter subversivo13. Nesta deslocação ao norte do país, atuara não só em Viana do Castelo como em Caminha, Moledo e no festival de Vilar de Mouros, como nesse ano cantaria também nas Caldas da Rainha, Alcobaça, Nazaré ou no Couço, aldeia do concelho de Coruche, onde a influência do Partido Comunista era esmagadora.
Em 1969 é um dos fundadores do Círculo Cultural de Setúbal, uma associação que desempenha papel relevante na cidade como polo de dinamização cultural e de consciencialização antifascista, onde em certos períodos integra os órgãos sociais. Dá aulas noturnas, participa regulamente em debates e outras atividades. O Círculo era frequentado por jovens trabalhadores, estudantes e intelectuais, muitos na orla do Partido Comunista, outros sem filiação partidária, socialistas, anarquistas ou com simpatias à esquerda do PC (Costa, 2019, pp. 16-17). Foi um alfobre de jovens que depois do 25 de Abril se espalharam por diferentes organizações da esquerda revolucionária - marxistas-leninistas, trotskistas, marxistas revolucionários.
Em 1969, no simulacro de eleições a que o regime de quatro em quatro anos se prestava, apoiou as CDE, Comissões Democráticas Eleitorais, que consubstanciavam uma aliança entre o PCP e sectores da esquerda socialista e católicos progressistas, numa altura em que as oposições se apresentaram divididas, com a CEUD, Comissão Eleitoral de Unidade Democrática, apoiada pela ASP, Acção Socialista Portuguesa, de Mário Soares. Participa nas tarefas de recenseamento eleitoral em Setúbal.
Nesse ano, manifesta solidariedade com os estudantes de Coimbra em luta, atuando em final de maio numa sessão de apoio ao luto académico, em que, mordaz, anuncia ir cantar uma canção, provavelmente “Na rua António Maria”, forma indireta de se referir à PIDE-DGS, cuja sede ficava nessa rua:
Dedico esta canção, composta há pouco tempo, a uma patriótica e benemérita associação de que espero esteja aqui algum representante, em cuja letra referia que essa associação tivera quatro letras e agora só três, que vela pela segurança das pessoas com tanto empenho que até lhes arranja um quarto com varanda virada para o mar (Cruzeiro, 1989, p. 200n).
A canção evoca a atividade criminosa da polícia política, reportando-se ao exemplo de Maria da Conceição Matos, funcionária clandestina do PCP, presa, torturada e humilhada em 1965 e 1968.
É crescente a politização da sua intervenção pública. Ao mesmo tempo que mantém a colaboração com o Partido Comunista, em relação ao qual respeita o percurso de luta, o heroísmo de muitos dos seus dirigentes e militantes, a persistência no combate à ditadura, acompanha o processo de radicalização à esquerda, que se traduz na reconfiguração das oposições ao longo dos anos 1960, que independentemente das profundas diferenças entre as distintas organizações, defendem que não é possível derrubar a ditadura por dentro do regime, por meios pacíficos ou exclusivamente com recurso aos métodos tradicionais de luta.
A Luar
José Afonso segue com particular interesse a ação da LUAR, Liga de Unidade e Acção Revolucionária, fundada em 1967, que ficará conhecida pelo assalto espetacular à Agência do Banco de Portugal, na Figueira da Foz, em 17 de maio daquele ano. Um grupo consegue entrar em plena luz do dia nas instalações do banco, subtrair uma quantidade apreciável de dinheiro para financiamento de atividades antifascistas e pôr-se em fuga, saindo do país sem ser intercetado ou identificado pela polícia. Era a “Operação Mondego”, a primeira ação da LUAR.
Depois do assalto ao paquete “Santa Maria” ou do desvio do avião em Casablanca, alguns dos seus autores rapidamente perceberam que era a partir do interior do país que esse tipo de ações se devia organizar. Exilados no Brasil, pertenciam ao núcleo oposicionista que se juntara em torno do general Humberto Delgado e do capitão Henrique Galvão, ambos dissidentes do regime. Assim, em 1965, Camilo Mortágua, que havia participado no assalto ao “Santa Maria” instala-se em Paris, a que se junta Hermínio da Palma Inácio, que pertencera à Comissão Central do Movimento Nacional Independente, a organização criada por Delgado depois das eleições de 1958.
O ambiente no seio das oposições era pesado. O assassinato do general pela PIDE em 13 de fevereiro de 1965, a profunda divisão em Argel no seio da Frente Patriótica de Libertação Nacional (FPLN) no meio de recriminações mútuas, as dificuldades de implantação das Juntas de Acção Patriótica, os organismos da FPLN no interior do país; o desmantelamento pela polícia da Frente de Acção Popular/Comité Marxista-Leninista Português (FAP/CMLP), organização dissidente do PCP; a desagregação do MAR, Movimento de Acção Revolucionária, grupo socialista de esquerda, lançavam o desânimo entre as várias correntes oposicionistas. O assalto à Agência do Banco de Portugal vinha, perante a indiferença do PCP, insuflar novo alento nos meios oposicionistas.
A LUAR forma-se assim com os que se transferiram do exílio brasileiro para Paris, figuras de diferentes sectores políticos que haviam pertencido à FPLN, como Emídio Guerreiro, que também estava exilado na capital francesa; militantes do MAR, entretanto dispersos por diferentes países; sectores católicos radicados em Lovaina, na Bélgica, inspirados pelo Concílio Vaticano II; núcleos de jovens desertores, emigrantes económicos radicalizados ou grupos antifascistas informais que se mantinham em Portugal.
Do grupo que realiza o assalto à agência bancária faziam parte Hermínio da Palma Inácio, Camilo Mortágua, António Barracosa e Luís Benvindo. Os dois primeiros vieram do Brasil para França, a partir de onde a ação foi congeminada e preparada.
Com eles relacionara-se António Barracosa, que desertara do exército colonial na Guiné, estivera em Argel onde contactara com o estado lastimável da FPLN e rumara a Paris, estabelecendo a ligação com o antigo grupo de jovens de Faro, que se encontravam dentro e fora do país, como Luís Benvindo, António José Matias ou Seruca Salgado.
A LUAR é, assim, na sua origem, como que herdeira mitigada de um republicanismo radical, expurgado já da componente putschista por dificuldades objetivas e renovadas circunstâncias, circunscrevendo-se à exemplaridade das ações protagonizadas por pequenos grupos. Eram influenciados pelas conceções delgadistas e pelo guerrilheirismo latino-americano, de inspiração castrista e guevarista, convictos de que o impacto dessas ações seria suscetível de desencadear um levantamento popular que derrubasse o regime.
É, em agosto de 1968, esse o sentido da “Operação Matias”, designação que homenageava António José Matias, o jovem algarvio que desempenhara um papel fundamental na sua estruturação e que, entretanto, falecera, por doença. A ação consistia na ocupação da cidade da Covilhã, apropriação das armas da GNR e PSP locais, assalto às agências bancárias da cidade, tomada dum posto de rádio donde seria emitida uma proclamação revolucionária à população (Santos, 2011, p. 159). Todavia, a ação falha rotundamente. Palma Inácio e o grupo que o acompanhava são presos com grande quantidade de armas que transportavam, tendo os restantes operacionais recuado precipitadamente para Espanha. Os danos são enormes, não só pelo material apreendido, mas sobretudo pela prisão do principal dirigente.
É com dificuldade que a atividade da LUAR prossegue. Em abril de 1969 realizam um atentado bombista contra o consulado americano no Porto e fazem explodir postos de alta tensão em Porto Alto, concelho de Benavente. Uma nota da PIDE, divulgada pelos jornais, atribuindo a autoria à LUAR, garantiu impacto público a essas ações. Entretanto nesse mesmo mês, na véspera de ser julgado, Palma Inácio consegue evadir-se das cadeias privativas da sede da PIDE no Porto e sair do país, vindo a ser preso em Madrid, o que suscitou uma grande e bem-sucedida campanha em vários países europeus contra a extradição para Portugal e pela sua libertação. É enviado para Itália, reunindo-se depois aos seus companheiros em Paris. Tanto a espetacularidade das ações levadas a cabo como a fuga de Palma Inácio e a campanha pela sua libertação prestigiaram a organização nos meios antifascistas do país e no exílio.
João Afonso dos Santos afirma que José Afonso, seu irmão, apoiou a LUAR “desde o momento em que a organização entrou em cena” (Santos, 2002, p. 208). Identificava-se com as formas de luta radicais utilizadas, com as suas ações corajosas e tocava-o o envolvimento de alguns dos seus jovens amigos de Faro, especialmente o António José Matias, cuja morte prematura sentiu bastante, mas também Luís Benvindo ou António Barracosa.
Esta aproximação era em boa parte emocional, pois a LUAR até aí não tinha um programa político particularmente definido, para além do carácter antifascista revolucionário. Muitos dirigentes e quadros, a começar pelo próprio Palma Inácio, achavam que, mais importante que o programa, era a ação que desenvolviam. No fundo consideravam que os aspetos programáticos, de natureza política e ideológica atrapalhavam. Esta tensão entre teoria e ação constituiu uma permanência ao longo de toda a história da LUAR, independentemente dos esforços desenvolvidos no sentido de capacitar programaticamente a organização, que ocorreram sobretudo depois da “Operação Matias”.
Esta clarificação não colide naturalmente com o carácter revolucionário da organização, mas acrescenta a importância da formação político-militar dos seus quadros operacionais à necessidade de reforçar meios indispensáveis, como armamento e aparelho logístico no interior e prosseguir com esse tipo de ações.
A primeira sistematização programática não definia a LUAR como partido político, mas como uma plataforma política plural de orientação socialista, que assumia como comum o objetivo da destruição do aparelho de estado pela luta popular armada. Recusava qualquer alinhamento internacional ou filiação ideológica. Propugnava a emancipação dos trabalhadores e a instauração do Poder Popular e atribuía-lhe um carácter antimonopolista, anti-imperialista e anticolonialista. O seu programa estaria em permanente atualização, em função do desenvolvimento da luta de classes.
O grupo que constituía a Direção, Camilo Mortágua, Luís Benvindo e José Hipólito, procura aprofundar esta plataforma programática, conferindo suporte político claro às ações violentas, equilibrando a componente política e a componente armada, conferindo mais rigor à política de recrutamentos. Pretendiam dotar a organização de uma sólida estrutura dentro do país que pudesse enquadrar e incrementar uma atividade revolucionária coerente e consequente. Apontavam para uma organização descentralizada e basista, com expressões orgânicas assembleístas, demarcando-se do centralismo dos partidos tradicionais e procurando romper com um lastro sectário que minava as relações entre as diferentes organizações da esquerda e da esquerda revolucionária.
Palma Inácio, quando se reencontra com a organização em França e posto ao corrente destes desenvolvimentos programáticos, concorda, mas, invocando questões de segurança, centraliza o trabalho em torno de si, ao mesmo tempo que se aproxima da Acção Socialista Portuguesa, de Mário Soares, que efetivamente tivera um papel importante no apoio à sua fuga do país, o que desagrada e leva ao afastamento de Mortágua, Benvindo e Hipólito, embora de modo não concertado nem simultâneo e mantendo colaboração desde que solicitados.
A nova fase da LUAR, a partir de 1970, voltava a ser dominada pela figura de Palma Inácio, contando com a importante colaboração de Joaquim Alberto, ex-seminarista dos Olivais, com ligação a grupos de padres e ex-padres em Paris, como Francisco Fanhais, ou em Lovaina, onde se destacava Augusto Maria, que tinham sido seus colegas nos Olivais. A organização contava também com a colaboração de um grupo que se afirmava marxista-leninista, liderado por Jacinto Rodrigues, que pertencera à FAP/CMLP.
Neste período são assaltadas carrinhas de bancos que recolhiam depósitos de emigrantes, os consulados portugueses em Roterdão e no Luxemburgo, para obterem passaportes em branco e outra documentação; trabalham na criação de um aparelho logístico no interior; adquirem armas na Checoslováquia e na Suíça; procedem ao envio de material explosivo para o país, para onde destacam jovens militantes. Foram paulatinamente preparando uma grande ação, a “Operação do Século”, que consistia no assalto a um banco e a uma prisão política, o que deveria ocorrer em novembro de 1973.
Porém, tudo corre mal. Joaquim Alberto e o grupo de operacionais que dirigia são presos em Espanha com armas e explosivos. Palma Inácio, por sua vez, é também preso, mas já em Lisboa, quando se preparava para assaltar um banco em Minde. A LUAR fica praticamente desarticulada. Restavam núcleos, sobretudo em Paris e Bruxelas, com intervenção em cooperativas e centros culturais, junto de emigrantes, e a publicação do jornal «Fronteira», aberto à colaboração de outras correntes socialistas que começara a ser editado em julho de 1973.
O exemplo de coragem e audácia da LUAR sobrepunha-se às dificuldades e penetrava o imaginário dos sectores de esquerda mais radicalizados, por mais que criticassem as suas debilidades políticas e ideológicas ou a falta de segurança com que se movimentavam os dirigentes e militantes.
José Afonso, simpatizante da luar
Simpatizante da LUAR desde a fundação, os primeiros contactos de José Afonso com a organização parecem estabelecer-se sobretudo a partir de 1970. Mas, para a intrincada constelação de grupos da esquerda revolucionária, principalmente marxistas-leninistas de maior ou menor devoção maoísta, José Afonso era do PCP ou seu compagnon de route, revisionista, como esses grupos apelidavam o Partido Comunista, procurando boicotar as suas atuações.
Em novembro de 1970, culminando uma digressão na região de Paris, que passou por atuações em Boulogne--Billancourt, onde se localizava a importante fábrica da Renault, e noutras localidades de concentração da emigração portuguesa, atua na Maison de la Mutualité num espetáculo organizado pela Liga Portuguesa do Ensino e Cultura Popular (LPECP), intitulado “La Chanson Portugaise de Combat”, em que participavam também Sérgio Godinho, Luís Cília e Tino Flores, todos aí exilados. À porta um pequeno grupo distribuía um folheto com uma carta aberta a José Afonso, intitulada “Chora, camarada chora”, numa alusão à canção “Canta, camarada canta”, acusando-o de as suas canções não terem essência revolucionária e anestesiarem o povo, assinando como “Comité O Zé Povinho topa tudo” (Castro, 2019, p. 55), na realidade uma das várias dissidências ocorridas em França, a partir de 1968, no que restava do CMLP.
Durante as atuações de Sérgio Godinho e Luís Cília os comentários depreciativos em voz alta aumentavam, prosseguindo com José Afonso. Este, tal como Cília, responde, acusando os que o interpelavam de revolucionários sentados à mesa do Café Luxembourg à espera que os cantores fizessem a revolução14. A sessão terminou abruptamente e o cantor, avesso àquela toxicidade sectária, ficaria bastante abalado.
Anos mais tarde, em novembro de 1973, mas em Lisboa, no Instituto Superior Técnico, onde atuara já por diversas vezes desde o início dos anos 60, é também interpelado num espetáculo organizado pela respetiva Associação de Estudantes. Com a Cantina do Técnico repleta, com condições de acústica péssimas, cantou em cima de umas mesas que serviam de palco. Já depois de ser perturbado quando entoava “A morte saiu à rua”, conhecida canção denunciando o assassinato de Dias Coelho, por não ser suficientemente explícita, quando na canção “O que faz falta”, uma das mais panfletárias do seu reportório, canta “O que faz falta é avisar a malta”, é interrompido por ativistas da corrente “Por um Ensino Popular”, afeta à União dos Estudantes Comunistas (Marxistas-Leninistas), a UEC(M-L), que gritam “Avisar a malta? Isso serve para alguma coisa”, o que obrigou à intervenção do presidente da Associação e a que o espetáculo fosse consideravelmente encurtado (Oliveira, 2019, pp. 692-696).
O ambiente era assim, pois, como o próprio refere: “Para uns, eu identificava-me com o PC; portanto atacando-me a mim, estavam atacando o PC e a estratégia geral do PC. Eu não passaria de um revisas do caraças. Só que eu também tinha ligações com a LUAR, não é… e distribuí largamente o «Manual da Guerrilha Urbana», por tipos meus amigos…” (Salvador, 2014, p. 108).
Quando em 1971 vai a França gravar o disco «Cantigas do Maio», com produção e direção musical de José Mário Branco, nos estúdios de Hérouville, nos arredores de Paris, já conhece pessoalmente Palma Inácio, que o visita numa das sessões de gravação. Tratar-se-ia, no entanto, de um conhecimento recente, a que não seria completamente alheia a ligação a Francisco Fanhais, desde meados dos anos 60 ligado aos meios católicos progressistas.
Fanhais conhece José Afonso pela via das canções em 1968. Nessa altura, pároco no Barreiro era frequentemente convidado a cantar nas coletividades de cultura e recreio - os Penicheiros, os Franceses, o Luso. Com a sua atuação no programa televisivo “Zip-Zip”, em 1969, adquire notoriedade e sofre pressões policiais. É proibido de cantar e suspenso das funções de padre. Decide, por isso, sair do país. Parte justamente em abril de 1971 à boleia de José Afonso, que viajava para Valência para participar no Festival da Canção Ibérica, seguindo depois para Paris, para gravar “Cantigas do Maio”. Nesse intervalo de tempo fixa-se nesta cidade, contactando Joaquim Alberto, na altura já dirigente da LUAR, através de quem adere à organização e conhece Palma Inácio15.
Terá sido por esta via que se faz a aproximação de José Afonso a Palma Inácio. Este rapidamente procura enquadrá-lo, propondo-lhe, a si e a Zélia, sua companheira, “pequenas acções que procurámos concretizar” (Salvador, 2014, p. 135), designadamente a distribuição de materiais de propaganda.
A definição da LUAR como organização basista, descentralizada, anticolonial, pela revolução socialista e pela instauração do poder popular, não sectária, estabelecendo pontes à esquerda, diluindo fronteiras entre simpatia e militância ia ao encontro das ideias de José Afonso que, se não aderiu propriamente nesta altura, colaborava.
A sua atividade não deixava, por isso de ser intensa e plural, desde que antifascista. Acompanha militantes comunistas, relaciona-se com católicos progressistas, com dirigentes e ativistas estudantis de várias sensibilidades, com dirigentes associativos com e sem partido. Canta onde quer que o chamem, colabora na dinamização do Círculo Cultural de Setúbal, intervém nas atividades da Oposição.
A sua colaboração com as CDE nas eleições de 1973 é significativa. Participa nos apelos ao recenseamento, no III Congresso Republicano de Aveiro, nas sessões de propaganda eleitoral. Manifesta solidariedade com trabalhadores, cantando nas fábricas em greve, como na fábrica de limas de Tomé Feteira, em Vieira de Leiria ou apoiando sindicatos não afetos ao regime, como os caixeiros, bancários ou têxteis.
Muito prestigiado já em todo o país e, em consequência, também muito referenciado pela polícia política, foi preso em 29 de abril de 1973, em Setúbal, depois de regressar do Congresso Republicano de Aveiro, juntamente com Jorge Luz, estudante, militante comunista e do MJT, Movimento da Juventude Trabalhadora, presidente do Círculo e seu parceiro em várias iniciativas da Oposição. A PIDE-DGS procedia a um conjunto de prisões pelo país, designadamente no distrito de Setúbal, com o objetivo de inibir as comemorações do 1º de Maio e a mobilização para a campanha eleitoral de outubro (Costa, 2023, pp. 257-259). Permaneceu detido três semanas em regime de isolamento.
Todavia, libertado, não desiste de participar ativamente na campanha eleitoral. Está na mesa do comício realizado em Setúbal, em setembro daquele ano. Em outubro vai a Paris gravar o disco “Venham mais cinco”, aproveitando a oportunidade para jantar com Palma Inácio, acompanhado de Jorge Luz que, entretanto, se encontrava aí exilado (Costa, 2019, pp. 77-78). É nessa altura que o dirigente da LUAR promete visitá-lo em Setúbal, mais cedo do que ele julgava. Quando, passadas poucas semanas, Palma Inácio entra clandestinamente no país para a “Operacão do Século”, visita José Afonso em Setúbal, disfarçado16. Seria preso dias depois. Era uma temeridade impensável.
Para evitar ser preso, como no ano anterior, em 1974, pouco depois do concerto para entrega dos prémios da Casa da Imprensa, em 24 de março, que constituiu uma demonstração pujante de luta contra uma ditadura em estado terminal, refugia-se em casa de amigos, onde é surpreendido pelo golpe militar de 25 de Abril.
“Uma espécie de deslumbramento”
Viveu intensamente o 25 de Abril. Assistiu ao processo de transformação de um golpe militar clássico num processo revolucionário, acompanhou nas ruas a população que não quis seguir as advertências dos militares para se manter em casa, envolvendo e acompanhando as forças revoltosas. “Vivi o 25 de Abril numa espécie de deslumbramento. Fui para o Carmo e andei por aí…”17, dirá quando questionado sobre onde é que estava nesses dias.
A 30 de Abril vai ao aeroporto esperar o avião dos exilados regressados de Paris, onde vem José Mário Branco e Luís Cília. Estão com ele Adriano Correia de Oliveira, José Jorge Letria e, entre amigos e familiares entoam, transbordantes de emoção, a “Grândola”. Nessa noite reúnem-se para discutir formas de intervenção comum. Francisco Fanhais que chegara, entretanto, de comboio, também participa. Desse encontro nasce o CAC, Colectivo de Acção Cultural, de vida efémera. Eram efetivamente distintas as sensibilidades políticas que aí se juntaram. Convidado para participar na grande manifestação do 1º de Maio em Lisboa, prefere fazê-lo em Grândola (Pimentel, 2010, p. 121) e na noite desse dia está em Setúbal para participar num comício de apoio ao Movimento das Forças Armadas, onde intervém, afirmando: “A partir de hoje é necessário unirmo-nos para derrubar os últimos núcleos da resistência fascista. Temos de passar da fase do coração para a fase da cabeça e da acção” (Costa, 2017, pp. 31-33).
A partir de maio recompõe-se também a LUAR. Palma Inácio e os seus companheiros haviam sido libertados do forte de Caxias e Camilo Mortágua, regressado de França, reingressa na organização. Uma das primeiras pessoas que Camilo procura é José Afonso, com quem havia uma mútua relação de empatia desde que se conheceram, em Paris, em 1972. Nesta altura, Camilo desenvolvia fundamentalmente atividade cultural em clubes e associações de emigrantes, onde José Afonso atuou.
Inicia-se uma fase de participação ativa de José Afonso na LUAR. Se bem que na organização não houvesse propriamente um estatuto rígido de militante, mas antes uma grande flexibilidade na condição de pertença, José Afonso está efetivamente ligado à LUAR, como o próprio reconhece (Salvador, 2014, p. 114) e a conexão fora estabelecida por Camilo Mortágua.
Rapidamente se torna um elemento fundamental para a organização da LUAR em Setúbal. No verão promove uma reunião de Camilo com a filha mais velha e os amigos, já na perspetiva da sua adesão e da constituição dum núcleo na cidade18. É do seu prestígio e do seu voluntarismo, aliados às capacidades organizativas de Camilo Mortágua, que resulta essa estruturação. Henrique Guerreiro e Helena Afonso estiveram nessa reunião. Haviam saído do PCP com quase duas dezenas de jovens militantes, discordando da orientação do Partido Comunista e a maioria vai aderir à LUAR. Já antes havia saído Jorge Luz. Essas saídas afetavam parte significativa das forças do PCP imediatamente antes do 25 de Abril na cidade, desenvolvendo trabalho no Movimento da Juventude Trabalhadora junto das empresas locais (Costa, 2017, p. 168).
Em 1975, o núcleo da LUAR chegou a dispor de sede na Praça do Bocage, no centro da cidade e a ter perto de meia centena de ativistas. A canção “Papuça”, que José Afonso viria a integrar no álbum “Como se fora seu filho”, de 1983, evoca o universo da LUAR e de sectores próximos em Setúbal, com quem se relacionava muito de perto19: “A multidão na rua/ Eh Zé!/ ouve-se a banda tocando/ o MFA/ Vai o Borges, o Pina, o Chaimite e o Bibas/ Balouçando/ A Revolução é para já”20.
Vive intensamente o tempo que passa na cidade. Frequenta o café “Tamar”, lugar de debate e de convívio, onde acorria gente das diferentes tendências da esquerda revolucionária (Costa, 2017, p. 28). Como lembra, “participei em vigilâncias populares constantes”21, numa altura em que as ameaças, reais ou frequentemente imaginadas, de golpe fascista eram quase diárias. Como refere Henrique Guerreiro, ”ia sempre”22 às ações de rua, designadamente ocupação de casas e equipamentos sociais. Participou, por exemplo, em julho de 1975, na ocupação do Asilo Paulo Borba, que pertencia à Misericórdia de Setúbal, onde os idosos eram objeto de maus-tratos e alimentação de péssima qualidade. Seria aí inclusivamente atacado com um machado, mas “a sorte foi a reação rápida do Zeca, senão tinha havido problemas” (Brinca & Baía, s.d., p. 68). Esteve na ocupação da Quinta do Cortiço, já no concelho de Palmela, onde, por um golpe de sorte, não morreria, porque regressando a casa mais cedo, não viria na viatura que o havia levado e que, ao voltar, teve um acidente onde faleceram os quatro ocupantes23.
Em março de 1975 viveu fervorosamente os acontecimentos de dia 7 em Setúbal, tidos como prelúdio da tentativa de golpe militar spinolista de dia 11. Pela primeira vez, o PPD, Partido Popular Democrático intentava realizar um comício na cidade. Um grande anúncio em «O Setubalense» anunciava a projetada realização para o pavilhão do Clube Naval Setubalense, com a presença de vários dirigentes e um dos ministros do III Governo Provisório. Levantaram-se de imediato protestos e movimentações, principalmente na área da esquerda revolucionária. O PRP, Partido Revolucionário do Proletariado; a FEC(M-L), Frente Eleitoral de Comunistas (Marxistas-Leninistas); a FSP, Frente Socialista Popular e a LUAR constituem-se como Frente Anti-Fascista e lançam um apelo conjunto pela mobilização popular contra o comício da direita. Realiza-se uma concentração frente ao local, ecoam palavras de ordem contra o PPD e centenas de manifestantes invadem o Naval.
O comício não se realizou e a polícia, previamente preparada e reforçada com efetivos vindos de Almada, tenta dispersar, mas a manifestação foi engrossando e, como diz um militar presente:
A dada altura os polícias eram insuficientes para responder à situação. A polícia começou a recuar para a esquadra […]. Mesmo antes de chegar ao local vi e ouvi alguns disparos que vinham de dentro da esquadra da PSP. Eles dispararam porque tiveram medo, uma vez que os manifestantes estavam a apedrejar a esquadra e a tentar arrombar a porta para entrar (Brinca & Baía, s.d., p. 210).
Há cerca de duas dezenas de feridos e um jovem que saía do cinema, sem qualquer ligação com os acontecimentos, foi atingido mortalmente pelos disparos policiais. A situação só consegue ser resolvida com a intervenção de uma força militar do COPCON (Comando Operacional do Continente), incluindo fuzileiros, mas vinda sobretudo de Vendas Novas, da Escola Prática de Artilharia, que serviu de interposição entre a PSP e os manifestantes, sendo os agentes evacuados da esquadra sob forte escolta militar (Costa, 2017, pp. 66-67). Em cima dos acontecimentos, José Afonso compõe a canção, cujo título é tomado do primeiro verso: “Foi na cidade do Sado/ No Pavilhão do Naval/ Havia uma bronca armada/ Pelas bestas do capital// Aos sete do mês de Março/ Quinta-feira já se ouvia/ Dizer à boca pequena/ Que o PPD era a CIA// Uma tarjeta laranja/ Convite ao povo fazia// Venham todos ao comício da Social Democracia// Eram talvez quatrocentos/ Gritando a plenos pulmões/ Abaixo o capitalismo/ Não queremos mais tubarões […]”24.
A canção seria editada ainda nesse ano num single, juntamente com o tema “Viva o Poder Popular”, editado pela LUAR, numa tiragem pequena e vendido de forma militante, a preço módico. Segundo a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), “Ambas as obras […] foram devidamente registadas pela SPA em 1975. Foram também fixadas fonograficamente nessa data pela LUAR, sem oposição do autor”25. Ou seja, José Afonso doava os direitos sobre as duas canções aquela organização.
Setúbal era aliás um dos casos mais representativos de experiência concreta do que foi designado de Poder Popular, demarcado de qualquer forma de poder instituído, fosse o Estado central ou local, bem como dos partidos que o suportavam mesmo à esquerda, como o Partido Socialista e até o PCP, inspirando-se nos remotos sovietes da revolução russa de 1917. Era a expressão da democracia direta e de base que norteava a auto-organização dos moradores pobres em Comissões de Moradores com as suas reivindicações específicas; a formação de Comissões de Trabalhadores nas empresas com reivindicações que não eram apenas económicas, mas também políticas; a ligação próxima com os militares progressistas do Movimento das Forças Armadas; e num esfoço de articulação de toda esta dinâmica, a criação de organismos de tipo superior, como foi a Comissão de Luta, órgão coordenador dos organismos de poder popular na cidade de Setúbal, atuando num contexto de grande radicalização política, apoiada pelos partidos da esquerda revolucionária.
A Comissão de Luta, cujo lema era “Unir, avançar e armar o Poder Popular”, sofreu um grande revés com o golpe de 25 de Novembro, levado a cabo pelos militares moderados do chamado “Grupo dos Nove” e apoiado pela direita militar. Embora muito depauperada, ainda se manteve até 1976 (Costa, 2017, pp. 118-127).
“Criar Poder Popular”
Mas, na LUAR, pelo seu carácter descentralizado e plural, havia várias sensibilidades e correntes, mais moderadas ou mais radicais; uma delas, mais política, defendia a importância da consciencialização, da mobilização e da ação popular de massas, orientando-se no sentido da concretização prioritária da consigna “Criar Poder Popular”, que a organização desde há muito preconizava como modelo de organização política. O jornal “Fronteira”, logo de dezembro de 1974, numa fase muito inicial do processo revolucionário, afirma que “a palavra de ordem que nos deve conduzir na actual fase de luta é CRIAR PODER POPULAR, criar a única força capaz de neutralizar o poder dos patrões, capaz de impedir qualquer retorno ao fascismo…” (F. P. Marques, 1976, p. 52).
Em fevereiro de 1975, o Congresso da LUAR decorre justamente sob esse lema. É aprovado um documento programático que define a organização como marxista revolucionária, que luta pelo Poder Popular e pela Revolução Socialista. Camilo Mortágua, o segundo dirigente mais importante da organização, afirma que a LUAR defende “um tipo de estrutura organizativa que se oponha unitariamente à reacção. Para isso é necessário que a LUAR trabalhe no sentido da consciencialização política das massas trabalhadoras «fora das querelas partidárias» (os partidos destruiriam ou afectariam a possibilidade de unidade com a sua ânsia de ganhar militantes e votos)”26.
A sessão de encerramento do congresso contou com um espetáculo musical em que atuaram José Afonso, Francisco Fanhais, Vitorino e Sérgio Godinho, o grupo de cantores de protesto mais desconfortável com as práticas partidárias de forte cariz sectário que dominavam a vida política e que os distinguia tanto dos cantores do PCP, como Adriano Correia de Oliveira ou José Jorge Letria, como dos cantores da UDP, União Democrática Popular, de filiação marxista-leninista, como José Mário Branco e o GAC, Grupo de Acção Cultural.
É com base na conceção de Poder Popular que José Afonso participa das atividades da LUAR não só a nível local, mas também nacional. Ia cantar às cooperativas e comissões de moradores, às fábricas em greve ou às herdades ocupadas. “Essa é a nossa actividade”27, assume.
José Afonso, como esclareceria mais tarde, diz estar mais propriamente alinhado com o sector da LUAR, mais identificado com o “Poder Popular”. É nesse sentido que afirma:
Utilizei um determinado tipo de veículos que me podiam conduzir a esse tipo de acção (cantar junto das massas populares), desde andar associado a um determinado sector da LUAR - personificado pelo Camilo Mortágua - e outros sectores que entendiam que as acções deviam ser totalmente descentralizadas, e ao serviço do Povo. Tínhamos até a ideia que uma organização deste tipo devia ser o motor e o incremento de iniciativas, mas reservando às massas o papel de sujeito, isto foi sempre uma dominante28.
Essas sessões em que participava assumiam a forma de convívios musicais, mas em que havia sempre, depois, uma parte mais política, em que frequentemente intervinha Camilo Mortágua.
O filme “Torre Bela”, um documentário militante de 1975, de Thomas Harlan, que acompanhou a ocupação da herdade que lhe dá o título, apresenta-nos uma situação concreta desse modo de intervenção político-cultural. José Afonso, Francisco Fanhais e Vitorino cantam para os assalariados após a ocupação, debaixo de uma chuva miudinha e insistente, com dois megafones a funcionarem como aparelhagem sonora.
A herdade de Torre Bela era um latifúndio de 1700 hectares, do Duque de Lafões, no concelho da Azambuja, que foi ocupada com o incentivo da LUAR e o apoio dos militares progressistas do MFA (Movimento das Forças Armadas), em finais de abril de 1975. Luís Banazol, o oficial do Regimento de Polícia Militar, dependente do COPCON, enviado ao local, afirma, em reunião com os ocupantes: “Não devem estar à espera que legalmente saia um decreto a dizer que vocês podem ocupar. Vocês ocupam e a lei há-de vir” (Rezola, 2013, p. 509).
Na zona de Torres Novas, por exemplo, José Afonso atuou na Comunal da Árgea, uma cooperativa criada em 1 de novembro de 1974 por Joaquim Alberto e outros companheiros. Na aldeia com o mesmo nome, de 700 habitantes e em terras cedidas para o efeito, mantiveram a atividade com duas dezenas de cooperantes e solidariedade vinda de muitos lados (Nuno & Tomé, 2018, pp. 121-124). É nesse contexto que em maio de 1975 se verifica o convívio popular em que intervêm Sérgio Godinho e Pedro Lobo Antunes, um dos fundadores da cooperativa, além de José Afonso que, na sala da Sociedade Musical Argense, entoaria a canção “Viva o Poder Popular” - “Não sei quem esteja de acordo/ Como vamos terminar/ Vinho velho vinho novo/ Viva o Poder Popular”29.
Mas a ideia de consciencialização política por via da intervenção cultural aproximava-o também de iniciativas desenvolvidas pelos militares progressistas no âmbito das Campanhas de Dinamização Cultural, programa estabelecido no âmbito da 5ª Divisão do Estado Maior General das Forças Armadas, em setembro de 1974, que, segundo o Tenente Ramiro Correia, ligado ao projeto desde início e que integrou a respetiva Comissão Dinamizadora Central, tinha duas finalidades:
A primeira é coordenar e apoiar todas as associações culturais do país, de modo a ser possível estabelecer uma rede cultural em todo o território, rede cultural essa, que será a base de uma futura vida cultural portuguesa. Em segundo lugar, vamos procurar actuar politicamente com uma presença efectiva dos militares junto da população, pensando nós que esta presença dos militares permitirá […] a discussão das vias do futuro e criará condições para uma participação efectiva e ampla do povo português na construção do país que desejamos (Almeida, 2009, p. 79).
Realizaram-se oito Campanhas entre finais de novembro de 1974 e início de agosto de 1975, que mobilizaram artistas e criadores do campo da Música e do Teatro, das Artes Plásticas e do Cinema ou da Dança e do Circo. É neste contexto que José Afonso convida Francisco Fanhais para se voluntariarem a participar na Campanha “Maio Nordeste”, que decorreu no distrito de Bragança em maio e junho daquele ano, cujo lema era “Trabalhar com o Povo, Construir a Revolução”.
Já na região junta-se-lhes o realizador Luís Filipe Rocha e vão para as Minas da Ribeira, a cerca de 40 km da cidade, que era, segundo este, “uma coisa sinistra, o mais miserável que algum dia vi, onde se vivia e trabalhava em condições infra-humanas” (Salvador, 2014, p. 193), na extração de volfrâmio. Ao fim da tarde, depois de uma conversa com os mineiros sobre a sua situação, porque o objetivo não era apenas cantar, mas contactar com os problemas das populações e pensar em soluções, um deles, jovem, dispôs-se a levá-los a uma aldeia vizinha para lhes contarem como um mineiro havia sido preso pela PIDE, com a ajuda do capataz, a mando do patrão. Na mesma noite, alojados em Bragança, instado por Fanhais e por Rocha, José Afonso fecha-se no quarto e compõe a canção “Em terras de Trás-os-Montes”. No dia seguinte, de volta à aldeia, José Afonso entoa a canção aos trabalhadores, “Algemado por dois PIDES/ Na manhã de vinte e três/ Lá vai Manuel Augusto/ Sem mesmo saber porquê”, que terminava assim, “Entre Parada e Coelhoso/ Ainda reina opressão/ Não deixem fugir o melro/ Não quebrem vossa união”30. Segundo Francisco Fanhais a reação das pessoas foi de alegria e espanto, que se tornou ação, pois trataram, depois, de ocupar a mina e ensaiaram autogeri-la (Correia, 2021, p. 51).
Esta ligação às Campanhas de Dinamização Cultural do MFA constitui uma intervenção fora do âmbito da LUAR, ainda que completamente coincidente com os objetivos e com a prática que vinha desenvolvendo no quadro daquela organização. Mesmo que achasse limitado o alcance político dessa iniciativa, pelo seu carácter institucionalmente enquadrado, interessava-o como ação de agitação, de consciencialização e de mobilização popular. No seu entendimento, era preciso ir mais longe, estrategicamente defendia o aprofundamento revolucionário da situação, no sentido da tomada do poder pelos trabalhadores através da revolução socialista, que acreditava só ter viabilidade pela via insurrecional.
A LUAR não resistiria ao impacto do movimento militar de 25 de Novembro de 1975, que fechou o período revolucionário que se seguiu ao 25 de Abril. Acentuou divergências internas numa organização pouco homogeneizada politicamente e, assumidamente, sem grande consistência ideológica. Em janeiro de 1976 realizou um Encontro Nacional, que foi inconclusivo quanto ao futuro da organização, que se extinguiria naturalmente31, entre diferentes correntes internas. Enquanto uns continuavam a sonhar com a via guerrilheirista de tomada do poder por um punhado de homens, outros defendiam a clarificação ideológica e a configuração de uma vanguarda forte (F. P. Marques, 1976, pp. 194-195); outros ainda derivavam para a área do Partido Socialista, como sucedeu com Hermínio da Palma Inácio, o seu, até aí, líder incontestado ou aderiram a outros partidos da esquerda revolucionária.
Muitos, finalmente, não adeririam a qualquer organização, adotando um estatuto independente. Foi o caso de José Afonso, que manteve, coerente, nas novas condições da democracia formal, constitucionalmente alicerçada, a mesma verve inconformista e radical e o mesmo espírito solidário e a convicção nas capacidades transformadoras das dinâmicas populares de base.
Conclusão
Nos anos 1960 e 70, José Afonso acompanha ativamente as significativas mudanças ocorridas no país. Vive intensamente, desde a campanha presidencial do general Humberto Delgado, os acontecimentos marcantes desse período, sobretudo nos anos de agonia do regime no período marcelista, em que intervém ativamente. A sua obra reflete essa evolução. Ao introduzir canções que se tornaram armas de combate contra a ditadura e novas expressões, abre um espaço distinto nas culturas de resistência antifascista, até aí de cariz neorrealista, hegemonizada pelo Partido Comunista Português, sem que a partilha desse espaço signifique tensão ou confronto.
Enquadrando-se no espírito da unidade antifascista, não teve qualquer preconceito em manter a colaboração com o PCP nas múltiplas sessões que realizou pelo país ou no quadro da Oposição Democrática, mas foi-se progressivamente integrando no campo político da esquerda revolucionária que por esses anos se foi configurando, como que acompanhando o país e o mundo a mudar e, no seio desta, aproximando-se das correntes defensoras da auto-organização popular e da democracia radical. Foi com o revolucionarismo da LUAR, com as suas ações tão espetaculares como corajosas, e com a defesa do Poder Popular, que se identificou. E quando, com o derrube da ditadura, se iniciou um processo revolucionário que abalou o país durante meses, foi esse projeto que abraçou por inteiro, entusiasticamente.
Incorporando o contingente dos politicamente vencidos no 25 de Novembro, não perdeu o sentido de utopia com que viveu os dias de Abril e manteve-se, na nova normalidade democrático-constitucional, coerente com os valores que defendia, inconformado e solidário com os de baixo. Viveu e cantou as mais impactantes tempestades da nossa história recente.