Introdução
A fim de avançarmos na análise sobre as mulheres trabalhadoras na indústria, especificamente no setor da produção de componentes eletrónicos, torna-se imperativo apontar algumas adoções e conceitos que nos parecem essenciais1. O primeiro aspeto a ser considerado é a magnitude e o número de mulheres inseridas na dinâmica do trabalho assalariado no país. No ano de 1974, segundo a Pordata2, a “população ativa” feminina representava 39% do total da população, ou seja, mulheres “disponíveis para a produção de bens e serviços”. Desse contingente, 41,4% estavam empregadas no setor primário, 26,1% no setor secundário e 32,5% no setor terciário3. Apesar das limitações inerentes ao enquadramento estatístico, é possível afirmar que as mulheres detinham uma presença significativa, laborando em grande número transversalmente a toda a sociedade.
O segundo ponto que desejamos esclarecer é que não restringimos a conceção de trabalho apenas ao emprego assalariado. Esses cálculos estão baseados tão “somente (n)a produção-para-o-mercado definida como atividade criadora de valor […] a importância econômica da reprodução da força de trabalho realizada no âmbito doméstico e sua função na acumulação do capital se tornaram invisíveis, sendo mistificadas como uma vocação natural e designadas como ‘trabalho de mulheres’” (Federici, 2017, p. 145). Nesta análise, milhares de mulheres que desempenhavam um papel crucial na reprodução da força de trabalho por meio do trabalho não remunerado, doméstico e de cuidado, transformando “o corpo proletário [da mulher] […] em uma máquina de trabalho” (Federici, 2017, pp. 12-13), que, no caso das assalariadas, se traduz em uma dupla jornada, uma remunerada e outra socialmente compulsória.
O terceiro ponto diz respeito à divisão sexual do trabalho. Desde a transição do capitalismo mercantil para o capitalismo industrial, o trabalho da mulher foi duplamente dividido: por um lado, o seu corpo foi transformado enquanto bem comum, “privatizado” para o trabalho doméstico não remunerado através de um “contrato sexual” (Pateman, 1988) - para as famílias burguesas essa possibilidade se abria como resultado do “capitalismo patriarcal colonial e racista” (Fergunson, 2020, p. 73)4. A burguesia podia então se esquivar do trabalho assalariado, em condições precárias, introduzindo a dupla jornada de trabalho a essas mulheres - e se furtar das condições mínimas de sobrevivência através da terra e de bens comuns (Mies, 2019; Federici, 2021).
Por outro lado, quando as mulheres eram necessárias no trabalho assalariado5, enquadravam-se em uma relação de género e classe que são necessariamente antagónicas e estruturantes, uma vez que “determinam materialmente a exploração do trabalho, por meio da divisão sexual e racial do trabalho” (Cisne, 2018, p. 212). Neste sentido, para as mulheres portuguesas as estratégias de mobilização sobre o trabalho assalariado se deram sobretudo para a indústria eletrónica, alimentícia, química e o já recorrente setor têxtil e de vestuário. Essa mobilização relaciona “feminização com desqualificação”6 (Souza-Lobo, 2011, p. 152), resultado de um século de “domesticação” da mulher no aporte moral da família nuclear e do seu afastamento da esfera pública. Além disso, a feminização destes setores procede a uma extensão dos papéis femininos naturalizados na sociedade, ou seja, obedecem aos critérios de “tarefas repetitivas que exigem atenção e paciência, destreza e minúcia” (Souza-Lobo, 2011, p. 153). Quando se tratava de profissões qualificadas, observava-se uma extensão similar nas áreas de educação e saúde, onde eram exigidos critérios como cuidado, paciência e dedicação.
O quarto e último ponto aborda a noção da condição social dessas mulheres antes do 25 de Abril de 1974, destacando a marginalização imposta pelo regime fascista. Primeiramente pela subordinação7 legal ao pai e posteriormente ao marido, além das limitações decorrentes dessa imposição. Dentre outros fatores, a impossibilidade de controle sobre seus corpos, como no acesso a métodos contracetivos, na prática do aborto e a vigilância constante sobre a sua sexualidade, bem como pressões morais e religiosas, exemplificadas pela proibição do divórcio em casamentos realizados pela Igreja Católica. Destaca-se, ainda, a imposição da manutenção da “feminilidade” e a obrigação do trabalho doméstico dentro da família nuclear como uma “vocação” natural a ser desempenhada pelas mulheres.
Estas breves reflexões nos levam a considerar primordialmente que o patriarcado e o capitalismo são sistemas de exploração entrelaçados (Fergunson, 2020, p. 26), na busca pela divisão da classe e pela segregação da mulher através de uma conceção naturalizadora do seu papel histórico. Essa consideração é importante para a exposição que faremos a seguir. Na aceção de que “a mulher trabalhadora é um membro da classe operária, e todos os seus interesses estão estritamente ligados aos interesses desta classe” (Krúpskaya, 1927/2023, p. 22)8, torna-se necessário mapear onde as lutas por esses interesses aconteceram, como surgiram e quais foram as consequências de suas ações.
Não conseguindo dar respostas a todas essas inquietações, abrimos como possibilidade a análise da luta e do enfrentamento sobre o processo desencadeado por milhares de mulheres operárias na indústria portuguesa, dando ênfase ao setor dos componentes eletrónicos no primeiro ano revolucionário. As mulheres trabalhadoras divergiram, construíram e lutaram por mudanças na sociedade, ainda que a historiografia produzida sobre o 25 de Abril seja olhada de uma perspetiva hegemonicamente masculina e branca. Para esta apreciação, optamos pelo uso de fontes primárias, nomeadamente jornais, panfletos, comunicados e jornais de fábricas - não se tratando, portanto, de “fontes-oficiais” mas sim de fontes divergentes9. Sem descuidar a noção de que a história oral abriu possibilidades para a “história vista pelos de baixo” e pelos “marginalizados da história”, na conceção thompsoniana, e sendo este um espaço limitado para a explanação de nossa investigação, a escolha das fontes cinge-se por sua possibilidade de abranger não apenas discursos de experiência, mas também contextos políticos e dos desdobramentos socio-laborais10.
Trabalhadoras num portugal desperto: os meses anteriores ao 25 de abril
Às vésperas do dia 25 de Abril de 1974, o setor de componentes eletrónicos, caracterizado pela predominância da força de trabalho feminina (cerca de 80%), possuía uma média etária de 18 anos11 e, aproximadamente, 35 a 40 mil trabalhadoras12. As mulheres do setor já traziam consigo a bagagem de intensos confrontos contra os despedimentos e por aumentos salariais.
No mês de outubro de 1973, as operárias da Standard Elétrica, fábrica pertencente ao grupo International Telephone & Telegraph (ITT)13, situada em Cascais e com um quadro de 2000 trabalhadoras (Pérez Suárez, 2023, p. 93), fizeram uma greve de três dias pelo aumento salarial, 13º salário e para que os pagamentos fossem realizados mensalmente (Santos et al., 1975, p. 309). Em 7 de abril de 1974, procederam a uma paralisação contra o encarregado que “as insultava e assediava”14.
Em 1973 ocorreu uma onda de greves na Eletrónica Signetics, localizada em Setúbal. Na fábrica, de capital alemão e estadunidense, “a quase totalidade dos trabalhadores [eram] operárias, como aliás acontece[u] em todas as empresas desta indústria dominada no nosso país pelo capital estrangeiro”15. As operárias lideraram as greves exigindo aumento dos salários, pagamento pelas horas de trabalho noturno16 e a implementação de um salário mínimo baseado numa semana de 40 horas de trabalho e 30 dias de férias remuneradas17. A administração recorreu à polícia, fechando a fábrica e mantendo as operárias do lado de fora, onde permaneceram com piquetes ao longo de cinco dias. Como resultado, conquistaram aumento de salários e a redução para 45 horas de trabalho18. Em 1970, de acordo com o jornal Luta Popular, 2000 operárias da fábrica Timex, localizada na Charneca da Caparica, realizaram uma greve de alguns minutos pelo aumento salarial, sem sucesso, facto repetido nas greves de outubro de 1973, quando o salário médio era de 1.500 escudos19. Em janeiro de 1974, realizaram greve as 900 operárias e 300 operários da General Instrument Lusitania, em Arruda dos Vinhos, pelo aumento salarial e contra os despedimentos (Santos et al., 1975, p. 310), lutas que também marcaram no início de 1974 a Plessey, Control Data, Signetics, Grundig, Motra, Fábrica Portuguesa de Artigos Eletrónicos (FAPAE)20, Siemens (Santos et al., 1975, p. 310) e Electro-Arco21.
No início de abril, cerca de 800 operárias se concentraram na fábrica Mattel Incorporated, em Caldas da Rainha, exigindo um aumento salarial22 e, na têxtil Gouveia, se manifestaram contra o despedimento de uma dirigente sindical23.
Destarte, Portugal experimentou o que Poulantzas (1976, pp. 12-15) denominou de “dependência do imperialismo e suas metrópoles”, especialmente devido ao seu estágio ainda incipiente no processo de industrialização. Mesmo que esse processo tenha sido implementado tardiamente, o país já possuía um proletariado “suficientemente formado para não aceitar a modernização sem uma explosão de conflitos sociais” (Varela, 2014, p. 16). Como destaca Ramiro da Costa (1979, p. 220) “o relativo aumento do operariado feminino, que se verifica nomeadamente nos têxteis, nas fábricas de material eletrónico [...] indicam que houve um efectivo aumento da proletarização”. Além disso, os destacamentos militares para combater nos países colonizados em África e o aumento da emigração e da migração interna, aceleraram um processo, por um lado, de esvaziamento da força de trabalho masculina e, por outro, de oportunidade para a exploração da força de trabalho feminina, necessitada, desqualificada e altamente lucrativa.
Observamos, coerentemente com a análise de Poulantzas (1976) que a fixação destas fábricas se deu sobretudo na região metropolitana de Lisboa e na margem sul do Tejo, com produção eletrónica, têxtil e química. Na região centro e norte também há uma intensa concentração têxtil e de lanifícios, mas maioritariamente de capital nacional ou misto.
A entrada de capitais privados estrangeiros em Portugal conheceu uma escalada expoente na segunda metade da década de 1960, chegando a alcançar o triplo do montante acumulado de investimentos entre 1943 e 1960, e isso apenas no ano de 1971 (Santos et al., 1975, pp. 270-271). No que compete às fábricas de componentes eletrónicos, estas ainda transportavam uma “dependência tecnológica” (Santos et al., 1975, pp. 270-271) ao trazerem consigo informações científicas específicas, peças sobressalentes e condições de fabrico. O modelo de cadeia de montagem fracionada em diferentes países, no caso de organizações multinacionais como a estadunidense ITT, fixava enquanto alvo a exploração de força de trabalho mais barata, geralmente legitimada por Estados autoritários - e no caso português eram flagrantes as degradantes condições de trabalho e a ausência de direitos, sobretudo para as mulheres.
No contexto do cenário laboral durante os últimos anos do “Estado Novo”, observa-se que parte das mulheres não permanecia passiva diante da situação autoritária que as rodeava, embora muitas delas estivessem dissociadas do envolvimento político orgânico, mantendo uma relação desequilibrada em comparação com os trabalhadores homens.
Neste sentido, Arruzza et al. (2019, p. 60) apontam como o capitalismo, ao atribuir predominantemente às mulheres a responsabilidade pelo trabalho reprodutivo, acaba por restringir a capacidade de participação plena, “como iguais, no mundo do ‘trabalho produtivo’”. O distanciamento das mulheres no envolvimento político remonta às longas décadas anteriores do regime fascista e está intrinsecamente relacionado a uma tripla opressão baseada em género/sexo, enraizada em determinados padrões normativos sociais. Essa opressão se manifesta nas responsabilidades maternais e, consequentemente, em relação à família alargada. Além disso, reflete-se na desvalorização e subalternização24 tanto do seu trabalho assalariado quanto do reprodutivo. Esse distanciamento contribui para a formação de uma “cultura social” que normatiza o papel da mulher, sendo o exercício patriarcal não apenas uma manifestação de opressão, mas também sobre a exploração da sua força de trabalho, aspeto que foi constantemente questionado ao longo do período revolucionário. Pelo lado do capital, observa-se a exploração da força de trabalho feminina que, por ser mais desvalorizada, torna-se mais lucrativa. Além disso, há a opressão que ocorre no âmbito extralaboral, não desvinculada da exploração intrínseca ao próprio sistema25. Esta ausência das mulheres nos espaços de luta política institucionalizados, como partidos ou sindicatos, muitas vezes é determinada por homens pertencentes à mesma classe social: homens trabalhadores que almejam tanto quanto elas, pôr fim ao sistema que os explora26. Os discursos sindicais, por exemplo, justamente por serem masculinos em seus porta-vozes e práticas, promovem uma assimetria na recetividade, deixando a mulher enquanto elemento constitutivo da classe operária (Gitahy et al., 1982) sem se ver refletida nessas práticas e discursos27.
“Ou trabalha tudo, ou não trabalha ninguém”: mulheres operárias em luta
A rutura proporcionada pelo 25 de Abril possibilitou uma manifestação abrangente na esfera das relações política e social. Inicialmente, a classe trabalhadora lutou pela liberdade e, imediatamente, pela conquista de condições dignas de vida, bem como pelos direitos sociais e laborais. O que teve início como um golpe militar para pôr fim aos treze anos de guerra nos países colonizados em África transformou-se em uma revolução social. Nas ruas, nas ocupações de casas, na batalha pela Reforma Agrária e na constante disputa dentro das fábricas pelo direito ao emprego e por direitos trabalhistas, as mulheres estiveram presentes e marcaram espaços, alternaram possibilidades de uma vida política antes direcionada quase exclusivamente aos homens28. Durante o regime fascista, mesmo diante da repetida exclusão do feminino e da perceção social de inferioridade, as trabalhadoras desencadearam disputas, lideraram greves e enfrentaram desafios29.
No decorrer do que ficou comumente conhecido por PREC (Processo Revolucionário Em Curso), o espetro de um ambiente em mutação levou a que milhares de mulheres entoassem as suas vozes pelos ventos da revolução. As mulheres não só estiveram presentes como lutaram, demarcaram espaço, escaparam (ou tentaram escapar) da “coesão moral” (Rosas, 1992, p. 394) infligida pelo antigo regime. Tal como salientou Helena Neves (1999, pp. 7-11), “recusamos este caminho que concede uma parcela de ‘participação’ às mulheres no processo histórico […] elas fazem as revoluções porque são sujeitos da história, mesmo que se lhes negue tal identidade”.
Essas mulheres encontraram, na manifestação objetivamente direta, uma validação para as suas necessidades mais imediatas, o oxigênio para expressar as suas angústias e reprimendas sofridas ao longo de décadas. Santos (2014, p. 67) observa que “as pessoas não se perguntavam se estavam ou não a participar numa revolução”; elas estavam presentes em todos os espaços em busca de uma vida mais digna, lutando por direitos que até então lhes eram vedados. Moviam-se entre motivações genuínas e contradições entre os partidos e forças políticas ao longo dos governos provisórios, entrelaçando reivindicações de cunho socioeconómico e, frequentemente, questionando a própria organização capitalista das fábricas por meio de greves e ocupações30.
Tal se passou no início de maio de 1974, quando as 1800 trabalhadoras da Messa, fábrica de máquinas de escrever, situada em Mem Martins31, juntaram voz às centenas de pedidos de saneamento pelo país, reivindicação espontânea para “limpar” da sociedade elementos ligados32 ao antigo regime fascista. No caso dos saneamentos em fábricas com maior força de trabalho feminina, também é possível verificar pedidos de saneamento de encarregados com histórico de abuso sexual e/ou moral. Nesta fábrica, exigiam o saneamento de cinco encarregados, além de um aumento para os seis contos, melhores condições de trabalho e 40 horas semanais. A greve, que se prolongou do dia 16 até o dia 2733 de maio34, desencadeou uma ocupação com piquetes e o início da bandeira pelo “salário igual para trabalho igual”. Chegaram mesmo a reivindicar um conselho disciplinar que fosse paritário (Santos & Casimiro, 1997, p. 39), antes de medidas como a ocupação da fábrica. No jornal A Força Operária, lê-se em um cartaz: “E se ele quiser fechar a fábrica pior para ele. A gente agarra no trabalho e vamos fazê-lo por nossa conta que ele até se mija”35. Esse aspeto espontâneo, irrestrito e desafiador transmite uma mensagem de poder não apenas na prática, devido à influência das lutas populares, mas também simbolicamente, ao permitir a expressão aberta de suas personalidades e o valor de suas representações. Em mais uma demonstração desse peso representacional, uma operária da Messa afirmava para o jornal Autogestão Revolucionária que “a luta faz com que camaradas que não falavam há anos, andem agora abraçados. Faz com que eu trate por tu, eu casada, todos os homens da minha secção. Faz com que a gente perceba a força que isto é”36.
Em maio37, as trabalhadoras da Timex apresentaram um caderno reivindicativo e apontavam, assim como na Messa, um salário mínimo de 6.000 escudos, saneamentos, semana de 40 horas de trabalho, abolição dos prémios e horas extraordinárias, férias com subsídio integral, 13º salário38 e montaram um piquete que se transformou posteriormente em uma ocupação39. Além disso, lutaram pela readmissão de alguns colegas e hastearam a bandeira do “trabalho igual salário igual”40. Estas reivindicações são uma continuidade de lutas que se iniciaram em 1973 e se intensificaram em fevereiro de 1974, sobretudo no que toca ao aumento dos salários e contra os despedimentos como forma de punição aos que se organizavam. Em junho, após alguns dias de greve41, conseguiram o saneamento de seis elementos que estavam apontados no caderno reivindicativo - ainda que, segundo a Comissão de Trabalhadores, os seis elementos demitidos continuassem a receber salários até janeiro de 1976 (Sindicato das Indústrias de Ourivesaria, Relojoaria e Correlativos do Sul, 1976, p. 170).
As exigências por saneamentos eram parte integrante de centenas de cadernos reivindicativos e, em alguns casos, como na Standard Elétrica, denunciavam que um encarregado saneado havia sido designado para um cargo na Secretaria de Estado da Saúde no Ministério dos Assuntos Sociais42. Tais denúncias não se limitaram à Standard, estendendo-se a outras fábricas, onde os saneados alcançaram posições profissionais ainda mais vantajosas do que as que ocupavam nas fábricas, configurando uma espécie de recompensa às avessas. Legalmente, estas situações ficaram autorizadas a acontecer logo em junho de 1974 com, por exemplo, a reforma compulsória para os saneados que tivessem mais de 60 anos43.
Em 27 de maio foi publicado o Decreto-Lei nº 217/74, do Ministério do Trabalho, então sob a responsabilidade de Avelino Gonçalves, do Partido Comunista Português (PCP). Este diploma resultou de uma conciliação entre partidos, sobretudo liderada pelo PCP, sendo também fruto de uma conjuntura controversa, mas favorável à sua implementação, vindo a ser reforçado por Vasco Gonçalves. Este decreto estabelecia o salário mínimo de 3.300 escudos e indicava a publicação, em um prazo de 30 dias, para regulamentação de greve, de lock-out e das relações coletivas de trabalho (a média salarial das operárias nesse setor situava-se em torno dos 2.000 escudos)44. O mês do maior 1º de Maio já visto na história do país se encerrava com greves nos mais diversos setores. A pressão exercida pelos/as trabalhadores/as levou o Partido Socialista (PS) e o PCP a se manifestarem contra as greves e, opondo-se à ideia da “greve pela greve”, defendendo que estas fossem dirigidas pelos sindicatos (Santos et al., 1975, p. 332). A determinação do salário mínimo não correspondia aos valores estipulados nos cadernos reivindicativos do setor da metalurgia (que iam de 4.000 a 6.000 escudos), onde muitas operárias do setor eletrónico estavam enquadradas. A aplicação do salário mínimo vinha, por um lado, estipular uma média salarial baixa e, por outro, insuficiente, pois era ligeiramente inferior aos ordenados que uma parcela dos trabalhadores recebia, (pouco mais do que os 3.300 escudos) e cujas reivindicações haviam sido extrapoladas por este valor. Em fábricas de diversos setores, os valores do salário mínimo reivindicados diferiam de homens para mulheres, como aconteceu na Sociedade de Reparações de Navios (6.000 para os homens, 5.000 para as mulheres), ou na FAMETAL (6.000 e 4.500), na Eurofil, (6.000 e 4.000) (Santos et al., 1975, p. 313), apenas para citar alguns casos. A desigualdade salarial persistia mesmo em fábricas onde os trabalhadores, homens e/ou mulheres, não possuíam qualificações formais, como demonstrado por Isabel Romão (1977). Segundo esta autora, uma pesquisa realizada no distrito de Lisboa, no final de 1974, revelou que uma operária não qualificada recebia, em média, 3.559 escudos, enquanto um operário não qualificado recebia uma média de 4.147 escudos. A desigualdade salarial permaneceu, mas não sem resistência e luta.
Como aponta Varela, “o primeiro Avante! legal, de 17 de Maio, tem uma política para as massas trabalhadoras: organizarem-se e disciplinarem-se à Intersindical”(2011, p. 34). As contradições internas do PCP traduziram-se na sua dificuldade em se posicionar, lado a lado com os/as trabalhadores/as (também estes/as transversalmente condicionados pelas suas próprias contradições) nas lutas que permeavam o momento, causando divergências nas empresas onde a influência da extrema-esquerda era mais eficaz. Neste contexto, as trabalhadoras da Timex foram acusadas de fazerem “o jogo da reacção” ou de contribuirem para o “caos económico”. Em resposta, sublinharam como estava organizada a sua luta, em declarações para o Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado (MRPP): “A esmagadora maioria dos trabalhadores da Timex são mulheres. As operárias da Timex desde o início da luta que se colocaram na primeira linha de combate e, de então para cá, têm justificado plenamente o lugar de vanguarda que ocupam na luta. Salário igual para as operárias é a sua bandeira de combate, a sua reivindicação central”45. A luta agravou-se quando retomaram a greve a 29 de maio, com piquetes e ocupação de algumas instalações, impedindo a saída dos estoques, visto que a administração já buscava anunciar o encerramento e despedimentos46. A greve durou até 21 de junho (Sindicato das Indústrias de Ourivesaria, Relojoaria e Correlativos do Sul, 1976, p. 169), e a luta durante o PREC continuou47.
No decurso da ocupação da Messa, entre o final de maio e o início de junho, alguns resultados práticos foram alcançados, como o aumento salarial e a divisão de tarefas para o funcionamento da creche, embora tenham se declarado “traídas” com a aceitação do salário de 4.500 escudos e as 45 horas semanais pelo Sindicato dos Metalúrgicos, e com a pressão do PCP pelo término da greve48. Na Figura 1, é possível visualizar cartazes desenhados na fábrica, que se referem ao “operário unido”, ainda que a maioria fosse composta por operárias, bem como uma alegria persistente nos rostos, embora exaustos. Com a formação de uma Comissão de Trabalhadores (CT) eleita por setores pelas próprias trabalhadoras, sentiram como a luta organizada havia surtido efeitos em suas reivindicações. Uma operária defende que “se todas as greves fossem como a da Messa isto endireitava”49.
No período entre junho e julho de 1974, outras fábricas neste setor desenvolviam as suas próprias lutas. As operárias da inglesa Plessey Automática, uma fábrica com 350050 trabalhadoras, situada em Cabo Ruivo, também formaram uma CT e definiram um caderno reivindicativo que buscava, entre outros pontos: “1. Democratização da Gestão Económica da Empresa; 2. Controlo Operário; 3. Promoção: Económica, Social e Profissional dos Trabalhadores; 4. Saneamentos; 5. Infantário e creche para os filhos das/os trabalhadoras/es”51. Organizaram-se em marcha até ao Ministério do Trabalho contra despedimentos e demissões voluntárias, que viriam a se concretizar no ano de 1975.
Segundo o jornal Revolução, as operárias da fábrica DS Eletrónica, localizada em Sacavém, enfrentaram ameaças de agressão física, por parte do encarregado, após protestarem contra o despedimento de 19 operárias. As trabalhadoras formaram uma comissão e buscaram apoio junto ao Ministério do Trabalho para lutar contra o encerramento da empresa, após a administração ter retirado 20 máquinas52. Diante desse processo, as trabalhadoras montaram piquete e ocuparam a fábrica, juntamente com as operárias despedidas que continuaram a comparecer e ocupar seus postos durante o horário de trabalho53. Na Siemens, as operárias também se mobilizaram e formaram uma CT, em 6 de janeiro, e lutaram contra os despedimentos voluntários, incentivados pela administração. Após tentativa de retirada de materiais da fábrica, a comissão pressionou contra as demissões: “passado alguns dias, um elemento ligado à chefia da fábrica tenta levar alguns materiais pela calada, o que só não conseguiu devido à vigilância das operárias que, suspeitando das manobras deste lacaio, revistaram o carro e o impediram de sair”54.
Também em maio, a divisão da ITT Cascais organizou-se com a eleição de uma CT e a apresentação de um caderno reivindicativo composto por 36 pontos, levando a uma greve de nove dias pelo seu cumprimento. A luta nessa divisão apaziguou-se em novembro, quando os “trabalhadores acabam por aceitar, em referendo, uma espécie de lay-off” (Pérez Suárez, 2023, p. 93). As exigências incluíam um mês de férias subsidiadas, o saneamento de sete elementos, o aumento salarial, o direito a reuniões da CT55, e o cumprimento do Contrato Coletivo de Trabalho (CCT). Foi convocada nova greve56, após a administração recusar as reivindicações, nomeadamente o ponto sobre o mês de férias pago e quinze dias de subsídio de Páscoa. Além do caderno, emitiram um documento de propostas, onde podemos constatar uma ampliada gama de temas que extrapolavam as reivindicações laborais e se estendiam para questões intrinsecamente ligadas aos conflitos sociais que determinavam as possibilidades de luta:
a) que o governo publique legislação sobre despedimentos sem justa causa; b) que sejam readmitidos todos os trabalhadores sem justa causa; fim imediato à guerra colonial porque enquanto este problema não estiver resolvido, nenhum outro problema dos trabalhadores pode ser resolvido; que o governo publique estatuto de forma a controlar os lucros das multinacionais e de forma às empresas se tornarem tecnologicamente independentes do estrangeiro; que se criem novos postos de trabalho; que em colaboração com os países socialistas se criem condições que permitam cortar a dependência de Portugal do imperialismo57.
Além das reivindicações de um escopo mais abrangente, identificamos demandas intrinsecamente ligadas às primeiras necessidades destas mulheres trabalhadoras - sendo a elas “naturalizadas” essas funções -, como a instauração de serviços de assistência infantil e creches, o reconhecimento do direito a intervalos para amamentação e a concessão de licenças pós-parto efetivamente cumpridas.
No mês de julho, operárias da Plessey Automática denunciaram o facto de terem sido coagidas a assinar documentos referentes ao subsídio de parto, embora nunca o tivessem recebido58. Em agosto, na Eletrónica Signetics, as operárias acusaram o patronato de descontar dos salários das grávidas os dias de baixa legal, mesmo com apresentação de documentos comprobatórios59. Limitamo-nos, neste contexto, a apresentar casos específicos deste setor, o qual, por sua vez, oferecia condições de trabalho consideravelmente melhores em comparação com a indústria têxtil, onde salários mais baixos, condições de trabalho muitas vezes impraticáveis e situações degradantes para gestantes e mulheres em pós-parto eram, lamentavelmente, predominantes.
Da lei “anti greve” ao desemprego: o caso da applied magnetics
Atravessando a crise do II Governo Provisório, a lei que previa regular o exercício das greves e de lock-out60 foi rapidamente denominada como uma lei “anti operária”, ficando conhecida nos jornais de esquerda e extrema-esquerda como a “lei anti greve”. O documento previa, entre outros pontos, ser ilícita a greve “por motivos políticos”, “greve de solidariedade” ou ainda a “ocupação dos locais de trabalho”. Ao patronato, ficava proibido o “encerramento total ou parcial da empresa para impor condições de trabalho aos trabalhadores ao seu serviço” e passava a ser considerado “lock-out defensivo” em resposta a ocupações “ilegais” determinadas pelo diploma. Dois casos parecem-nos emblemáticos na luta nacional contra este diploma: a ocupação definitiva da fábrica de fatos de treino, Sogantal, no Montijo, onde 48 jovens mulheres impediram a retirada das máquinas e do estoque e passaram a vender em feiras, universidades e bancas pelo país, além de participarem em diversas ações ao longo do PREC (Cabreira, 2020); e a manifestação dos operários dos estaleiros navais da Lisnave (bem como toda a sua luta), a 12 de setembro, exigindo a revogação do documento “anti operário”.
Nas fábricas de componentes eletrónicos, a introdução da “lei da greve” desencadeou uma série de reações em cadeia, desde lock-out, despedimentos em massa e, como resposta, dezenas de ocupações. Essa legislação facilitou processos de lock-out, especialmente para as multinacionais, que viam os seus empreendimentos ameaçados por um Estado instável e uma convulsão social mobilizadora. Nos meses de agosto61 e setembro, o desenrolar dos conflitos alastrou-se. A imposição do salário mínimo obrigatório, seguido pela implementação dos Contratos Coletivos de Trabalho (CCT), reduziu os lucros e aumentou a conflitualidade imposta pelas/os operárias/os. Algumas administrações de multinacionais simplesmente abandonaram máquinas e produtos, acreditando que a exploração em outros países seria mais rentável do que enfrentar os confrontos que se impunham, derivados das ações revolucionárias. Outras empresas buscaram autorização para despedimentos coletivos junto ao Ministério do Trabalho; algumas simplesmente despediram ou reduziram as horas de trabalho e, consequentemente, os salários, já baixos.
O dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos, João Sovelas, alude a estas manifestações, bem como às barricadas de milhares de metalúrgicos/as em Setúbal, que impediram o golpe spinolista a 28 de setembro de 1974 (Bensaïd et al., 1976). A partir desses eventos, para o sindicalista, “as entidades patronais foram desmembrando a nossa força através da destruição de empresas e de despedimentos em massa. Isso afectou […] os trabalhadores e o próprio movimento sindical” (Brinca & Baía, 2002, p. 120). As fugas de patrões e administradores alastraram-se nos diversos setores, acusados de falência fraudulenta, fuga aos impostos, omissão de informações contabilísticas, exportação abaixo do valor de produção. Certo é que na maior parte desses casos, milhares de trabalhadores/as foram deixados/as ao desemprego e, também, na maioria dessas situações, lutaram até à última possibilidade para a manutenção dos seus postos de trabalho.
O caso envolvendo a multinacional Applied Magnetics ganhou ampla visibilidade nos mais diversos jornais da extrema-esquerda, não só por “representar um precedente”, como afirmado por Miguel Suárez (2023, p. 94), mas também devido ao seu desenvolvimento particular. A fábrica era composta por um corpo de 700 pessoas, sendo 90% mulheres (Suárez, 2023, p. 94), dedicadas à produção de cabeças magnéticas e matrizes de computadores. A crise teve início em junho, quando o patronato procurou enviar uma CT, eleita antes do 25 de Abril de 1974, ao Ministério do Trabalho62. No entanto, essa tentativa foi prontamente respondida com a formação de uma nova comissão, eleita pelas/os trabalhadoras/es.
A CT prosseguiu com a apresentação de um caderno reivindicativo, que incluía exigências como aumento salarial, adoção de uma jornada de 40 horas semanais (uma medida colocada em prática pelas/os trabalhadoras/es) e salário igual para trabalho igual63. As operárias realizaram uma paralisação de 14 dias em busca do cumprimento do caderno64, ação que teria sido aceite pelo patronato65. Em julho, a administração alegou que não poderia cumprir o aumento salarial estipulado no CCT, no valor de 4.800 escudos, e, por esse motivo, anunciava o despedimento de 116 operárias66. Em resposta a essa decisão, as operárias e operários ocuparam tanto a fábrica quanto os escritórios (Figura 2), com o objetivo de evitar a remoção de documentação e maquinaria. Deixaram de receber salários desde 18 de julho. No dia 23, o administrador, Cécil Fraser, anunciou a falência da empresa, alegando não ter conseguido obter financiamento junto ao governo português67, indicando a demissão das restantes 500 operárias68.
O encerramento é recusado, levando as operárias e operários a continuarem a ocupação e, em um determinado momento, chegaram a trancar o administrador nos escritórios. Após um dia de negociações, permitiram que Fraser saísse sob a condição de entregar o seu passaporte à Comissão. No entanto, houve discordâncias sobre a medida e o administrador dirigiu-se para o Hotel Sheraton, em Lisboa: “nós nunca devíamos ter deixado fugir o administrador [...], dados os graves problemas que estão a suceder agora é chato deixar o tipo ficar no hotel Sheraton. Eu acho que não é justo, ele nunca devia ter fugido, devia ter regressado à fábrica”69. As/os operárias/os acusaram os trabalhadores do escritório de entregarem ao diretor centenas de cheques destinados ao pagamento dos salários70. Um pequeno grupo de operárias se deslocou até Lisboa e criou um cerco no hotel onde o administrador estava hospedado. Elas afirmaram ter recebido apoio dos trabalhadores do hotel, que ofereceram acomodação e refeições71. O mesmo grupo seguiu Fraser durante uma noite no Bairro Alto, onde, incrédulas, diziam que ele havia gasto o salário de uma operária todo em cervejas. O piquete no hotel durou cerca de três dias, até conseguirem uma reunião com representantes do Ministério do Trabalho e com o próprio administrador72.
Na reunião realizada em 24 de julho, as operárias entregaram o passaporte de Fraser ao Ministério. De acordo com o jornal Voz do Trabalhador, a “solução” proposta pelo Ministério do Trabalho envolveu um empréstimo do governo à administração da fábrica no valor de 5.000 contos. Esse empréstimo seria utilizado para o pagamento dos salários das 116 operárias demitidas durante dois meses e incluía a promessa de emprego para as/os demais trabalhadoras/es. No entanto, as condições impostas eram significativas: as/os operárias/os teriam de voltar a uma jornada de 44 horas semanais, pagar as quatro horas que haviam sido eliminadas desde 4 de junho (data em que começaram a trabalhar 40 horas), além de terem suas férias reduzidas de um mês para três semanas. A proposta incluía a dissolução da atual CT e um inquérito sobre os trabalhadores saneados, com a possibilidade de readmissão dependendo dos resultados da investigação73.
Durante a reunião, a Comissão decidiu não acatar o acordo. As operárias relataram ao jornal Revolução que haviam sido agredidas pelo administrador ao entrar em um táxi: “ele agrediu-as brutalmente, chegando a produzir ferimentos em algumas camaradas na fuga precipitada que estava a fazer do Ministério”.74 Nesse contexto, a concessão do Estado envolveu o relacionamento político com a multinacional. Os elementos do Ministério foram pressionados por oito administradores e encarregados ameaçando que, caso a cláusula sobre os saneamentos não fosse excluída, se demitiriam. Segundo o jornal Setubalense e o Voz do Povo75, o Ministério retirou a cláusula da proposta.
Poucos dias depois, no início de agosto, as operárias descobriram que o administrador já estava em Londres, a caminho dos Estados Unidos, quando enviou um telex ao Ministério, instruindo que este prosseguisse com a venda de todo o conteúdo da fábrica para cobrir os custos de salários e indemnizações76. A mensagem gerou indignação entre as operárias e a Comissão, não apenas pelo valor ser insuficiente, mas também pela incongruência de o Ministério ter sido encarregue com assuntos que eram claramente responsabilidade da multinacional. A Comissão ficara a saber que, dias depois, Cécil Fraser propôs a venda da fábrica pelo montante de cinco mil contos, proposta rejeitada por não ser suficiente para cobrir salários e indemnizações.
Em entrevista à Cinequipa, a CT explicou o seu inconformismo com a situação, especialmente porque o administrador havia mencionado que enviaria o dinheiro por “compaixão pelos trabalhadores e por simpatia ao povo português. Ora isso era totalmente ridículo derivado a eles piraram-se e ficar a dever cerca de trinta e seis mil contos. Portanto ele aqui não brinca mais e a opinião geral dos trabalhadores será vender o que se pode e o resto é destruído. Pelo menos eles daqui não levam mais nada depois já não brincam mais”. Raul, outro membro da Comissão, acrescentou que “nós sabemos que este material se sair de Portugal se destina a montar uma fábrica idêntica num país subdesenvolvido”77. Para complementar os salários, a Comissão organizou “peditórios”78 em Lisboa durante o mês de agosto. Além disso, receberam apoio financeiro de diversas fábricas por meio de fundos de luta79.
A pressão exercida pelas trabalhadoras e pela Comissão teve como resultado a incumbência do Estado pelo pagamento das indemnizações que deveriam obrigatoriamente ser pagas pela entidade patronal. Estas foram pagas por meio de um subsídio no valor correspondente à metade de um salário mínimo, totalizando 1.650 escudos. Esses pagamentos começaram em agosto de 1974 e continuaram, inicialmente, por um período de quatro meses80. Essa iniciativa representou um marco significativo, sendo uma das primeiras medidas que impulsionaram a criação de um subsídio de desemprego, ainda que a luta dessas operárias tenha sido sempre em prol do direito ao emprego. O subsídio foi uma ferramenta de sobrevivência. A formalização do subsídio ao desemprego foi então institucionalizada com a promulgação do Decreto-Lei nº 169-D/75, de 31 de março.
Entretanto, havia um conflito que não era exclusivo na Applied, mas se estendia para todas as trabalhadoras. A discórdia girava em torno da necessidade de as/os trabalhadoras/es terem de contribuir com, pelo menos, seis meses de descontos para a Caixa de Previdência para terem acesso ao auxílio. Muitas trabalhadoras e trabalhadores em todo o país denunciavam há anos que as empresas faziam os descontos dos salários, mas não repassavam esses valores para o órgão responsável. Além disso, consideramos que haveria uma situação particularmente impeditiva para as mulheres, uma vez que o diploma não permitia a acumulação do subsídio no mesmo agregado familiar. Sendo os salários mais altos geralmente atribuídos aos homens, a opção de atribuição do subsídio recaía sobre eles, caso ambos, marido e esposa, estivessem desempregados. Essa situação evidencia uma retirada dos direitos individuais em prol de uma ordenação familiar moldada pelos padrões patriarcais, onde a autonomia das mulheres fora novamente subjugada em detrimento dos interesses familiares e sociais dominantes.
Não conseguimos ainda afirmar se as greves e ocupações que se desencadearam nos dezanove meses e no processo revolucionário foram de “ação direta, de base e espontânea”, como afirma Lima (1986, p. 541), ou totalmente cooptadas pelos partidos de extrema-esquerda, ou trabalhadores/as que ainda tinham alguma influência por pertencerem ou simpatizarem com o PCP. Parece-nos haver um misto das duas condições. Conseguimos identificar que havia uma dinâmica heterogénea nos processos, uma busca por entrosamento na luta por uma sociedade diferente da que até então haviam experimentado: resistiram até ao limite de suas ações contra o desemprego e recusaram muitas vezes o modelo de feminilidade que lhes era imposto.
Considerações finais
A construção da narrativa histórica persiste em seguir uma abordagem predominantemente unissexo, na qual o papel dos homens é preservado e contextualizado, enquanto as mulheres, por outro lado, são muitas vezes relegadas a um papel secundário em tópicos associados a noções estereotipadas do feminino ou a mulheres que se destacaram de alguma forma na luta por certos direitos. O imaginário que envolve os desdobramentos do 25 de Abril mantém-se, por conseguinte, ancorado em uma perspetiva predominantemente masculina, branca e heterossexual.
A ausência persistente de representação histórica de contribuições das mulheres resulta frequentemente em uma presença estereotipada, como exemplificado pela memória das mulheres que colocaram cravos nas espingardas dos soldados, uma imagem que as retrata como símbolos máximos de delicadeza, paz e calmaria. Entretanto, é imperativo reconhecer que as mulheres estiveram envolvidas em diversas lutas, incluindo aquelas pelo direito à habitação digna, à educação popular, lutaram até ao último momento por seus empregos, manifestaram-se nas necessidades de saúde da população, lutaram pelo direto ao acesso à terra. Para além do trabalho assalariado, as mulheres desempenhavam (e ainda desempenham), as múltiplas responsabilidades associadas ao trabalho doméstico e de cuidado, o que, por certo, as afastava das condições favoráveis para uma participação mais próxima e ativa nas lutas que as circundavam, contribuindo para este apagamento seletivo.
O trabalhador em si mesmo revela o seu corpo e a sua capacidade de transformar, de agir e de se conectar. Neste sentido, o corpo da mulher assume um espectro mais amplo. Ela desempenha um papel crucial na (re)produção da vida, assegurando a provisão de alimentação, vestuário, moradia, cuidado tanto dos mais jovens quanto dos mais velhos. Não sendo uma posição “natural”, a feminilidade construída em torno da mulher garante que o trabalho de reprodução é imputado à outra metade de toda a humanidade. Por meio dos costumes e da moral social, as mulheres são pressionadas a assumir o papel de uma “boa dona de casa”, incumbida primariamente do cuidado dos filhos. Apenas ela. Este paradigma é exemplificado pelo lema de um cartaz do PCP, “Mulher: o futuro dos seus filhos nas suas mãos”, que reforça a ideia de que somente a mulher é responsável por essa esfera de atuação.
Não tendo sido uma revolução radicalizada a ponto de desafiar estrutural e consistentemente o capitalismo, já que raramente o sistema económico foi confrontado pelos governos provisórios, as demandas geralmente partiam da classe trabalhadora, muitas vezes limitada por impasses governamentais e conflitos partidários. A socialização dos meios de produção não foi efetivada, e a problematização séria do trabalho doméstico como componente (re)produtivo da força de trabalho foi negligenciada. A economia doméstica permaneceu sob a responsabilidade do sexo feminino, ainda que a partilha da economia doméstica tenha sido tentada em alguns oásis. Conforme observado por Saffioti (1979, p. 83), para que seja possível socializar os meios de produção e buscar a emancipação das mulheres, “é preciso que a sociedade se empenhe na eliminação de uma mentalidade habituada a promover a inferiorização de fato da mulher. Esta complexa tarefa não é trabalho de uma geração, mas de várias e, em parte, resulta da homogeneização do grau de desenvolvimento econômico e sociocultural”. Para os que são mais marginalizados, a pressão por mudanças é constante, latente. É preciso que todos os homens, sobretudo os próprios companheiros de classe, abandonem a premissa de que podem se sobrepor às mulheres e passem a admitir que muitas tarefas, tradicionalmente consideradas como obrigação natural do sexo feminino, possam ser partilhadas.
O 25 de Abril trouxe liberdade, possibilidades de luta e de consciência para a condição das mulheres trabalhadoras em Portugal. Contudo, as consequências da democracia representativa e dos desdobramentos do contragolpe de 25 de Novembro de 1975 também afetaram as possibilidades de mudança para o sexo feminino: com o encerramento de centenas de fábricas, milhares foram relegadas ao desemprego, qualificadas apenas pela prática do ofício que exerciam até então. No início dos anos 1980, o setor dos componentes eletrónicos diminuiu drasticamente, tornando a reintegração da força de trabalho feminina uma tarefa árdua. Além disso, muitas trabalhadoras eram frequentemente rejeitadas em entrevistas de emprego sob a alegação de serem “revolucionárias” ou “insubordinadas”81. A pressão das conceções patriarcais sobre o papel das mulheres amiúde as conduzia de volta ao lar, especialmente aquelas com filhos por terem o menor salário. Uma operária da Standard Elétrica expressou a frustração desse cenário ao afirmar: “Beberam-nos o sangue, comeram-nos a carne e agora não querem roer-nos os ossos”82.