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Comunicação e Sociedade
versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575
Comunicação e Sociedade vol.29 Braga jun. 2016
https://doi.org/10.17231/comsoc.29(2016).2408
ARTIGOS TEMÁTICOS
Mueda, Memória e Massacre, de Ruy Guerra, o projeto cinematográfico moçambicano e as formas culturais do Planalto de Mueda
Mueda, Memória e Massacre by Ruy Guerra and the cultural forms of the Makonde Plateau
Raquel Schefer*
*Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris 3.
RESUMO
Considerado a primeira longa-metragem de ficção de Moçambique, Mueda, Memória e Massacre (1979-1980), de Ruy Guerra, é um filme extemporâneo, que formaliza tardiamente os pressupostos do projeto revolucionário da FRELIMO. Obra de transição, marca a passagem do período de instituição (1975/1976-1979) para o período de destituição (1979/1980-1984) da Estética de Libertação (1975/1976-1984) do Instituto Nacional de Cinema (INC). Mueda, Memória e Massacre seria censurado, parcialmente refilmado e remontado sem supervisão direta do realizador, operações que anunciam o desvio normativo do projeto político-cultural da FRELIMO e a canonização estética da década de oitenta. A versão mutilada premiada em 1980 no Festival de Tashkent responde ao “Script de Libertação”, dispositivo epistemológico que visa ordenar e codificar a história do País. Este artigo examina a presença de elementos do programa de coletivização do cinema em Mueda, Memória e Massacre e analisa a influência da cultura maconde — em particular, da dança de máscaras Mapiko — nas formas estéticas e narrativas do filme.
Palavras-chave: Cinema moçambicano; Ruy Guerra; Mueda, Memória e Massacre; cinema e revolução; cultura maconde.
ABSTRACT
Considered to be Mozambique’s first fiction feature film, Ruy Guerra’s Mueda, Memória e Massacre (1979-1980) (Mueda, Memory and Massacre) is an extemporaneous work, which belatedly formalises the assumptions that underpinned FRELIMO’s revolutionary project. A film of transition, it marks the passage from the period of the institution (1975/1976-1979) to the period of destitution of the Aesthetics of Liberation (1975/1976-1984) of the National Film Institute (INC). Mueda, Memória e Massacre was censored, partially re-shot and reedited, without Guerra’s direct supervision. These operations announced a normative deviation from FRELIMO’s political-cultural project and the aesthetic canonization of the 1980s. The mutilated version, that won the awards “Peoples’ Friendship Union” and “Film Culture” at the Tashkent Film Festival in 1980, responds to the “Liberation Script,” an epistemological and historiographical apparatus that aims to organize and codify the country’s history. This article assesses the presence of elements of the cinema collectivisation programme in Mueda, Memória e Massacre. In parallel, it considers the influence of Makonde culture — in particular, of the Mapiko masquerade — on the film’s aesthetic and narrative forms.
Keywords: Cinema of Mozambique; Ruy Guerra; Mueda, Memória e Massacre; cinema and revolution; Makonde culture.
Introdução
O significado moderno do termo revolução aparece no século XVIII, elucidado pela Revolução Francesa num período de reordenamento das estruturas formais. O sentido etimológico primeiro da palavra deriva do verbo latim revolvere e significa a impressão de um movimento de rotação a um objeto ou o deslocamento giratório dos corpos celestes. Reinhart Koselleck (Koselleck, 2004) assinala as diferentes aceções que o vocábulo adquire durante o Neuzeit: as revoluções cessam então de denotar unicamente movimentos geométricos ou rotações astrais inelutáveis e passam a indicar também transformações que afetam a vida humana em todas as suas dimensões, “os movimentos desordenados do destino humano” (Arendt, 2012, p. 60). A variação semântica inscreve a revolução na história. Doravante, a revolução, desencadeada pela ação humana, faz parte da experiência histórica e fenomenológica do tempo. A revolução política é acompanhada de revoluções tecnológicas, epistemológicas e estéticas. Certas revoluções procuram aglutinar todos estes sentidos. É o caso da revolução anticolonial.
Mueda, Memória e Massacre (1979-1980), de Ruy Guerra, é considerada a primeira longa-metragem “de ficção da República Popular de Moçambique”, designação que, muito embora inexpressiva da sua complexa articulação entre sistemas de representação, figura no cartaz oficial, concebido pela Direcção Nacional de Propaganda e Publicidade em 1980 (Figura 1). A rodagem decorreu no Planalto de Mueda em junho de 1979. Cineasta maior do Cinema Novo brasileiro, Guerra (Lourenço Marques, 1931) documenta uma reconstituição coletiva, autónoma do filme, daquele que foi um dos mais simbólicos episódios de resistência contra o colonialismo português no século XX, o Massacre de Mueda. Em 1960, quatro anos antes da eclosão da Guerra de Libertação em território moçambicano, um ato pacífico de resistência proto-nacionalista maconde foi brutalmente reprimido pelas autoridades coloniais. A partir de 1970, data de publicação do testemunho de Alberto Joaquim Chipande na revista de língua inglesa Mozambique Revolution (Chipande, 1970), um dos órgãos de comunicação da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), o Massacre de Mueda transforma-se num dos acontecimentos fundadores da história da jovem nação. Segundo João Paulo Borges Coelho, a história de Moçambique foi codificada como um script, o “Script de Libertação” (Borges Coelho, 2013), transformando-se num instrumento para legitimar e tornar incontestável a autoridade da FRELIMO. O “Script de Libertação” é um dispositivo epistemológico que visa ordenar e codificar a história do País e, em particular, a história da luta de libertação.
Representação de uma dramatização coletiva carnavalesca do Massacre de Mueda que assinalava o evento desde 1976, Mueda, Memória e Massacreconstitui uma reconstituição sensível, profundamente embebida nas formas culturais do Planalto de Mueda, e não uma reconstituição histórica do acontecimento. Ao não inserir o massacre numa perspetiva histórica, o filme questiona o monopólio do passado detido pela FRELIMO e autoridade do “Script de Libertação”, “discurso estratégico situado na interseção das relações de poder e das relações de saber” (Borges Coelho, 2013, p. 21). Não se afastando do quadro teórico do programa cinematográfico moçambicano, nem das principais premissas estéticas e políticas do cinema revolucionário do País, o filme de Guerra apresenta-se, contudo, como um objeto dissensual. Em sintonia com o programa cinematográfico nacional, o filme opõe-se, na sua conceção histórica e formal, à “colonialidade” (Quijano, 2000) das relações de poder e de saber, assumindo a descolonização como um processo político, estético e epistemológico. Noutros termos, o discurso fílmico contrapõe-se aos modos de conhecimento e de representação coloniais dos pontos de vista político, formal, histórico e cognitivo. Todavia, a construção e a história material de Mueda, Memória e Massacre permitem-nos entrever as estreitas sobreposições e as relações, tensas e contraditórias, entre as três principais vertentes do programa cinematográfico moçambicano — o cinema coletivo (os programas Cinema móvel e Cinema nas aldeias; os projetos de coletivização do cinema que abordaremos mais adiante), o cinema estatal (representado por produções que privilegiam a dimensão informativa, como Kuxa Kanema) e o cinema de autor (visado pelos cursos de formação de realizadores e de técnicos, nos quais Guerra participa, e representado por produções em que a dimensão estética é importante) —, bem como certas ambivalências do programa político-cultural do País.
Determinados fundamentos do programa estatal de coletivização do cinema encontram uma expressão formal nos modos de enunciação dialógica, no sistema estético e na centralidade dos elementos da cultura maconde em Mueda, Memória e Massacre. Porém, quando a rodagem começa, a coletivização do cinema assume já uma dimensão predominantemente teórica. Mueda, Memória e Massacre é, por conseguinte, uma obra extemporânea, vinda fora do tempo, que formaliza tardiamente os principais pressupostos — políticos, culturais, estéticos e epistemológicos — do projeto revolucionário moçambicano. Trata-se também de um filme de transição. De acordo com a cronologia operativa proposta neste artigo, o cinema revolucionário moçambicano comporta três fases: o pré-cinema (1966-1974/1975) anterior à independência do País, categoria simultaneamente temporal e material, ligada à afirmação de uma estética da contingência ou de uma “estética do possível” nas palavras de Guerra (Simão & Schefer, 2011); a Estética de Libertação (1975/1976-1984) do Instituto Nacional de Cinema (INC), organismo fundado em 1976, nas suas duas etapas — o período de instituição (1975/1976-1979) e o período de destituição (1979/1980-1984) da linguagem —; o Realismo Socialista (1984/1985-1987). Segundo esta cronologia, através do seu sistema estético e da sua história material respetivamente, Mueda, Memória e Massacre marcaria paradoxalmente a passagem do período de instituição — influenciando a linguagem em formação — para o período de destituição — anunciando a canonização e o controlo estatal da produção cinematográfica — da Estética de Libertação do INC. Em 1979, inicia-se a viragem disciplinar do projeto da FRELIMO. O discurso teórico relativo à coletivização do cinema coexistirá durante algum tempo com a crescente regulação estatal da produção cinematográfica e da sociedade no seu conjunto. Ao longo de um período marcado por profundas incongruências entre a teoria política e a praxis, os processos de autonomização do Estado e de automatização das formas estéticas desenvolvem-se em paralelo.
O primeiro corte de montagem de Mueda, Memória e Massacre é recusado em 1979 por Jorge Rebelo, então Ministro da Informação (1975-1980)[1]. Na sequência de uma entrevista de Guerra com o ministro (Schefer, 2013a), o filme é censurado, parcialmente refilmado e remontado sem supervisão direta do realizador. Contrariamente ao corte de Guerra, a versão oficial mutilada premiada no Festival de Cinema de Tashkent em 1980 e exibida em diversos certames internacionais como obra modelar do cinema revolucionário moçambicano responde ao “Script de Libertação” (Borges Coelho, 2013), dispositivo fundamental da política da representação e da representação política da FRELIMO. A natureza e a amplitude das intervenções materiais revelam o desvio normativo do projeto político-cultural moçambicano e anunciam o processo de canonização estética de tendência realista socialista que viria a alargar-se ao campo do cinema no início da década de oitenta (1984/1985-1987).
O objetivo deste artigo não é o de analisar a censura, a refilmagem e a remontagem de Mueda, Memória e Massacre, nem o de esmiuçar as razões de ordem política, historiográfica e estética na base desse conjunto de intervenções materiais. Correndo o risco de negligenciar, ao não abordá-los diretamente, aspetos históricos e políticos fundamentais do projeto revolucionário moçambicano, trata-se antes de examinar a presença de elementos do programa de coletivização do cinema e de analisar a influência da cultura maconde nas formas estéticas e narrativas de Mueda, Memória e Massacre. No que respeita ao último ponto, a análise debruçar-se-á preponderantemente na dança de máscaras ritual, dinâmica e mutável Mapiko, uma das figuras centrais da cultura do Planalto de Mueda, estudada quer pela antropologia colonial (Dias, Dias & Viegas Guerreiro, 1964-1970)[2], quer por Ana Fresu e Mendes de Oliveira (Fresu & Mendes de Oliveira, 1982) depois da independência em 1975 (Figura 2). Mueda, Memória e Massacre é um dos poucos filmes revolucionários moçambicanos que problematiza e formaliza a mutação do campo cltural depois da independência. A sua linguagem fílmica enraíza-se nas linguagens que constituem o mundo do Planalto de Mueda. As panorâmicas circulares e semicirculares e a sobreposição ótica de pontos de vista arraigam-se na cosmovisão e nos modos de expressão da cultura maconde.
Na esteira da teoria da cultura de Amílcar Cabral (Cabral, 2011), para a FRELIMO as formas culturais e estéticas da jovem nação deveriam constituir uma síntese dos elementos formais do ideal de modernidade e de modernização de Samora Machel e dos modos tradicionais de expressão cultural (Guebuza & Vieira, 1971; Machel, 1974, 1978). Inscrito na conceção marxista da modernidade, o projeto cultural da FRELIMO assenta na criteriosa seleção de um conjunto de formas culturais tradicionais e na consequente exclusão de outras, essencialmente de atos e práticas rituais, como as cerimónias de iniciação. Ao documentar expressivamente a desestruturação e a estruturação dos rituais maconde depois da independência, Mueda, Memória e Massacre concilia a cultura tradicional e a cultura moderna — em mutação — de Moçambique. Nesta medida, logra realizar a síntese cultural procurada, situando a cultura moçambicana entre o ritual e a modernidade, sem adotar, contudo, o sistema de inclusões e de exclusões elaborado pela FRELIMO.
A cisão do líder maconde Lázaro N’Kavandame em 1968[3], tendo gerado desconfiança face à fidelidade política dos Macondes e às suas próprias reivindicações nacionalistas, permite explicar tanto a aplicação do sistema de inclusões e de exclusões à cultura do planalto, quanto a inserção do Massacre de Mueda no “Script de Libertação” (Borges Coelho, 2013). Por meio dessa inserção, o acontecimento deixa de ser compreendido como uma revolta maconde para passar a ser entendido como um ato de resistência moçambicano. Estes elementos ajudam também a clarificar a história material de Mueda, Memória e Massacre (a censura, a refilmagem e a remontagem), reforçando a hipótese de que o filme é um objeto tardio, a contracorrente do projeto da FRELIMO em 1979.
Círculos e rotações
As panorâmicas circulares e semicirculares de Mueda, Memória e Massacre unem o sentido etimológico primeiro e o significado moderno do termo revolução. A panorâmica circular constitui uma das formas fílmicas centrais do Terceiro Cinema e do Novo Cinema Latino-Americano[4]. No quadro da cultura de libertação transnacional das décadas de 60 e 70, a descolonização política é percebida como inseparável da descolonização da cultura, da arte e do conhecimento. Na estética tricontinental formalizada em filmes e no seu paratexto (García Espinosa, 2013; Getino & Solanas, 2010; Gutiérrez Alea, 1997; Rocha, 2004, 2006; Sanjinés, 1979, 1989), a descolonização da perceção e das formas representativas prende-se estreitamente à noção de descolonização cognitiva.
No cinema de Glauber Rocha, Guerra e Jorge Sanjinés, entre outros, a geometria da panorâmica circular, desvinculada do valor que a circularidade assume no dispositivo disciplinar panóptico, constitui a expressão formal dessa compreensão extensiva do processo de descolonização. Entendida como forma fílmica emancipatória, a panorâmica circular seria o vetor de uma rotação do olhar em dois sentidos: do sujeito de representação sobre o mundo e sobre si mesmo; do observado sobre o observador. A cultura de libertação transnacional é ela própria atravessada por diferentes movimentos de rotação e de inversão, tais como a inversão da determinação da superestrutura pela infraestrutura na teoria de Cabral (Cabral, 2011), sugerida também por Armando Guebuza e Sérgio Vieira no seu discurso de Dares-Salam de 1971 (Guebuza & Vieira, 1971). Procedimento antimimético por excelência e modalidade dialógica no mais alto grau em Mueda, Memória e Massacre, a panorâmica circular é, da mesma forma que o também giratório plano-sequência integral em El Coraje del Pueblo, do Grupo Ukamau/Sanjinés, o modo de expressão de uma cosmovisão não-europeia, operando, como em A Idade da Terra (1980), de Rocha, uma síntese entre o ritual e a política, o mito e a história, e redefinindo de maneira autorreferencial a separação entre o observador e o observado, de um modo quase tão radical quanto em Claro (1975, Figura 3), do realizador brasileiro.
Os nós históricos e geográficos da cultura de libertação transnacional permitem não só superar a noção de cinema nacional, como autorizam também a encarar o cinema como forma de pensamento capaz de concatenar os campos da teoria da cultura e da antropologia da representação. O filme de Guerra é unido por esses nós, não deixando de revelar, contudo, singulares espaços de passagem. Os nós entrelaçam alguns dos fundamentos do cinema transnacional desse período, como a tentativa de adoção de modos horizontais de produção, de distribuição e de receção, a redefinição da noção de obra fílmica [5] e a proposta de “tropicalização” (García Espinosa, 2013; Simão & Schefer, 2011) dos dispositivos de representação.[6] Nesse sentido, Mueda, Memória e Massacre é filmado a preto e branco em película de 16mm, um formato “tropical” e “nacional”, no entender de Guerra (Simão & Schefer, 2011).[7]
Os espaços de passagem desvelam a presença concreta de elementos da cultura maconde. O povo de Mueda não é um elemento contemplativo ou passivo no filme. Pelo contrário, este resulta em grande medida do reordenamento mítico do acontecimento histórico pela comunidade. Mueda, Memória e Massacre adota, nessa linha, uma conceção multitemporal do acontecimento histórico. O filme não se limita a representar a comemoração do massacre pela comunidade maconde em 1979. Inversamente, reativa as situações percetivas e as condições emocionais do passado colonial, uma política colonial dos corpos e dos afetos que persiste no presente enunciativo. A reconstituição sensível tem lugar como uma operação retrospetiva, rotação rasgando o horizonte do tempo. Mueda, Memória e Massacre desenha a fenomenologia do colonialismo.
Como as obras anteriormente mencionadas, Mueda, Memória e Massacre ensaia uma operação de rotação do olhar.[8] As panorâmicas circulares e semicirculares, entre outras formas do filme, interrogam a separação entre os elementos subjetivos e objetivos. Guerra sublinha a “circularidade do movimento” e o “descentramento” (Avellar, Sanz& Sarno, 2006, pp. 16-17) como formas maiores da sua obra fílmica. Em Mueda, Memória e Massacre, a forma circular constitui uma figuração da multiplicidade de pontos de vista. Por seu lado, a subjetiva indireta livre redefine a posição do observador e do observado e, ao deslocar os modos percetivos e cognitivos dominantes, faz da imagem um lugar de lisibilidade dialética e contribui para a emergência de um discurso coletivo em contraponto (Ferro, 1993, p. 13) à história do colonialismo.
Desde a sua primeira curta-metragem, Cais Gorjão (1947-1948), documentário sobre os estivadores do Porto de Lourenço Marques, a representação do povo foi constante no cinema de Guerra. No entanto, Mueda, Memória e Massacre é, possivelmente, a obra em que a sua figuração vai mais longe. O cineasta não fala em nome do povo, nem lhe dá voz, como nas entrevistas diretas d’A Queda (1977). A câmara dialoga performativamente com o povo, segundo um princípio de ação-reação. Mueda, Memória e Massacre faz circular a palavra coletiva ou, mais precisamente, a palavra-imagem coletiva.
Os agenciamentos de enunciação do Mapiko têm um impacto decisivo nos modelos narrativos e formais de Mueda, Memória e Massacre. Sem perder de vista a realidade moçambicana em transformação, o filme abraça a economia da representação do Mapiko: um sistema de interseções entre o mito e a história, o simbólico e o ideológico. Embebido dessa economia da representação, Mueda, Memória e Massacre produz um tipo particular de conhecimento antropológico. Na medida em que se examina como um dispositivo produtor de efeitos de conhecimento, o filme faz parte de um cinema-epistêmê suscetível de produzir fraturas antropológicas.
As três vertentes do programa cinematográfico moçambicano e a sua presença em Mueda, Memória e Massacre
Como foi já introduzido, o programa cinematográfico moçambicano apresenta fundamentalmente três vertentes — o cinema coletivo, estatal e de autor. Sem fronteiras demarcadas, nem esferas de ação estritamente delimitadas, as três vertentes estão ligadas por uma interpenetração permanente e tensional. O cinema coletivo, estatal e de autor coexistem, sustentando-se num sistema de relações dinâmicas e contraditórias. Do ponto de vista teórico, as representações cinematográficas do País independente tenderiam a ressituar a relação entre arte e política, assim transformando a experiência sensível e a produção simbólica. É de notar ainda que, no contexto revolucionário moçambicano, a política cinematográfica é inseparável do processo geral de coletivização dos modos de produção, bem como das contradições desse processo. A tentativa de mudança do paradigma da representação através do alargamento do processo de coletivização à esfera da produção simbólica constitui mesmo um dos aspetos mais originais do projeto político-cultural da FRELIMO.
A singularidade da política cinematográfica moçambicana articula-se em torno da tentativa de reinterpretação tanto dos fundamentos políticos e estéticos da modernidade, quanto da crítica desses fundamentos. A fundação do INC e as primeiras medidas adotadas pelo instituto devem ser analisadas à luz dessa tentativa de reinterpretação. O INC é regido por um quadro teórico em que a função social do cinema (e da arte em geral) convive com a premissa de que um filme só é político sob condição de que concretize uma crítica das formas dominantes de representação e dos modos hegemónicos de produção. Neste sentido, do ponto de vista teórico, lograr-se-ia obviar a autonomização e a canonização da arte através de interdependências dialéticas entre o conteúdo, a forma e a função (entendida como finalidade e não como funcionamento) dos objetos fílmicos. A dimensão política do cinema fundar-se-ia, por conseguinte, num trabalho experimental da forma enquanto expressão de um conteúdo de emancipação e tendo em vista uma finalidade também emancipatória. Este quadro teórico explica, por um lado, a admiração e o entusiasmo que o programa moçambicano suscita na década de setenta e ainda hoje. Por outro lado, do ponto de vista intencional, não se verificaria, neste contexto inicial, uma rutura entre o cinema coletivo, estatal e de autor. A coletivização do cinema (nas suas três esferas: os projetos Cinema Móvel, Cinema nas Aldeias e cinema coletivo) era propiciada pelo trabalho de autores (Guerra, Jean-LucGodard, Jean Rouch, etc.; a geração do INC), categoria então em redefinição, através de estruturas estatais como o INC, a futura Televisão Experimental de Moçambique e o Centro de Estudos de Comunicação (CEC) da Universidade Eduardo Mondlane.
O programa cinematográfico moçambicano apresenta, desde as suas primeiras formulações e concretizações, uma importante contradição. O pré-cinema (1966-1974/1975), produção cinematográfica anterior à independência do País que “assinala a realidade por vir” (Einstein, 2003, p. 38) dos pontos de vista histórico e formal, ambiciona lançar as bases de um cinema popular, emanação da voz coletiva da nação, à semelhança do que acontecia na literatura, em particular com os poemas de Mutimati Barnabé João (João, 2008), heterónimo de António Quadros, publicados em 1975. Depois da independência, esse objetivo torna-se no Cavalo de Troia do programa cinematográfico moçambicano. Incapaz de apoderar-se por si própria dos meios cinematográficos de produção, a coletividade é representada quase invariavelmente por realizadores estrangeiros, muitas vezes provenientes dos países centrais, como a britânica Margaret Dickinson, cujo filme Behind the Lines (1971), parte do corpus do pré-cinema, é paradigmático das formas do “disciplinado” (Brenez, 2011) cinema militante, ou os Brasileiros José Celso Martinez Corrêa e Celso Luccas (Vinte e Cinco, 1975-1977). No sentido de colmatar essa lacuna, o projeto de coletivização, os programas de formação (Dickinson e Rouch, entre outros) e o trabalho de Guerra, que vivera em Lourenço Marques até 1951, no INC visam universalizar, nacionalizar e tornar horizontal a produção cinematográfica do Estado internacionalista.
No campo do cinema, tal como na esfera da comunicação em geral, procura-se eliminar o princípio de especialização das funções técnicas com o intuito de superar a barreira de competências e de desagregar a hierarquia piramidal da produção cinematográfica. A figura do espectador-“produtor” (Benjamin, 1992) de imagens encarna o objetivo de unificar as esferas da produção, da distribuição e da receção. Organizada em sistemas de comunicação horizontais, a população tornar-se-ia responsável pela produção, distribuição e troca de informação visual. O projeto fracassado concebido por Godard para a futura televisão moçambicana, bem como os ateliers de Rouch no CEC inscrevem-se nessa linha programática, intimamente ligada à querela tecnológica em torno do formato cinematográfico mais adequado [o Super 8, tecnologia tropical, segundo Guerra e Rouch, ou o vídeo, “máquina não-tropicalizada” (Simão & Schefer, 2011), no entender do cineasta suíço] “para entrar numa perspetiva de comunicação popular” (Schefer, 2013a). O tropicalismo tecnológico apresenta-se como um princípio de desierarquização das categorias da imagem no interior de um movimento mais vasto de desintegração das estruturas de dominação.
A política da representação e a representação política da FRELIMO como partido-Estado,[9] ante as quais a universalização efetiva da produção de informação aparecia como intolerável, a par da função do dispositivo epistemológico do “Script de Libertação” (Borges Coelho, 2013) no processo de construção da história moçambicana, engendram uma clivagem entre o cinema coletivo, estatal e de autor que marcaria desde então a produção cinematográfica e os diferentes programas do INC. A FRELIMO almeja um cinema de unificação nacional capaz de elaborar um novo corpo político, o povo moçambicano, unido por uma história comum de resistência.[10] Muito embora o discurso teórico em prol da coletivização do cinema prevaleça até ao início da década de oitenta, verifica-se, entre outros aspetos, o crescente controlo estatal da produção cinematográfica, a anulação sumária e inesperada do projeto Cinema nas Aldeias em 1979, no qual Guerra esteve diretamente envolvido, a sobreposição da vertente informativa à dimensão estética com a progressiva codificação das narrativas fílmicas, iniciando-se então, como foi já dito, o período de destituição da Estética de Libertação do INC.
A história do cinema revolucionário moçambicano organiza-se em torno da tendência do Estado a instrumentalizar o cinema, tanto num sentido positivo — a sua coletivização, afirmação do cinema como mecanismo de emancipação —, tanto num sentido negativo — a sua conversão, expressiva da rutura entre o poder político e a sociedade, num aparelho ideológico, asseveração do cinema como dispositivo de dominação. Através de filmes como Mueda, Memória e Massacre, o cinema de autor resiste à inflexão do programa cinematográfico e, opondo-se a todo intento de fixação histórica, ao processo de constituição de uma narrativa una, causal e sequencial da Guerra de Libertação. O filme de Guerra e o percurso do cineasta no seu país natal manifestam a oposição, vincada já em 1979, entre o cinema coletivo, estatal e de autor.
As formas estéticas e narrativas de Mueda, Memória e Massacre projetam retrospectivamente o devir coletivo do cinema de autor. A coletivização do cinema é, com efeito, cristalizada no filme de Guerra como princípio formal e enunciativo. A sobreposição ótica de pontos de vista, marca enunciativa dialógica assente na justaposição de lugares de observação, as panorâmicas circulares e semicirculares e os travellings frontais (de avanço e de recuo) e laterais, entre outros procedimentos, sugerem a dissolução do ponto de vista autoral numa perspetiva coletiva e conferem à enunciação a densidade de uma duração coletivamente vivida.
A câmara foca as personagens e os espectadores da reconstituição performativa do massacre. Desenha-se uma superfície geométrica cujo perímetro é permanentemente deslocado (Figura 4) - deslocação física e ótica, interação e troca de olhares, sensações e memórias, intensidades sinestésicas.
Mueda, Memória e Massacre não é apenas um filme sobre a memória do Massacre de Mueda. É uma obra sobre a experiência sensível e os processos cognitivos do colonialismo. A ação recíproca e os encadeamentos visuais entre a câmara, as personagens, os espectadores e a sua organização na montagem restituem as condições percetivas e cognitivas históricas do sujeito colonial (os resistentes de 1960) no presente enunciativo. A reconstituição sensível opera diretamente sobre o corpo do representável e do irrepresentável, sobre os campos da perceção e da cognição.
A reconstituição sensível é estruturada por um movimento duplo: ela decorre do processo de descolonização em sentido amplo, mas não são de descurar os factores que se prendem com as formas culturais do Planalto de Mueda. Tendo cessado de ser um objeto de representação desejável e etnografável, o antigo colonizado é um sujeito ativo de desejo e de representação na reconstituição performativa. Se o projeto de cinema coletivo não tivesse estancado, ter-se-ia seguido a sua autorrepresentação através de dispositivos tropicalizados, sugerida no filme. Levando a cabo uma rotação simultaneamente relacional (deslocação da relação entre o sujeito e o objeto de representação e de conhecimento) e retroativa (restituição das condições percetivas e cognitivas do antigo colonizado mediante uma conceção multitemporal das temporalidades históricas e narrativas com efeitos sobre a memória coletiva e a história do colonialismo), o filme figura a passagem suspensa do cinema de autor para o cinema coletivo.
Mueda, Memória e Massacre é estruturado por uma dialética entre o dentro e o fora, o efeito e o reflexo, termos que são conciliados através dos movimentos de passagem entre elementos imanentes ao discurso fílmico e elementos que, como a experiência sensível do filme em devir ou o fora de campo histórico e utópico, lhe são exteriores e que são apenas sugeridos. Através da dinâmica específica da reconstituição sensível, estas passagens convergem na formação de um novo olhar: um olhar em rotação, diferentes modalidades de perceção e de representação, outros modos de entrever a história e o mundo através de uma perspetiva comum, de modo a tornar visível o processo de descolonização em sentido lato. Um olhar invertido, que desordena as categorias estabelecidas, nomeadamente as hierarquias da representação e das imagens, através de uma an-imagem, uma imagem oposta, contrária, em rotação, invocando o significado grego do prefixo ana-, bem como o processo de anamnese, reconstituição de uma história patológica (neste caso, coletiva).
Na linha do Terceiro Cinema e em proximidade com o quadro teórico vigente durante os primeiros anos de funcionamento do INC, Mueda, Memória e Massacre propõe uma visão singular do cinema político. Não está em causa transformar o espectador ou conduzi-lo a uma tomada de consciência, finalidade das formas militantes do pré-cinema da Guerra de Libertação, nem contribuir para a constituição do povo como sujeito histórico natural do cinema revolucionário moçambicano. Pelo contrário, o movimento de rotação do olhar — do observado sobre o observador e deste sobre si mesmo enquanto instância enunciativa —, suspendendo o mecanismo de identificação do espectador com a personagem e o dispositivo-câmara, instaura uma dialética complexa entre o filme por vir e a película projetada. Procura-se produzir uma rotação radical e completa. Não se trata só de inverter os eixos da representação, mas de redefinir também os valores de posição, de destituir a perspetiva dominante através da emergência de um espectador ativo e crítico, de um produtor potencial, processo com consequências políticas e epistemológicas importantes, nomeadamente no que respeita à política da história e da memória e à desconstrução da ficção do povo resistente e homogéneo que lhe retira paradoxalmente a autonomia política.
As razões expostas precisam a posição excecional de Mueda, Memória e Massacre na história do cinema revolucionário moçambicano. As três vertentes do programa cinematográfico nele se articulam. Produzido pelo INC e, mais tarde, censurado, parcialmente refilmado e remontado no instituto, o filme de Guerra exprime tardiamente as premissas do projeto de cinema coletivo através das suas formas fílmicas e modos enunciativos. Ainda que consonante com os posicionamentos teóricos do INC relativos à estética e à política, Mueda, Memória e Massacre é realizado numa fase de viragem do programa político-cultural da FRELIMO. Filme fora do tempo por expor e formalizar um quadro teórico já em desuso, fazendo o invisível — as contradições do projeto revolucionário moçambicano — emergir de um trabalho do visível — de um sistema de representação à primeira vista “documental” da Revolução —, Mueda, Memória e Massacre é um filme simultaneamente retrospetivo (a reconstituição sensível) e prospetivo (a ruína como força prefigurativa, Figura 5).
Concretizando uma crítica das formas dominantes de representação e servindo-se de modos não-estandardizados de produção, Mueda, Memória e Massacre é um dos filmes mais eloquentes do cinema revolucionário moçambicano. Se a dimensão política de um filme não é puramente imanente ou formal, não reside unicamente na função, nem constitui simplesmente um reflexo da realidade ou um efeito do conteúdo na sua relação com uma dada exterioridade, em Mueda, Memória e Massacre, o “real” é tratado como um problema, ao mesmo tempo que como um campo a transformar, em sintonia com as linhas programáticas do INC. Mas Mueda, Memória e Massacre está longe de ser o filme épico desejado pelo Ministério da Informação, desejo que demonstra, por si só, o quanto a praxis política se tinha apartado dos posicionamentos teóricos do organismo. Contudo, aquilo que mais prementemente faz de Mueda, Memória e Massacre uma obra incómoda, determinando a sua história material, é o entendimento de Guerra de que o cinema moçambicano (tal como o projeto político do País) deveria necessariamente cruzar, sob risco de desaparecer ou bifurcar-se, o ritual e a política e dar expressão formal, além do plano do conteúdo, a esse cruzamento. Segundo esta perspetiva, patente já em Os Deuses e os Mortos (1970), a obra mais cinema-novista de Guerra, a coletividade só se faria presente através do processo de absorção estética das suas formas culturais pelo tecido fílmico. Além da apropriação dos meios cinematográficos de produção e do coletivismo da forma dialógica (Bakhtin, 1992), o processo de coletivização reveste esta outra dimensão. No filme de Guerra, ela aparece ligada à afirmação, tão contrária à unicidade do “Script de Libertação” (Borges Coelho, 2013), do perspetivismo da história e da pluralidade da memória, bem como ao reconhecimento da diversidade étnica, cultural e linguística de Moçambique contra as tentativas de criação de um padrão e de um folclore nacionais.
Sobre peixes e macacos: as formas culturais do Planalto de Mueda em Mueda, Memória e Massacre
Um antigo conto do Distrito de Ancuabe recolhido por Jorge Dias e Manuel Viegas Guerreiro narra a origem mítica do colonialismo:
Os Brancos antigamente eram peixes; ficavam na água. Um dia, um homem negro agarrou num anzol e foi pescar. Quando o tirou da água, veio um peixe que se tornou num branco. Os Negros cuidaram dele até ele crescer. Adquiriu coisas boas e, quando se viu na posse delas, começou a fazer-nos sofrer muito. E desde então até hoje nunca mais deixaram de nos tratar mal. (Dias & Viegas Guerreiro, 1966, p. 309)
O conto sintetiza a visão maconde do homem branco. Segundo o mito, a humanidade do homem negro é mais antiga do que a do homem branco. O homem negro conhece já a técnica: pesca e confeciona anzóis. O homem branco só adquire uma forma antropomórfica depois de tomar contacto com o homem negro. Humaniza-se através da educação que este lhe dá. A narrativa pressupõe um processo de metamorfose, um mimetismo mágico, e a separação da forma e da substância. A semelhança física produz diferença e incomunicabilidade, opressão e violência.
A narrativa expressa as variações da história na tradição oral e uma inversão completa da teleologia e da ideologia coloniais da missão civilizadora. A transmissão do conhecimento é realizada do colonizado para o colonizador. Este aspeto reflete possivelmente o fenómeno de calibanização que caracteriza o colonialismo português, separando-o do modelo colonial hegemónico, como proposto por Boaventura de Sousa Santos (Sousa Santos, 2003). Através do processo decafrealização, definido em 1873 por António Ennes (1946, p. 192) como uma “reversão do homem civilizado ao estado selvagem”, o abandono das práticas culturais europeias e a adoção das locais era corrente entre os colonizadores portugueses, sobretudo na África Austral. Essa surpreendente conceção da história colonial e a leitura mítica da interidentidade (Sousa Santos, 2003) como uma das características mais importantes do colonialismo português atravessam também a reconstituição performativa do Massacre de Mueda registada por Guerra. Exemplo do cinema como prática cultural, Mueda, Memória e Massacre cruza o mito e a história.
A obra de Guerra produzida no Brasil antes do regresso do cineasta a Moçambique em 1977 constitui uma sofisticada reelaboração cinematográfica dos cruzamentos entre o messianismo místico e a ideologia revolucionária (nomeadamente, a Guerra de Canudos) na história do Brasil, princípio que informa também a filmografia de Rocha. Ismail Xavier considera que uma dimensão antropológica ganha relevo n’Os Deuses e os Mortos, “cristalizada numa atenção às representações sincréticas do mundo rural brasileiro” (Xavier, 2003, p. 132). Da mesma maneira que o filme de 1970, Mueda, Memória e Massacre possui uma dimensão antropológica irrefragável, sem tão-pouco manifestar qualquer esforço de compreensão ou de explicação antropológicas.
Em Os Macondes de Moçambique (Dias, Dias & Viegas Guerreiro, 1964-1970), estudo monográfico resultante das missões realizadas por Dias e pela sua equipa em território moçambicano entre 1957 e 1961, os Macondes são construídos teoricamente como um objeto antropológico isolado (ou exterior) dos processos históricos. A antropologia colonial portuguesa descreve as sociedades tradicionais como unidades homogéneas e estáveis, que teriam permanecido intactas e inalteradas malgrado a existência de um sistema colonial fundado em relações de força e de raça. Durante a primeira metade do século XX, a Antropologia colonial portuguesa caracteriza-se por uma orientação antropobiológica. É nesse quadro que, entre 1937 e 1956, ao longo de seis campanhas, a Missão Antropológica de Moçambique, dirigida por Joaquim Rodrigues dos Santos Júnior, realiza um levantamento antropométrico das populações africanas do território. A partir de meados da década de cinquenta, num contexto em que, na sequência da Segunda Guerra Mundial, o conceito de raça se encontra fortemente desacreditado, começa a esboçar-se em Portugal, no entender de Rui M. Pereira, “uma nova orientação da Etnologia como ciência independente da Antropologia Física” (Pereira, 2005, p. 233). A Antropologia Física é, então, substituída pela Etnologia Colonial como paradigma antropológico, orientação que se congrega em torno da figura de Dias. Tratou-se, para Pereira, de “uma breve fase de transição” [,] “uma vez que definitivamente se estabeleceu, nos anos 60, a separação entre Antropologia Física e Etnologia enquanto ciências aplicadas independentes” (Pereira, 2005, p. 235).
Apesar da força de rutura da nova orientação imprimida à antropologia pela figura e pelo labor de Dias na conjuntura portuguesa da década de cinquenta, em Os Macondes de Moçambique, os Macondes são descritos como os dignos representantes de uma cultura tradicional. Para a equipa de Dias, os Macondes têm interesse antropológico na medida em que conservam as tradições culturais dos seus antepassados e não devido à mutação da sua sociedade. Harry G. West considera que Dias fez dos Macondes “‘monumentos’ [sic] da sua própria ‘tradição’ [sic]” (West, 2004, p. 56) e sublinha o desfasamento entre as bases teóricas e metodológicas de Dias e a antropologia do seu tempo. Nas palavras do antropólogo,
Foi uma surpresa para mim que, tendo realizado estudos de terreno no fim da década de cinquenta e publicado o seu trabalho na década seguinte, a equipa de Dias produzisse etnografia deste tipo. Antropólogos de outras nacionalidades já tinham começado há muito tempo a focar o impacto do colonialismo nos povos estudados e a produzir trabalhos etnográficos que retratavam a mudança social através de uma análise voltada para os processos. (West, 2004, p. 56)
West cita, como exemplos da mudança de paradigma antropológico, os trabalhos de investigação sobre o desenvolvimento económico e a mão de obra migrante — problemas prementes no Planalto de Mueda aquando das missões de Dias —, realizados entre a década de quarenta e o início da década de sessenta, por antropólogos como Max Gluckman, Isaac Schapera, Audrey Richards, Arnold L. Epstein e Aidan Southall, perto da fronteira moçambicana, em colaboração com o Rhodes-Livingstone Institute da Rodésia do Norte. Estes temas, abordados na reconstituição performativa do Massacre de Mueda e considerados como uma das causas da emergência do movimento protonacionalista, encontravam-se, para West, “entre os interesses emergentes no seio da disciplina naquele momento” (West, 2004, p. 56). O antropólogo conclui que “os eventos e os processos contemporâneos eram contornados — mais do que ignorados — por Dias e pelos seus colegas nos seus trabalhos” (West, 2004, p. 56). Muito embora reconhecendo a importância do estudo de Dias, em In Step with the Times: Mapiko masquerades of Mozambique, estudo antropológico sobre o Mapiko e a sua dinâmica formal entre 1920 e 2010, Paolo Israel partilha a perspetiva de West: “A interpretação do mapiko dos Dias reflete mais o atraso da etnologia Portuguesa — fascinada pelo funcionalismo numa altura em que este recuava já — do que a mentalidade primitiva dos Macondes” (Israel, 2014, p. 29). A visão de Dias da sociedade maconde irá prevalecer até aos primeiros trabalhos da antropologia moçambicana. A representação da sociedade maconde em Mueda, Memória e Massacre contrasta vivamente com a conceção estática de Dias. A cultura maconde é representada dinamicamente, através das suas formas culturais afetadas pela Guerra de Libertação, pelo processo de descolonização e pela coletivização da economia. Na medida em que o filme de Guerra é uma das poucas representações intermediárias da sociedade maconde entre o estudo de Dias e o trabalho de campo conduzido na década de oitenta, constitui um importante documento histórico e antropológico de uma sociedade em mudança, particularmente sob a perspetiva da antropologia da representação. No entanto, é necessário sublinhar que o filme não postula qualquer modelo antropológico de representação, nem mesmo o modelo da antropologia partilhada.
A dança de máscaras Mapiko, acompanhada de música e de coreografias, desempenha um papel crucial na vida social e no ritual da sociedade maconde, especialmente nos ritos de iniciação (Figura 6). As máscaras são consideradas objetos sagrados, encarnando o espírito dos mortos. O ritual pressupõe a adoção de certos códigos comportamentais, como a expressão de medo por parte das crianças e das mulheres. Esses códigos comportamentais conduzem Dias a interpretar o Mapiko como uma estratégia de perpetuação do domínio masculino numa sociedade matrilinear. A estruturação histórica do Mapiko, estudada por Israel (Israel, 2014) e, nomeadamente, a aparição de Mapikos femininos, como o Lingundumbwe, contradiz a leitura de Dias. De acordo com Israel, o Mapiko, forma cultural dinâmica “marcada por uma inclinação dupla para a perfeição naturalista e para o exagero grotesco” (Israel, 2014, p. 2), reflete e representa as grandes transformações sociais desde o período colonial até aos nossos dias. No entender do antropólogo, o Mapiko transforma-se nomeadamente durante a Guerra de Libertação e após a independência por meio de cruzamentos singulares entre o ritual e a política (Figura 2). Nas palavras de Israel, “mais do que nenhuma outra tradição moçambicana de música e dança [song-and-dance], a estética do mapiko foi permeada pelo simbolismo político” (Israel, 2014, p. 10). Contudo, para o antropólogo, a transformação da dança de máscaras ao longo do século XX resulta sobretudo de “um princípio interno à própria instituição: a rivalidade ritual” (Israel, 2014, p. 2). Este factor é considerado pelo antropólogo como “o motor que estimulou a criatividade da dança de máscaras” (Israel, 2014, p. 7). Nesta medida, se, no entender de Israel, a viragem política do Mapiko revela “um investimento coletivo numa coletividade utópica socialista” (Israel, 2014, p. 11), os executantes da dança de máscara utilizaram simultaneamente “os símbolos e a estética do socialismo como armas de rivalidade competitiva, para reforçar identidades locais” (Israel, 2014, p. 11).
Mueda, Memória e Massacre figura esta dinâmica entre o ritual e a política, o coletivo e o individual. O filme não inventa um povo através da fabulação no sentido deleuziano (Deleuze, 1985), nem representa a sua condenação “à desaparição” (Didi-Huberman, 2013, p. 108). Pelo contrário, documenta um povo que se autorrepresenta através da reconstituição performativa do massacre. Trata-se de figurar a perspetiva maconde sobre o acontecimento histórico através da impregnação do discurso fílmico pelas formas culturais do Planalto de Mueda. Busca-se intersetar esta perspetiva com os pontos de vista das testemunhas do massacre nas sequências das entrevistas.
No processo de autorrepresentação, expressivo de um tipo emancipador de mimetismo (Bhabha, 1984), são centrais as formas dinâmicas transformadas do Mapiko. Estas propagam-se às formas estéticas (o plano-sequência, as panorâmicas circulares, a sobreposição ótica de pontos de vista, os travellings) e narrativas (o dialogismo) do filme. O movimento rítmico, constante e, por vezes, circular da câmara evoca a cadência do Mapiko, apontando para o valor semiótico do corpo na definição da identidade maconde. O corpo é afirmado como lugar de fixação da memória e como ponto de partida da reconstituição sensível. A metamorfose corporal, sugerida na reconstituição teatral pela assunção de identidades coloniais, é essencial na cultura maconde. Israel (Israel, 2014) indica que já no final do século XIX as máscaras Mapiko estavam ligadas à representação da alteridade. A representação da alteridade marca a passagem do individual para o coletivo, já que, na cultura maconde, o corpo não se deixa nunca perceber na sua absoluta singularidade. À assunção da alteridade segue-se uma perspetivação da mesmidade a partir da alteridade, como acontece no momento de hesitação das personagens sobre a sua cor de pele. O filme procura figurar, portanto, esta perspetiva dupla e simultânea — o olhar do colonizado sobre o colonizador e o do colonizador sobre o colonizado —, cuja representação performativa depende da coexistência, no presente da enunciação, de formas enunciativas que correspondem a espaços de experiência do presente e do passado (o discurso do colonizador e o discurso do colonizado em diferentes línguas, português e shimakonde; o discurso anticolonial). Esta coexistência concretiza-se através do dialogismo (Bakhtin, 1992), do entrelaçamento dos pontos de vista subjetivo e coletivo, interior e exterior, e de um “duplo devir” (Deleuze, 1985): do autor/narrador em direção das personagens, destas no sentido do autor/narrador. Mueda, Memória e Massacre remete ainda para uma segunda lógica de passagem: as transições entre o visível e o invisível que estruturam a cosmologia maconde, outra possível leitura do sistema de visibilidades e de invisibilidades que foi abordado anteriormente.
Em Kupilikula. Governance and the Invisible Realm in Mozambique, West debruça-se sobre a cosmologia maconde, estudando o uwavi, a magia,[11] como uma das linguagens de poder do Planalto de Mueda (West, 2005). Não se referindo aos Macondes, mas aos habitantes do Planalto de Mueda, impregnados que estão estes, na sua relativa diversidade étnica, das cosmologias locais, o antropólogo entende que, segundo a sua conceção, o poder opera em duas frentes, uma delas, visível, a outra, invisível. Neste prisma, “o poder é por definição a extraordinária capacidade de transcender o mundo que a maior parte das pessoas conhece para um domínio além do mundo visível” (West, 2005, p. 4). Para West, é, pois, necessário tomar em conta a existência desta esfera invisível, território da magia e da feitiçaria, para compreender a conceção política dos habitantes do planalto. Inspirando-se no dialogismo bakhtiniano (Bakthin, 1992), West entende que o uwavi se transformou historicamente em contacto com outras linguagens, como a linguagem do colonialismo e a do nacionalismo revolucionário. O dialogismo abre também a possibilidade de que o uwavi possa ser aprendido: “…na minha opinião, é possível aproximar-se dos modos de ver e de entender o mundo do uwavi [sic] através de outra linguagem, ainda que alguma coisa se perca inevitavelmente na tradução” (West, 2005, p. 4). Por outro lado, ao transportar o uwavi da esfera invisível para a visível, ao reproduzir o seu discurso, os habitantes de Mueda reproduzem “o seu mundo” (West, 2005, p. 4).
A contiguidade entre o mundo visível e o mundo invisível assenta numa conceção performativa da linguagem (Austin, 1975): os feiticeiros possuem a capacidade de transformar o mundo visível a partir da esfera invisível. No entanto, de acordo com West, através dos seus sucessivos horizontes temporais, o uwavi afirmou-se menos como uma forma de resistência contra os outros discursos de poder, sejam estes o colonialismo, o socialismo ou, atualmente, o neo-liberalismo, do que como a possibilidade de apreender diferentemente o mundo visível e de o refazer a partir da esfera invisível. West serve-se do conceito de Sinnesorgan (“órgão sensível”) de Ernst Cassirer (Boehm, 1980; West, 2005, p. 8), para descrever esta faculdade sensível, próxima do conceito anteriormente tratado de “reconstituição sensível”. Sugere-se não somente a possibilidade de que emirjam contraperspetivas do mundo sensível forjadas por um diferente tipo de racionalidade, como também de que a esfera visível possa ser alterada a partir do domínio invisível. Esta conceção perpassa na reconstituição performativa do Massacre de Mueda enquanto expressão de uma releitura sensível do passado colonial que visa alterar a relação dos habitantes de Mueda com a história do colonialismo e a vivência do presente revolucionário. Mas, até que ponto não encarna o cinema, tecnologia da visão assente em configurações singulares entre o visível e o invisível e em articulações particulares entre a razão e a emoção [o pensamento “pré-lógico”, num sentido metafórico, como modelo do cinema, imagem do pensamento, segundo Eisenstein (Eisenstein, 1976)], através dos seus modos de fabulação específicos, a continuidade entre os dois mundos e a possibilidade de transitar de um a outro? Perceber o cinema e o filme de Guerra segundo uma perspetiva maconde não implicará, portanto, refletir sobre a maneira como este medium conjuga ele próprio a relação entre o visível e o invisível e desfaz a barreira entre pensamento e emoção? O olhar dos participantes da peça de teatro sobre o dispositivo cinematográfico (Figura 4) poderá, então, constituir uma tentativa de observação do invisível a partir da esfera visível e, logo, de “empoderamento”, assumindo-se a imagem cinematográfica, em devir, como uma manifestação tecno-sensorial do pensamento.
Em Mueda, Memória e Massacre, a par das formas fílmicas já abordadas, a dialética entre o dentro e o fora, já referida, determinando a transição permanente entre sistemas de representação — a reencenação da reconstituição nas sequências filmadas, no dia seguinte (Schefer, 2013b), no interior do antigo posto administrativo; o cinema-performance e a coreografia da câmara, próximos do Cinema Directo, das sequências exteriores — e sublinhando o hiato entre a interiorização (enquanto posição interior do pensamento) da experiência colonial e a sua exteriorização (através da linguagem) poderá constituir um modo de expressão não-consciente, tendo em conta a duração curta da rodagem e o relativo desconhecimento da cultura maconde por Guerra, da cosmologia do planalto. É de notar ainda “o imaginário e a sensibilidade africanos” (Simão & Schefer, 2011) que, segundo o realizador, terão marcado indelevelmente a sua poesia e o seu cinema. Apesar da sua pertença à elite colonial branca, a identidade de Guerra oscilaria entre a modernidade e o ritual, conteúdos-formas que, atravessando a sua produção literária e cinematográfica, se afirmariam, nesta última, designadamente através da não-diferenciação entre o sistema de representação do documentário e o da ficção, princípio operativo central na matriz estilística do cineasta desde Os Cafajestes (1962), que tem em Mueda, Memória e Massacre o seu ponto culminante.
A leitura de West permite não só rever as estruturas dualistas que presidiram historicamente ao discurso antropológico e ao discurso cinematográfico (por exemplo, certas conceções que tendem a afirmar a oposição entre a “ficção” e o “documentário”, oposição que é ultrapassada em Mueda, Memória e Massacre através da afirmação de uma indeterminação de género), como também sugere a suplantação da separação entre objetividade e subjetividade no processo de construção do conhecimento e a superação da epistemologia ocidental nos termos em que esta foi formulada e imposta historicamente. Na linha de Achille Mbembe (Mbembe, 2001), o antropólogo considera que o processo de “democratização” (West, 2005, p. 2) da África contemporânea não depende da aplicação de um modelo de poder ocidental, mas da utilização de linguagens de poder especificamente africanas, entre as quais inclui o uwavi.
Se, durante os primeiros anos de independência, o uwavi é forçado a recuar para a esfera invisível devido à condenação da magia pela FRELIMO, procurava-se simultaneamente operar uma deslocação epistemológica, nomeadamente no campo da antropologia, que passava pela emergência de uma contravisão da história e pela superação da rígida demarcação entre sujeito e objeto de conhecimento.
A refundação da antropologia — como, de resto, de todo o campo científico e, sobretudo, das ciências sociais e humanas — era, de facto, um dos pilares do projeto moçambicano. Pretendia-se produzir uma rutura epistemológica entre as ciências sociais e humanas do País independente e a epistemologia colonial. No que respeita à antropologia, considerava-se que a sua refundação traria novos elementos ao problema da figuração política do povo. Segundo Catherine Russell, a disciplina pode assumir “a função de contraponto da historiografia linear do período colonial” (Russell, 1999, p. 271).
Neste quadro, as ciências sociais e humanas moçambicanas reconsideram o Mapiko à luz do marxismo. Num estudo de 1982, Fresu e Mendes de Oliveira (Fresu & Mendes de Oliveira, 1982) teorizam a evolução da dança de máscaras sob a perspetiva de uma transição do ritual tribal primitivo para o teatro. Sob este ponto de vista, que reitera o sistema de inclusões e de exclusões aplicado pela FRELIMO às culturas tradicionais moçambicanas, a reconstituição performativa filmada por Guerra seria entrevista como uma evolução teatral do Mapiko, adaptada ao contexto histórico de construção do socialismo. Os autores concluem o estudo defendendo a transformação do Mapiko num espetáculo didático realista socialista. Da mesma maneira que no cinema e nas artes, depois do esforço de rutura dos primeiros anos de independência, os anos 80 constituem um ponto de viragem no campo científico. Israel considera, com efeito, que a antropologia colonial e o estudo de Fresu e Mendes de Oliveira partilham uma conceção funcionalista do Mapiko (Israel, 2014).
A operação de rotação do olhar de Mueda, Memória e Massacre não só afirma a unidade entre o mito e a história, o ritual e a política naquele espaço-tempo preciso, como também cristaliza os fundamentos teóricos do programa de coletivização do cinema. O filme propõe uma unidade entre o sujeito e o objeto de representação em proximidade com as metodologias das ciências sociais e humanas moçambicanas, que se opunham à separação rígida entre o sujeito e o objeto de conhecimento, uma das consequências da emergência da racionalidade moderna. As formas fílmicas e o modelo enunciativo sustentam a dissolução das posições representativas e cognitivas baseadas na dicotomia do paradigma sujeito-objeto e, por extensão, do dualismo colonizador-colonizado. Se Sousa Santos refere a “disjunção caótica” (Sousa Santos, 2003) entre o sujeito e o objeto de representação colonial como uma das especificidades do campo de representações e de autorrepresentações complexo do colonialismo português, em Mueda, Memória e Massacre, os objetos historicamente observados transformam-se em instâncias de observação. No seu devir-coletivo, não há já perspetivas privilegiadas, mas tão-somente perspetivas multiplicadas, fazendo eco a certas teorias, como o perspetivismo ameríndio de Viveiros de Castro (Viveiros de Castro, 2002), em que a oposição entre o subjetivismo e o objetivismo é ultrapassada. O filme sugere também a hipótese de que o cinema não só possui a faculdade de representar o ritual, mas também a de transformar-se ele próprio num ritual (o transe na obra de Rocha é suficientemente ilustrativo), num cinema-ritual, possibilidade aqui afirmada através da ausência de uma separação clara entre a esfera material e a esfera ritual.
O discurso fílmico desloca, enfim, a perceção histórica das diferentes fases do processo de descolonização. Entrelaça duas conceções do tempo — uma cíclica; a outra, progressiva — e dois acontecimentos — o massacre colonial e a revolução anticolonial marxista, apontando para a convulsão do mundo Maconde provocada pelas transformações político-económicas no pós-independência, quando a utopia social se substitui à tradição e a economia e a história ocupam o lugar do mito. Mueda, Memória e Massacre leva a cabo uma reflexão extraordinária sobre a necessária coexistência entre o tempo cíclico do mito e um projeto político inscrito na narrativa marxista da modernidade. O filme dialectiza o momento de transformação da sociedade maconde. Ao mesmo tempo, ao opor a reconstituição sensível do massacre à sua estabilização histórica no “Script de Libertação” (Borges Coelho, 2013), demonstra a autorreflexividade representativa e metodológica do cinema enquanto dispositivo produtor de efeitos de conhecimento. Além de fazer aparecer o tecido complexo de relações entre as representações fílmicas e o quadro epistemológico geral, Guerra apresenta-nos o cinema como um dispositivo de produção de um diferente tipo de conhecimento histórico, antropológico e sociológico e a câmara, como um instrumento epistemológico alternativo.
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Nota biográfica
Doutorada em Estudos Cinematográficos e Audiovisuais pela Universidade Sorbonne Nouvelle — Paris 3, Raquel Schefer é investigadora, realizadora e programadora.
E-mail: raquelschefer@gmail.com
Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris 3 13, rue de Santeuil, 75231 Paris Cedex 05
* Submetido: 16-02-2016
* Aceite: 13-03-2016
Notas
[1] É importante notar que o INC se encontrava sob a tutela do Ministério da Informação e não sob a do Ministério da Educação e da Cultura, organograma significativo dos pontos de vista político e jurídico.
[2] Os filmes de 16mm registados por Margot Schmidt Dias durante as missões etnográficas da equipa de Jorge Dias (1957-1961) constituem uma das primeiras representações fílmicas dos Macondes e a primeira tentativa sistemática de recolha de imagens em movimento da antropologia portuguesa.
[3] Em 1957, Lázaro N’Kavandame funda a Sociedade Agrícola Voluntária dos Africanos de Moçambique, uma micro-cooperativa de produção e de comercialização de algodão, inspirada no movimento associativo da futura Tanzânia. No interior da cooperativa, veículo de politização dos camponeses do Planalto de Mueda, surgem aspirações independentistas. A MANU (“Makonde African National Union” ou “Mozambique African National Union”), um dos três movimentos de cuja fusão nascerá a FRELIMO em 1962, é fundada sob a égide de N’Kavandame no seguimento do Massacre de Mueda. Graças à sua posição de força entre os Macondes e ao apoio do Governo do Tanganica e, mais tarde, da Tanzânia, N’Kavandame é um dos principais dirigentes da FRELIMO até 1968. É então que o líder maconde contesta as linhas programáticas e boicota o II Congresso do movimento. Acusado de tradicionalismo, tribalismo (no sentido de uma independência maconde e não nacional) e corrupção, N’Kavandame é destituído dos cargos políticos. O suposto envolvimento de N’Kavandame no assassinato de Eduardo Mondlane em 1969 e a sua alegada condenação à morte entre 1977 e 1980 permanecem episódios nebulosos da história de Moçambique.
[4] Apesar das suas múltiplas sobreposições, consideramos a categoria de “Novo Cinema Latino-Americano” como especificamente estética, enquanto que a de “Terceiro Cinema” está também ligada a uma praxis política do cinema.
[5] A noção de obra é redefinida a partir da negação das suas características históricas constitutivas: além de uma construção singular, a obra aparece também como uma prática relacional coletiva.
[6] Como arte, discurso e técnica, o cinema convoca factores políticos, sociais, estéticos e tecnológicos. A dimensão política, estética e também tecnológica do programa cinematográfico moçambicano obriga a pensar a materialidade e a ideologia do cinema como dispositivo de representação. Os posicionamentos da FRELIMO em relação à tecnologia cinematográfica constituem outro possível nível de leitura da história desse programa. Da utilização de uma tecnologia cinematográfica “tropicalizada” (Simão & Schefer, 2011), ideia que pressupõe a existência de uma cartografia de intensidades tecnológicas, na implementação do projeto de cinema coletivo ao rígido controlo das técnicas de produção, perfila-se a história da ascensão e queda da Revolução e do cinema revolucionário moçambicanos.
[7] No quadro do tropicalismo tecnológico do programa cinematográfico moçambicano, noção que será desenvolvida nas próximas páginas, a película de 16mm em preto e branco era vista, tal como o Super 8, como um suporte “tropical” e “nacional” porque podia ser revelada e montada em Moçambique. As operações técnicas de Mueda. memória e massacre foram inteiramente realizadas no INC, num “laboratório improvisado e precário” (Schefer, 2013a) montado pelo realizador e diretor de fotografia canadiano Ron Hallis e pela mulher, a montadora Ophera Hallis, cooperantes em Moçambique entre 1978 e 1979.
[8] A noção de rotação do olhar invoca o apelo de Jean-Paul Sartre em 1961 no Prefácio de les damnés de la terre, de Frantz Fanon — “Olhemo-nos [os Europeus] bem, se tivermos coragem, e constatemos aquilo que está a acontecer-nos” —, retomado por Fredric Jameson — “uma inversão radical do Olhar [sic] colonial através de uma réplica violenta… (Jameson, 1998, p. 107; Sartre, 2002, p. 31).
[9] Em fevereiro de 1977, no III Congresso da FRELIMO, o partido FRELIMO é fundado e o marxismo-leninismo adotado como ideologia oficial do País.
[10] Para a FRELIMO, a história do povo moçambicano era, essencialmente, uma história de opressão colonial, mas também uma história de resistência que teria culminado na Guerra de Libertação. O povo, em união com a FRELIMO, teria produzido a nova ordem política: “produziu as zonas libertadas, isto é, um Estado alternativo… no contexto da luta armada” (Não Vamos Esquecer!, 1983, p. 7).
[11] Israel sublinha o significado amplo do termo shimakonde mapiko: a palavra designa não só as máscaras, mas também, através da sua ligação ao verbo kupika, a transformação do feiticeiro numa besta mágica (Israel, 2014, p. 2).