Introdução
Procurando perceber as reverberações da Revolução de 1974-1975 na chamada “normalização democrática”, revisitar-se-á, a partir da análise da imprensa periódica, os factos ocorridos em torno da estátua de António de Oliveira Salazar em Santa Comba Dão, em 1975 e em 1978, bem como alguns acontecimentos e formas de lidar com o passado revolucionário e ditatorial, em especial no ano de 1978 que, como se procurará demostrar, reúne características que o tornam um ponto de partida para pensar como o passado continuava a ser um campo de batalha política e como muita da tensão e confrontação de 1974-1975 continuaria depois de 1976.
A análise ancorar-se-á nas asserções de Manuel Loff de como “o processo social de reconstrução da memória coletiva seguiu (…) a cronologia da evolução política, social e cultural” (2015, p. 28) e de Enzo Traverso de que “a memória, individual ou coletiva, é uma visão do passado que é sempre filtrada pelo presente” (2020, p. 24).
Procurar-se-á perceber como os modos de evocar a revolução e a ditadura estiveram no centro do combate político durante a “normalização democrática” e como esta se traduziu numa narrativa e numa estratégia de memória, edificadas na ideia de que fora o 25 de Novembro a garantir a democratização do país e o esvaziamento das tensões. A esta premissa corresponde frequentemente a associação do processo revolucionário a um tempo de caos, abusos e ditadura1.
Ao invés, sustentaremos que a segunda metade da década de 1970 é um tempo tenso, forjado nos embates de 1974-1975, em que a disputa em torno do modelo de sociedade e de democracia permanece acesa após o encerramento do ciclo revolucionário que era, em si mesmo, o arranque da democratização.
Seguiremos a periodização de Manuel Loff (2015) e de Luís Farinha (2022) que apontam três grandes ciclos nas formas de lidar com o passado. O primeiro corresponde ao período revolucionário de 1974-1975 em que, a par do desmantelamento do Estado autoritário (Loff, 2015, p. 29), se verifica um consenso relativamente à condenação política e simbólica do passado ditatorial.
Embora o novo poder assuma a judicialização deste passado, criando estruturas para o efeito (Raimundo, 2018, pp. 41-49), serão várias as insuficiências deste processo: a elite política passa praticamente incólume, o julgamento da PIDE/DGS arrancará apenas em 1976 - após sucessivas libertações possibilitadas pelas alterações, posteriores ao 25 de Novembro, à Lei nº 8/75, de criminalização dos elementos da PIDE/DGS - e em 1978 não haverá praticamente nenhum elemento desta polícia detido (Pimentel, 2017, p. 426). Apesar da judicialização dos responsáveis da ditadura ter existido, o seu carácter incompleto (Loff, 2015, p. 37) estimulou que da sociedade emergissem organizações de condenação e denúncia dos crimes do Estado Novo e de luta pela memória da resistência, como a Associação de Ex-Presos Políticos Antifascistas (AEPPA), em 1974, na área do que viria a ser a União Democrática Popular (UDP) ou a União de Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP), em 1976, na esfera do PCP (Loff, 2015, p. 64).
Findo o biénio revolucionário, inicia-se um segundo ciclo de memória (Loff, 2015, pp. 38-39) marcado pela prioridade dada à pacificação da sociedade e à reconciliação com o passado (Raimundo, 2018, p. 52), sustentado numa relação algo esquemática entre democracia e 25 de Novembro, momento que teria reconduzido a “Revolução dos Cravos à sua pureza original de uma revolução democrática, pluralista” (Soares, 2005). Esta linha refletia as disputas de 1975 entre o campo “moderado” (Reis, 1999, pp. 397-496), organizado em torno do “Grupo dos Nove”, o campo revolucionário do Partido Comunista Português (PCP) e a extrema-esquerda (Rezola, 2007, p. 262).
A revolução era assim dada por encerrada e desligada do presente e das lutas que nele iam tendo lugar. Porém, a narrativa da “normalização democrática”, subordinada ao objetivo de pacificar a sociedade portuguesa, contrastava com uma realidade atravessada por fortes disputas sobre o passado, nomeadamente nos tribunais, e de intensa polarização política, não raras vezes vertida em violência, confrontos e ações terroristas.
Apagando a revolução como “marca genética” da democracia portuguesa (Rosas, 2014), obliterava-se também o papel da organização popular, dos movimentos sociais na conquista de direitos e liberdades e na construção da democracia. A politização da sociedade e a mobilização popular acabavam reduzidas a algo de excessivo e até perturbador (Trindade, 2012).
À sombra deste discutível consenso, mais discursivo e retórico do que historiograficamente sustentado, recuperado com novos contornos em anos recentes2, não só a revolução, mas também a própria memória da revolução e da ditadura estariam arrumadas, jazendo inertes quando o país palmilharia tranquilamente o caminho da pacificação e da reconciliação, da democracia de “tipo ocidental” e da integração europeia.
Um terceiro ciclo ganharia forma na viragem para o século XXI, correspondendo à indignação de quem havia combatido a ditadura relativamente ao branqueamento do Estado Novo e ao apagamento da memória da resistência (Farinha, 2022, p. 8).
“A arte fascista faz mal à vista”
A primeira ação tendo com alvo uma estátua de Salazar após o 25 de Abril não seria, porém, na sua terra natal.
A 28 de maio de 1974 - no dia em que se cumpriam 48 anos da instauração da Ditadura Militar - o Movimento Democrático dos Artistas Plásticos (MDAP) embrulha com um grande pano negro e prende com cordas a estátua da autoria de Francisco Franco que se encontrava num pátio do Palácio Foz. A estátua representava o ditador “togado de professor universitário de Coimbra”, a “ditadura do professor, a ditadura da razão”, nas palavras de António Ferro, cujo busto foi também embrulhado num pano preto preso no pescoço com um garrote (Medina, 2000, p. 196).
O MDAP, do qual faziam parte, entre outros, Júlio Pomar, Nikias Skapinakis, Helena Almeida ou Marcelino Vespeira, dizia não ser “partidário da destruição de obras de arte, ainda que símbolos condenáveis” e explicava: “É ao mesmo tempo uma destruição simbólica e um ato de criação artística, num gesto de liberdade revolucionária. A arte fascista faz mal à vista!”3.
Não estando nunca em causa a destruição da estátua, era um happening artístico e um ato simbólico, com humor e não violento, de condenação do salazarismo num clima de otimismo e esperança ainda dominantes em maio de 1974.
Depois de retirada do Palácio Foz, a estátua ficará à guarda da Direção Geral do Património Cultural no Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática, no Mercado Abastecedor da Região de Lisboa, que em 2017 a cedeu, juntamente com um busto de Salazar, à Câmara Municipal de Santa Comba Dão4.
A estátua era uma réplica da que fora exposta na Exposição Internacional de Paris de 1937 e, mais tarde, na Exposição do Mundo Português em 1940. Outra réplica fora colocada em Moçambique, frente ao Liceu Salazar (Medina, 2000, p. 194), e seria destruída à bomba em 19625 e logo reconstruída. Após a independência foi deslocada para a Biblioteca Nacional de Moçambique, em Maputo, onde permanece até hoje voltada para uma parede.
Já antes da iniciativa do MDAP, outros exemplos da estatuária da ditadura haviam sido retirados de forma mais discreta. A 27 de abril de 1974, uma comissão de trabalhadores da Câmara Municipal de Lisboa retirara a estátua do antigo presidente da República, Óscar Carmona (Elias & Marques, 2012, p. 19), sucedendo o mesmo nas Caldas da Rainha (Ayán Vila, 2022, p. 10).
O derrube das estátuas foi acompanhado por mudanças toponímicas e pela construção de monumentos alusivos à resistência antifascista durante e depois do processo revolucionário. Logo após o 25 de Abril, a Ponte Salazar passara a chamar-se 25 de Abril, exemplo que a direita utilizaria, após a destruição da estátua de Salazar, para ilustrar o apagamento da história conduzido pela esquerda6. A rua onde, em 1961, fora assassinado pela PIDE José Dias Coelho passaria a ter o nome deste, tal como a artéria onde morava o estudante José Ribeiro Santos também assassinado pela polícia política, em 1972. O desejo de inscrever no espaço público a memória da resistência continuará depois de 1974-1975. Francisco Martins Rodrigues descrevia a seguinte toponímia imaginária:
Eu ainda espero passear um dia nesta Lisboa numa avenida Alfredo Dinis (Alex), tomar o metro numa estação Revolta da Armada, descansar num jardim Heróis do 18 de Janeiro. E acredito que, quando essas recordações soarem nas ruas de Lisboa, alguma coisa passará delas para o comportamento de todos nós. Será assim como a necessidade de cumprirmos a vontade daqueles que entregaram a vida pelo nosso futuro7.
A propósito da indignação causada pela transformação da sede da PIDE/DGS num condomínio, Irene Pimentel afirmava que Portugal “é talvez também um dos únicos sítios da Europa onde há quase uma total falta de memória física dos tempos da repressão” (2011, p. 154). Exigindo alguma matização, esta afirmação dava voz ao que muitos, naquele contexto, sentiam como a insuficiente presença da memória da resistência no espaço público.
Mais do que a falta de uma memória física da resistência, sobressai a ausência de uma política oficial do Estado de memória e de implantação de locais de memória da opressão (Loff, 2015, p. 32). Várias autarquias consagrarão na toponímia resistentes e presos políticos como Humberto Delgado, Álvaro Cunhal ou o referido Alfredo Dinis e líderes africanos como Amílcar Cabral, Samora Machel, Eduardo Mondlane ou Agostinho Neto. Nota para monumentos dedicados a Álvaro Cunhal (Setúbal), ao 18 de Janeiro de 1934 (Marinha Grande), à Revolta dos Marinheiros de 1936 (Feijó) ou de homenagem aos resistentes antifascistas (Setúbal, Montemor-o-Novo ou Aljustrel), estátuas de Humberto Delgado (Porto, Bragança ou Alcobaça) ou Catarina Eufémia (Baleizão), bustos de Virgínia Moura e Hermínio da Palma Inácio (Porto). Também nas antigas prisões de Caxias e Angra do Heroísmo encontramos monumentos dedicados aos resistentes ali encarcerados. Por todo o país foram surgindo ruas e avenidas 25 de Abril ou Movimento das Forças Armadas.
A perceção de que a memória antifascista e anticolonial não está suficientemente inscrita no espaço público poderá ser ainda um reflexo da prevalência de referências toponímicas e monumentais ao passado ditatorial e colonial, nomeadamente nas suas dimensões mais racistas e violentas. Protagonistas das campanhas militares em África na viragem do século XIX para o século XX, como Mouzinho de Albuquerque, Alves Roçadas ou Paiva Couceiro, estão representados na toponímia lisboeta, onde João Pedro George identifica 250 arruamentos com ressonâncias coloniais8, em contraste com a escassez de referências às vítimas africanas da violência colonial.
A marca do império intensificou-se no espaço público com o início da guerra colonial e já durante a democracia com a proliferação de monumentos aos combatentes da guerra colonial, frequentemente designados por “heróis do ultramar”. Segundo André Caiado (2021, pp. 1208-1225) existirão 415 monumentos desta natureza, 350 deles erguidos já no século XXI.
Após o 25 de Abril as poucas estátuas de Salazar, bem como de outras figuras da ditadura, foram retiradas, mas é ainda possível encontrar ruas com os nomes de Salazar, Marcelo Caetano, Óscar Carmona ou Gomes da Costa9.
A revolução corta a cabeça
A 27 de abril de 1965 era descerrada pelo Presidente da República, Américo Tomás, numa cerimónia com grande aparato na praça do Tribunal de Santa Comba Dão, a estátua do Presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar, esculpida por Leopoldo de Almeida, encomendada e financiada pelo Ministério da Justiça.
Com o derrube da ditadura a 25 de Abril de 1974 a estátua permanece no mesmo lugar, facto que não parece ter suscitado particular debate. Nos meses seguintes é pintada com tintas vermelhas e amarelas e surgem frases antifascistas e revolucionárias. Ainda em 1974 a família do ditador submeteu um processo na Câmara de Santa Comba Dão para a retirada da estátua e, já depois da decapitação, propôs-se receber o que dela restava10.
Na noite de 17 de fevereiro de 1975 a cabeça da estátua é cortada com uma serra pela zona do colarinho por um grupo de três homens que a levarão para parte incerta11. A autoria da façanha continua desconhecida mas tendo em conta o tipo de ferramenta e a tecnologia utilizadas, a ação é por vezes atribuída a operários da vizinha barragem da Aguieira. Outras versões apontam para elementos do Movimento Democrático Português (MDP) ou jovens médicos de passagem pela região. O pescoço é pintado com tinta vermelha, sugerindo uma degolação, e na base da estátua lê-se “assassino”, “cão”, “porco” e “fundador da PIDE”12.
A violência e a radicalidade de um dos primeiros atos simbólicos com impacto contra a memória e imagética da ditadura reflete o consenso generalizado, entre 1974 e 1976, relativamente à condenação daquele regime e, ao mesmo tempo, uma fase diferente do processo revolucionário. A decapitação, situada entre duas ofensivas de António de Spínola, pode ser entendida como um sintoma da tensão crescente após uma primeira radicalização decorrente do 28 de Setembro de 1974, e pouco antes do 11 de Março de 1975, que aceleraria a via da revolução socialista (Rezola, 2007, p. 110). Percecionado como um interregno ou fase de definição, o fim de 1974 e o início de 1975, não obstante receberem por norma menos atenção do que o período anterior e sobretudo posterior, reúne uma série de acontecimentos estruturantes na natureza da revolução: o debate unidade vs. unicidade sindical, o Programa de Política Económica e Social (“plano Melo Antunes”), as primeiras ocupações de terras, o processo de institucionalização do MFA ou a manifestação de 7 de fevereiro contra a NATO e o desemprego organizada pela Interempresas, momento fundamental de afirmação da esquerda revolucionária na coordenação das lutas no mundo operário e no movimento social (Noronha & Trindade, 2019, pp. 68-75). A partir de fevereiro, o PCP abandonará a posição de relativa moderação na relação com o movimento operário e passa a dar maior apoio às lutas laborais, disputando à esquerda radical o terreno das comissões de trabalhadores. Ao mesmo tempo, o conflito entre PCP e Partido Socialista (PS) abria as primeiras brechas na unidade do que até então se podia chamar o “bloco histórico de apoio ao 25 de Abril” (Madeira, 2016, p. 258).
Em junho de 1975, elementos da Comissão de Moradores de Alcântara encontram a estátua de Salazar, vinda do Palácio Foz, num caixote no jardim do Sanatório da Ajuda, onde repousavam ainda várias placas toponímicas com nomes de personalidades do Estado Novo. A estátua é novamente satirizada pela população que coloca uma garrafa e um tacho nas mãos do ditador e a respetiva tampa na cabeça13. Os moradores pretendiam fundir a estátua de bronze, com o valor obtido a reverter para a comissão, mas aquela acabaria por ficar à guarda do Estado-Maior da Armada até que uma decisão fosse votada em plenário. A forma de lidar com a representação do ditador é novamente feita com moderação e humor e revela a relação próxima entre a população e o Movimento das Forças Armadas (MFA) ao qual é reconhecida legitimidade para arbitrar a situação. Nesta zona da cidade, a 2 de maio de 1974, as casas vazias do bairro da Fundação Oliveira Salazar haviam sido ocupadas por moradores de barracas e de casas sem condições, passando o bairro a chamar-se Bairro 2 de Maio14.
Em junho o processo revolucionário caminhava para uma fase mais complexa, de crescente confrontação, percetível em conflitos como o do jornal República ou da Rádio Renascença que prenunciavam a crise político-militar do verão de 1975. A aceleração revolucionária e a via para o socialismo materializavam-se na nacionalização da banca, no avanço da Reforma Agrária ou na radicalização do movimento social (Noronha & Trindade, 2019, pp. 76-81).
Estava em curso o choque entre os blocos estruturados em torno do PS, de um lado, e do PCP, por outro, em forte medida potenciado pelos resultados eleitorais de 25 de abril de 1975, favoráveis aos primeiros e desastrosos para os segundos, abrindo a fundamental tensão entre a legitimidade revolucionária e a legitimidade eleitoral. Por fora, atuando no seio do movimento popular e em aproximação ao Comando Operacional do Continente (COPCON) e a Otelo Saraiva de Carvalho, corria a esquerda revolucionária, do campo do poder popular e da organização autónoma dos trabalhadores em órgãos populares de base (Rezola, 2007, p. 222).
Acossado à sua esquerda e procurando compensar as perdas no tabuleiro político e militar, o PCP empenha-se fortemente nas lutas laborais, enquanto o PS assume-se como polo aglutinador do campo anticomunista que procurava inverter a trajetória política saída do 11 de Março (Rosas, 2022, p. 91).
A estátua sem cabeça
Depois de decapitada em fevereiro de 1975, a estátua do ditador permanecerá sem cabeça no centro de Santa Comba Dão durante cerca de três anos. Logo após aqueles acontecimentos, a Câmara Municipal decidira por unanimidade retirar a estátua15, mas a decisão não é cumprida. Em agosto de 1977 é a vez de o Ministério da Justiça - proprietário do terreno - decidir a sua retirada, mas a decisão volta a não se concretizar. Após algum tempo entaipada são retirados em agosto de 1978, por iniciativa de um grupo de emigrantes da região, os tapumes que rodeavam a estátua expondo-a à vista de todos e causando grande desconforto entre a população, desagradada com as regulares romarias para ver a estátua sem cabeça16. A população vai então exigir que se ponha termo à situação e que a estátua seja retirada, solução defendida pela maioria, ou restaurada. Inicia-se uma turbulenta sucessão de acontecimentos que de seguida se descreverá a partir da imprensa periódica, nomeadamente A Capital, O Expresso, O Primeiro de Janeiro e Comércio do Porto. Entre as publicações situadas mais à esquerda consultou-se a revista Opção, os jornais O Jornal ou A Luta. À direita a análise recaiu sobre O Tempo e O Diabo.
O impasse e a indecisão são aproveitados por um grupo de cidadãos que constitui, em finais de 1977, uma “Comissão para a Restauração e Conservação da Estátua a Salazar” que contando com o apoio da Assembleia Municipal, recolhe fundos e encomenda a fundição de uma nova cabeça17. Em pleno Carnaval, panfletos de “amigos da Restauração e conservação da estátua a Salazar” anunciam a colocação da cabeça para as 11 horas do dia 5 de fevereiro, “Domingo Gordo”18.
Na véspera, 4 de fevereiro, os Ministérios da Justiça e da Administração Interna proíbem a manifestação e restauração da estátua. A colocação da cabeça é antecipada para essa noite e centenas de pessoas concentram-se no local e ainda antes da meia-noite a cabeça é colocada, sem incidentes e perante a presença da Guarda Nacional Republicana (GNR) que não intervém.
Não tendo sido soldada nem fixada, a cabeça é retirada pela GNR, por ordem do Governo, durante a madrugada19. Ao início da manhã muitas pessoas voltam a concentrar-se junto da estátua, onde são colocadas flores e um cartaz dizendo: “A Guarda roubou a cabeça de Salazar. O povo exige a cabeça no lugar”. São removidas placas toponímicas da Avenida General Humberto Delgado e da Praça 25 de Abril, onde o “25” terá sido substituído por “28” de Abril, data de nascimento de Salazar20.
Afluem à vila vários efetivos da GNR para pôr cobro aos incidentes e desmobilizar a população que ergue barricadas para bloquear os cavalos e carros de assalto, corta estradas e grita “Queremos a cabeça! Queremos a cabeça”. A GNR protege o seu posto com barricadas21.
Os sinos da igreja tocam a rebate para chamar a população, num ambiente muito semelhante ao dos episódios de violência de extrema-direita no norte de Portugal no verão de 1975.
Dezenas de elementos GNR, fortemente armados, com capacetes, viseiras, escudos e cães, rodeiam a estátua e circulam jipes e carros de assalto com torres com autometralhadoras que disparam. A multidão concentrada junto da estátua é dispersa com gás lacrimogéneo e as forças da GNR, algumas delas a cavalo, munidas de cassetetes e espadas, carregarão violentamente sobre a população. A intervenção da GNR, com cerca de 100 efetivos, resultará em dezenas de feridos e na morte de uma mulher sexagenária acidentalmente atingida por uma bala22.
Depois dos confrontos, os presidentes da Câmara Municipal e da Assembleia Municipal prometem a restauração da estátua e a recolocação da cabeça. No entanto, acabarão por recuar e decidir pela sua retirada e entrega à família23. Posteriormente a Câmara Municipal colocá-la-ia noutro espaço público que não a praça do Tribunal, avançando-se até que a recolocação da cabeça estava prevista para 28 de abril24. Mais uma vez, nenhuma decisão é tomada e a estátua permanece sem cabeça no centro da vila. As hesitações dos poderes públicos dão origem a uma situação cada vez mais tensa e de difícil resolução, que de uma questão local assumira uma dimensão nacional. Se a remoção da estátua nas primeiras semanas ou meses após o 25 de Abril não traria problemas de maior, à medida que o tempo passava os custos políticos de o fazer aumentavam.
Às 3h15m da madrugada de 16 de fevereiro o impasse é resolvido de forma violenta. A estátua é destruída à bomba, numa ação planificada pelo Partido Revolucionário do Proletariado/Brigadas Revolucionárias (PRP/BR) e executada por militantes da região25. O que sobra da estátua é recolhido pela Câmara Municipal e populares recolhem os despojos mais pequenos.
No seu lugar seria colocada uma fonte que em 2010 é transformada num monumento aos “heróis do ultramar” com a inscrição dos nomes dos 16 soldados do concelho mortos na guerra colonial. A peculiaridade desta situação é sublinhada por Miguel Cardina: “a praça que acolhera uma representação de bronze do ditador, na sua terra natal, fora reocupada, mais de três décadas depois, por um monumento que sintetizava a lembrança apologética do império e uma evocação tumular que remete para a guerra como seu momento final” (2023, p. 136).
É no rescaldo do rebentamento da estátua que surge pela primeira vez a ideia de criar um museu (e uma biblioteca) dedicado a Salazar26, na sua antiga casa no Vimieiro, para o qual é organizada uma recolha de fundos, e onde se cogitou colocar uma nova estátua do ditador. Este projeto seria retomado com diferentes contornos, nas décadas seguintes, até à sua última formulação, um Centro Interpretativo do Estado Novo.
A mobilização em torno da restauração da estátua vai perdendo força nos meses seguintes, seja no acompanhamento pela imprensa, seja nas prioridades da direita e da extrema-direita. Ainda assim, o Expresso ventila, infundadamente, a possibilidade de, em resposta às comemorações do 25 de Abril, ocorrerem excursões a Santa Comba Dão no dia de aniversário de Salazar para proteger a colocação de uma nova estátua do ditador que estaria já pronta27.
Como salienta Marchi (2012, pp. 167-186), a extrema-direita, fragmentada em conflitos internos, tem uma estratégia sobretudo eleitoralista entre 1976 e 1980 e de aproximação ao Centro Democrático Social (CDS) que, integrando o Governo com o PS, acaba por estar solidário com a gestão do caso28, condenando veementemente a reposição da cabeça29.
Localmente, os organizadores da reposição sublinhavam o carácter apolítico da iniciativa e rejeitavam qualquer ligação à extrema-direita ou simpatia pelo Estado Novo ou Salazar30. Salientando a indignidade e a humilhação decorrentes da presença de uma estátua sem cabeça no centro da vila, apelavam à dimensão local, ao direito da população restaurar e defender o património da sua terra e evocar uma figura ali nascida31.
A imprensa e as direitas radicais centram-se na denúncia da violência policial e a ordem do Governo para retirar a estátua é entendida como um ato de prepotência do PS e do próprio regime saído do 25 de Abril. Segundo o jornal O Diabo32 ouvia-se por aqueles dias: “Se a liberdade é isto, queremos a ditadura”. O Comércio do Porto33 escrevia: “Não se trata de um bando de fascistas (…) Se aquilo não era o povo, onde estava o povo? E o povo quer ter a liberdade em Santa Comba Dão para pôr a cabeça na estátua”. A esquerda via na tentativa de reposição a prova do regresso do fascismo, associando-a ao regresso de Américo Tomás ou à libertação dos agentes da polícia política34. A imprensa de direita, que vinha apoiando a recolocação da cabeça, responsabilizava o 25 de Abril e o socialismo pela decapitação e a explosão da estátua. Denunciava estar-se a “apagar a história” destruindo estátuas e mudando nomes de ruas35.
O episódio é apresentado como um caso legítimo de levantamento popular contra a destruição, por duas vezes, de um símbolo local e como um confronto entre a justa vontade popular e a arbitrariedade do poder central. Deste modo visava-se não apenas o PS e Mário Soares, mas também Almeida Santos, ministro-adjunto do Primeiro-ministro36, alvo particularmente interessante dado o seu papel na descolonização. O jornal A Rua procurará cavalgar a onda do ataque ao Governo PS-CDS, centrando-se em violentas críticas ao primeiro-ministro Mário Soares37.
Obviamente que a reposição da cabeça era um ato objetivamente político, de apologia da ditadura e do ditador. Ao mesmo tempo era uma resposta ao que se considerava ser um ato selvático da revolução: a decapitação. O gesto de emendar este ato, recolocando a cabeça, participava ainda de um processo de reabilitação do salazarismo. A explosão era a violenta rejeição não só do passado ditatorial, mas também da sua reabilitação, e um gesto da esquerda revolucionária que procurava ainda resgatar algum do legado revolucionário.
Entre fevereiro de 1975 e fevereiro de 1978, ou seja, entre a decapitação e a destruição da estátua, muito aconteceu: golpes à esquerda e à direita, aceleração revolucionária, revolução socialista, nacionalizações, Reforma Agrária, perigo de guerra civil, vaga de terrorismo. Houve uma revolução e a sua contenção. Foi aprovada uma Constituição, realizaram-se eleições legislativas, presidenciais e autárquicas, dois governos constitucionais haviam já estado no poder. Mas tal como a estátua sem cabeça, muito ficara por resolver no campo da memória e da evocação do passado.
A trasladação dos restos mortais das vítimas do Tarrafal
Dois dias depois do rebentamento da estátua, tinha lugar em Lisboa a 18 de fevereiro de 1978 uma das mais importantes evocações da memória da resistência, de repúdio antifascista e de homenagem aos resistentes: a trasladação dos restos mortais dos 32 presos políticos que morreram entre 1936 e 1954 no Campo de Concentração do Tarrafal para o Cemitério do Alto de São João, onde é erigido, por subscrição pública, um Mausoléu Memorial. Milhares de pessoas, familiares, resistentes e representantes de organizações políticas e sindicais, percorreram Lisboa sob chuva forte num cortejo fúnebre desde a Sociedade Nacional de Belas Artes, onde as urnas estiveram em câmara ardente, até ao cemitério38.
Separados por escassos dias, a reposição da cabeça de Salazar e a homenagem aos tarrafalistas mortos são dois atos de uso público da memória, dinamizados não por poderes públicos, mas por grupos de cidadãos, diametralmente opostos: o primeiro homenageava o ditador e o segundo homenageava as suas vítimas, ecoando ainda a cultura antifascista dominante até 1976 caldeada no contexto revolucionário.
A disputa em torno do passado era também discutir o presente e decorria daquilo que se procurava legitimar ou condenar naquele momento. Os dois acontecimentos mostravam como 1978 era um ano particularmente intenso no campo das disputas da memória e como estava em causa o modelo de sociedade e o futuro do país.
“1978. Regresso à normalidade” e o ano de todos os acertos
“1978. Regresso à normalidade” é o título de um dos últimos capítulos de Retrato de um Amigo enquanto falo (Dionísio, 1988, p. 113), publicado em 1978 e que refletia a derrota da revolução e o desencanto da geração que durante a década de 1960 combatera a ditadura e que se embrenhara ativamente nas lutas de 1974 e 1975. Esta “normalidade” refletia o desgaste com anos recentes de forte tensão e instabilidade, o recuo da participação política, a despolitização (Trindade, 2013, p. 97), a valorização da esfera privada sobre a pública e a ação política.
Em janeiro de 1978 havia tomado posse o II Governo Constitucional, formado por uma coligação entre PS e CDS, em plena crise política e económica com uma inflação galopante, despedimentos, encerramento de empresas e a intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI), num ambiente de quase crise de regime que, não raras vezes, era atribuída pela direita à revolução e ao “socialismo”39.
É num sobressalto de quase crise permanente que o Estado português se empenha na conciliação e pacificação da sociedade, com os primeiros anos de exercício das liberdades políticas e os primeiros atos eleitorais.
Se estes anos correspondiam a uma certa estabilização política, à diminuição das mobilizações sociais e a algum consenso quanto ao futuro do país em moldes demoliberais, de consolidação da democracia representativa e integração europeia, eram também anos de fortes clivagens, tensão e até violência que, no que diz respeito ao terrorismo, é mais intensa a partir de 1976 do que em 1975 (Dossier Terrorismo, 2015), o suposto ano mais crítico e “anormal”. Em alguns aspetos a “normalização democrática” teria pouco de “normal”. Olhando apenas para o ano de 1978 identificam-se vários acontecimentos, que de seguida analisaremos, que espelham essa crispação: um jovem morto a tiro pela polícia quando protestava contra uma manifestação de extrema-direita e outro durante o protesto contra a prisão de um militante da extrema-esquerda no ano anterior; ações bombistas da extrema-direita; terrorismo separatista nos Açores e na Madeira; início do terrorismo de extrema-esquerda; destruição à bomba de uma estátua de Salazar; agressões ao ministro Almeida Santos ou a revelação de um atentado contra o Presidente da República, António Ramalho Eanes.
1978 será então o ano de todos os ajustes (com julgamentos de elementos da PIDE/DGS e da extrema-direita ou a prisão de militantes do PRP/BR), de todos os perigos (com o espectro do golpismo de extrema-direita, a violência latente e o início da deriva de uma fação do PRP-BR rumo às Forças Populares 25 de Abril (FP 25)) e, ao mesmo tempo, de conciliação com uma coligação governamental de PS e CDS, a libertação de centenas de agentes da PIDE/DGS ou o regresso do último presidente da República do Estado Novo, Américo Tomás.
Está em julgamento a ditadura. Desde 1976 que estavam a ser julgados vários elementos da PIDE/DGS, arrancando em outubro de 1978 o julgamento dos assassinos de Humberto Delgado, envolto em inúmeras polémicas40. Em 1977 uma das mais sinistras figuras da polícia política, a agente Madalena, fora condenada a quatro anos de prisão, mas era libertada em 1978. De facto, em 1978 a maioria dos elementos da PIDE estavam já em liberdade por terem cumprido pena, por terem sido absolvidos, por aguardarem em liberdade o julgamento ou por dedução dos indultos e do tempo passado em prisão preventiva (Pimentel, 2017, p. 426).
A condenação do assassino de José Dias Coelho a uma pena, posteriormente revista e agravada, de apenas três anos e nove meses de prisão (o que significava que teria apenas de cumprir mais dez meses), gera grande controvérsia. O mal-estar era agravado pelo que se considerava ser a humilhação dos ex-presos políticos sujeitos à confrontação em tribunal com os algozes da polícia política que os tinham interrogado e torturado41.
Por decisão da Presidência da República, com o acordo do Governo PS e CDS, Américo Tomás regressa a Portugal em maio de 1978, sem ser alvo de qualquer julgamento ou acusação42. Era, simultaneamente, um gesto de reconciliação e pacificação do país e uma clara desculpabilização da ditadura e dos seus crimes. Em 1976 regressara já António de Spínola, ligado ao golpe de 11 de Março e a uma das principais organizações terroristas de extrema-direita. Nestes dois regressos cabia a absolvição - sem julgamento, note-se - tanto da ditadura como do terrorismo das direitas antidemocráticas.
Estão também em julgamento a resistência e a revolução. Nos tribunais correm vários processos envolvendo protagonistas do processo revolucionário, atos praticados nesse período e figuras importantes da oposição à ditadura e das esquerdas. Desde logo estava por clarificar a situação jurídica e militar dos militares implicados no 11 de Março e no 25 de Novembro de 1975, bem como do próprio Otelo Saraiva de Carvalho43.
Em junho, a Polícia Judiciária desencadeia uma operação depois de um dos seus agentes ter sido morto, alegadamente, por elementos do PRP/BR, que leva à prisão de cerca de 20 militantes deste partido, entre eles alguns dos operacionais que tinham colocado a bomba na estátua de Salazar44.
Um caso de grande mediatismo foi a prisão e julgamento de Edmundo Pedro, militante do PS, acusado de posse e transporte de armas que lhe haviam sido entregues durante os acontecimentos de 25 de Novembro de 1975 por ordem de Ramalho Eanes45. Acabaria por ser absolvido, mas a detenção impedira-o de estar presente na homenagem aos mortos do Tarrafal, onde ele e o pai, Gabriel Pedro, tinham estado presos. Outro caso a envolver a resistência é o julgamento de Maximino Serra, participante no golpe de Beja de 1961-1962, acusado de roubo de uma avioneta em 1963 na qual seguira clandestinamente para o exílio46.
Alguns destes processos são usados para atacar e descreditar a oposição antifascista, nomeadamente, os casos de Edmundo Pedro ou do assassinato de Humberto Delgado47. Outros julgamentos são também lidos como ataques a militantes antifascistas e da esquerda, como o de João Andrade e Silva, militar do MFA que se destacara no apoio à Reforma Agrária, julgado por alegado homicídio na Madeira, ao defender-se do ataque de vários elementos que navegavam nas águas turvas da criminalidade e das organizações de extrema-direita48. No quadro da referida “normalização”, são ainda julgadas várias situações ocorridas na excecionalidade de um contexto revolucionário. É o caso da prisão de Rui Gomes, acusado de durante as manifestações da Associação de Deficientes das Forças Armadas (ADFA), em setembro de 1975, apoderar-se de armas do quartel do Regimento de Artilharia Fixa de Porto Brandão49. O julgamento é acompanhado de manifestações de protesto e numa delas, em julho de 1977, a intervenção policial causa a morte de Luís Caracol, militante da UDP50.
O capitão Álvaro Fernandes, responsável pelo célebre “desvio” de armas de Beirolas em setembro de 1975, que partira para o exílio após o 25 de Novembro, é preso ao regressar a Portugal em 1978. Em Caxias, Fernandes ficou detido numa cela ao lado do ex-chefe da PIDE, Silva Pais51.
Referência ainda para casos como o do dirigente da comissão de trabalhadores da Sanimar, acusado de sequestro dos procuradores que assumiram a gestão da empresa após a fuga do administrador em 197552, o julgamento dos “14 de Beja” - ativistas da zona da Reforma Agrária acusados de causar distúrbios num comício de Ramalho Eanes durante a campanha eleitoral em 197653 - ou a prisão de camponeses que se opunham às desocupações de terras no Alentejo. Temos ainda o julgamento de três elementos da Liga de Unidade e Ação Revolucionária (LUAR), acusados da posse de armamento proibido54, ou a condenação em 1977 de Afonso de Sousa, militante do PRP, por assalto de um banco55. A crispação é intensificada pelas desocupações violentas das terras da Reforma Agrária e, mais tarde, pela morte em 1979 de dois assalariados rurais, Caravela e Casquinha56.
Por fim, está também em julgamento a contrarrevolução com o caso da “rede bombista” que se salda na condenação, em Tribunal Militar, de alguns operacionais e na absolvição dos principais mandantes e financiadores. Dos 16 réus, 11 saem em liberdade (Carvalho, 2017, p. 484). É com grande indignação e perplexidade que se encara a benevolência relativamente ao terrorismo. Já a indignação do jornal O Diabo e dos sectores a ele afetos devia-se ao facto de o terrorismo anticomunista ser levado à justiça, num processo que designam como um “escarro vermelho na face branca da Pátria”57.
Os processos judiciais envolvendo figuras da esquerda ou da oposição à ditadura contribuiriam para a generalização da perceção de que se prendia à esquerda e se libertava à direita, que se punia mais severamente à esquerda do que à direita, tendo em conta a benevolência, as penas relativamente suaves e a libertação de elementos da PIDE/DGS e da “rede bombista”. Dando voz a este mal-estar surgiria a 27 de maio de 1977 o Tribunal Cívico Humberto Delgado (TCHD), tribunal de opinião e de combate pela justiça antifascista58, dinamizado pelo campo político que estivera na origem da AEPPA, ligado à UDP e ao Partido Comunista Português (Reconstruído) (PCP(R)). O TCHD, contemporâneo da Comissão do Livro Negro Sobre o Regime Fascista, também criada em 1977 pelo Governo de Mário Soares, espelhava as principais linhas identificáveis nas posteriores organizações e locais de memória: a denúncia, a justiça (criminal ou simbólica), a investigação e a homenagem.
A 10 de junho de 1978, dia da primeira sessão do TCHD, o militante da UDP José Jorge Morais é morto com tiros de G3 pela PSP e Jorge Falcato é gravemente ferido, ficando irreversivelmente paralisado, quando participavam num protesto contra uma manifestação de extrema-direita59. Doze militantes da UDP serão detidos e, posteriormente, dez deles condenados em tribunal no âmbito de uma significativa vaga de protesto que sucedeu à morte de José Jorge Morais.
O estado de espírito de sectores da esquerda era vertido por Mário Dionísio nas páginas do Diário de Lisboa:
Porque não posso deixar de manifestar publicamente e sem demora o meu espanto, o meu protesto, a minha indignação, talvez principalmente o meu desespero por ter sido possível, tão poucos anos depois do 25 de Abril, este crime hediondo: o abater-se a tiro numa rua de Lisboa um jovem de 18 ou 19 anos porque tentou opor-se a uma manifestação inequivocamente fascista (…). Porque tentou impedir que o fascismo volte a erguer a sua voz - e não só a sua voz -, agora já na via pública60.
A reorganização da extrema-direita, o enraizamento desta nas polícias e nas Forças Armadas ou a continuação das ações terroristas em 1977 e 1978, leva a que se avolumem os alertas para o regresso do fascismo. Eduardo Lourenço falava num “pinochetismo de faca e alguidar”61. Em vésperas de 25 de abril de 1978, o Conselho da Revolução denunciava uma “escalada golpista”62.
Aquele que é tido como o último ato de terrorismo atribuído à extrema-direita, reivindicado pelos Comandos Operacionais de Defesa da Civilização Ocidental (CODECO)63, o incêndio da Faculdade de Ciências, à rua da Escola Politécnica, em Lisboa, tem lugar em março de 1978, embora haja notícias que dão conta de outras ações como um rebentamento de uma bomba na Madeira em agosto de 1978, da responsabilidade do vice-presidente da Juventude Centrista64.
Um dos casos mais notáveis do ano de 1978, enquanto momento de curto-circuito entre revolução e “normalização” e das ondas de choque do período revolucionário, é o “caso Antónia Antónia”. Antónia Ramalho, mãe de um jovem morto nas imediações do RALIS a 11 de Março de 1975, é detida em 1978 por ligações à “rede bombista”65 e envolvimento num alegado plano para assassinar o Presidente da República Ramalho Eanes (Ângelo, 2020, p. 113). Faria parte de um designado Grupo Antónia Antónia que, juntamente com o Exército de Libertação de Portugal (ELP), Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP), CODECO ou Plano Maria da Fonte, vinha realizando centenas de atentados (Dossier Terrorismo, 2015). Vera Lagoa e o jornal O Diabo desenvolvem uma campanha em defesa de Antónia e pelo apuramento das circunstâncias da morte do seu filho atribuída às “forças revolucionárias”, atacando a revolução e um dos seus símbolos, o RALIS, no mesmo passo em que branqueavam o terrorismo à direita66.
A rede de terrorismo de extrema-direita estende-se ainda a movimentos separatistas na Madeira e nos Açores, a Frente de Libertação do Arquipélago da Madeira (FLAMA) e a Frente de Libertação dos Açores (FLA), responsável, por exemplo, pela bomba colocada no palácio do ministro da República ou pelo incêndio na casa do ministro Jaime Gama67. Almeida Santos é agredido em abril de 1978 em Ponta Delgada por elementos da FLA que, pouco antes, anunciara a possibilidade de intensificar a luta armada68. A extrema-direita revela-se ainda bastante ativa em vários liceus na zona de Lisboa e do Porto, registando-se frequentemente os mais diversos tipos de incidentes e confrontos69.
Não surpreendia que em janeiro de 1978 tivesse sido entregue ao então Presidente da República, Ramalho Eanes, um documento dinamizado por vários opositores ao Estado Novo e subscrito por 33 mil pessoas que reclamavam a criação de medidas de combate à ameaça fascista. O primeiro-ministro, Mário Soares, vai também alertar para o “renascer de certas organizações (…) de tipo vincadamente fascista e neossalazarista”, “saudosistas do antigo regime”, e em outubro, seria aprovada a Lei nº 64/78 que proibia existência de organizações “que perfilhem a ideologia fascista” (Morais & Raimundo, 2015, pp. 108-109), concretizando o que definia a Constituição.
Os ciclos da memória
Do ponto de vista dos usos públicos da memória e das disputas em torno das evocações do passado, o ano de 1978 reflete, como vimos, a mudança de ciclos. Durante o período 1974-1976, a denúncia dos crimes da ditadura e a responsabilização cívica, política e criminal dos seus responsáveis traduzem-se em saneamentos, suspensões de direitos políticos, perseguições, exílios ou prisões. Datam deste período uma inconsequente Comissão Nacional de Inquérito, com a missão de investigar crimes e abusos do regime deposto, e o Serviço para a Coordenação e Extinção da PIDE/DGS e Legião Portuguesa com uma ação bastante mais significativa (Raimundo, 2018, pp. 41-44).
A contenção do processo revolucionário e o status quo decorrente do 25 de Novembro abrem uma segunda fase marcada pelo “recalcamento e amnésia - em parte impostos, em parte consentidos e desejados, e que durou até final do séc. XX” (Farinha, 2022, p. 8), uma maior benevolência relativamente ao Estado Novo e uma certa invisibilidade da natureza ditatorial do regime. Ganha forma, na segunda metade da década de 1970 e prologar-se-á até meados dos anos 1990, um “período de clara desvalorização política, social e ética das opções e da ação política daqueles que se haviam oposto e resistido à ditadura. E consequentemente, de desvalorização e silenciamento da sua memória” (Loff, 2015, p. 62).
É neste período que ganha força a tese do “Duplo Legado”, segundo a qual, a democracia portuguesa definia-se por oposição aos supostos “autoritarismo” do Estado Novo e “totalitarismo” do processo revolucionário, refletindo a hegemonia conservadora internacional e internamente com a vitória eleitoral da Aliança Democrática (AD) em 1979 e depois com os governos de Cavaco Silva para quem “forças de orientação totalitária tentaram em 1974 e 1975 impor ao país outra ditadura de sinal contrário” (Loff, 2015, p. 69).
Por fim, com a viragem do século, temos o que se pode considerar uma explosão da memória. Segundo Luís Farinha (2022, p. 8):
Na actualidade o direito à memória é uma reivindicação de dois campos radicalizados - um sustentado pela historiografia vinculada à condenação da Ditadura e valorização da democracia social; o outro sustentado pela historiografia que iniciou a revalorização de certos aspetos da Ditadura e que se repercute pela valorização dos regimes fortes e autoritários.
Diz ainda que o “início do séc. XXI ficou marcado pela reivindicação do Direito à Memória, levada a cabo por ‘grupos promotores da Memória’ e por ex-resistentes, ex-presos políticos e perseguidos pelo regime ditatorial” (Farinha, 2022, p. 5) que exigem políticas públicas de respeito e a valorização da luta antifascista, a memorialização ou a criação de locais de memória. Para Manuel Loff “os últimos anos do século significaram, por fim, a recuperação de muita da memória resistencial que se silenciara até ao 20º aniversário” do 25 de Abril em 1994 (2015, p. 114).
Um traço distintivo deste período é o papel assumido por resistentes e ex-presos políticos e a relação próxima destes com a investigação académica. Muitos resistentes mobilizaram-se na batalha pela memória em livros de memórias, biografias, entrevistas, nas redes sociais e páginas de Internet.
Para além de grandes desenvolvimentos na investigação, nomeadamente sobre a resistência, a violência, os tribunais e a polícia política, mas também sobre as questões ligadas ao colonialismo e ao pós-colonialismo, desertores e refratários, multiplicaram-se os documentários, obras de ficção televisiva, cinematográfica e teatral, trabalhos na imprensa, etc. Datam já da segunda década do século XXI a criação do Museu do Aljube, na sequência da mobilização contra a transformação da sede da PIDE/DGS em condomínio privado, e do Museu Nacional Resistência e Liberdade na Fortaleza de Peniche cuja abertura está prevista para 2024. Está em curso no Porto a luta pela criação de um Museu da Resistência Antifascista na antiga sede da PIDE, cujo processo de transformação em Museu Militar teve o seu início, precisamente, em 1977 e 1978 (Decreto-Lei nº 242/77 de 8 de junho).
Conclusão
Escrevia José Gomes Ferreira, a propósito do regresso de Américo Tomás a Portugal, sobre o ano de 1978:
Sobre o que se passa actualmente em Portugal os historiadores escreverão mais tarde: o 25 de Abril foi uma revolução estranhíssima. Destruiu o passado por considerá-lo criminoso e depois absolveu os homens que o fizeram. E agora para aqui estamos, sem passado, sem presente nem futuro, este reduzido a uma admirável Constituição para entreter os que sonham demasiado. Mas não tardaremos a ouvir gritar: Abaixo o sonho - descansem.70
50 anos depois, talvez os historiadores não saibam ainda como interpretar essa “revolução estranhíssima”, tal como o país e a sociedade não saberão como olhar para alguns momentos do seu passado. Entre o tapar do salazarismo, como fez o MDAP, ou destruí-lo, como fez o PRP-BR, o passado acaba sempre por nos apanhar e levantar a cabeça.
A cabeça do ditador está em parte incerta, mas na sua terra natal o projeto de um museu em torno da figura de Salazar reacendeu-se e, pese embora toda a contestação, foi anunciada para maio de 2023 a abertura do Centro Interpretativo do Estado Novo, “por coincidência”71, na Escola Cantina Salazar, na avenida Dr. António de Oliveira Salazar, no Vimieiro. As justificações para a criação deste Museu não andam muito longe dos argumentos dos que defendiam a restauração e manutenção da estátua do ditador nos anos 1970. O que está em causa é a dimensão local e não qualquer objetivo de elogiar a ditadura ou o ditador que voltam a ser despolitizados em nome do desenvolvimento local e dos proveitos económicos que um museu possa trazer.
A explosão que destruíra a estátua de Salazar em Santa Comba Dão, no início de 1978, é ilustrativa desse tempo de passagem de uma revolução para um período de estabilização das instituições democráticas. Mostra-nos como a revolução era ainda presente, como a forma de a evocar era parte fundamental da disputa política e como a segunda metade da década de 1970 e, em particular, o ano de 1978, são atravessados pela acesa contenda em torno dos usos públicos do passado.
As ondas de choque de 1974 e 1975 reverberam nos anos seguintes, as dinâmicas abertas naqueles anos continuam o seu curso após o fechar do ciclo revolucionário. O 25 de Novembro, encerrando as condições político-militares necessárias à revolução, não extingue, porém, a radicalização à esquerda e à direita, nem a confrontação política que, baixando de intensidade, assume então outros contornos, adaptando-se ao fim da excecionalidade de um estado revolucionário e ao quadro de uma democracia representativa.
O campo vencedor em novembro de 1975 via-se a braços com a esquerda radical que tentava recuperar a revolução e com uma extrema-direita apostada em recuperar a contrarrevolução que, apesar de tudo, novembro não permitira (Lourenço, 2009, pp. 547-556). As tensões e disputas permaneciam num emaranhado que continha presente, passado e futuro, ditadura e revolução, memória, justiça e forma do regime a implantar.
A “normalização democrática”, enquanto superação da revolução socialista e consagração de uma democracia de tipo ocidental, decorria também da forma como a visão sobre a revolução e alguns dos aspetos centrais da sua natureza, como o socialismo ou a organização e as mobilizações populares, estavam a ser reconstruídos ou condenados.
À “normalização democrática” correspondeu, assim, uma “normalização da memória” que nos dizia, então, que o 25 de Novembro, ao acabar com a revolução, garantira a democratização e terminara com as dúvidas sobre o modelo de sociedade. Vencera o consenso, expresso eleitoralmente, de uma democracia parlamentar tutelada na alternância entre o centro esquerda e o centro direita.
O 25 de Novembro é por norma entendido como a derrota das forças revolucionárias, comunistas e esquerda radical (Rezola, 2007, p. 268). Outras interpretações sublinham que, se o compromisso entre PCP e o “Grupo dos Nove” travou o radicalismo da extrema-esquerda, o 25 de Novembro estancou também a extrema-direita e um “novo 28 de Maio”, fazendo a economia da violência no quadro da contenção não sangrenta da revolução (Rosas, 2014). Apostada em ir mais além, a extrema-direita manter-se-á ativa e conspirativa e obrigará os “Nove” a empenharem-se na desmontagem desta ameaça (Lourenço, 2009, pp. 547-556). Ainda assim, a maioria dos assassinatos ou atentados mortais têm lugar depois do 25 de Novembro e os últimos atos do terrorismo da extrema-direita ocorrem em 1978 e, ainda, em 1979 com o assassinato de Joaquim Ferreira Torres (Carvalho, 2017, pp. 522-527).
Ao contrário da narrativa posteriormente sustentada, o estado de espírito das direitas radicais relativamente ao 25 de Novembro é de alguma desilusão72. Para elas, ficara-se a meio caminho, faltando a ilegalização do PCP e dos partidos de esquerda, mais prisões, o esvaziamento das conquistas da revolução e a imposição de um regime mais musculado, espreitando ainda oportunidades no tabuleiro africano.
A valorização que, em anos recentes, partidos de direita e extrema-direita têm feito do 25 de Novembro acaba, muitas vezes, por ser uma retórica de condenação do 25 de Abril e da revolução e não uma forma de valorizar a democracia. Tanto à direita73 como até entre os partidos de governo74, sublinha-se que foi necessário derrotar a ameaça comunista e da esquerda revolucionária para que a democracia se impusesse em Portugal. Mas poucas vezes é referida a ameaça, porventura mais real, de uma ditadura da extrema-direita. Com importantes ligações no aparelho de Estado, em partidos como CDS, Partido Popular Democrático (PPD) ou até PS, nas Forças Armadas, nas polícias ou na Igreja católica, esta direita radical e antidemocrática era financiada por empresários, banqueiros e industriais ligados a grandes grupos económicos e contava com importantes apoios internacionais, nomeadamente na Espanha franquista, continuando a ter capacidade operacional para promover conspirações e atentados terroristas passado o biénio revolucionário (Carvalho, 2017; Tíscar, 2014; Wallraff, 1976).
A patologização e diabolização da revolução, a evocação dos seus supostos crimes e vítimas, sublinhando a ameaça de uma “ditadura” de esquerda, é assim concomitante com a desvalorização e branqueamento do terrorismo da extrema-direita. O que poderá ter como explicação o facto de a extrema-direita e a violência por ela perpetrada terem estado, em determinados momentos, no mesmo lado do bloco que sai vitorioso em novembro na contenção da revolução socialista (Lourenço, 2009, p. 529).
Um dos sinais de que o passado era ainda presente é o facto de 1978 ser um ano charneira no que diz respeito à violência política. Se o terrorismo à direita está em recuo e em fase terminal, já o terrorismo da extrema-esquerda estrutura-se em larga medida em torno dos acontecimentos de 1978. Após a prisão de vários militantes do PRP/BR, os elementos da sua direção detidos serão expulsos da organização por uma fação mais radical, apostada em continuar e intensificar a luta armada, criando, pouco depois, a Força de Unidade Popular (FUP) e as FP 25 (Goulart, 2002, pp. 67-68).
A democratização decorreu assim mais da contenção da extrema-direita - e não apenas da extrema-esquerda - do que normalmente se tem vindo a fixar. A implantação da democracia representativa em Portugal resulta então de duas realidades que, não obstante a clara separação de águas que consubstanciam, não deixam de fazer parte de um mesmo processo histórico: a revolução e a sua contenção em novembro de 1975.
As dificuldades em compreender a revolução estendem-se assim a esse tempo híbrido, “os curtos anos na passagem dos anos setenta para os anos oitenta” que, para Luís Trindade, “se caracterizam melhor pelo que já não são (os anos da revolução) e pelo que ainda não são (os anos da integração europeia), do que por uma identidade própria e bem definida” (2013, p. 3).
O que estes anos nos mostram é que a “normalização democrática” foi um processo mais complexo e tenso do que deixam transparecer as narrativas assentes na reconciliação e na ideia da democracia enquanto processo magicamente garantido pelo 25 de Novembro. Será um tempo difícil de perceber, porque foi ele próprio um tempo, não de democracia acabada, mas de definição e de continuação da democratização garantida e forjada no processo revolucionário de 1974 e 1975.
Fundamentalmente marcados pela revolução, estes anos tendem a ser encaixados na “normalização democrática” e interpretados sobretudo à luz desse tempo. São assim desligados do período revolucionário e esvaziados das tensões e complexidades que ele comporta. A “normalização democrática”, no afã de desvincular a democracia portuguesa da sua génese revolucionária, procurou cimentar uma narrativa de pacificação, obliterando conflitos e dissensos que, apesar de assimilados à revolução, fizeram parte da democratização na segunda metade da década de 1970.