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Comunicação e Sociedade
versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575
Comunicação e Sociedade vol.24 Braga dez. 2013
https://doi.org/10.17231/comsoc.24(2013).1780
CORPOS, IDENTIDADE, MODA, SUSTENTATIBILIDADE E MERCADO
Vestir, seduzir e significar: da dimensão simbólica da moda ao imaginário erótico contemporâneo
Dressing, seducing and signifying: from the symbolic dimension of fashion to the contemporary erotic imagery
Madalena Oliveira*
*Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho, Portugal.
madalena.oliveira@ics.uminho.pt
RESUMO
Fenómeno social e cultural relativamente recente, a moda é hoje a manifestação de um certo imaginário erótico que pareceorganizar a vida coletiva. Ela governa, segundo Lipovetsky, as nossas sociedades. Efémera, por natureza, a moda exprime, naverdade, a soberania das aparências e o poder da fantasia estética. Ela é, com efeito, a representação mais significativa do triunfo dasedução e do espetáculo. É por isso que a moda é, de algum modo, uma via de compreensão do social. Pensando-a, portanto, como engrenagem, por um lado, e como sinal, por outro, do nosso tempo, procuramos neste ensaio explorar de que forma ela é o prenúncio de uma socialidade assente no lado sensitivo, efervescente e instável das nossas relações intersubjetivas uns com os outros e da nossa relação ao mundo e às coisas.
Palavras-chave: Moda, comunicação, semiótica, sedução.
ABSTRACT
As a relatively recent social and cultural phenomenon, fashion currently embodies a certain erotic imagery that seems to organise collective life. According to Lipovetsky, it governs our societies. Fashion, being ephemeral by nature, actually expresses the sovereignty of appearance and the power of aesthetic fantasy. It is, in fact, the most significant representation of the triumph of seduction and spectacle. Consequently, fashion is, somehow, a way of understanding the social. This essay builds upon the reasoning of fashion as a mechanism, on the one hand, and as a sign of our times, on the other, to explore how it is the harbinger of a sociality based on the sensitive, unstable and effervescent side of our interpersonal relations with each other and our relationship with the world and things.
Keywords: Fashion, communication, semiotics, seductions.
1. Introdução
Quando, no início do século XX, propôs que a semiologia deveria ser uma ciência geral dos signos, de que a linguística não seria senão uma parte, Saussure estaria, no entanto, longe de imaginar o desenvolvimento que esta disciplina viria a conhecer, sobretudo na segunda metade dos anos 1900. De facto, ao sugerir que sepoderia «conceber uma ciência que estude a vida dos signos no seio da vida social» (Saussure, 1999: 33), olinguista suíço legitimaria a aplicação das leis descobertas pela semiologia a todos os processos assentes numa relação significante-significado. Ainda que o pensamento semiótico sobre a linguagem seja tão antigo quantoas primeiras referências da filosofia da Grécia Antiga, só a partir desta ideia fundadora de uma ciência se assumiria plenamente que ela pode ter como objeto não apenas a língua, os sinais da natureza (que Santo Agostinho distinguiu dos signos convencionais) ou os sintomas das doenças (a que Galeno de Pérgamo se referia como parte da semiologia médica), como também tudo o que é passível de interpretação.
Com aplicações que ultrapassam largamente, portanto, o estudo do código linguístico, a semiótica estende-se hoje aos domínios da música, do teatro, da publicidade, do cinema, da fotografia, das artes visuais eda própria moda, entendida desde Roland Barthes, como sistema comunicativo. É, com efeito, a este semiólogo que se deve, depois da publicação em 1967 de O Sistema da Moda (1999), a atenção à componente semântica do vestuário. Embora de matriz ainda excessivamente estruturalista, esta obra inaugura uma linha de investigação que tem procurado refletir sobre a dimensão expressiva do ato de vestir, por um lado, e da moda como fenómeno social, por outro. Apesar de, neste livro, Roland Barthes tratar o vestuário como uma linguagem, assim importando o método da linguística, numa clara influência saussureana, é de alguma maneira com esta obra[1] que se começa a entrever a pertinência de uma reflexão sobre o valor antropológico, cultural e simbólico das roupas, dos acessórios a elas associados e da moda como sistema organizador destes elementos.
Numa extensão do conceito de moda do vestuário para todos os objetos da cultura de massas, é esta reflexão que, do ponto de vista da semiótica, Baudrillard desenvolve sob o signo de uma teoria do simulacro e das simulações. Quando, em A Sociedade do Consumo (1970), o autor questiona a “ditadura total da moda” e o impacto da publicidade e dos média na regulação dos gostos e na definição das tendências, é a noção de moda, em última análise, que organiza o seu pensamento. Entendida como o motor de todo o sistema capitalista de produção e consumo, a moda passa assim a designar o fenómeno que transforma os consumidores em seres hipnotizados pelos objetos.
Tão enérgica quanto volúvel, a moda – termo que começa, segundo Massimo Baldini (2006), a circular em Itália no século XVII – não é, em definitivo, um exclusivo do universo indumentário. Ela compreende todo o universo do consumo e dos comportamentos, o que é o mesmo que dizer que se tornou no fenómeno gestor da vida em sociedade. É hoje, como nota Gilles Lipovetsky (1989), a expressão de um tempo que se define pelo transitório, pelo temporário, pelo efémero. Para além das ações significativas que encerra em cada outfit diário ou em cada coleção de temporada, a moda constitui-se como o processo pelo qual a cultura contemporânea se exprime em espetáculo, desperdício e frivolidade.
2. O que vestir quer dizer
Em Cartas Inéditas de Fradique Mendes, dizia Eça de Queirós que «nada influencia mais profundamente o sentir do homem do que a fatiota que o cobre». Com esta afirmação, bem poderia o escritor procurar responder por que razão há no feminino, talvez mais do que nos homens eruditos deque falava nestes escritos, uma certa pulsão para a compra, uma certa pulsão associada a estados deespírito e de sentimento, a que alguns intelectuais da viragem do século XIX para o XX se referiram como atributos específicos da mulher. Distanciado, porém, dos estudos de género, o que Eça de Queirós ensaia na carta que dirige ao alfaiate E. Sturmm (publicada em obra póstuma com cartas inéditas e mais páginas esquecidas) é aquilo que o próprio chama uma “filosofia do vestuário”. Considerando que “o casaco está para o homem como a palavra está para a ideia”, o escritor explica que “o casaco deve ser a expressão visível do carácter ou do tipo que cada um pretende representar entre os seus concidadãos”. Em tom ríspido de repreensão para com o alfaiate (de cujo trabalho não teria gostado), Eça de Queirós explica a Sturmm que vestir a todos pelo mesmo molde, leva todos “a ter o mesmo sentir e a ter o mesmo pensar”. E falando da influência do vestuário sobre o pensar,termina a carta anotando ao alfaiate que, dentro de uma “confeção banalizadora e achatante”, “o poeta perde a fantasia, o dândi perde a vivacidade, o militar perde a coragem, o jornalista perde a veia, o crítico perde a sagacidade, o padre perde a fé”. Há, portanto, nestas declarações do escritor a convicção de que existe uma relação entre o sentir e o vestir que permite inscrever o vestuário no regime do simbólico.
Com efeito, à função utilitária de proteção do corpo, o vestuário soma desde a sua forma mais primitiva uma função expressiva. Sendo um mecanismo de ‘administração’ da temperatura do corpo, o vestuário, que nada tem de neutro, tem sido um meio de definição social do indivíduo. Embora otermo moda esteja atualmente mais associado à vida urbana, regida por esta autoridade “tão poderosa quanto caprichosa” (Erner, 2008: 6), a verdade é que desde as tribos mais antigas, o vestuário e osacessórios têm significados que transcendem em absoluto a mera utilidade prática de, por pudor, comosugeria o livro do Génesis, ou por necessidade física, cobrir o corpo. Desde a sinalização de um estatuto social à marca de uma condição familiar, as roupas e os objetos de adorno estão associados nahistória das civilizações à interpretação dos papéis desempenhados pelos indivíduos nas comunidades de que fazem parte.
“Extensão da pele”, como diria McLuhan, o vestuário tem, por isso, desde sempre a função concomitante de exprimir um modo de estar, uma forma de organização hierárquica (que mais tarde se transforma numa organização em classes) e um padrão de escolhas individuais que se gerem no contexto de gostos socialmente partilhados. Quer isto dizer que o vestuário, assim como os adereços, desempenham também um conjunto de funções comunicativas e significativas que estão muito paraalém das questões morais-religiosas ou das questões pragmáticas de relação com as variações atmosféricas, que obrigaram a cobrir o corpo. Assim encarados, eles são em certa medida uma chavede leitura dos tempos, razão pela qual o poeta e romancista francês Anatole France terá dito, em tempos, o seguinte:
«Se me concedessem escolher entre os vários livros que serão publicados 100 anos depois da minha morte, sabem qual pediria? Não, o eleito desta futura biblioteca não é um romance, nem um livro de história que, se tem algum interesse, também é um romance. Meus amigos, pediria simplesmente uma revista de moda para ver como é que as mulheres se vestirão um século depois da minha morte. E aquelas máscaras saberão dizer-me mais sobre a humanidade futura do que os filósofos, os escritores, os pregadores, os sábios.» (cit. Baldini, 2006: 29)
Referência obrigatória numa abordagem semiótica do vestuário – o principal significante da moda contemporânea (embora não o único) –, Roland Barthes classifica o vestuário como objeto de comunicação, nos mesmos termos em que Balzac, em As Filhas de Eva, reconheceria que o vestuário era para todas as mulheres «uma expressão constante do pensamento íntimo, uma linguagem, umsímbolo». Não obstante, porém, esta associação insistente da moda com o feminino, que se cultivou como consequência de um entendimento que isentava a mulher do interesse pelos assuntos públicos, desprezava as suas faculdades intelectuais e a remetia a atividades menores e fúteis, o caráter cultural da moda de vestuário sobrepõe-se a uma circunstância específica de género. Estendendo-se à regulação das relações interpessoais e à afirmação da própria sexualidade, a função social daindumentária inscreve-se no contexto de uma espécie de língua relacional não apenas falada porhomens e por mulheres mas também reconhecida como parte de um protocolo de convivência que, incluindo todo o espaço público de socialização, tão-pouco exclui o espaço íntimo da experiência dos afetos.
Inscrito num sistema de funcionamento mais amplo, que inclui, por exemplo, os acessórios demoda como objetos de ornamentação, como uma espécie de adjetivos da linguagem própria das roupas[2], o vestuário tem, na sugestão de Alison Lurie (2002), um vocabulário e uma gramática equivalentes ao vocabulário e à gramática da linguagem verbal. Admitindo uma analogia perfeita entre a linguagem do vestuário e a linguagem verbal, a autora considera que cada elemento da indumentária, cada peça de roupa, cada adorno ou tatuagem corresponde a uma espécie de “palavra”, podendo o vestir-se ser reconhecido como a ação de dar vida a uma proposição. No entanto, sem ocaráter quase imutável da linguagem verbal, a linguagem do vestuário é absolutamente permeável à flutuação das tendências e à instabilidade dos modos de sentir. É por isso que, para Patricia Cunningham e Susan Voso Lab, «o vestuário é a medida da nossa existência», no sentido em que pode ser visto «como símbolo que reflete o clima político, padrões tecnológicos e condições económicas» (1991: 1).
À semelhança do que fez Pierre Bourdieu em Ce que parler veut dire, obra publicada em 1982, é, no contexto das pressuposições já enunciadas, expectável que nos debrucemos sobre o que vestir quer dizer. Constituindo-se num código em que a relação significante-significado é bem mais instável etemporária do que nos signos linguísticos, como referimos, o vestuário tem, no entanto, a aptidão para dizer alguma coisa, ou melhor, para, como sugeria Umberto Eco em O hábito fala pelo monge, «passar uma mensagem numa carta aberta, aos transeuntes e àqueles que encontrará durante o dia» (1979: 71). Com esta outra finalidade original, o vestuário é a linguagem que «pode ser utilizada no sentido de cada um dar a conhecer a sua visão do mundo, a sua sexualidade (e, por que não a suaambivalência sexual), a sua dor por um luto familiar, o seu conformismo, a sua revelia, a sua religiosidade, a sua humildade, a sua virgindade…» (Baldini, 2006:101). Como texto ou como obra de arte, o vestuário é, pois, uma linguagem expressiva de estados de espírito, de posições e estatutos sociais, de condições afetivas, de relações de autoridade.
Configurado num código cheio de ambiguidades, o vestuário corresponde, com efeito, a um código de baixa semanticidade, que reclama, quase mais do que qualquer outro, uma atenção muitoparticular ao contexto (onde é necessário exercer, nos termos de Bourdieu, não apenas uma competência linguística mas também uma competência social). É nestas condições que ele tem a faculdade de dizer alguma coisa (o luto ou a elegância, por exemplo), sendo ao mesmo tempo uminstrumento para fazer alguma coisa (atrair a atenção, por exemplo). Com este caráter nitidamente instrumental, a indumentária diz um estado de alma ao mesmo tempo que exerce sedução ou promovea distinção social. Animando, por outro lado, o círculo criativo dos designers e estilistas, a recriaçãopermanente do vestuário e a sua exibição (de que o corpo se constitui como expositor privilegiado)dizem o sentido estético de uma época, fazendo em simultâneo um debate persistente sobre o corpocomo superfície de comunicação e de ligação ao outro[3].
Objeto de expressão estética e objeto de relação e diferenciação social, portanto, o vestuário torna-se, nesta dualidade do dizer e do fazer, naquilo que Fabio de la Rocca e Ana Maria Peçanhaidentificaram, numa edição da revista Sociétés dedicada justamente à moda e à socialidade, como sendo uma «expressão do ser» que é, por outro lado, organizada pelo desejo de «estar na moda» (2008: 6). Ao exercer esta função expressiva, a indumentária coincide, contudo, antes de mais com uma função fática. Ela estabelece comunicação mesmo antes de começarmos a falar. A mensagem queenuncia consiste em primeira instância em formalizar um contacto, em dar visibilidade a locutoresem interação, em antecipar as perceções que temos uns dos outros nos instantes que antecedem qualquer diálogo.
Para além deste papel na ativação do contacto, o ato de se vestir traduz um ato voluntário de cobrir a nudez que é ao mesmo tempo um ato expressivo de, a partir do paradigma estabelecido pela moda de uma estação, desenvolver uma linguagem estética própria, ou seja, um estilo ajustado a ummodo de estar no conjunto, de ser-em-conjunto. Correspondendo a uma lógica de identificação com umgrupo, que é o mesmo que dizer à inscrição num estilo específico, as roupas como os adereçospromovem também a definição de uma identidade (pessoal, por um lado, e cultural por outro). Motor davaidade e da sensualidade, a indumentária responde assim a uma necessidade não apenas física mas também sensível. É nesta medida que Grant McCracken, citado por Baldini (2006: 98), se refere ao vestuário como um meio de expressão, por excelência, do género humano, um meio que revela uma capacidade para dar a conhecer o eu interior de cada um, assim como para fabricar uma espécie de ser ideal, objeto de desejo e de sedução.
3. Os desfiles de moda e o caráter transitório da moda
Fenómeno económico, artístico, antropológico e social, a moda é o processo pelo qual se transforma o insignificante em significante. É este processo de sugestão de significados, que se materializam em texturas, associações cromáticas e feitios específicos que concretiza a finalidade dos desfiles de moda sobre as passerelles. Marcados pela procura de ‘extravagâncias’ e ‘excentricidades’, tudo exagerando, os desfiles são precisamente o acontecimento primaz da moda. Eles são o momento do espetáculo por excelência, o momento da exibição, da apresentação e da performance. Enquantoacontecimento público, têm a função particular de celebrar periodicamente a morte do código do vestuário ou dos acessórios, a sua renovação ou reinvenção (Baldini, 2006: 131).
Promotores da valorização simbólica das produções de moda, os desfiles operam ao mais alto nível do funcionamento do sistema da moda. Exercem, com efeito, um pouco a função que as galerias e as exposições exercem no contexto da arte. E decidem nestas circunstâncias não só a consagração dos criadores, que são, como os artistas, a origem do fenómeno, mas também a consagração dossignificados sociais de uma coleção. Quer isto dizer que os desfiles de moda são fonte e instrumento detransferência de significados culturais, que dão, como diz Massimo Baldini no livro A invenção da moda (2006: 131), «as coordenadas de um novo percurso de significação não só das roupas, mas também dos corpos».
Estruturados pelo conceito da coleção, pela posição social do designer ou da empresa, pelastendências da estação, pela época e pelo contexto histórico-social de lançamento da coleção, pelomercado e pelo enquadramento económico e cultural de um determinado período histórico, os desfilesde moda são, por outro lado, estruturadores do prestígio do criador, da posição social e económica deuma marca, da crítica pública e dos significados de uma coleção. Nesta medida, os desfiles de moda são momentos decisivos de regularização dos códigos em que se inscrevem o vestuário, os acessórios de moda e todos os agentes neles implicados (criadores, vendedores, promotores e consumidores).
Eventos supremos das criações de moda, os desfiles têm uma função estratégica de promover a adesão aos códigos ‘vestimenteiros’ de cada temporada, na medida em que se realizam como o anúncio do que há-de vir. Mas enquanto realização mediática desempenham também, no coletivo de que fazem parte, uma função inspiradora da expressão individual. Com efeito, ao apresentarem as balizas estéticas de uma dada estação, os desfiles constituem-se como realizações públicas de regulamentação dos gostos, de definição dos padrões de consumo, de uma certa disciplina das próprias relações sociais. Embora definidas pelo exagero, as passerelles desempenham esse papel fundamental que passa por administrar as fronteiras das escolhas individuais e situá-las no domínio do aceitável em termos coletivos.
Espetáculos do efémero, os desfiles são na verdade a face visível de um fenómeno que, segundo Lipovetsky, «governa as nossas sociedades». Eles exprimem sobretudo o caráter transitório, temporário, fugaz da moda, que é com efeito, um dos mais importantes sistemas de organização da vida coletiva moderna, o que por outras palavras quer dizer uma das hipóteses de compreensão da contemporaneidade. Ao organizar as aparências, a moda constitui então o mecanismo que estandardizaas preferências estéticas e o ritmo das mudanças sociais, ao ponto de nos obrigar, como pensava GustavLe Bon, «a admitir coisas sem interesse». Sendo o expoente da lógica das leis da imitação, a moda apresentada no contexto dos desfiles liberta-nos da responsabilidade de escolhas desarticuladas doconjunto, ao mesmo tempo que nos proporciona as possibilidades de distinção social. É neste enquadramento que as passerelles estimulam simultaneamente o “instinto de igualização e de individualização” (Baldini, 2006).
Sob o signo da urgência, que marca a passagem de um ciclo a outro, a moda é, por outro lado, engrenagem de regulação do consumo. Obedecendo a uma lógica de teatralidade, para insistirmos nos termos de Lipovetsky, a moda não representa apenas as divisões de classe ou a distinção entre a feminilidade e a masculinidade. Ela é também o aparelho que permite compreender os sintomas de insatisfação e de fragmentação que definem o humano. Ela é a recriação permanente das formas de apresentação, mas também a reinterpretação da nossa relação com o corpo e do lugar do corpo na expressão do eu íntimo. É nessa medida que os desfiles de coleção constituem não apenas a exibição da criatividade mas também um exercício de “filosofia do corpo”.
Inscrita numa lógica de representação da identidade, na medida em que estimula a expressãoindividual, como anotámos já, a moda que se exibe nos desfiles é também um fenómeno que parecedeslocar, como dissemos antes, muito em linha com o pensamento de Michel Maffesoli, desta lógica para uma lógica de identificação. Porque esse é, em primeira instância o desejo explorado pelosdesfiles de moda – o desejo de gregarismo e de ser-em-conjunto. É aqui também que se exprime o caráter ambíguo da linguagem falada pelo vestuário e pelos acessórios. Tratando-se, com efeito, de uma espécie de língua, a moda indumentária tem uma dimensão social que sujeita os indivíduos àpartilha de um conjunto de princípios e de uma gramática, sob pena de se ficar ‘fora de moda’. É nestas circunstâncias que a moda funciona como um apelo à identificação com o que temporariamenteestá ‘em vigor’, por um lado, e com a matriz distintiva de um determinado grupo[4] ou classe social, por outro. No entanto, como todas as línguas, também a moda tem essa dimensão de expressão pessoal de uma identidade, de manifestação de um modo de ser e sentir, que pode ser coincidente com o de um coletivo ou não.
Refletindo sobre as relações da moda com o poder, Dominque Waquet e Marion Laporte (1999) referem-se à questão da distinção social como um sucedâneo da necessidade de afirmar uma identidade. Motor da economia dos bens simbólicos, para Bourdieu, a distinção é um dos principais animadores da criatividade ligada aos bens de moda. Mesmo no contexto da produção prêt-a-porter, a moda mobiliza para a ligação afetiva e comercial a marcas que denotam uma determinada posição social.
Não obstante poder-se dizer que a moda tem algo de uniformizador, há nela também essa possibilidade expressiva dos múltiplos que somos. Havendo a comunhão, a unidade do que está namoda, há também a diversidade da irreverência que se manifesta para lá dos modelos das passerelles. No vestuário e acessórios, como nas tatuagens e nos piercings, talvez esteja para cada um a manifestação do desejo de ser reconhecido como parte de um conjunto (ou de uma tribo, no dizer deMaffesoli). Mas aí estará também a revelação dos muitos que habitam em cada um de nós e queconvivem na partilha de um mesmo corpo relacional.
4. Erotismo e sedução: a extensão cultural da moda
Tema que Pierre Bourdieu considerou frívolo na aparência, a moda tem, na tradição socio-semiótica, o interesse particular de se constituir como um fenómeno oportuno a uma dupla reflexão. Por um lado, sobre os processos de significação que complementam a expressão verbal e definem o corpo como suporte de comunicação; por outro, sobre o imaginário contemporâneo e o seu caráter profundamente marcado pelo erotismo e por uma racionalidade que Perniola (1993) diz ser mais sensológica que ideológica. Mobilizando mais por princípios afetivos do que por um espírito crítico, a moda conjuga-se com a natureza impulsiva dos média, para suscitar desejo e alimentar o fascínio por objetos que nada têm de duradoiro.
Podendo ser reconhecida como uma espécie de autorretrato da sociedade, a moda é, na verdade, precisamente nesta articulação com o sistema mediático, a raiz de dois efeitos que definem a nossa época pós-tecnológica: o da aceleração vertiginosa da experiência do tempo e o da sentimentalização generalizada da sociedade. Nela se consubstancia, por um lado, uma consciência de insatisfação que obriga a acompanhar permanentemente os fluxos de renovação e mudança e a reacomodar as necessidades em dispositivos e objetos que nunca oferecem a segurança total. No domínio do vestuáriocomo das máquinas (dos aparelhos tecnológicos aos automóveis), o que damos por adquiridorapidamente se torna de novo obsoleto ou distante do ideal. Como na linha do horizonte, que parecetornar-se eternamente distante a cada passo que damos na sua direção, o caminho que fazemos nosentido da atualização progressiva do que temos e do que somos parece um caminho irremediavelmente incompleto, ou sempre em aberto.
Resposta frágil à crise que define as sociedades contemporâneas neste quadro de insatisfação e de um sentimento de insuficiência como a única constância possível, a moda funda-se num jogo em que parecemos estar sempre ‘em atraso’ relativamente ao que está para vir. Sustento dos mercados e dastrocas comerciais, este jogo, que precipita para a frente, convida ao movimento e é o avesso do costume. Nele não há lugar para hospedar a tradição, porque ela própria se define por um imperativode inovação. A busca do novo, ditada pelo dinamismo das tendências, apressa as rotinas de consumonuma resposta aos anseios das transações económicas, no mesmo passo em que abrevia o destino dascoisas e dos indivíduos e nos coloca perante o desafio do eterno recomeço.
Se no passado a moda funcionou como o regime de um luxo estético reservado apenas a alguns, hoje ela é não um privilégio de classe mas uma autoridade que se impõe a todos em todos os níveis da vida coletiva. Exercendo este domínio, fá-lo, porém, num registo que parece maisconvidativo que impositivo, porque assente num princípio de sedução sem fim. É neste sentido que Baudelaire se referia a este fenómeno considerando que «todas as modas são sedutoras, mas sedutorasde modo relativo, uma vez que cada uma representa um esforço novo, mais ou menos feliz, emdireção ao belo, aproximações a um ideal cujo desejo estimula permanentemente o espíritohumano insatisfeito» (cit. por Baldini, 2006: 28).
Desde a etimologia latina de seducere que sabemos que seduzir quer dizer “levar para o lado”, desencaminhar, enganar, corromper. Mas a sedução é hoje palavra de ordem inescapável. Apublicidade tem que cuidar de ser sedutora, a apresentação da comida num restaurante deve seduzir oolhar, a própria investigação deve ser tornada pública num registo que seja sedutor. Porque a sedução éo modo segundo o qual, até por força dos média, nos vimos obrigados a funcionar.
De Bataille a Baudrillard, passando necessariamente por Francesco Alberoni ou por Mario Perniola, o erotismo tem sido, para muitos pensadores modernos o mecanismo que é preciso desmistificar para compreender a socialidade contemporânea. Instável e caprichosa, ‘ladra disforme’para Shakespeare, a moda é, desde a revolução industrial, o processo pelo qual se faz esse exercícioerótico que é a vida em sociedade. No vestuário com que nos apresentamos como nos objetos que administram o quotidiano, a moda funciona como mecanismo de gestão do consumo pela manipulaçãodos afetos. Maquinadora dos gostos, ela exerce o discreto poder de determinar à superfície dasaparências, na espuma do consumo frívolo, o modo como se desenvolve a própria humanidade.
Sendo a representação do triunfo da sedução e do espetáculo, a moda reveste-se assim deste duplointeresse científico: é, por um lado, ao nível do vestuário e dos acessórios, um fenómeno que Roland Barthes admitia evocar uma linguística, e por outro, enquanto sistema global de administração do social, um fenómeno que Lipovetsky reconhecia como «consubstancial à vida humano-social (…), um processo excepcional, inseparável do nascimento e do desenvolvimento do mundo moderno ocidental»(1989: 31).
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Notas
[1] Não obstante o marco que constitui a obra O Sistema da Moda, em Mythologies (1957) Roland Barthes já nos preparava de algum modo para aquilo que poderia reconhecer-se como uma “ciência do frívolo” (Erner, 2008: 47).
[2] No livro El lenguaje de la moda: una interpretación de las formas de vestir (2002: 10), Alison Lurie sugere que os acessórios e as ornamentações das roupascorrespondem a funções equivalentes às que os adjetivos e os advérbios têm na linguagem verbal.
[3] Fazemos neste ponto uma equivalência à tese dos atos de fala de John Austin, tomando de empréstimo a ideia segundo a qual é possível fazer algo com as palavras. Sem, no entanto, reduzir a performatividade do vestuário a uma espécie de força ilocucionária, ou intrínseca, a cada peça de roupa ou adereço, está no cerne da nossa abordagem a inscrição do poder exercido pela indumentária no mercado de relações simbólicas que, em Bourdieu, decidia a magia social destes atos.
[4] Referimo-nos aqui aos grupos sociais que materializam num código indumentário próprio a sua idiossincrasia específica – os ‘hippies’, os ‘metálicos’, os ‘góticos’, etc.