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Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.30  Braga dez. 2016

https://doi.org/10.17231/comsoc.30(2016).2485 

ARTIGOS TEMÁTICOS

Serviço público de média e comunicação pública: conceito, contextos e experiências

 

Public service media and public communication: concept, context and experiences

 

 

Fernando Oliveira Paulino*; Liziane Guazina**; Madalena Oliveira***

*Faculdade de Comunicação, Universidade de Brasília, Brasil, paulino@unb.br.
**Faculdade de Comunicação, Universidade de Brasília, Brasil, guazina@unb.br.
***Instituto de Ciências Sociais, Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho, Portugal, madalena.oliveira@ics.uminho.pt.

 

 

RESUMO

Distinto do setor comercial, entre outros aspetos, por não ter finalidade lucrativa, o setor público de comunicação define-se correntemente pelo princípio da universalidade e do igual acesso dos cidadãos aos produtos mediáticos. Não obstante este fundamento de base, mais ou menos comum aos sistemas de radiodifusão de iniciativa pública das mais variadas origens, a designação de serviço público de média – consistente com uma tradição europeia – não é um correlato inequívoco do conceito de comunicação pública – mais harmonizado com uma tradição americana, ou mesmo sul-americana. Focado nas experiências de Portugal e do Brasil, este artigo desenvolve uma abordagem comparativa que visa compreender o enquadramento político, social e cultural da atividade dos média públicos nestes dois países. Com base numa leitura dos documentos legais que sustentam o desenvolvimento desta atividade, procura-se também discutir o setor no contexto mais vasto das políticas de comunicação portuguesas e brasileiras. Não ignorando, por outro lado, os aspetos que têm feito do serviço público e da comunicação pública um campo de debate permanente, como as questões do financiamento e da independência, o presente artigo tem ainda como objetivo identificar e discutir os desafios enfrentados pelas empresas concessionárias.

Palavras-chave: Serviço público; políticas de comunicação; comunicação pública; RTP; EBC.

 

ABSTRACT

Unlike the commercial sector because, among other aspects, it does not have a profitable objective, the public sector of communication has been defined according to a principle of universality and of equal access of citizens to media products. Notwithstanding this basic ground, which is more or less common to the public service broadcasting systems from most origins, the denomination of public service broadcasting – consistent with a European tradition – is not an unequivocal correlate of the concept of public communication – more in tune with an American, at least South-American, tradition. Focused on the experiences of Portugal and Brazil, this paper develops a comparative approach that aims to understand the political, social, and cultural framework of the public media activity in these two countries. Based on an analysis of legal documents that support the development of this activity, the paper is meant to discuss the sector in the broader context of Portuguese and Brazilian communication policies. On the other hand, while not ignoring the aspects – such as funding and independence issues – that have made public service broadcasting and public communication a field of permanent debate, this article also aims to identify and discuss the challenges faced by concessionary companies.

Keywords: Public service; policies on communication; public communication; RTP; EBC.

 

 

Ser público, de todos, para todos

Enquanto substantivo, a palavra público remete para a ideia de conjunto ou grupo de pessoas, normalmente com gostos ou interesses comuns, razão pela qual pode ser usado como sinónimo de audiência ou auditório. Será, por isso, um vocábulo tão antigo quanto a própria agregação de pessoas em função de motivações coincidentes e de práticas conjuntas. Podendo ter uma conotação económica (no campo da arte e do espetáculo, por exemplo), o nome comum público tem acima de tudo um sentido cultural. Ele exprime a organização de pessoas de acordo com práticas e estilos de vida. É, por essa razão, um conceito essencialmente plural que não se esgota na ideia de massas que havia proliferado no início da era mediática.

Enquanto adjetivo, o qualificativo público quer dizer algo que é de todos, que se faz diante de todos, que é aberto ou acessível a todos. Opondo-se ao que é privado, o termo público presume de algum modo a ideia de partilha, bem denotada em expressões como espaço público, esfera pública, opinião pública ou consulta pública. No extremo contrário ao que seria o íntimo, o particular ou o pessoal, o que é público(a) refere-se ao que se projeta para o coletivo, embora não haja no adjetivo público a mesma força de comunhão que há naquilo que se define como comunitário.

Ser público significa ser potencialmente de todos. Por outras palavras, significa admitir a participação e o envolvimento de todos, na medida em que aquilo que se diz público pode afetar direta ou indiretamente o interesse e a vida do coletivo. Daí que ser público signifique também ser potencialmente para todos, ter impacto geral. Há, com efeito, um sentido inclusivo no ser-se público que, em contexto democrático, tem também implícita uma sugestão de igualdade entre aqueles a quem se dirige a coisa dita pública.

Apesar de inscritos em tradições diversas, como se demonstra nos pontos seguintes, os conceitos de serviço público e de comunicação pública recolhem do vocábulo público(a) um princípio de universalidade que se inspira nesta significação genérica de ser-se de todos e para todos. O sentido é, em parte, o mesmo que subjaz à promoção de educação pública, de saúde pública ou de segurança pública, ou seja, o de garantir uma espécie de mínimo comum a todos os cidadãos.

Embora o termo possa também designar o que é relativo ou pertencente ao governo de um país – uma aceção que, aliás, tem certamente inspirado muitos debates que questionam a autonomia do serviço público de média e da comunicação pública em relação à informação oficial – a promoção de meios de comunicação de natureza pública é genericamente apresentada como uma proposta alternativa à segmentação comercial das audiências. O caráter público decorre, portanto, do facto de serem garantidos pelo Estado, ou seja, de serem de todos em termos de propriedade, mas também do facto de se pretenderem plurais em termos de oferta, de serem para todos. Aparentemente generosos no propósito, os meios de comunicação pública são, no entanto, como se assinala adiante, uma realidade complexa e ambígua em matéria de políticas de comunicação.

Serviço público de média em Portugal: conceito e tradição

Em termos gerais, o princípio de serviço público diz respeito à satisfação de necessidades da população e está subentendido na Constituição da República Portuguesa como resultado de um compromisso entre os direitos dos cidadãos e as incumbências do Estado. Como explica Sílvio Correia Santos, num livro sobre Os média de serviço público, “a noção de serviço público está presente na sociedade moderna sob uma multiplicidade de significações” (Santos, 2013, p. 3). Ela é, com efeito, o resultado da redefinição das funções e do papel do Estado na garantia dos princípios políticos de liberdade, igualdade e fraternidade, emanados da Revolução Francesa. Se num primeiro momento se havia desejado um Estado menos interventivo, com a defesa do princípio de serviço público – para a educação, a saúde, a segurança, as telecomunicações e a informação – há um certo regresso à responsabilização do Estado, que nalguns países europeus, como Portugal, deu origem àquilo que se convencionou chamar de Estado Providência ou Estado de Bem-Estar Social.

O serviço público de média também está explicitamente previsto na Constituição Portuguesa. O número 5 do Artº 38º, sobre liberdade de imprensa e meios de comunicação social, estabelece que “o Estado assegura a existência e o funcionamento de um serviço público de rádio e de televisão”. No ponto seguinte, esclarece-se ainda que

a estrutura e o funcionamento dos meios de comunicação social do sector público devem salvaguardar a sua independência perante o Governo, a Administração e os demais poderes públicos, bem como assegurar a possibilidade de expressão e confronto das diversas correntes de opinião. (Constituição, Artº 38º, n. 6)

Também a Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido (Lei nº 27/2007, de 30 de julho, atualizada em alguns aspetos por diplomas posteriores), determina no Artº 5º que “o Estado assegura a existência e o funcionamento de um serviço público de televisão”, que “pode integrar serviços audiovisuais a pedido ou outros serviços audiovisuais necessários à prossecução dos seus fins”. Do mesmo modo, a Lei da Rádio, na sua formulação mais recente publicada no final de 2010 (Lei nº 54/2010, de 24 de dezembro), estabelece, igualmente no Artº 5º, que “o Estado assegura a existência e o funcionamento de um serviço público de rádio, em regime de concessão”.

Apesar de, em Portugal, a rádio e a televisão estarem desde sempre ligadas à iniciativa do Estado, a ideia de serviço público de média audiovisuais é mais recente. A fundação em 1935 da Emissora Nacional e em 1956 da RTP, ambas empresas do Estado, estava ainda distante dessa consciência de serviço público que tão-pouco existia na redação original da Constituição de 1976, a primeira depois da Revolução de Abril. Nessa altura apenas se estabelecia que a televisão não podia ser objeto de propriedade privada. O papel do Estado na introdução da rádio e da televisão em Portugal foi o papel de um agente praticamente exclusivo no domínio da radiodifusão e de monopólio no domínio da radiotelevisão. A história destes meios não é, portanto, originalmente uma história de serviço público na plenitude da expressão. Só a terceira revisão da atual Constituição, realizada em 1989, retirou do texto constitucional “os obstáculos à entrada de operadores privados na atividade televisiva” (Sousa & Santos, 2005, p. 69) e introduziu a obrigação de o Estado assegurar a existência e o funcionamento de um serviço público de rádio e de televisão, fixando-a nos termos em que vigora atualmente na lei soberana de Portugal.

O final da década de 1980 foi, aliás, vigoroso do ponto de vista mediático em Portugal. Para além da regularização do setor da rádio, que pôs fim às chamadas rádios piratas ou rádios livres, legalizando 314 frequências locais, apareceram novos jornais (como o semanário O Independente, criado em 1988) e o país preparava-se para a abertura da televisão à iniciativa privada (que se inauguraria com a estreia da SIC, em outubro de 1992). É, por isso, à proliferação de novos meios, de iniciativa privada, que se deverá, no contexto português, um progressivo entendimento de que seria importante o Estado ter um papel regulador a partir da garantia de um serviço alternativo ou diferenciado.

Atualmente o serviço público de média é prestado nos termos de um contrato de concessão[1] firmado entre o Estado Português e a RTP – Rádio e Televisão de Portugal, S.A., uma sociedade anónima de capitais públicos, dedicada à produção e distribuição de conteúdos audiovisuais e multimédia. Fixando os princípios de serviço público e as obrigações da empresa concessionária, o Contrato de Concessão do Serviço Público de Rádio e de Televisão foi assinado, na sua versão mais recente, em março de 2015, revogando os documentos anteriores de 1999 e de 2008 e atribuindo a concessão por um prazo de 16 anos.

Central para compreender o que se entende por serviço público de média em Portugal, o Contrato de Concessão define que o serviço público se orienta por um conjunto de objetivos (Cláusula 5ª) que passam pela promoção “do humanismo, da liberdade, do civismo, da cidadania, da solidariedade social e do debate democrático pluralista”, pela defesa da língua e da cultura portuguesas e pela produção de “informação independente, rigorosa, pluralista e aprofundada que constitua uma referência de credibilidade e confiança para os diferentes públicos”. Em matéria de encargos, o documento detalha uma vasta lista de obrigações específicas que visam concretizar os princípios convencionalmente reconhecidos ao serviço público. Sugere-se assim que a concessionária garanta pluralidade (de conteúdos), universalidade (para todos os públicos), isenção, autonomia e independência, promoção da língua e da cultura portuguesas (nomeadamente através de uma aproximação à diáspora portuguesa e do apoio à produção nacional), bem como literacia mediática.

Respondendo aos requisitos fixados no contrato, a RTP é em 2016 um grupo constituído por uma grande variedade de canais e de projetos editoriais. No domínio da rádio contam-se oito emissoras principais: Antena 1 (a mais generalista), Antena 2 (dedicada a uma programação mais cultural), Antena 3 (vocacionada para o público jovem), RDP Madeira Antena 1 e Antena 3 e RDP Açores (serviços dedicados às regiões autónomas da Madeira e dos Açores), RDP África (direcionada para os países africanos de expressão portuguesa) e RDP Internacional (dirigida à diáspora portuguesa no mundo). Para além destes serviços, no setor da rádio, o grupo RTP é também dinamizador de outros seis produtos que funcionam exclusivamente online: Antena 1 Lusitânia, Antena 1 Vida, Antena 1 Fado, Antena 2 Ópera, Antena 1 Memória e Rádio Zig Zag, este último um projeto dedicado a programação direcionada para crianças e adolescentes. No domínio televisivo, a concessionária assegura oito canais: RTP 1 (o canal generalista), RTP 2 (o canal erudito ou cultural), RTP 3 (de informação 24 horas por dia), RTP Memória (que recupera programas antigos), RTP África (como a rádio, dirigida aos países africanos de língua portuguesa), RTP Internacional (dedicado à população portuguesa emigrada), RTP Madeira e RTP Açores (canais especiais para os arquipélagos portugueses).

Embora o financiamento da RTP já tenha sido, em parte, suportado pelo Orçamento de Estado sob a forma de indemnizações compensatórias, atualmente a receita da RTP para o conjunto de todos os seus serviços baseia-se na contribuição para o audiovisual paga por todos os signatários de um contrato de eletricidade (no valor de 2,81€ mensais) e em receitas comerciais próprias (nomeadamente da publicidade, que é permitida no canal RTP 1). Em certo sentido, pode-se dizer que o modelo de financiamento da RTP se baseia numa espécie de compulsory crowdfunding, uma vez que, na presunção de serem clientes de eletricidade, todos os residentes em Portugal são chamados a contribuir para o orçamento da concessionária.

Comunicação pública no Brasil: conceito e tradição

Tendo nascido por interesse privado, a radiodifusão pública brasileira estabeleceu-se por iniciativa de diferentes governos nacionais, nomeadamente aqueles de cunho autoritário – seja no período Vargas, seja na ditadura civil militar a partir dos anos 1960. Emissoras de rádio e televisão vinculadas a diferentes órgãos estatais de divulgação de informação cumpriram o objetivo de informar sobre as atividades do Estado e dos seus governantes ao público.

Historicamente, o serviço público de radiodifusão brasileiro padeceu de limitações de caráter político e estrutural, uma vez que a sua consolidação dependeu mais de alinhamentos de interesses casuísticos de políticos profissionais com ou sem mandato do que propriamente de um projeto de comunicação pública. Além disso, as relações de proximidade entre grupos empresariais detentores de meios de comunicação e políticos profissionais é, ainda hoje, um dos fatores que limitam a consolidação da radiodifusão pública brasileira como um sistema com autonomia política e independência financeira. Apesar de a Constituição brasileira ter previsto, desde 1988, quando foi promulgada, no Artº 223º a complementaridade dos sistemas público, estatal e privado, somente 20 anos depois, em 2008, é que o sistema público de radiodifusão foi regulamentado e devidamente delimitado organicamente, a partir da Lei 11.652, de 7 de abril de 2008, que criou a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e definiu os princípios do sistema público. Estes princípios remetem, direta ou indiretamente, para a ideia de promoção da cidadania e igualdade de acesso à informação presentes no contexto de reivindicação dos direitos à comunicação e à informação e de conquistas dos direitos humanos e sociais da carta magna brasileira. Devem, portanto, ser entendidos dentro do âmbito da conquista de direitos sociais decorrente da mobilização da sociedade civil nos períodos da redemocratização e da pós-redemocratização.

A promoção do acesso à informação por meio da pluralidade de fontes, por exemplo, está definida no Artº 2º da lei, assim como a produção de conteúdos com finalidades educativas, culturais e informativas e a não discriminação político-partidária, filosófica, étnica, de género ou opção sexual. A ideia de promoção da cidadania também está presente nos objetivos do sistema de radiodifusão pública, especialmente naqueles elencados no Artº 3º da mesma lei:

II - desenvolver a consciência crítica do cidadão, mediante programação educativa, artística, cultural, informativa, científica e promotora de cidadania; e III - fomentar a construção da cidadania, a consolidação da democracia e a participação na sociedade, garantindo o direito à informação, à livre expressão do pensamento, à criação e à comunicação

O compromisso com a ideia de pluralidade (interna e externa), com a diversidade de fontes nas coberturas jornalísticas, com a presença de temas voltados para as demandas e os interesses dos cidadãos, a ética e o apartidarismo está, portanto, manifesto explicitamente na lei de criação de um sistema público de comunicação brasileiro. Reivindicados por diferentes grupos sociais, estes princípios denotam uma certa convergência de agendas prioritárias de mobilização de setores da sociedade que procuraram garantir condições políticas de aprovação no Congresso Nacional da lei proposta pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Este compromisso também se expressa na criação de um Conselho Curador da EBC, que reunia a participação de representantes da sociedade civil para discutir e avaliar a programação das emissoras públicas conforme os princípios estabelecidos em lei, e na manutenção de uma Ouvidoria que atende solicitações e interpelações internas e externas.

O sistema público de comunicação brasileiro está então atualmente constituído por duas emissoras de televisão, sendo a TV Brasil a mais relevante neste contexto, oito emissoras de rádio, uma agência de notícias na Internet e uma radioagência. Além disso, do sistema também faz parte uma rede de emissoras de rádio e televisão públicas operadas em parceria entre a EBC e universidades (ou outros órgãos) federais. De acordo com uma determinação do Ministério das Comunicações em 2014, quatro emissoras de TV e 11 emissoras de rádio estão sob gestão compartilhada[2]. Outras emissoras vinculadas a estruturas dos Estados também podem retransmitir as programações das TV e rádios da EBC, assim como podem enviar material informativo para os canais da EBC. De acordo com o Relatório de Gestão de 2014, o número de empregados da EBC é de 2.572 profissionais; a maior parte graduados em nível superior (1.124) e vinculados de forma efetiva (isto é, por concurso público) junto à empresa (2.055)[3]

A estrutura dos canais da EBC adveio, em boa parte, de empresas públicas como a Empresa Brasileira de Notícias – EBN e a Empresa Brasileira de Comunicação – Radiobrás, criadas ainda na década de 1970, sob os auspícios de governos autoritários e fundidas em 1988 sob o nome Radiobrás. Ambas as empresas adotavam uma comunicação de caráter mais estatal do que público, além de formas de gestão mais próximas do patrimonialismo historicamente característico do estado brasileiro.

A noção de que o sistema público de radiodifusão se constitui em sistema público de comunicação que deve obedecer a princípios que remetem, direta ou indiretamente, para a ideia de promoção da cidadania, porém, não ocorreu de forma extemporânea nem a-histórica. Está ligada à própria construção coletiva acerca da necessidade de uma comunicação pública gerada no seio de mobilizações da comunidade académica da área, de sindicatos e movimentos sociais ao longo dos últimos 30 anos de democracia e começou a tomar forma prática, ainda que de maneira incipiente e precária, já nos últimos anos da Radiobrás, durante o primeiro mandato do governo Lula.

Apesar das divergências de abordagens sobre comunicação pública, pode dizer-se que o debate em prol do direito à informação e à comunicação, pela democratização dos meios de comunicação e em defesa das rádios comunitárias, ocorrido antes e durante os anos 1990, e a efervescência das reivindicações por mais participação e inclusão de diferentes grupos que compõem a sociedade brasileira no sistema público de radiodifusão nos anos 2000 constituíram fatores essenciais para a formulação de parâmetros do que seria uma comunicação pública alinhada com a promoção da cidadania e da diversidade.

Ainda que sempre tenha havido no Brasil uma preocupação com a divulgação de informação do Estado (em determinados períodos históricos sob a forma de propaganda), no sentido pleno do termo público, a comunicação pública é finalmente entendida como diferente de comunicação governamental ou de comunicação política. O debate sobre a pertinência e a relevância do setor público – que admite várias fontes de financiamento[4] – tende a pôr em causa esta distinção, mas à luz da lei, os princípios e objetivos dos serviços de radiodifusão pública explorados pelo poder executivo ou outorgados a entidades da sua administração indireta não se confundem com a promoção dos governos. De acordo com o Artº 2º da Lei 11.652, os princípios inerentes à prestação dos serviços de radiodifusão pública passam pela “promoção do acesso à informação por meio da pluralidade de fontes de produção e distribuição do conteúdo”, assim como pela “produção e programação com finalidades educativas, artísticas, culturais, científicas e informativas” e pela “promoção da cultura nacional, estímulo à produção regional e à produção independente”. Diz ainda a lei que o serviço de radiodifusão pública supõe “autonomia em relação ao governo federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema público de radiodifusão”, e a “participação da sociedade civil no controle da aplicação dos princípios do sistema público de radiodifusão, respeitando-se a pluralidade da sociedade brasileira”.

Portugal-Brasil: comparar o “quase incomparável”

De acordo com o sentido genérico de senso comum, o ato de comparar está profundamente vinculado à identificação de semelhanças (e eventualmente de diferenças). Olhar para a experiência de serviço público de média em Portugal e para a experiência de comunicação pública no Brasil é um exercício que não esconde esta tentação. As razões que sugerem uma apreciação comparativa neste caso estão, no entanto, menos baseadas na expectativa de encontrar coincidências e mais relacionadas com a suposta proximidade afetiva entre dois países que falam a mesma língua. Ao procurar “teorizar sobre o papel do contexto” (Mancini & Hallin, 2012, p. 515), a abordagem proposta neste artigo tem presente que, sobretudo por questões de dimensão (histórica, geográfica e administrativa), Portugal e o Brasil seriam do domínio do “quase incomparável”.

Em Portugal, a história da radiodifusão tem, como dissemos antes, a marca visível da mão do Estado. Depois da criação em 1922 da Sociedade Portuguesa de Amadores de Telefonia sem Fio, a Emissora Nacional de Radiodifusão (EN), obra do Estado Novo (especialmente de António Ferro e António Oliveira Salazar), viria a apresentar-se, a partir de 1935, como a primeira rádio nacional. É também ao Estado Novo, embora pela figura de Marcello Caetano, que se deve a introdução da televisão em Portugal e a inauguração das emissões regulares da RTP, em 1957, que atuariam em regime de monopólio até à década de 1990. Ao contrário, no Brasil, a história da radiodifusão teve início pela atuação de privados – a rádio pela iniciativa de Edgar Roquette Pinto, que inaugurou em 1923 a Rádio Sociedade; a televisão graças ao jornalista e empresário Assis Chateaubriand, que fundou em 1950, o primeiro canal de TV do país, a TV Tupi em São Paulo.

É possível que a diferente origem da rádio e da TV nos dois países não seja especialmente significativa em matéria de serviço público e de comunicação pública. Não deixa, no entanto, de ser curioso que onde o Estado esteve desde o início no domínio dos média audiovisuais o sistema de serviço público seja, pelo menos aparentemente, mais estável.

Não obstante esta diferença histórica, e embora os dois países coincidam em matéria daquilo que foi a instrumentalização de meios de comunicação para efeitos de propaganda política nos períodos de censura, o Brasil parece ser mais explícito na defesa, ainda hoje, de meios de comunicação que tenham por finalidade dar visibilidade à ação das instâncias de poder. Assumidamente, há, no Brasil, órgãos de comunicação promovidos por entidades públicas (como a TV Senado, que tem uma vasta programação própria e dispõe de canais UHF em praticamente todos os estados do país) para transmitir eventos e informação ligada a atividades de caráter oficial. Talvez o único equivalente deste setor em Portugal seja o Canal Parlamento, que, de acordo com a Resolução da Assembleia da República nº 37/2007, de 20 de agosto, se destina a disponibilizar “o sinal da rede interna de vídeo da Assembleia da República, para efeitos da sua distribuição através das redes públicas e privadas de televisão por cabo” (Artº 2º). Não existindo em Portugal, a distinção que se faz no Brasil entre meios estatais e meios públicos não parece ser suficiente para legitimar a comunicação pública como um sistema diferente daquele que procura assegurar a comunicação de caráter institucional.

Também o sistema de financiamento dos média públicos é bem distinto em Portugal e no Brasil. Se no Brasil se admitem fontes de receita diversas, como assinalámos no ponto anterior, no caso português, todo o trabalho realizado pela empresa pública, a RTP, é financiado pela Contribuição Audiovisual e pela publicidade distribuída exclusivamente na RTP 1.

Do ponto de vista da estrutura organizativa, tanto o sistema português como o sistema brasileiro, baseados respetivamente na RTP e na EBC, assentam na existência de um conselho de administração e de um conselho fiscal; até meados de 2016, ambos tinham também uma estrutura de assessoria constituída por membros externos à empresa. A RTP mantém neste domínio o Conselho de Opinião e o Conselho Geral Independente, tendo desaparecido, por decisão do governo de Michel Temer, o Conselho Curador da EBC. Mantêm ainda as duas empresas um sistema de relacionamento com o público, a RTP através das figuras do Provedor do Telespectador e do Provedor do Ouvinte, e a EBC através de um Gabinete de Ouvidoria, que é, na verdade, bastante mais administrativo e amplo do que o serviço português (Oliveira & Paulino, 2012; Paulino & Oliveira, 2014).

É certo que o serviço público de média enquanto tal só existe em Portugal desde a década de 1990, o que significa que só antecede o sistema de comunicação pública do Brasil em pouco mais de uma década. No entanto, dado que a paisagem mediática portuguesa está menos fraturada do que a brasileira (até por questões de menor dimensão geográfica), as emissoras de rádio e de televisão do grupo RTP constituem hoje um setor de relativa estabilidade. Ao contrário, por razões essencialmente políticas, os órgãos que compõem a EBC tornaram-se naquilo que alguns média brasileiros chamaram de “nova obsessão de Temer”[5].

Com efeito, após um período de grande instabilidade, ainda no governo de Dilma Rousseff, no que diz respeito ao que deveria ser uma empresa de comunicação de caráter público, os dilemas de legitimidade, independência financeira e autonomia política em relação ao Poder Executivo voltaram a rondar a experiência da EBC e do sistema público como um todo. Num momento em que a RTP beneficia de um período de alguma tranquilidade social a respeito da ideia de serviço público, a EBC iniciou em junho de 2016, um período crítico de vulnerabilidade, agravado pela tomada de posse de Michel Temer como Presidente da República em agosto do mesmo ano.

Oito anos após a criação da Empresa Brasil de Comunicação e da definição, em lei, dos princípios de uma comunicação pública cidadã, a mudança abrupta no cargo máximo do Poder Executivo provocou um forte impacto nos destinos do sistema público de comunicação brasileiro, deixando em aberto o futuro do serviço público de radiodifusão. Ainda na interinidade, o novo presidente havia exonerado o diretor da EBC, que tinha sido nomeado alguns dias antes e tinha garantido, por lei, um mandato de quatro anos. Um novo diretor foi imediatamente nomeado, mas a sua posse foi posta em suspenso por uma liminar[6] concedida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal a pedido do diretor afastado. Após a confirmação de Michel Temer na Presidência da República em virtude do impeachment de Dilma Rousseff, uma Medida Provisória redefiniu o organograma da EBC, extinguiu o Conselho Curador e alterou a composição do Conselho de Administração inserindo novos representantes do Governo Federal.

Os desafios de sempre e novos reptos para o setor público de comunicação

Os serviços públicos de radiodifusão (rádio e TV) são frequentemente apresentados como cruciais para o desenvolvimento de sociedades democráticas, dado orientarem-se por um ideário que visa promover acesso à informação, diversidade e identidade cultural, além de mecanismos que favoreçam a inclusão social e a participação dos cidadãos no debate público. Contrariando a ideia de que o serviço público de média é coisa do passado, David Hendy defende que “o serviço público de radiodifusão tem hoje intensamente mais importância do que nunca” (Hendy, 2013, p. 4). No livro Public Service Broadcasting – que Hendy diz não ser sobre a BBC, nem sobre políticas de regulação – o autor sugere que o serviço público é, acima de tudo, um ethos.

É, pois, comum entre os defensores deste setor a ideia de que as emissoras públicas de rádio e TV têm potencial para proporcionar um complemento efetivo relativamente aos serviços comerciais, ao procurar satisfazer as necessidades de informação e os interesses aos quais o mercado não chega a responder. Tradicionalmente, os organismos de radiodifusão de serviço público em países pioneiros (como Inglaterra, Alemanha e Itália) foram operados como monopólios protegidos pela lei. Tal perspetiva deixou de ser uma realidade nas últimas três décadas com a entrada de competidores da iniciativa privada. Hoje, está em vigor um “duplo sistema”, baseado no equilíbrio entre organismos de radiodifusão de serviço público e comerciais. De acordo com Toby Mendel (2011, p. vii), em lugares como Espanha, as emissoras públicas estão a perder audiência. Porém, no Reino Unido e nações nórdicas, existem emissoras de serviço público que encontram forte apoio entre os cidadãos e que, com isso, são capazes de manter grandes fatias da audiência.

Em Portugal, as principais emissoras de televisão e de rádio do serviço público, a RTP 1 e a Antena 1 respetivamente, disputam as audiências em valores muito próximos aos dos operadores privados de sinal aberto. Não é, pois, nesse campo que se situam os principais desafios do sistema público de radiodifusão, que só em projetos assumidamente mais marginais – como a RTP 2 e a Antena 2 – regista audiências residuais. Ao contrário do que acontece no Brasil, os canais de rádio e de televisão de serviço público em Portugal estão relativamente bem integrados na paisagem mediática, fazendo parte do conjunto mainstream.

A aparente tranquilidade política do tema no contexto português não apaga, porém, em definitivo, os pontos críticos experimentados por este setor. Embora talvez com menos acento do que a crise em que mergulhou o projeto da EBC durante o ano de 2016, também em Portugal o serviço público de média atravessou já delicados períodos de discussão pública. Em março de 2002, por exemplo, com a eleição do governo social-democrata de Durão Barroso, o tema tornou-se quente, já que, confrontado com a grave situação económica da empresa na altura, o Executivo “substituiu – de forma polémica – a Administração, apontou a eventualidade de reduzir o número de canais e o do pessoal e colocou sobre a mesa o cenário de extinção da empresa” (Pinto, 2005, p. 12).

Desde então, apesar de mais moderadamente, o serviço público de média faz parte da agenda regular tanto em termos públicos como no círculo académico. Muito mais centrado na televisão do que no meio rádio, como refere Sílvio Correia Santos, “a discussão acerca do SP é uma discussão desequilibrada”, porque “não se fala da rádio pública, ou da internet, mas sim da televisão” (Santos, 2013, p. 1). Como bem comprova a produção científica sobre o tema, é a televisão que habitualmente domina em matéria de serviço público[7]. Tornar o debate mais equitativo e revalorizar o domínio da rádio seria, pois, um dos desafios que, pelo menos do ponto de vista académico, se imporia em matéria de políticas de comunicação para o setor público.

Seria também um desafio para o serviço público português resolver a questão da sua legitimação. Com efeito, esta é, a vários níveis, a ferida sempre aberta. Ora pelo modelo de financiamento ora pela questão da autonomia e independência dos operadores relativamente ao poder político, o serviço público de média em Portugal defronta-se sistematicamente com a imputação de concorrência desleal ao setor privado e com a sua inscrição no domínio da ideologia política. Ao referir-se à televisão, Eduardo Cintra Torres assinala que “a cristalização ideológica do serviço público de TV se transforma em ideias feitas que parece não se poderem sequer pôr em causa, como se de crenças religiosas se tratasse” (Torres, 2011, p. 81).

As responsabilidades ao nível da produção e distribuição de conteúdos alternativos (que fujam ao padrão da programação orientada exclusivamente para a conquista de audiência), a necessidade de associar os operadores a preocupações com a literacia mediática (nomeadamente através de programação de qualidade para a infância e de programas didáticos para todos os públicos) e a constante atualização tecnológica são alguns dos reptos que continuam a impor-se no debate sobre o serviço público de média em Portugal. Se estes são capítulos mais ou menos recorrentes, parece também começar a questionar-se o próprio posicionamento global do serviço público, nomeadamente no que diz respeito à estratégia dos operadores para o Brasil, onde os canais internacionais têm fraca penetração[8].

Com a introdução das figuras do Provedor do Ouvinte e do Telespectador em 2006, o serviço público de média português cumpriu uma das recomendações enunciadas por investigadores do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade que em 2003 haviam sugerido que “uma televisão de serviço público deve descobrir e desenvolver modos de participação do público no acompanhamento regular do seu trabalho” (Pinto, 2005, p. 135). Continua, no entanto, a ser um desafio a aliança a centros de investigação para o desenvolvimento de estudos aplicados, um projeto em que a EBC, no Brasil, se apresentou com mais convicção graças a convénios específicos com algumas universidades, nomeadamente com a Universidade de Brasília. Por outro lado, apesar da dedicação às comunidades internacionais de Língua Portuguesa, continua a ser também um desafio para os operadores de serviço público a aproximação às comunidades locais, numa altura em que perdem progressivamente expressão os centros de produção regional.

No caso brasileiro, a principal ameaça à comunicação pública é composta por investidas de autoridades governamentais que desejam exercer domínio sobre as emissoras e aumentar o seu capital político utilizando-as como seus porta-vozes. Ao fazerem isso, acabam por minar a independência das emissoras públicas e a qualidade das notícias e da programação através de práticas governamentais de controle.

No Brasil, em princípio, as licenças de radiodifusão são de titularidade pública e a Constituição assegura a complementaridade dos sistemas público, estatal e privado. Na prática, o modelo é demasiadamente híbrido. As emissoras de rádio e televisão necessitam de concessões, outorgadas e renovadas pelo Congresso Nacional segundo, supostamente, o interesse público, mas a busca pela audiência e a existência de interesses privados de alguns grupos afastam emissoras de rádio e TV de práticas de pluralidade e de diversidade características da radiodifusão pública.

Por outro lado, as emissoras não comerciais, por terem surgido maioritariamente de iniciativas de governos estão, na sua maioria, vinculadas ao aparato do Poder Executivo, e convivem com uma estrutura administrativa centralizada, marcada pela atuação sem independência editorial e financeira, não submetidas a mecanismos de transparência e accountability. Os entraves económicos dificultam e até inviabilizam a manutenção de suas programações com a devida inovação e o grau de qualidade de produção exigidos pela radiodifusão contemporânea.

No entanto, no caso brasileiro e em outros países da América Latina, com a ascensão ou reafirmação no poder, na última década, de governos de partidos historicamente relacionados com grupos de defesa da democratização da comunicação, teve ao menos início um processo de reorganização dos canais educativos, culturais ou estatais, aproximando-os de preceitos que os caracterizam como serviço público. As recentes tentativas de implantar mudanças – algumas tímidas e outras mais abrangentes – nos marcos normativos, como a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), indicava algumas pistas no processo de transformação e amadurecimento do país para estabelecer acordos em torno da proposta de oferecer à população um serviço público de radiodifusão independente e democrático.

A EBC tentou afirmar-se como uma opção ao modelo de radiodifusão vigente, pois pretende ser efetivamente pública. Em decorrência das associações referentes ao que é público, no Brasil, porém, ela, desde o seu início, correu um risco de legitimação. Afinal, público é visto, muitas vezes, como ineficiente, burocrático, corrompido e inoperante; ou público é visto como o que pode ser dilapidado, já que “não seria de ninguém”. Além do mais, o modelo brasileiro tenta definir e separar o que é público do governamental e do estatal. O esforço da EBC tem sido distanciar-se da mera divulgação dos atos do governo, ou dos governos, e ter como parâmetro, na informação e no entretenimento, o interesse público.

Mesmo procurando garantir a independência, o facto de a sua sustentabilidade depender de fundos públicos enfrenta resistências. A lei de criação da EBC previu que o seu financiamento seja constituído, em parte, pela Contribuição para o Fomento da Radiocomunicação Pública com recursos oriundos do Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel). Embora não houvesse com a medida uma nova taxação, as empresas de telefonia brasileiras moveram uma Ação Direta de Inconstitucionalidade em 2009 para questionar o Fundo, com depósito do valor em juízo, e até agora apenas uma parte desse recurso foi realmente disponibilizado.

Mesmo assim, é necessário que haja uma regulamentação para definir como e onde esse recurso será empregado, já que a EBC ganha capilaridade no país por meio de contratos de parcerias com emissoras educativas, sobre as quais incide mais fortemente a interferência dos governos estaduais e a ausência de investimentos em conteúdos e infraestrutura. E essas emissoras também teriam direito a uma parte dessa contribuição, com o intuito de fortalecer o papel de cada uma em âmbito local e nacional. Dessa forma, sem poder contar efetivamente com essa contribuição, a EBC continua a ser dependente dos recursos do Tesouro Nacional, impedida de anunciar bens e serviços de empresas privadas, apesar de fazer propaganda de órgãos públicos e receber apoio cultural para algumas produções.

Outra dificuldade de legitimação do serviço público de radiodifusão no Brasil é a sua alegada baixa audiência, um dos motivos utilizados pelos novos governantes para justificar o seu enxugamento. Além disso, as empresas privadas divulgam uma série de matérias nos média em que é abordado o alto custo da radiodifusão pública e o reduzido número de telespectadores, ouvintes e leitores alcançados. Esse questionamento coloca em xeque a capacidade do serviço público de estabelecer, renovar e potencializar os vínculos com a audiência, ou seja, com o próprio cidadão brasileiro. Relação esta que tende a ser ciclicamente redefinida nos seus significados a partir de cenários sociais, políticos, culturais e económicos cada vez mais dinâmicos e mutantes.

Há que considerar ainda que as mudanças ocorridas no panorama audiovisual nos últimos anos a nível mundial, com o desenvolvimento de tecnologias digitais, das plataformas de propriedade pagas e de serviços de comunicação online, também tem afetado o tradicional duplo sistema de radiodifusão e a concorrência editorial (em termos de qualidade e diversidade dos conteúdos), tornando necessário aos órgãos públicos e privados de radiodifusão diversificar as suas operações e encarar novas plataformas de distribuição. Com um amplo leque de opções disponível aos utilizadores, as emissoras públicas enfrentam dificuldades para justificar quase continuamente a sua existência e, em particular, os gastos e recebimento de recursos públicos.

Ao mesmo tempo, as plataformas digitais contemporâneas podem representar uma oportunidade para as emissoras se aproximarem da audiência. Toby Mendel (2011, pp. 19-20) sugere que os veículos públicos possam constituir com o uso de novas plataformas digitais um espaço de credibilidade e confiabilidade, e desempenhar um papel de construção de pontes com vista à fragmentação dos média. O autor sugere utilizá-las para aumentar a acessibilidade dos seus serviços e para oferecer novas opções, incluindo os serviços de média interativos, de modo a alcançar todos os públicos e, em particular, os jovens.

Em suma, a ideia é que as rádios e TV públicas façam uso amplo e variado das novas tecnologias, a fim de facilitar e ampliar a prestação dos serviços no cumprimento das suas competências de serviço público. O que tem sido reforçado em resoluções internacionais, tais como Diretivas da União Europeia chamando a atenção para a necessidade de preservação da “competência social especial” das emissoras no novo ambiente digital, sem deixar de ter flexibilidade para aproveitar os novos desenvolvimentos tecnológicos em transformação.

Independentemente, porém, do potencial uso das tecnologias digitais, a EBC segue em impasses no que diz respeito à atividade jornalística. Do ponto de vista institucional, houve um esforço nos últimos anos (ao menos nos documentos de referência oficiais) em vincular a produção noticiosa a objetivos que representem os interesses dos cidadãos. Na prática, entretanto, o jornalismo público não se diferiu muito do que é oferecido pelas emissoras privadas, seja do ponto de vista de conteúdo, seja do ponto de vista de conceito. É o caso, por exemplo, do jornalismo das emissoras de rádio da EBC Nacional AM, Nacional FM e Rádio Mec. O tempo curto, o uso de notas como formato preponderante, a falta de contextualização das informações nas matérias e o predomínio de fontes oficiais são algumas das características que indicam um jornalismo produzido a partir do modelo da experiência comercial de radiojornalismo no Brasil (Guazina & Paulino, 2015).

Já do ponto de vista de gestão, uma série de mudanças internas foi realizada após a incorporação da antiga Radiobrás pela EBC, inclusive com a renovação de profissionais via concurso público e redefinição de parâmetros de atuação profissional. No entanto, ainda pode ser observado na programação jornalística a necessidade de uma conceção sobre o papel do jornalismo no conjunto das atividades da EBC e qual a sua contribuição efetiva no cumprimento das promessas relacionadas à cidadania objetivadas nos princípios da empresa.

Se o atual estágio do serviço público de radiodifusão já não era animador, agora ainda mais se pode temer pelo futuro. Em termos de políticas públicas, não há sinalização do Governo Federal brasileiro no sentido de promover mudanças que diminuam as assimetrias de poder (em termos de orçamento, equipamentos, audiência, etc.) entre as emissoras públicas e emissoras privadas; pelo contrário, não há sequer o reconhecimento de que a comunicação pública é importante para a sociedade brasileira e representa uma conquista da cidadania.

Cultura e identidade de expressão portuguesa

Num texto de 1997, Dave Atkinson explica que a primeira razão que justificou o serviço público de radiodifusão foi de ordem técnica (Atkinson, 1997, p. 19). Hoje, porém, no complexo sistema mediático entretanto desenvolvido, as razões que podem ainda sustentar uma ideia de serviço público de média inscrevem-se essencialmente no domínio cultural. Para além da necessidade de garantir uma plêiade de serviços e produtos que não se coadunam com imperativos de ordem económica, do serviço público de média espera-se que contribua para o desenvolvimento social e cultural dos países que representa[9]. Não obstante as diferentes experiências de Portugal e do Brasil, cujos sistemas de média são, afinal, tão distintos, há pelo menos uma razão que justifica a abordagem comparativa que se procurou desenvolver neste artigo: a de defender uma função cultural de aproximação entre os dois países. Com efeito, para além de todas as motivações de princípio que se atribuem à defesa do serviço público de média, a promoção de práticas culturais de expressão portuguesa e o estreitamento de laços interculturais, a par da necessidade de fomentar uma cidadania mais comprometida, são hoje um dos principais argumentos que sustentam a insistência por um sistema público de comunicação. No limite, ao serviço público de média se pede atualmente que salvaguarde a(s) identidade(s) nacionais dos perigos que a globalização significa para a diversidade cultural.

 

Referências bibliográficas

Atkinson, D. (1997). Overview of a crisis. In D. Atkinson & M. Raboy (Eds.), Public service broadcasting: the challenges of the twenty-first century (pp. 19-30). Paris: Unesco.         [ Links ]

Cádima, F. R. (2012). A relegitimação do serviço público de televisão em Portugal no contexto de hiperfragmentação da oferta. Anuário Internacional de Comunicação Lusófona, 25-33.         [ Links ]

Guazina, L. S. & Paulino, F. O. (Eds.) (2015). Relatório final do monitoramento EBC-UnB. Brasília: Universidade de Brasília.         [ Links ]

Hendy, D. (2013). Public service broadcasting. London: Palgrave Macmillan.         [ Links ]

Mancini, P. & Hallin, D. (2012). Some caveats about comparative research in media studies. In H. A. Semetko & M. Scammell (Eds.), Handbook of political communication (pp. 509-517). Thousand Oaks: Sage Publications.         [ Links ]

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Pinto, M. (2005). Serviço público - uma perspetiva. In M. Pinto (Ed.), Televisão e cidadania: contributos para o debate sobre o serviço público (pp. 11-21). Porto: Campo das Letras.         [ Links ]

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Sousa, H. & Santos, L. A. (2005). RTP e serviço público: um percurso de inultrapassável dependência e contradição. In M. Pinto (Ed.), Televisão e cidadania: contributos para o debate sobre serviço público (pp. 61-80). Famalicão: Campo das Letras.         [ Links ]

Torres, E. C. (2011). A televisão e o serviço público. Lisboa: FFMS/Relógio d'Água.         [ Links ]

Outras referências

DOU/1988, de 5 de outubro, República Federativa Brasileira [Constituição da República Federativa Brasileira]

Lei Constitucional 1/2005, de 12 de agosto, República Portuguesa [Constituição da República Portuguesa].

Lei nº 27/2007, de 30 de julho, República Portuguesa.

Lei nº 54/2010, de 24 de dezembro, República Portuguesa.

Lei 11.652, de 7 de abril de 2008,         [ Links ] República Federativa Brasileira.

Resolução da Assembleia da República nº 37/2007, de 20 de agosto, República Portuguesa.

 

 

Nota biográfica

Fernando Oliveira Paulino é Professor Adjunto e Diretor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília; é investigador do Laboratório de Políticas de Comunicação daquela universidade e Diretor de Relações Internacionais da ALAIC, Associação Latino-Americana de Investigadores de Comunicação.

Email: paulino@unb.br

Faculdade de Comunicação

Universidade de Brasília

Campus Universitário Darcy Ribeiro

Asa Norte

Brasília-DF, 70910-900, Brasil

Liziane Guazina é Professora Adjunta e Vice-Diretora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, onde coordena o Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política, sendo também membro do Grupo de Pesquisa Cultura, Mídia e Política. Dedica-se à investigação sobre média e política, jornalismo político e comunicação pública.

Email: guazina@unb.br

Faculdade de Comunicação

Universidade de Brasília

Campus Universitário Darcy Ribeiro

Asa Norte

Brasília - DF, 70910-900, Brasil

Madalena Oliveira é Professora Associada do Instituto de Ciências Sociais e investigadora integrada do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho; é vice-presidente da Sopcom, Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação; na investigação científica dedica-se às áreas de rádio e som, jornalismo e linguagens e políticas de comunicação.

Email: madalena.oliveira@ics.uminho.pt

Instituto de Ciências Sociais

Universidade do Minho

Campus de Gualtar

4710-057 Braga, Portugal

 

* Submetido: 15-03-2016

* Aceite: 15-04-2016

 

 

Notas

[1] Ver http://media.rtp.pt/institucional/wp-content/uploads/sites/31/2015/07/contratoConcessao2015.pdf.

[2] Ver http://www.ebc.com.br/institucional/sobre-a-ebc/canais-ebc-e-parceiros/2014/03/canais-ebcparceiros.

[3] Ver http://www.ebc.com.br/institucional/sites/_institucional/files/atoms/files/relatorio_de_gestao_ebc_-_2014_0.pdf.

[4] De acordo com o Artº 11º da Lei 11.652, os recursos da EBC provêm de dotações orçamentárias, de uma Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública, da prestação de serviços, de doações, de publicidade institucional e de distribuição de publicidade legal de entidades da administração federal, etc.

[5] Ver, por exemplo, http://www.cartacapital.com.br/revista/918/ebc-a-nova-obsessao-de-temer.

[6] Uma liminar será o equivalente àquilo que no direito português se chama de providência cautelar.

[7] No quadro da produção científica portuguesa, encontram-se vários trabalhos dedicados à televisão e ao serviço público. Destacam-se neste domínio, para além do grupo de investigadores do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade que publicaram Televisão e cidadania, em 2005 (já referido neste texto), Eduardo Cintra Torres, autor de A televisão e o serviço público (Torres, 2011) e Francisco Rui Cádima, que tem publicado alguns artigos na perspetiva da televisão (Cádima, 2012).

[8] Esta é uma dimensões em discussão na tese de doutoramento que o ex-jornalista da RTP Carlos Fino prepara na Universidade do Minho (cotutela com a Universidade de Brasília).

[9] Este é o acento particular do projeto “Políticas de comunicação, radiodifusão pública e cidadania: subsídios para o desenvolvimento sociocultural de Portugal e do Brasil”, desenvolvido pelo Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho e pela Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, com o financiamento da FCT e da Capes.

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