Introdução
Este artigo visa ilustrar a atividade musical e política no contexto do Coro da Juventude Musical Portuguesa, de Lisboa, em dois períodos distintos, durante os quais este coro teve particular expressão no universo da música popular em Portugal: os últimos anos do Estado Novo, desde finais da década de 1960; e o período revolucionário e pós-revolucionário, entre o 25 de Abril de 1974 e os anos de 1976 e 1977. Criado alguns anos depois da fundação da Juventude Musical Portuguesa (JMP) em 1948, na sequência da organização não-governamental Jeunesses Musicales International1, o Coro da JMP visava a integração e sensibilização de gerações mais novas para a prática musical, assim correspondendo aos objetivos estabelecidos pelo movimento internacional das Juventudes Musicais (Ferreira, 2010a).
Neste artigo, pretendo observar várias reconfigurações ocorridas no Coro da JMP, focando aspetos relacionados com a sua atividade e práticas, desde a composição, às abordagens a contextos de atuação, aos processos de seleção e de transformação de repertórios, assim como verificar diferentes entendimentos sobre as suas motivações sociais e políticas.
Tendo em conta os períodos abordados, torna-se necessário realçar as múltiplas reconfigurações que ocorreram no contexto das práticas corais em Portugal. Como refere Pestana (2015), a instauração da República em 1910 abriu espaço para o alastramento de um movimento orfeónico2 (p. 13), sustentado pela criação de várias associações corais amadoras, muitas delas imbuídas por um projeto social alimentado pelo espírito republicano e laico. Seria já durante o regime ditatorial (1926-1974) que se imporiam medidas de regulamentação e institucionalização do canto orfeónico. Neste contexto, para além da implementação nos organismos do Estado Novo de um modelo orfeónico que visava promover uma participação passiva, inserindo-se num projeto de controle das classes trabalhadoras urbanas e dos jovens (Silva citado por Pestana, 2015, p. 19), assistiu-se à desativação do movimento social e político associativo (Melo, 1999), com enormes constrições para as atividades dos grupos corais amadores, sujeitos a várias medidas repressivas, desde logo pelo controle das atuações por parte da Inspecção-Geral de Espectáculos ou por ação da censura (Pestana, 2015, p. 19).
Contudo, a criação do Coro da JMP enquadrar-se-ia numa nova dinâmica de conquista de autonomia do associativismo coral face à promoção do canto orfeónico no âmbito de estruturas governativas do Estado Novo (Artiaga, 2003; Pestana, 2015). Tendo como primeiro diretor o Professor Vasco de Brederode, o Coro da JMP apresentou-se pela primeira vez ao público a 1 de julho de 1958, na Academia de Amadores de Música (AAM). De 1964 a 1969, sob direção artística do maestro José Cerqueira Aquino, a atividade do Coro corresponderia a uma fase de consolidação da JMP, com apresentações e atuações regulares aos seus sócios3. Precisamente a partir da segunda metade da década de 1960, o Coro da JMP e outros grupos musicais destacar-se-iam pela adoção de determinadas práticas musicais contrastantes com o restante panorama da música coral em Portugal, que os levaria a constituir-se também como terrenos de resistência política (Pestana, 2015; Cascudo, 2015).
É importante notar que o potencial da música enquanto ferramenta de resistência política ao regime ditatorial é particularmente expressivo no universo da música popular em Portugal desde inícios da década de 1960, através do desenvolvimento de um movimento de cantores de protesto iniciado por José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Luís Cília, este último exilado em Paris (Côrte-Real, 1996). Este dinamismo estende-se também à atividade de alguns grupos corais (Pestana, 2015; Cascudo, 2015). As práticas corais estariam no centro da problematização da relação entre a música e o poder político, representando tanto a hegemonia do Estado Novo, no sentido da regulamentação, instrumentalização e controle exercido sobre o movimento associativo e artístico (Melo, 1999; Artiaga, 2003), assim como uma perspetiva de contestação política do regime (Cascudo, 2015), podendo esta última ser observada tanto a partir das dimensões de sociabilidade e de afinidades estabelecidas entre os elementos de um grupo, como através dos seus repertórios (Pestana, 2015; Cascudo, 2015; Lima, 2023).
Procurando perceber as especificidades e contrastes do caso particular do Coro da JMP, considero que estes aspetos serão indissociáveis das sensibilidades estéticas e políticas de vários membros deste coro e dos seus regentes entre 1969 e 1975, nomeadamente Francisco d’Orey (1931-2020) e Luís Pedro Faro (n. 1948). Pertencendo a duas gerações distintas, estes foram também enformados pelo entendimento da dimensão política do trabalho teórico e etnográfico do compositor e musicólogo Fernando Lopes-Graça (1906-1994) e do etnólogo corso Michel Giacometti (1929-1990) para a valorização e divulgação de práticas musicais tradicionais (Oliveira, 2003; Ferreira, 2010b; Carvalho, 2012; Pestana, 2015; Cascudo, 2015). Por sua vez, como apontam Carvalho (2012), Castelo-Branco (2010, 2013), Pestana (2015) e Cascudo (2015), a influência deste trabalho, sustentado por práticas de recolha musical em contextos rurais e pela harmonização de repertórios de canções populares portuguesas, teria substancial impacto para a perceção do papel da atividade coral no combate contra a idealização da “cultura popular folclorizada” promovida pelo regime (Pestana, 2015, p. 22).
Entre outros, tanto Frith (1991) como Redhead e Street (1989) exploraram a ideia de politização inerente à apropriação de elementos musicais de matriz rural na produção musical de jovens com formação académica e provenientes de meios urbanos. Afirmam estes autores que estas práticas conferem uma imagem legítima da sua “autenticidade”, no sentido do desenvolvimento de uma forma de expressão que procura corresponder a preocupações políticas, muitas vezes em oposição às convenções da comercialização de música massificada. Estas aceções ressoam na sugestão de Street (2003) de que a utilização da música enquanto forma de “comunicação política” poderá ter também em conta propostas elencadas por grupos e organizações políticas, influenciando tanto o seu conteúdo como a forma. Neste sentido, e procurando explorar a articulação entre as dimensões política e estética no Coro da JMP, é indispensável abordar as formas como o debate sobre o alinhamento de expressões musicais populares com a atividade político-partidária seriam aprofundadas com o impacto das fortes mudanças sociais e políticas ocorridas com o 25 de Abril de 1974, a partir do qual as práticas voluntárias de canto coletivo ocuparam um espaço político de participação cívica na sociedade portuguesa (Pestana, 2015, p. 25). Assim, e tendo em conta as divergências de orientação política que levaria vários membros do coro a assumirem diferentes percursos, descrevo o papel destes no contexto da atividade de diversos grupos musicais criados no período revolucionário e que se caracterizaram pela sua ligação a organizações partidárias associadas com a esquerda radical, em particular, o Grupo de Acção Cultural “Vozes na Luta” (GAC), o Coro Popular “O Horizonte é Vermelho” e o GREDIMUP - (Grupo de Recolha e Divulgação de Música Popular) da JMP4.
Precisamente no decorrer da pesquisa, pude observar o papel do Coro da JMP e a sua influência na configuração e nas práticas de vários grupos musicais, verificando que, à exceção de uma parte da introdução de Pestana ao livro por si coordenado Vozes ao Alto (2015), assim como de algumas entradas da Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX (Castelo-Branco, 2010) que relacionam a atividade de protagonistas associados ao Coro da JMP5, é praticamente inexistente um trabalho de análise e reflexão sobre este coro, notando-se a sua ausência da produção académica ou de projetos de investigação dedicados a estudos sobre música popular portuguesa.
Como tal, a descrição da atividade e a reflexão sobre o papel do Coro da JMP decorreu sobretudo da consulta de diversos tipos de fontes6, como: periódicos (notícias, artigos de opinião, entrevistas), comunicados, programas de atuações, fotografias, entre outros; documentários e excertos de programas audiovisuais (nomeadamente as séries televisivas Povo Que Canta7 e Inventário Musical8), assim como de informação resultante de entrevistas por mim realizadas a diversos intervenientes que tiveram uma ligação ao Coro da JMP e a outros grupos musicais abordados neste artigo9. Desta forma, procuro também aprofundar uma parte da história deste coro e o enquadramento do seu papel social e político no universo das expressões musicais populares portuguesas, tanto no período ditatorial, como ao longo do período revolucionário e pós-revolucionário.
Dimensões políticas das canções populares portuguesas
De Fernando Lopes-Graça a Francisco D’Orey
Na segunda metade da década de 1940, coincidindo com um período de intenso ativismo no seio do movimento de oposição, o Movimento de Unidade Democrática (MUD), Fernando Lopes-Graça encetou a criação de um cancioneiro publicado sob o título “Marchas, danças e canções” e direcionado para “grupos vocais ou instrumentais populares”10. Elaborado sobre poemas de vários autores identificados com a corrente neorrealista da época, este repertório, que ficaria conhecido como “canções heróicas”, seria apresentado ao público pelo Coro do Grupo Dramático Lisbonense, amplamente composto por jovens ativistas do MUD (Cascudo, 2015). A divulgação das “canções heróicas”, não só nos meios mais politizados de oposição ao regime, mas também em contextos associativos e recreativos populares, causariam um impacto significativo que levou a Inspecção-Geral dos Espectáculos a proibir a sua interpretação pública11 (Carvalho, 2010, p. 711; Cascudo, 2015).
Pretendendo dar continuidade à atividade do coro, que entretanto se integrara na AAM, formando o Coro da AAM (Cascudo, 2015), Lopes-Graça procurou incorporar o trabalho teórico e etnográfico que vinha desenvolvendo desde o seu exílio em Paris (1937-1939) sobre as realidades musicais e sonoridades dos meios rurais, numa perspetiva de distanciamento das correntes nacionalistas e de rutura com as conceções de “folclorismo” da música tradicional portuguesa promovidas pelo Estado Novo (Carvalho, 2012)12. Para tal, utilizou termos como “canção popular” e “canção folclórica, regional ou rústica” para definir expressões que enfatizavam os critérios de “oralidade” e “autenticidade” do “povo português”, em oposição ao que designava de “contrafacção folclórica”, que associava a uma “pobreza literária e musical” (Castelo-Branco, 2010; Carvalho, 2012).
O enveredar de Lopes-Graça por um novo tipo de repertório baseado em recolhas de expressões musicais de várias regiões do país tinha como propósito refletir, nas suas palavras, “uma realidade colectiva, de algo em que o povo se reconhecesse”, mas simultaneamente “transformada e aprofundada na significação e na sua essência estética e social”13. Essa abordagem estruturou as bases para a criação de uma linguagem musical portuguesa a ser utilizada, simultaneamente, como um meio de educação artística e de combate ideológico, a ele se devendo a visão da música popular como estímulo para a “ação política” e como meio de “transformação da sociedade” (Castelo-Branco & Cidra, 2010, p. 877). Nesta aceção, o uso de elementos musicais de tradições rurais com origem numa população desfavorecida e explorada, é perspetivado como forma de expressão dos valores e ideais exalados desses meios, não só ilustrando a diversidade musical e as especificidades das práticas culturais de diferentes regiões, mas também demonstrando o potencial de resistência política que representava a divulgação de uma visão alternativa do regime acerca das realidades culturais do país.
Para o desenvolvimento de versões corais destes repertórios seria fundamental o contributo de Michel Giacometti, que Lopes-Graça conhecera em 1959, e com quem iniciou uma colaboração muito estreita de recolha e publicação sistemáticas de música tradicional portuguesa, com destaque para a criação da etiqueta discográfica “Arquivos Sonoros Portugueses” em 1960, através da qual seriam publicados, até 1974, vários volumes da Antologia da Música Regional Portuguesa (Oliveira, 2003). Estes trabalhos seriam particularmente marcantes, não só para músicos e cantores associados ao então emergente movimento da canção de protesto, como, por exemplo, José Mário Branco (cf. Andrade et al., 2021)14, mas sobretudo para a atividade de vários grupos corais e de outros coletores interessados em trabalhar sobre formas expressivas da cultura popular portuguesa (Carvalho, 2012; Pestana, 2015; Cascudo, 2015), sendo que, como afirma Pestana (2015), as composições de Lopes-Graça influenciariam de forma direta os coros que interpretaram as suas obras e que “colocaram esse outro divergente e plural no centro da perceção estética da música do ‘povo português’.” (p. 23).
Tal seria o caso de Francisco d’Orey que, a partir de 1969, assumiria a regência do Coro da JMP. Após terminar o curso de Composição no Conservatório Nacional em 1961 e de frequentar vários cursos de técnica vocal e de direção coral, d’Orey destacou-se nas décadas de 1960 e 1970 como regente de vários coros da região de Lisboa, entre os quais o Coro da Universidade de Lisboa, o Grupo Coral de “A Tabaqueira” e o Coro da Sociedade Filarmónica Incrível Almadense. Nestes coros, d’Orey procuraria dinamizar a articulação entre diferentes tipos de repertórios e de diferentes épocas, desde a música antiga, espirituais negros e música moderna/contemporânea, mas com particular incidência na interpretação de canções populares portuguesas harmonizadas por Lopes-Graça (Ferreira, 2010b).
Não obstante a abordagem de d’Orey cruzar diferentes práticas e repertórios, as canções populares portuguesas beneficiariam de particular atenção, inclusive mediática, no contexto da atuação destes grupos. Por exemplo, em janeiro de 1969, com o Coro da Universidade de Lisboa, Francisco d’Orey dirigiu um concerto com transmissão televisiva, sobre o qual Correia da Fonseca realçaria o ambiente de convivialidade entre os membros do coro e a capacidade destes para a interpretação de repertório diversificado, destacando que “(...) foi evidente a preocupação de seriedade na interpretação do nosso folclore, a intenção de buscar as melhores garantias de harmonização”15. Também a crítica de Luís Romano a este concerto, desta feita no Diário Popular, seria elogiosa relativamente à escolha de repertório de canções populares harmonizadas por Lopes-Graça, sendo esta escolha, na opinião de Romano, demonstrativa da riqueza e da diversidade da música tradicional portuguesa16. Em finais de 1969, Francisco d’Orey participa num episódio do programa televisivo Zip-Zip, no qual abordou o seu papel na regência do Coro da Universidade Lisboa, do Coro da JMP e do Grupo Coral de “A Tabaqueira”, afirmando procurar incidir, através da prática coral, numa “noção mais exacta da arte nas camadas populares”17. A atuação do Coro da Universidade de Lisboa neste programa motivaria o convite para o coro gravar quatro canções do seu repertório de canções populares harmonizadas por Mário de Sampayo Ribeiro (fundador e diretor artístico do coro) e por Fernando Lopes-Graça, as quais seriam publicadas num EP18 editado em 1970 pela etiqueta discográfica Zip-Zip, entretanto criada após o sucesso deste programa televisivo.
Também a nível internacional seria reconhecido o trabalho de Francisco d’Orey nos arranjos corais de canções populares portuguesas. É disso exemplo a obtenção, pelo Coro da Universidade de Lisboa, de três prémios no segundo festival Teesside International Eisteddfod, realizado em 1968, em Inglaterra, nomeadamente o primeiro prémio de música de câmara (coro até 15 pessoas) e o segundo prémio na competição de “canções folclóricas”, na qual quatro mulheres alentejanas interpretaram a canção Saias, original da região de Campo Maior e Alpalhão.
Por outro lado, o papel de Francisco d’Orey na televisão seria considerado determinante no universo da música popular portuguesa (Ferreira, 2010b). Em 1970, após assumir a função de assistente musical da RTP e de produzir algumas rubricas televisivas, focadas tanto na gravação de canções elaboradas e interpretadas em contextos rurais19, assim como em reportagens centradas na atividade musical de grupos corais e bandas filarmónicas (por exemplo, da Sociedade Filarmónica Incrível Almadense, episódio igualmente transmitido em 1969, inserido na rubrica Música Viva)20, d’Orey dá início à realização do programa televisivo Inventário Musical21. Através deste programa, d’Orey aprofundou o seu interesse no estudo documental da música, nomeadamente da atividade musical em contextos de associações populares recreativas, de grupos musicais de jovens e escolas informais de música, assim como da valorização do papel da organização popular de coros e bandas musicais em vários pontos do país (Ferreira, 2010b). Francisco d’Orey demonstraria o seu apreço pelo trabalho de recolhas musicais em contextos rurais, o que motivaria o convite a Michel Giacometti para criar a série televisiva Povo Que Canta22, da qual seria coprodutor e assistente musical. Marcada por uma abordagem que procurava valorizar os contextos culturais e de sociabilização das práticas musicais do mundo rural, esta série teve um impacto significativo ao estimular o interesse de gerações mais novas em enveredarem pela atividade de recolha e pela divulgação de músicas tradicionais de vários pontos do país.
O envolvimento e a influência de Lopes-Graça, Giacometti e d’Orey em processos de recolha, transcrição e arranjos de repertórios tradicionais, assim como o contributo destes para o “desenvolvimento de uma música popular urbana com preocupações sociais” (Castelo-Branco & Cidra, 2010, p. 877), seria particularmente manifesta no contexto da atividade do Coro da JMP.
Somos um coro que procura estar vivo
Reconfigurações no coro da JMP (1969-1974)
O início da regência de Francisco d’Orey no Coro da JMP, em 1969, coincidiu com o culminar de uma fase de consolidação da JMP, procurando esta projetar então novas atividades para o futuro (Ferreira, 2010a). Esta fase terá correspondido a um período em que se verifica a entrada de membros de gerações mais novas para o coro, oriundos sobretudo de meios urbanos e suburbanos da região de Lisboa, alguns dos quais não só com experiência prévia de participação noutros coros, mas também de formação vocal23.
Como salientam Pestana e Cardoso (2010), para além de uma relativa fruição estética, as atividades corais amadoras em meios urbanos são também propícias ao estabelecimento de relações socioafetivas entre membros de um grupo. Estas ideias são aprofundadas por Lima (2023), que explora os modos de relação dos elementos dos coros com a prática coral, concluindo que os contextos sociais de participação artística e musical expressiva constituem espaços privilegiados para o desenvolvimento de relações sociais e, eventualmente, de afinidades políticas. Tal é testemunhado por vários membros do Coro da JMP24 que destacam a convivialidade e o apreço pelo canto coletivo como alguns dos motivos para ingressarem no coro. Além disso, o profundo dinamismo estabelecido entre os seus membros foi particularmente determinante para o desenvolvimento da sua dimensão mais politizada. Por exemplo, Maria Antónia Vasconcelos25 e José Moças26 afirmam que foi a partir das relações criadas no seio do Coro da JMP que adquiriram uma maior consciencialização política, confirmando a sintonia do posicionamento da maioria dos membros do coro na oposição ao regime.
Estes são aspetos que convergem com as propostas de Pestana (2015) e Cascudo (2015) de que a contestação política no contexto da prática coral emergiu também por estes grupos proporcionarem “sentimentos de pertença” e de criação de “espaços de emissão vocal, de proximidade corporal e de comunicação”, que dificilmente se encontravam noutros contextos durante a ditadura (Pestana, 2015, p. 22).
Por outro lado, o papel inovador de Francisco d’Orey enquanto figura tutelar da atividade do coro é igualmente destacado por vários membros, que referem a seriedade e o rigor que este conferiu não só na abordagem a diferentes tipos de repertórios e na abertura a novas formas de apresentação, mas igualmente no fomento e dinamização da reflexão sobre o papel social da música e, em geral, dos grupos corais. Ao mesmo tempo, a sua postura em privilegiar uma relação colegial no seio do grupo e a rejeição do seu papel como líder incentivava a discussão coletiva sobre todas as questões relacionadas com a prática do coro, desde o repertório, modos de cantar e a abordagem aos contextos performativos (Pestana, 2015, p. 23), sendo estes alguns aspetos vistos como divergentes relativamente a outros grupos. Por exemplo, Carlos Moreira27, que integrou o Coro da JMP após a sua saída do Grupo Coral de Queluz, afirma que, neste último coro, ele e outros chegaram à conclusão de que tanto o que cantavam, como as formas de interpretação, o contexto das atuações e os públicos aos quais se dirigiam, não corresponderia ao entendimento que tinham sobre o papel que pretendiam assumir ao pertencerem a um grupo coral, nomeadamente o seu interesse em divulgar o que consideravam por “genuína música popular” em meios urbanos e suburbanos.
Não obstante, à semelhança dos outros grupos corais dirigidos por d’Orey, a atividade do Coro da JMP pautou-se pela interpretação de repertório diversificado, que incluía “música coral religiosa e profana”, “espirituais negros” e algum repertório de “música moderna/contemporânea”28, sendo que o interesse pelo cruzamento da interpretação de polifonias populares com a música renascentista seria também um aspeto distintivo destes grupos, “(...) uma vez que acreditavam que as práticas polifónicas rurais constituíam sobrevivências de práticas cultas de outrora” (Pestana, 2015, pp. 24-25).
As ligações de Francisco d’Orey à televisão, bem como a sua experiência prévia na organização de espetáculos de música coral cruzados com apresentações cénicas (nomeadamente enquanto regente do Grupo Coral de “A Tabaqueira”), levariam o Coro da JMP a protagonizar novas abordagens de apresentação pública e de projeção da música coral. No início da década de 1970, por iniciativa da JMP, seriam organizadas uma série de atuações intituladas Concertos em Diálogo, gravados ao vivo e posteriormente transmitidos pela RTP29. Estes concertos contariam com a participação de vários músicos e grupos corais, nomeadamente os coros aos quais Francisco d’Orey estava ligado. Este, juntamente com Manuel Jorge Veloso (corresponsável pelo programa e que havia estado ligado à direção da JMP e trabalhava então na RTP como produtor de programas musicais), assumia também o papel de moderador e de comentador dos diversos repertórios que iam sendo apresentados, procurando “elucidar o público sobre as temáticas dos concertos”, o que incluía falar, inevitavelmente, dos “problemas da harmonização da música popular tradicional”30.
Após participarem, em 1970, no IV Festival Coral Internacional Europa Cantat realizado em Graz, Áustria, onde apresentaram um concerto de “música popular portuguesa” com harmonizações de Lopes Graça, e atuaram num concerto coral sinfónico, dirigido pelo maestro suíço Willi Gohl, o Coro da JMP produziria um novo projeto musical, baseado num modelo de apresentação cénica de música coral, intitulado Concerto Coral-Cénico. Estreado a 30 de março de 1971 nas Caldas da Rainha, em colaboração com o Conjunto Cénico Caldense, o programa do espetáculo foi constituído pelo tipo de repertório diversificado que vinha sendo já apresentando incluindo repertório das canções “heróicas” e “regionais” harmonizadas por Lopes-Graça (Acordai, Ai por cima se ceifa o pão, Os homens que vão para a guerra, entre outras), mas passaria também pela interpretação e declamação de repertório baseado na obra poética de escritores portugueses, tais como Natália Correia (Queixa das almas jovens censuradas), Carlos Drummond de Andrade (Considerações sobre a palavra homem31) e Raquel Oliveira (Carrega, com música de Eduardo Paes Mamede, membro do Coro da JMP). Por sua vez, a apresentação deste espetáculo constituiu-se de forma inédita para o grupo, como é possível depreender da nota biográfica publicada juntamente com o programa do espetáculo, na qual os membros do coro se demarcam do habitual tipo de intervenção que caracterizava a sua atividade até então, apelando igualmente à opinião e crítica do público, através de uma folha de inquérito que era distribuída no espetáculo:
Um grupo de rapazes e raparigas, ao cabo de alguns anos de uma experiência coral nos moldes clássicos - Coro no palco a debitar cancões, segundo critérios especificamente técnico-musicais ou cronológicos - achou que valia a pena procurar um sentido para as suas canções. Através de longos meses de trabalho e de procura, de opções e recusas, decidiram apresentar-vos esta primeira tentativa de «encenação coral». E pedem a vossa atenção e uma crítica espontânea e livre 32.
Francine Benoît, na sua crítica à apresentação do espetáculo na Fundação Calouste Gulbenkian, no âmbito dos ciclos de música coral para a temporada 1970-1971, revela a surpresa partilhada pela maioria do público ao observar que o palco estava “armado para um simulacro de teatro”33 e igualmente equipado com um projetor de imagens. A sua descrição do espetáculo seria também reveladora do aspeto inovador do mesmo, referindo-se à necessidade de este dever “interessar” e chegar a vários milhares de pessoas:
Tratou-se, afinal, de uma verdadeira montagem cénica em que interveio um número grande de rapazes e raparigas para cantarem em grupo, ou grupos, (muito bem), recitar alternadamente, (mas desigualmente), tocarem, (uma flauta e um tambor), e esboçaram danças de recreio, tudo ligado pelo decorrer de sugestões cénicas de postulados existenciais. Jogos de luzes e efeitos de escuridão completaram poderosamente a montagem rigorosamente calculada por Francisco d’Orey, mas num acordo com todos os participantes, que foi a segunda grande revelação da sessão - uma hora de juventude não sofisticada, comunicativa, solitária, dentro de uma expansão em que o sentido de individualidade se desenvolve em vez de se atrofiar34.
Embora a generalidade da crítica publicada em alguns órgãos de imprensa tivesse sido elogiosa do espetáculo, os membros do Coro da JMP levantariam algumas preocupações relativamente às exigências de índole técnica e interpretativa, assim como ao impacto junto do público deste tipo de modelo de atuação. Numa entrevista coletiva realizada por Regina Louro ao Coro da JMP em finais de 197135 (à altura constituído por cerca de 40 homens e mulheres), é evidente a existência de diferentes perspetivas no seu seio, com alguns dos membros a expressarem os seus anseios relativamente à necessidade de aperfeiçoamento técnico do grupo e de reflexão sobre a escolha de repertório, mas sobretudo em relação à necessidade do grupo enveredar por um papel social tido como mais interventivo, sendo então sugerido por alguns membros que o coro deveria direcionar a sua atividade para a “iniciação musical nas aldeias”36.
Esta linha de atuação do Coro da JMP terá, assim, correspondido a uma escolha resultante de discussões internas, sobre as quais, mais tarde, alguns membros afirmariam ter provocado a saída de várias pessoas que não se teriam identificado com a tendência predominante de a atividade do coro estar dirigida essencialmente para associações populares e meios rurais37. Motivado pela organização de “deslocações ao terreno” em contextos rurais, o coro acentuaria a sua atividade na valorização e divulgação de expressões musicais e teatrais tradicionais, aprofundando o contacto e os conhecimentos sobre os contextos socioculturais das práticas musicais de várias regiões do país, como é descrito por João Lisboa nessa altura:
(...) começamos a ir nas férias de Páscoa e de verão às aldeias portuguesas, onde sabíamos de antemão existirem tradições musicais, como no Alentejo, Beira Alta, Beira Baixa... Trata-se de uma tentativa de aprender o modo como a música popular é criada no seu meio ambiente, conhecer as condições sociais e económicas em que o povo que canta a música que cantamos vive, e posteriormente divulgar essa música, respeitando os objetivos com que o povo as canta38.
A primeira deslocação do coro seria realizada precisamente na Beira Alta, nas aldeias do Lamegal, em Pinhel, para a qual contaram com a orientação e com as redes de contactos de Francisco d’Orey e de Michel Giacometti39. No relatório sobre esta deslocação o grupo elenca as suas principais motivações:
a) melhor conhecimento e integração dos elementos no grupo e reforço da sua coesão interna pelo trabalho colectivo durante cerca de dez dias nas condições de um acampamento;
b) conhecer tão aprofundadamente quanto possível as condições de vida (culturais, geográficas, sócio-económicas) que deram origem à música que nós cantámos e, por outro lado, conhecer as actuais que pesem sobre o desenvolvimento ou extinção dessa mesma música;
c) recolha das tradições populares (musicais, teatrais, de linguagem, etc.) tentando contribuir para salvaguardar um património popular em processo acelerado de esmagamento;
d) tentar conhecer formas diferentes de convívio social porventura ainda existentes devido às características quantitativas e qualitativas (pequenas comunidades) específicas do campo;
e) enriquecer o nosso conhecimento da forma variada do canto popular40.
Como salientam vários membros do coro que participaram nestas deslocações, as experiências de observação e de recolha in loco transformariam de forma profunda a sua perceção de cantar música tradicional, afirmando-se impressionados “com o modo como os detentores da tradição projectavam a voz e com os harmónicos e microtonalidade que exploravam” (Faro citado por Pestana, 2015, p. 24).
Entretanto, e de acordo com vários membros, a participação de d’Orey nas atividades do coro tornou-se cada vez mais intermitente (em parte, também devido a alguns problemas de saúde e ao trabalho paralelo que exercia na RTP), sendo que Luís Pedro Faro, à altura estudante no curso de Direcção Polifónica no Centro de Estudos Gregorianos, que já havia substituído d’Orey na direção do Grupo Coral da Incrível Almadense, onde ensaiava repertório semelhante, assumiria a regência do Coro da JMP.
Apesar de continuarem a apresentar-se em meios com públicos geralmente identificados com a música coral, nomeadamente em festivais e concertos realizados em Portugal e no estrangeiro, com destaque para a participação no Festival de Música Coral em Barcelona em 1971, e no Tees-side International Eisteddfod, realizado em 1972 em Inglaterra, onde ganhariam o 1º prémio na categoria de “Folk singing groups”, nas “notas biográficas” do coro (com versões redigidas provavelmente entre 1971 e 1972) é expresso de forma explícita o seu interesse em seguirem com uma linha de atuação que passasse sobretudo pela realização de espetáculos dirigidos “a camadas populacionais onde a penetração ao vivo deste género de música é ainda bastante escassa”41. Neste documento, assim como em entrevistas para a imprensa42, os membros do coro acentuam a necessidade de reforçar os contactos e de exercer um papel interventivo junto de vários estabelecimentos de ensino, organizações associativas e recreativas populares e, sobretudo, em “camadas populacionais não-urbanas”43, sendo disso exemplo a deslocação do grupo ao Fundão, em abril de 1974, onde, para além de encetar vários “trabalhos de recolha folclórica”44 e de procurar “descobrir elementos da autêntica música popular”45, realizariam atuações nas aldeias, em coletividades, associações e cafés, incluindo numa iniciativa promovida pelo Jornal do Fundão46.
Como tal, é possível considerar que a prática de recolha do Coro da JMP articulou-se de forma evidente com o papel de intervenção social do grupo, acentuando a sua dimensão mais política.
Viva a classe operária, abaixo o capital!
O coro da JMP na Revolução
O enveredar pela recolha e interpretação de música tradicional portuguesa e a alteração da perceção de como alguns membros encarariam a dimensão política da atividade do coro, seria o assunto central de um episódio televisivo dedicado ao Coro da JMP, realizado por Francisco d’Orey para o programa Inventário Musical47 (presumivelmente gravado dias antes do 25 de Abril de 1974, mas só transmitido pela RTP em setembro desse ano). Neste episódio, alguns membros afirmam que as discussões que haviam tido no sentido de direcionarem as atuações para o contexto das associações culturais e recreativas de várias regiões do país, assim como de realizarem deslocações tendo em vista o contacto com o meio cultural e com práticas tradicionais locais, foram representativas da transposição dos “antagonismos e contradições da sociedade”48 para o seio do coro.
Embora a entrada de Luís Pedro Faro não tivesse trazido mudanças significativas para o Coro da JMP, à exceção da introdução de novos métodos de ensaio e de experimentação de diferentes técnicas e exercícios vocais, Faro manteve a defesa de o coro ter um papel mais interventivo junto do público e dos locais de recolha, de forma a poder “atuar em profundidade nas pessoas que lá trabalham”49. Estas mesmas preocupações seriam expressas por João Lisboa relativamente à questão da necessidade permanente de atualização do conteúdo do repertório, remetendo para o coro uma “função de formação popular, tem que cantar música com mensagem, de texto, com significado social e político direto”50. Esta discussão entraria assim em diálogo com a tensão permanente entre recriar a música do povo ou fazer uma nova música para o povo. É nesta perspetiva que João Lisboa enquadra a necessidade de o coro configurar novo repertório que fizesse a correspondência entre o “aspeto formal, popular, da música que cantamos, com conteúdo em que de facto sejam defendidos os justos anseios e aspirações do povo”51.
A postura do coro relativamente ao entendimento do papel político da música coral e da atividade de outros grupos corais, passaria por advogar o seu empenho na “construção e radicação de um movimento coral de características autenticamente populares”52. Este aspeto seria particularmente debatido no âmbito da contestação protagonizada pelo Coro da JMP e pelo Coro da Incrível Almadense à I Semana Coral, evento realizado pela FNAT (Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho) entre os dias 14 e 23 de abril de 1974. Num comunicado publicado na véspera do 25 de Abril de 1974, os dois coros questionam a ausência de debate sobre a “finalidade da actividade coral amadora”53 e a inexistência de qualquer espaço para troca de experiências entre grupos corais, visando particularmente a ação do Coro da Universidade de Lisboa, acusando-o de “evitar a genuína música popular portuguesa e de não procurar qualquer contacto com as camadas populares”54.
Entretanto, como salienta Carlos Moreira55, o 25 de Abril e o início do processo revolucionário contribuiria de forma determinante para uma orientação mais explícita da atividade política do Coro da JMP. Numa carta datada de 6 de maio de 1974, endereçada à direção da JMP e assinada “Pela Comissão do Coro”56, esclarece-se a linha de atividade a ser seguida, manifestando a vontade de continuarem a apresentar-se em associações recreativas e escolas “de molde a uma maior divulgação da cultura musical popular nos locais habitualmente desprotegidos”57. Não sem antes apelarem, à direção, pelo aumento de ordenado de Luís Pedro Faro, anunciavam a ampliação do repertório de “música popular portuguesa”, mas também a continuidade de interpretação de “música popular da Renascença”, repertório este que ainda faria parte de alguns espetáculos realizados pelo coro durante o mês de maio, como por exemplo no Tivoli, a 19 de maio de 1974.
Todavia, ao longo dos meses seguintes, a atividade do coro estaria já em sintonia com o clima de intensos debates ideológicos que então pautavam o dia a dia da sociedade portuguesa, tendo sido verificada uma mudança do tom da comunicação externa do coro, a qual era também ilustrativa da radicalização do discurso em torno da defesa por uma “nova cultura popular”, entendida pelos membros do coro enquanto reflexo das “lutas da classe operária e do povo trabalhador contra a exploração capitalista, o fascismo, o colonialismo e o imperialismo”58. Não obstante a definição do posicionamento do grupo, vários membros afirmam a existência de diferentes sensibilidades políticas no seio do coro. Embora maioritariamente sintonizados com o campo ideológico à esquerda do Partido Comunista Português (PCP), apenas uma minoria dos membros do coro teria experiência prévia de militância em organizações políticas, entre os quais se incluíam José Alberto Sardinha e João Lisboa, cujas ligações à organização maoísta Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado (MRPP), tinham já resultado nas suas detenções em 197359.
À semelhança de outros músicos e coletivos artísticos identificados com organizações e partidos associados à esquerda radical (Castro, 2022), o Coro da JMP orientaria a sua atividade no sentido de “servir o povo” e identificar-se com as suas lutas, tal como expresso no texto que acompanha o programa de algumas das suas atuações neste período: “É precisamente, cantar para as classes trabalhadoras (operários, camponeses, empregados), que o coro da J.M.P.L. procura fazer, realizando música nova, música popular na qual se reflitam a vida, as aspirações e a luta do Povo”60.
Este aspeto acabaria por se refletir na decisão dos elementos do coro em se assumirem como “apartidários” e participarem, maioritariamente, em sessões enquadradas em “cantos populares” ou “cantos revolucionários”, invariavelmente realizadas no contexto da atividade de comissões populares e de trabalhadores. Muitas dessas sessões tinham um caráter político evidente, sendo exemplos disso a participação do coro na organização de um concerto para os trabalhadores do estaleiro de Sines ou a colaboração num “sarau musical” organizado pela Casa de Cabo Verde e pelo Grupo de Acção Democrática de Cabo Verde e Guiné (ambos realizados em dezembro de 1974).
Esta orientação seria igualmente observável no novo repertório apresentado, que passaria a ser exclusivamente constituído pelas habituais “canções populares portuguesas” e pela integração de vários “hinos de luta”, que incluíam a adaptação de “canções revolucionárias internacionais” (tais como A Internacional, Bandiera Rossa, entre outras), assim como por novas canções criadas por membros do coro, tais como Ousar, Lutar ou Classe Contra Classe e O Povo em Armas (ambas escritas por João Lisboa e Eduardo Paes Mamede). Com o passar dos primeiros meses da Revolução, o Coro da JMP afirmaria a primazia dada ao repertório “revolucionário” e à necessidade de o grupo trabalhar na “adaptação de formas populares a um conteúdo realmente progressista”61.
Como refere Castro (2022), seria neste contexto que o Coro da JMP se cruzaria com a atividade do GAC, constituído por vários músicos e cantores, tais como José Mário Branco, Fausto Bordalo Dias, Tino Flores e Afonso Dias. Estes tinham formado o GAC no seguimento da rutura ocorrida no seio do Colectivo de Acção Cultural, que havia sido criado na madrugada de 1 de Maio de 1974 e que visava apresentar-se como uma frente artística de cantores de protesto que se mostravam disponíveis para “lutar pelas exigências dos trabalhadores e do movimento popular democrático”62. A aproximação entre os dois grupos resultaria também do convite de José Mário Branco a Luís Pedro Faro, que tinha conhecido em Paris, em 1970, quando Luís Pedro Faro acompanhou José Afonso à viola em algumas atuações (cf. Andrade et al., 2021), no sentido de este colaborar no arranjo de vozes para a gravação de várias canções do GAC63.
A sintonia entre alguns membros dos dois grupos seria demonstrada pela participação conjunta em várias atuações realizadas ao longo do segundo semestre de 1974. Uma dessas sessões acabaria por ser determinante para o futuro da atividade do Coro da JMP. A 18 de dezembro de 1974, o GAC e o Coro da JMP participaram numa sessão de Canto Popular integrada numa campanha de angariação de fundos de apoio ao jornal Voz do Povo, realizada no teatro Capitólio. Após atuação do Coro da JMP e da interpretação da sua versão de A Internacional, é anunciada a formação da União Democrática e Popular (UDP), uma frente partidária criada por diferentes organizações marxistas-leninistas, tendo em vista a participação nas eleições para a Assembleia Constituinte em 1975.
Embora o jornal Voz do Povo tivesse publicado uma autocrítica por não ter avisado os dois grupos de que, no âmbito da sessão, seria feita a apresentação da UDP64, terá sido claro, na opinião de Carlos Moreira65, que a participação do Coro da JMP neste evento foi compreendida como uma traição por alguns membros, no sentido em que haviam acordado não atuar em sessões promovidas por estruturas partidárias. A criação da UDP acabaria por acentuar as diferentes sensibilidades políticas no seio do coro, e aprofundar as divergências entre os seus membros, sobretudo entre aqueles alinhados ou próximos de outras organizações associadas à esquerda radical (Castro, 2022).
Que floresça a música nova
O papel do coro da JMP para uma “nova música popular portuguesa”
Em inícios de 1975, os membros do Coro da JMP decidem-se pela divisão. Uma parte deles, entre os quais Luís Pedro Faro, Eduardo Paes Mamede, António Moreira, Graça Moreira, Nuno Ribeiro da Silva e Tóinas, entre outros, abandonariam o coro e passariam a integrar o GAC, ao qual também se juntariam outros membros do Coro da Incrível Almadense (que, entretanto, passaria a intitular-se Grupo de Canto Popular de Almada), entre os quais Carlos Guerreiro e José Pedro Caiado.
Para José Mário Branco66, a entrada no GAC de vários membros oriundos do Coro da JMP foi fundamental para a nova configuração do grupo. Para além de possibilitar o alargamento do seu âmbito de ação, permitindo ao GAC lidar com as várias solicitações para atuações que iam sendo realizadas um pouco por todo o país, incluindo no contexto da atividade político-partidária da UDP, o papel de alguns dos membros oriundos do coro seria essencial para a nova fase de produção musical do GAC (Castro, 2022). Como refere José Mário Branco67, a integração de um alargado coro de vozes mistas, que trazia uma vasta experiência performativa e disciplina de ensaio coral e harmónico, destoando das práticas que haviam caracterizado a primeira fase do grupo, correspondeu à intenção de o GAC explorar novas possibilidades sonoras.
Através da Cooperativa de Acção Cultural - “Vozes na Luta”, concretizada em maio de 1975, o GAC publicaria, até ao final desse ano, oito singles e um LP (coletânea das canções publicadas nos primeiros quatro singles), incluindo várias canções oriundas do repertório de “canções revolucionárias” do Coro da JMP, que passaram a integrar o habitual repertório interpretado pelo GAC. Em finais de 1975, no quadro de um panorama político que culminaria num processo de contrarrevolução e de transição para a estabilidade democrática governativa do país, o GAC prepararia o seu primeiro LP Pois Canté!!, que seria resultado das regulares discussões no seio do GAC em torno da questão da valorização do “património cultural popular”68. Neste disco, que contou com arranjos de Luís Pedro Faro e José Mário Branco, seria já evidente a integração de repertório que visava a construção de uma “nova música popular portuguesa” e que era reflexo, por um lado, do “trabalho coletivo e militante” do GAC junto das populações locais, proporcionado pelas centenas de sessões de “cantos populares” realizadas por todo o país ao longo do período revolucionário e, por outro lado, da experiência prévia, tanto de José Mário Branco como dos membros oriundos do Coro da JMP, em trabalhar sobre repertório da música tradicional portuguesa (Andrade et al., 2021; Castro, 2022).
Entre outras, canções como Coro das Maçadeiras (letra de António Moreira para música tradicional do Minho), Herdade do Val Fanado e Casas sim! Barracas não! (músicas de Eduardo Paes Mamede para letra de José Júlio Gonçalves e Fernando Laranjeira, respetivamente) ou Olha o Sol a Pôr (letra de João Lóio musicada por Luís Pedro Faro) seriam exemplos da articulação entre a exploração de formas musicais inspiradas em diferentes práticas musicais tradicionais e um conteúdo que pretendiam que fosse politicamente significante para as diferentes camadas populares, sobretudo distanciadas dos grandes centros urbanos69.
Ao longo do período pós-revolucionário, sem contar já com a participação de José Mário Branco, que sairia definitivamente do grupo depois da publicação de Pois Canté!!, o GAC aprofundaria a divulgação de práticas da cultura popular de diferentes regiões do país enquanto formas de “expressão artística revolucionária”, ao promover a formação de “grupos de trabalho de recolha”, dando particular atenção às práticas interpretativas e coreográficas da tradição musical e ao “estudo de instrumentos populares” (gaitas-de-foles, caixas, bombos, adufes, viola braguesa, pífaros e flautas, entre outros), mas abrindo também espaço ao “artesanato popular”70. Estes aspetos seriam espelhados na produção discográfica da Cooperativa de Acção Cultural “Vozes na Luta”, entre 1977 e 1978, que incluiu a publicação do EP Bate Certo (1978)71, do Grupo de Canto Popular de Almada, e dos álbuns do GAC ...E Vira Bom72 (1977) e Ronda da Alegria (1978)73, sendo estes discos notoriamente marcados pelas influências estilísticas e pelas características musicais específicas de várias regiões do país.
Por sua vez, Carlos Moreira, José Moças, Vítor Reino, José Manuel David e Maria José Campos, entre outros membros do Coro da JMP, estariam envolvidos num novo grupo coral - o Coro Popular O Horizonte é Vermelho - criado pelo MRPP. A identificação de alguns membros do Coro da JMP com a atividade política do MRPP seria efetivada ao longo do período revolucionário, sobretudo no contexto da sua atividade cultural e artística. Como salienta Castro (2022), o fim da ditadura proporcionaria ao MRPP o desenvolvimento de novas dinâmicas no sentido da concretização da Revolução Democrática e Popular, abrindo espaço para a realização de múltiplas tarefas do partido na “frente artística e cultural”. Esta forma de intervenção motivaria a criação de vários grupos artísticos no seio do partido, sobretudo nos domínios do teatro e da música, com destaque para as “danças e cantares populares” e para a música coral. Em particular, o Coro Popular O Horizonte é Vermelho, que faria a sua primeira apresentação pública por altura das comemorações do 1º de Maio em 1975, contaria com vários membros oriundos do Coro da JMP, cuja regência do coro ficaria sob a responsabilidade de Maria José Campos, que reconhece a influência e a aprendizagem do trabalho de direção coral realizado por Francisco d’Orey no Coro da JMP como um dos principais motivos para desempenhar esse papel74.
Ao longo de cerca de dois anos (até meados de 1977, data em que seria extinto por diretrizes do partido), a atividade do Coro Popular O Horizonte é Vermelho manifestou-se não só em representação do partido em várias dezenas de atuações em associações recreativas e centros de cultura popular, assim como na elaboração de um considerável repertório, em grande medida influenciado pela orientação ideológica do MRPP (ilustrada, por exemplo, em canções como Honra a Ribeiro Santos, Canto de Luta e Viva a Frente Única), publicando ao longo do seu período de atividade um LP e dois singles75.
Não obstante o Coro O Horizonte é Vermelho estar sintonizado com os variados contextos da atividade política do MRPP, os seus membros deram continuidade às sensibilidades artísticas e políticas do Coro da JMP, enquadradas pela valorização das práticas musicais tradicionais enquanto forma primordial de transformação da cultura popular portuguesa (Castro, 2022). Neste sentido, seriam integrados, no repertório deste coro, várias canções resultantes da atividade de recolha feita pelo Coro da JMP, como são exemplo Vamos Lutar pela Terra, Na Herdade da Margalha, Colher o Pão ou Vamos Lá Indo P’rá Ceifa, inspiradas nas sonoridades e nas práticas musicais de várias regiões do país.
Contudo, a saída para o GAC de vários membros do Coro da JMP, assim como o envolvimento de outros membros na organização do Coro Popular O Horizonte é Vermelho no MRPP, não suspendeu as práticas de recolha e de divulgação de música tradicional realizada no âmbito da JMP. Numa Plataforma Política Interna76, datada de abril de 1975, o Coro da JMP definia os termos para a sua ação prática. Dando continuidade aos princípios que orientavam a atividade do coro antes da sua divisão, esta plataforma reiterava uma “posição política apartidária e anti-reformista” do grupo77, não obstante a sintonia com os objetivos elencados no contexto da atividade de vários membros do coro antes da sua divisão, nomeadamente nas questões da “defesa da Revolução Democrática e Popular”78 e na contribuição para a “edificação de uma nova Cultura Popular”79.
Com efeito, em março de 1975, vários membros do Coro da JMP80, tais como José Moças, Manuel Rodrigues, Vítor Reino, Carlos Moreira e José Manuel David, encabeçados por José Alberto Sardinha - alguns destes ligados ao MRPP e ao Coro O Horizonte é Vermelho - criariam um grupo integrado na JMP, intitulado GREDIMUP da JMP, que ficaria também conhecido como Almanaque, dedicado exclusivamente à recolha e divulgação de música popular portuguesa. Afirmando-se como “herdeiros do espírito e das tradições do Coro da JMP”81, o GREDIMUP82 procurou, através de apresentações públicas e de publicações fonográficas83, encetar uma “campanha de correcta divulgação do folclore nacional”84, através da realização de digressões coletivas a “zonas musicalmente mais ricas dos nossos campos, gravando e convivendo de perto com a verdadeira música tradicional portuguesa”85.
Procurando denunciar o que consideravam ser um “movimento de corrupção da música popular portuguesa”86, ilustrado pelo “folclore comercializado”87 dos ranchos folclóricos e de “cançonetistas e neo-cançonetistas”88, este grupo demonstraria igualmente o seu distanciamento e criticismo relativamente a outras abordagens de exploração de práticas musicais tradicionais89, sobretudo na questão do envolvimento com as populações dos locais de recolha, assim como no trabalho de interpretação do material recolhido, procurando recriar as canções da forma mais fiel possível aos exemplos gravados.
Com uma atividade focada na organização de “campanhas de recolha musical” e à “conservação arquivística” de repertórios oriundos de várias regiões do país, o GREDIMUP constituiu-se como uma referência para novos grupos de recolha e de recriação de música tradicional portuguesa, criados ao longo da segunda metade da década de 1970 e inícios de 1980.
Conclusão
A atividade do Coro da JMP, desde finais da década de 1960 até meados da década de 1970, foi reflexo de diferentes transformações ocorridas no universo das práticas da música popular em Portugal. Tanto no período que antecedeu a Revolução, como ao longo do período revolucionário e pós-revolucionário, as várias reconfigurações deste coro sintonizaram com a ânsia de mudança e com as aspirações coletivas dos seus membros.
Ao apresentar um repertório enquadrado em diferentes tipologias de música coral, a atividade do Coro da JMP foi marcada pelo seu papel na valorização, defesa e divulgação de expressões de cultura popular, com enfoque para as práticas associadas à música tradicional de várias regiões do país. Estimulados pelo trabalho teórico e etnográfico de recolha em contextos rurais, que vinha sendo realizado ao longo das décadas de 1960 e 1970 por Fernando Lopes-Graça, Michel Giacometti e Francisco d’Orey, destaca-se, por um lado, o contributo deste coro para a pluralidade de abordagens a práticas de recolha musical em contextos rurais e, por outro, para a utilização e recriação de expressões musicais tradicionais. Este contributo ocorreu tanto no âmbito de projetos políticos e estéticos de resistência ao Estado Novo, como para a afirmação da necessidade de alinhamento da cultura popular em defesa de valores revolucionários.
Sendo diversificada a perceção sobre o recurso à interpretação e recriação de práticas musicais cuja origem evoca expressões rurais e contextos de sociabilização de classes sociais baixas, ou seja, de comuns destinatários e sujeitos alocados nos discursos de organizações políticas de esquerda, não deixa de ser relevante apontar o papel destes protagonistas em conferir, à música tradicional portuguesa, um caráter de intervenção social e política.
O contributo do Coro para a conceptualização e valorização de práticas culturais populares foi central para a produção musical de vários grupos, sobretudo criados após o 25 de Abril de 1974, alguns associados a organizações e partidos políticos nos quais os membros do Coro da JMP estariam envolvidos, tais como o GAC e o Coro Popular O Horizonte é Vermelho, mas também o GREDIMUP, grupo que acabaria por dar continuidade ao trabalho realizado pelo Coro da JMP. No contexto da atividade destes grupos foi aprofundado o papel da música em defesa de valores revolucionários e da configuração de uma “nova música popular”, verificada nas dimensões políticas e estéticas da articulação entre expressões musicais tradicionais e letras de caráter manifestamente político.
Apesar das múltiplas sensibilidades políticas e ideológicas, tanto o Coro da JMP como os grupos com os quais os seus membros tiveram envolvimento, constituíram uma declarada intenção de contribuir para o renovar do interesse na música tradicional portuguesa, conferindo-lhe uma componente estética e política que influenciou a atividade de vários grupos e intérpretes em Portugal a partir da segunda metade da década de 1970.