O Município de Lisboa, desde o início do século XX, procura captar em imagens os principais acontecimentos da vida da cidade, sejam eles políticos, sociais ou culturais. Num período em que, em Portugal, os arquivos de imagem eram quase inexistentes, Lisboa destacou-se neste universo quando, em 1942, a Câmara Municipal criou o seu arquivo fotográfico que viria a constituir-se como um repositório fundamental para a compreensão da história da cidade. Oficialmente instituído por deliberação municipal em 25 de março de 19421, este arquivo ficou na dependência orgânica da Secção de Propaganda e Turismo da Câmara Municipal de Lisboa tendo como objetivo centralizar toda a produção fotográfica num único serviço da Câmara desde finais do século XIX.
Para além deste arquivo sabe-se ainda da existência, em Lisboa, do arquivo do antigo Secretariado Nacional de Informação (SNI)2, sediado no Palácio Foz, com uma secção dedicada à fotografia, bem como alguns arquivos da imprensa ou particulares, sendo certo que as fontes que permitiam aos investigadores escrever, através de imagens, a história de grande parte do século XX eram muito escassas e encontravam-se pouco sistematizadas.
No Arquivo Fotográfico Municipal, entre 1942 e 1977, inventariaram-se e catalogaram-se cerca de 80 mil fotografias (provas e negativos) de temática variada3. A maioria revela as principais modificações urbanísticas da cidade de Lisboa, o património municipal e de valor artístico, bem como a atividade diária do município.
Se até então a informação imagética não ultrapassava o mero complemento informativo, em 1974, com a Revolução de Abril e a consequente democratização da cultura e explosão de sentimentos associados à liberdade de pensamento, a fotografia passou a constituir-se como documento de registo e de memória. A década de 70 do século XX marcava, assim, um ponto de viragem no tratamento da informação, com o registo normalizado de documentos fotográficos nos arquivos4, e na difusão, com a organização de exposições de fotografia, congressos e edições ilustradas com recurso a imagens de arquivo. Entre 1974 e 1977, período no qual se centra esta Documenta, a fotografia residente em instituições do Estado ou associações privadas, além de ser entendida como um modo de exploração artística, passou a ser utilizada enquanto suporte de ilustração à edição, ao trabalho académico e ao ensino.
Porém, até à década de 1990, o conjunto de imagens dos dias da Revolução de Abril e do período pós-revolucionário, à guarda do Arquivo Municipal de Lisboa, era muito reduzido. À exceção de fotografias adquiridas ao jornal Diário de Notícias, em 1974, e ao fotógrafo Álvaro Campeão, em 1976, todo o restante acervo demonstrativo desta temática e período histórico resultaria de uma mudança de política de aquisição praticada a partir de 19905. Desde então, até ao presente, o Arquivo tem recebido diversos espólios com documentos importantíssimos para o estudo da Revolução e pós-Revolução de 1974.
Do conjunto destes espólios decorre a seleção apresentada nesta Documenta, nomeadamente: do fotojornalista José Neves Águas, adquirido à viúva, em 1992; do fotojornalista Carlos Gil, doado pelo próprio em 1999; do fotógrafo António Sampaio Teixeira, adquirido ao Centro Nacional de Cultura também em 1999; dos levantamentos fotográficos realizados pela artista Ana Hatherly, doados pela autora em setembro de 2004; e do fotojornalista José Couto Nogueira, doado em 2008; de Margaret Martins, doado em 2010; de José Ernesto de Sousa, em depósito no Arquivo desde 2014; de António Rafael e Luis Pavão, doados em 20246.
Os documentos fotográficos deste período são hoje testemunhos instantâneos e representativos de múltiplas expressividades fotográficas que contextualizam a ação social a par da atitude criativa (Sena, 1989) no pós-Revolução de 25 de Abril, como é possível confirmar pela seleção de fotografias desta Documenta.
1. A fotografia de intervenção
A manifestação fotográfica serviu para documentar as ações revolucionárias e fervilhava em todas as mãos (Vieira, 2000). A produção excessiva de imagens concorreu com a atitude voraz de tudo fotografar.
A Revolução de 25 de Abril de 1974 congregou artistas e populares num trabalho participativo, anónimo e coletivo, tendo a fotografia sido o veículo que conservou a efemeridade dos acontecimentos. Destacam-se os cartazes, colados desordenadamente em paredes de edifícios, muros, postes de eletricidade e outros suportes por vezes inusitados, e os murais, o meio eleito para manifestar as inscrições de ordem em palavras e imagens. Nestes intervieram crianças, professores, operários, artistas e todos os que viram nesta expressão o seu manifesto gráfico para pôr em movimento a ação cultural, através da educação e das manifestações artísticas intervenientes e questionadoras.
Este período foi, assim, propício à contaminação das linguagens artísticas e sociais e profícuo em manifestações livres e às aproximações entre a esfera intelectual e a popular. Numa fração de tempo, a vontade de agir caracterizou o período entre 1974 e 1977.
Esta Documenta tem início no dia 25 de Abril de 1974, registando, até 1977, tanto acontecimentos que ocorreram na cidade pelas mãos de populares e artistas7, como manifestações massivas que inundaram o espaço público, quase sempre acompanhadas com poderosas mensagens gráficas (murais e cartazes) e, também, evidenciando a presença e participação de personalidades e intelectuais (portugueses e estrangeiros) que, promovendo a mudança, perspetivavam uma nova abordagem contemporânea em Portugal.
A partir de 1974, a fotografia, médium privilegiado no registo de todas as ações culturais, possibilitou a todos, incluindo anónimos, o registo das ações efémeras, normalmente ocorridas no espaço público. Desta forma, surgiram diversas fotografias em formato 35 mm e a cores, de interesse coletivo e que, atualmente, são consideradas para o estudo iconográfico da década de 1970. A par deste panorama, os laboratórios fotográficos a cores surgiram em todas as “esquinas”, fazendo uma revelação rápida e eficaz, não obstante a qualidade inferior, verificada nas décadas seguintes, com o desvanecimento da imagem e a deterioração dos corantes. Gradualmente transformaram as cores em variantes que na atualidade identificamos com esta década: tons amarelados e magentas de imagens emotivas de quem viveu de perto a Revolução, repletas de “erros técnicos”, como enquadramentos mal calculados, desfoques e manchas de luz. A difusão do formato 35 mm já tinha ocorrido e, após 1974, a adesão ao registo cromogéneo, tanto do negativo fotográfico como do diapositivo, permitiu a constituição de um arquivo de imagens colorido e vibrante, que chegou aos nossos dias com a força da Revolução, manifesta na vontade de inovar e trazer à vista de todos a alegria da democracia e da plena liberdade de expressão.
A fotografia a preto e branco persistia no trabalho artístico e profissional e a expressão criativa também incluía os “erros técnicos” da emotividade sentida pelos que lutaram pela liberdade da expressão artística. Estávamos, assim, perante o manifesto visual do aparelho fotográfico, que se desvinculou dos parâmetros divulgados pelo salonismo do Estado Novo e que se tornou tão facilmente interventivo e próximo dos problemas sociais (Foto Cine Som, 1975).
Neste período, em que foi primordial a abolição das anteriores instâncias que geriam a dinâmica artística e fotográfica, também se assistiu a uma transição dos pressupostos de uma ação libertadora para um período de reflexão e, em poucos anos, Portugal questionava e refletia o estado da Arte. Segundo Chicó (cit. por Pernes, 1999, p. 267) “o final do ano de 1976, princípio de 1977, faz a transição da vontade de agir para a vontade de refletir”, na qual a arte passou a integrar o experimentalismo e a fotografia foi um dos media eleitos para documentar, apoiar a técnica ou ser suporte de atuação direta, cujo material fotossensível sustentaria a efusividade criativa. O domínio da técnica fotográfica não importava para a construção da imagem (Pernes, 1999).
A manifestação fotográfica (Lourenço & Soares, 2009) era acompanhada pelas mostras de imagens e de outros suportes, como a de recortes de jornais e cartazes. São exemplos “Portugal Livre”, no Palácio Foz, no ano da Revolução, que contou com a participação de 20 fotógrafos da imprensa (Portugal livre, 1974) e que evidenciou imagens quase espontâneas numa impressão ainda pouco cuidada, com formatos diversificados e uma paginação tão palpitante como as próprias imagens; a exposição “Fotografia 74 - a imagem de 16 repórteres de imprensa”, na Galeria de Arte do Casino do Estoril, no final do mesmo ano; a exposição itinerante “Portugal: um ano de revolução 1974-1975”, inaugurada na Galeria de Arte Moderna, em Lisboa, a 26 de abril de 1975; a exposição “25 de Abril de 1974 - Da Resistência à Libertação”, no Mercado do Povo, Belém, em maio de 1977 8; a exposição sobre os presos no Tarrafal, em 1978, na Galeria de Arte Moderna, em Lisboa; e a exposição de imagens dos Açores, de Eduardo Baião, no Palácio Foz, promovida pelo jornal Diário de Notícias, em 1978 (Livros de fotografia em Portugal, 2023); entre tantas outras.
2. Fotógrafos da liberdade
Deste período, podemos ver projetos fotográficos9 com uma linguagem emotiva, mais apelativos ao olhar e que agitaram a consciência estética.
A coleção de Álvaro Campeão (s.d.) é representada por imagens de cartazes colados em vários locais da cidade, em séries que cobrem vastas áreas de parede e que tapam pilares, como se aglutinassem o espaço, dando um contorno criativo aos meros cartazes alinhados. Entre a confusão visual e a dispersão urbana de automóveis e pessoas vemos fotografias de um pulsar revolucionário, numa desordem de elementos que se prestam ao relato de uma época de contestação e vontade de mudança. Apesar de este fotógrafo ter optado pelo grande formato do negativo (6x9 cm), sabendo-se que pode ter usado uma máquina fotográfica de fole e provavelmente tripé, captou fotografias de rua instigantes e que, atualmente, nos encantam pela qualidade que evidenciam e por se terem tornado documentos históricos de Lisboa.
Ana Hatherly (1929-2015), artista e poeta visual10, usou a sua máquina fotográfica para retratar os ânimos do 25 de Abril, num conjunto de fotografias de vários artistas na rua manifestando-se com a população, em agitadas ações de rejubilo. Nestas, é possível observar, por exemplo, Mário Cesariny (1923-2006) ou a própria artista em plena confraternização com João Perry (1940-) e Ernesto de Sousa (1921-1988), entre outros, fotografada no grupo, mostrando a sua interação. Importa referir que, nas imagens que se apresentam e que fazem parte da coleção do Arquivo Municipal de Lisboa/Fotográfico, há uma intervenção posterior da artista, numa abordagem próxima da fotomontagem.
António Rafael (1941-2006), próximo dos populares em manifestação e atento às figuras políticas da intervenção, pontua momentos estratégicos na cidade de Lisboa deste movimento coletivo, relevando o Dia do Trabalhador, em 1974, no estádio da INATEL, que ficaria com o nome de Parque de Jogos 1º de Maio.
António Sampaio Teixeira (1911-1998) dá-nos a ver os populares em manifestação ao lado de intelectuais como Maria Lamas (também fotografada por Couto Nogueira), entre manifestantes em desordem, sendo a do 1º de Maio de 1974 a mais participada nas zonas da Alameda, do Areeiro e de Alvalade.
Carlos Gil (1937-2001), fotojornalista que, com as suas imagens, se torna claramente interventivo, revela-nos manifestações do impacto da guerra colonial e da descolonização, dando a ver um outro lado da Revolução. O seu olhar humanista mostra, também, o ambiente vivido pelas classes mais desfavorecidas, procurando, deste modo, despertar a consciência social para os problemas reais da população. Num discurso visual a preto e branco, elege o contraste para acentuar a negritude da imagem e o drama dos acontecimentos. As suas propostas fotográficas revelam o seu cunho autoral, distanciando-se dos demais da sua época.
Do conjunto fotográfico sobre este período contamos, também, com o contributo de José Couto Nogueira (1945-), com retratos de artistas, cineastas e intelectuais, tendo retratado, igualmente, Jean Paul Sartre na sua visita a Portugal, em 1975. Numa galeria de retratos vislumbramos algumas personalidades relevantes para a cultura portuguesa nas décadas seguintes, formando e fomentando a arte contemporânea e os estudos em torno das questões da criação artística. O fotógrafo acompanhou os movimentos do Partido Socialista e as manifestações populares com registos dos principais acontecimentos da época, contemplando políticos relevantes para a democracia conquistada.
José Ernesto de Sousa (1921-1988), conhecido apenas por Ernesto de Sousa, também representado no Arquivo Municipal de Lisboa/Fotográfico, é um dos nomes incontornáveis do período pós-revolucionário enquanto agente de intervenção e, principalmente, como reformulador do conceito estético fotográfico, em especial do salonismo, que vigorara no Estado Novo, segundo normas e critérios que espartilhavam a criatividade. Homem de inúmeros interesses, culto, atento, criativo e agitador, conseguiu conciliar os artistas e a expressão social e política numa performance que marcaria a arte contemporânea portuguesa. Sobre este “operador estético”, para quem os valores do processo criativo atuante eram mais importantes do que a obra final, há muito ainda por dizer. Esta atitude valeu-lhe rasgados elogios de várias personalidades da cultura, como de Eduardo Prado Coelho (1944-2007): «Digamos de outro modo: a plasticidade do desejo modulando-se sob todas as formas do imprevisto»11.
De José Neves Águas (1920-1991) apresenta-se um conjunto de fotografias de murais grandiosos nas empenas de prédios de habitação, nas fachadas de edifícios de partidos políticos ou nos muros que ladeiam instituições. Com uma vasta obra de fotografia documental, o autor preservou a memória destas manifestações artísticas efémeras, que cobriam várias zonas da cidade, atualmente inexistentes e só presentes na memória de alguns. O seu trabalho, em imagens a cores, conseguiu preservar estas obras, por vezes contestadas devido ao enunciado reacionário e força das suas mensagens, que conviviam com os lisboetas.
Luis Pavão (1954-), um jovem fotógrafo em 1974, captou momentos peculiares e as manifestações que o cativaram, acompanhando o frenesim revolucionário da cidade de Lisboa e de outros locais do país. Com um evidente interesse pela força operária que se manifestou na praça do Comércio e em avenidas da cidade, também focou as expressões de contestação sobre a habitação e os problemas das classes desfavorecidas12.
Margaret Martins (1938-s.d.), revela um testemunho temporal dos resquícios da Revolução de Abril, preservado nos murais através da intervenção de artistas e populares e num peculiar cartaz, numa abrangência cronológica, preservada durante décadas, que assinala a resistência popular por uma vida com condições dignificantes.
Conclusão
O conjunto de fotografias reproduzidas nesta Documenta revela a aproximação entre os vários setores da sociedade. A fotografia assume-se como o médium privilegiado que testemunha esta confluência.
A seleção de imagens que se apresenta evidencia propostas criativas de diversos fotógrafos que registaram a ação coletiva vivida logo após o 25 de Abril de 1974. Esta ação, iniciada com a intervenção dos militares, dos novos poderes e através de diversas iniciativas de reação e dinâmica cultural que abrangeram crianças e a sociedade civil numa comunhão nunca vista em Portugal, provou que a expressão criativa é uma das forças da sociedade livre, que congrega as manifestações de liberdade.
Índice das imagens
Figura 1 AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/CAM/000041
Figura 2 AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/CAM/000040
Figura 3 AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/CAM/000033
Figura 4 AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/CAM/000025
Figura 5 AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/CAM/000023
Figura 6 AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/CAM/000014
Figura 7 AML, PT/AMLSB/ANA/000247
Figura 8 AML, PT/AMLSB/ANA/000232
Figura 9 AML, PT/AMLSB/ANA/000184
Figura 10 AML, PT/AMLSB/ANA/000093
Figura 11 AML, PT/AMLSB/ARA/000017
Figura 12 AML, PT/AMLSB/ARA/000014
Figura 13 AML,PT/AMLSB/ARA/000027
Figura 14 AML, PT/AMLSB/SAM/000750
Figura 15 AML, PT/AMLSB/SAM/000759
Figura 16 AML, PT/AMLSB/SAM/000790
Figura 17 AML, PT/AMLSB/CAR/000037
Figura 18 AML, PT/AMLSB/CAR/000031
Figura 19 AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JDN/000110
Figura 20 AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JDN/000104
Figura 21 AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JDN/000024
Figura 22 AML, PT/AMLSB/JCN/004350
Figura 23 AML, PT/AMLSB/JCN/004348
Figura 24 AML, PT/AMLSB/JCN/004190
Figura 25 AML, PT/AMLSB/JCN/003275
Figura 26 AML, PT/AMLSB/JCN/003107
Figura 27 AML, PT/AMLSB/JCN/003105
Figura 28 AML, PT/AMLSB/JCN/002701
Figura 29 AML, PT/AMLSB/JCN/002634
Figura 30 AML, PT/AMLSB/JCN/002552
Figura 31 AML, PT/AMLSB/JCN/002540
Figura 32 AML, PT/AMLSB/ESO/001607
Figura 33 AML, PT/AMLSB/ESO/001613
Figura 34 AML, PT/AMLSB/ESO/001604
Figura 35 AML, PT/AMLSB/ESO/001596
Figura 36 AML, PT/AMLSB/ESO/001258
Figura 37 AML, PT/AMLSB/ESO/001240
Figura 38 AML, PT/AMLSB/ESO/001177
Figura 39 AML, PT/AMLSB/ESO/001136
Figura 40 AML, PT/AMLSB/ESO/001083
Figura 41 AML, PT/AMLSB/ESO/001030
Figura 42 AML, PT/AMLSB/NEV/01/001053
Figura 43 AML, PT/AMLSB/NEV/01/000953
Figura 44 AML, PT/AMLSB/NEV/01/000950
Figura 45 AML, PT/AMLSB/LUP/000001
Figura 46 AML, PT/AMLSB/LUP/000002
Figura 47 AML, PT/AMLSB/LUP/000003
Figura 48 AML, PT/AMLSB/MRM/000017
Figura 49 AML, PT/AMLSB/MRM/000005
Figura 50 AML, PT/AMLSB/MRM/000001