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Comunicação e Sociedade
versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575
Comunicação e Sociedade vol.36 Braga dez. 2019
https://doi.org/10.17231/comsoc.36(2019).2341
ARTIGOS TEMÁTICOS
Resgatar a participação: para uma crítica sobre o lado oculto do conceito
Rescuing participation: a critique on the dark participation concept
Nico Carpentier*
https://orcid.org/0000-0002-8996-4636Ana Duarte Melo**
https://orcid.org/0000-0002-4598-7174Fábio Ribeiro***
https://orcid.org/0000-0002-8996-4636 // //*Instituto de Estudos da Comunicação e Jornalismo, Universidade Charles, República Checa, nico.carpentier@fsv.cuni.cz. //
//**Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Portugal, anamelo@ics.uminho.pt. //
//***Departamento de Letras, Artes e Comunicação, Escola de Ciências Humanas e Sociais,
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro / Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Portugal, fabior@utad.pt. //
RESUMO
Este artigo regressa a uma teorização aprofundada sobre o conceito de participação, com o objetivo de refletir sobre a natureza da participação e demonstrar alguns dos problemas inerentes às publicações que distinguem entre formas de participação claras e escuras. O ponto de partida do artigo é uma discussão sobre três limites inscritos no conceito de participação. O primeiro limite leva-nos a uma discussão antiga sobre a natureza da participação, o foco no poder e o que é incluído e excluído nestas definições. O segundo limite do conceito de participação tem como tema uma série de distinções, nomeadamente aquelas entre participação, a sua condição de possibilidade (acesso e interação) e os seus resultados. O terceiro limite que (potencialmente) estrutura a participação é da imposição da cultura democrática. Em resposta a estes debates, o artigo apresenta uma abordagem mais positiva, focada no que foi ignorado por muito tempo, a saber, as razões pelas quais a participação é importante. Aqui, o artigo fornece uma reflexão estrutural sobre as contribuições para este número da revista e constrói um modelo teórico que consiste em associar estas três lógicas, a saber, uma lógica social, política e fantasmagórica, permitindo entender melhor as razões pelas quais a participação é importante.
Palavras-chave:
condições de possibilidade; definição de participação; cultura democrática; limites de participação; teoria participativa; relevância da participação.
ABSTRACT
This article returns to the in-depth theorisations about participation in order to reflect about the nature of participation, and to demonstrate some of the problems inherent to the publications that distinguish between light and dark (forms of) participation. The starting point of the article is a discussion on three limits embedded in the concept of participation. The first limit brings us back to the old discussion on the nature of participation, the focus on power, and what is included and excluded through its definition(s). The second limit of the participation concept thematises a series of distinctions, namely those between participation, its condition of possibility (access and interaction) and its outcomes. The third limit that (potentially) structures participation is the limit imposed by democratic culture. In response to these debates, the article introduces a more positive approach, that focuses on what has been ignored for too long, namely the reasons why participation matters. Here, the article provides a structural reflection on the contributions to the "Rescuing Participation"special issue, and constructs a theoretical model that consists out of three logics, namely a social, political and fantasmagoric logic, allowing us to better understand why participation matters.
Keywords: conditions of possibility; defining participation; democratic culture; limits of participation; participatory theory; relevance of participation.
Tudo isto me leva a colocar uma questão que tem estado a pairar no nosso debate coletivo que já dura há mais de dois meses será que existe "má participação"? O modelo proposto por Nico Carpentier oferece uma resposta, tal como eu a entendo: coloca a fasquia muito alta sobre o que conta como participação, mais um ideal do que propriamente uma realidade concreta e alcançável. A participação requer ainda uma distribuição equitativa do poder entre participantes, quando convidados a tomar uma decisão conjunta. Porém, o meu trabalho centra-se na descrição de oportunidades participativas entre diferentes instituições, comunidades, práticas, infraestruturas, como formas transitórias de luta e negociação para a promoção de uma cultura participativa. Segundo a perspetiva de Carpentier, a participação é algo que, na melhor das hipóteses, conseguimos alcançar apenas de forma imperfeita. Quanto a mim, a participação opera essencialmente em diversos graus de possibilidade. (Henry Jenkins citado por Jenkins & Carpentier, 2019a)
Introdução
A participação assume-se como um conceito teórico que tem vindo a flutuar sobre diferentes níveis de interesse e fascínio, o que, em parte, deriva da multiplicidade de conjunturas históricas e políticas (Carpentier, Dahlgren & Pasquali, 2013). No campo da comunicação e dos estudos dos média, os anos 1960 e 1970 foram particularmente significativos para a promoção dos direitos associados à comunicação. Enquanto a popularização da World Wide Web, nos anos 1990, potenciou o interesse pela interação e interatividades, a mudança para uma segunda geração de serviços web (geralmente referida como Web 2.0), no início do novo século, introduziu um redobrado interesse pela participação no quadro da investigação sobre Comunicação e Média.
Depois de mais de uma década após um novo fascínio pela participação, e mais concretamente na esfera da comunicação e dos média, uma nova alteração conjuntural parece estar a emergir. Diferentes grupos na sociedade levantam constantemente questões sobre a participação, por uma série de razões. Por exemplo, alguns profissionais dos média sentem-se pressionados para auscultar o público, sem terem propriamente as condições ideais ou recursos para integrarem efetivamente a voz do público nas suas produções. Muitos formatos participativos, dinamizados pelos média, não mais serão do que estratagemas encapotados de "marketing", pensados apenas para preencher grelhas de programação ou assegurar posições confortáveis nas audiências. Vai neste sentido a perceção de Rosa Moreno (2006), ao sublinhar que a participação do público nos média e no jornalismo assumem a configuração de um "affaire technique", o que significa que as produções mediáticas entendem que os cidadãos podem servir os interesses do entretenimento, em vez de promoverem debates com verdadeiro interesse público.
Os formatos noticiosos parecem reféns de lutas ideológicas (Silva, 2013), desligados da busca pelo valor da verdade, transformando intrigas e mexericos em armas políticas. A frustração ainda se torna mais expressiva quando o resultado da participação se torna pouco substantivo, na medida em que serve os interesses de elites poderosas (ativas nos campos da economia, política ou comunicação, por exemplo), que validam assim as suas decisões. Por isso não será incomum verificar que alguns órgãos de comunicação social apresentam secções lotadas de comentários, com páginas web repletas de ódio e preconceito, com utilizadores que escrevem mais do que propriamente ouvem e leem, frustrando aquilo que seria eventualmente desejável num debate coletivo e racional. Estes espaços de comentário envolvem uma grande fatia da atenção e mobilização do público, como demonstram Stroud, Duyn e Peacock (2016). Para além da esfera mediática, os governos são por vezes visados por exércitos de trolls e de outras formas de resistência, que colocam em causa a representatividade democrática tradicional, colocando o "povo"como uma ameaça à democracia e não como uma parte integrante da mesma. De um ponto de vista bastante ideológico, a falta de confiança na capacidade dos cidadãos no envolvimento em práticas democráticas é apenas uma parte da mudança na crença num sistema de uma elite cada vez mais forte, um pensamento que calibra a relação entre o povo e as "suas"elites.
Estes acontecimentos recentes motivaram a publicação de diversos trabalhos sobre o lado oculto da participação ou, por outra perspetiva, da participação negativa. Mesmo que estas publicações não utilizem grande suporte teórico, colocando a ênfase da negatividade em diversos aspetos da participação, existem sinais claros que apontam para uma reconfiguração da participação com evidentes problemas. Por exemplo, no artigo de Tzur, Zalmanson e Oestreicher-Singer (2016), "The dark side of user participation", discute-se de que forma os componentes interativos dos websites podem reforçar a confiança nestes espaços, ao mesmo tempo que se levanta a dúvida sobre a instrumentalização da participação neste âmbito; o artigo de Bouchard (2016), "The dark side of public participation", centra-se no caso da Lei da Prostituição canadiana e no modo como a consulta pública online legitimou as decisões do governo. Já o trabalho de Lutz e Hoffman (2017), intitulado "The dark side of online participation", procura sistematizar uma tipologia de práticas participativas, incluindo uma variedade de categorias que definem a natureza negativa ou indesejável da participação online, como o envolvimento destrutivo, a imposição involuntária, o silenciamento, a autocensura e a exclusão. Por fim, os artigos de Quandt (2018) e Frischlich, Boberg e Quandt (2019) utilizam o conceito de participação oculta numa crítica sobre as origens primitivas do jornalismo, ligado "à recente onda de populismo nas democracias ocidentais"e "que se caracteriza por contribuições negativas, egoístas ou mesmo profundamente sinistras"(Quandt, 2018, p. 40)
Este artigo procura seguir um caminho diferente, na medida em que procura regressar a uma certa teorização sobre participação que existe, claramente, como sugere a citação de abertura deste trabalho (Jenkins & Carpentier, 2019a) para refletir sobre a natureza deste conceito e demonstrar alguns dos problemas que diversas publicações apontam quando distinguem entre formas de participação moderadas e ocultas. Com este trabalho procura-se, ainda, introduzir uma perspetiva mais positiva, que se foca numa abordagem que tem vindo a ser ignorada e que se relaciona com a pertinência da participação. Neste sentido, defende-se que a legitimação da participação é necessária e deveria ser validada de um modo mais robusto, para não se cair numa lógica de argumentos bem-intencionados. Consideramos, portanto, que é necessário dinamizar mais estudos académicos que protejam, defendam e resgatem a participação.
Definições de participação
Um dos pontos naturais neste debate consiste na discussão sobre o conceito de participação. De acordo com vários estudos nesta área (Carpentier, 2011, 2016, 2017), a participação define-se estruturalmente por diferentes significados, consoante as mais distintas tradições teóricas e históricas, o que tem vindo a promover uma certa imprecisão em torno deste termo. Ainda assim, duas abordagens podem ser apresentadas, que sugerem diferentes perceções sobre o conceito de participação.
Por um lado, a abordagem sociológica define participação como uma forma de fazer parte de uma determinada realidade, o que resulta numa interação social concreta. Dependendo do campo considerado, entende-se por participação a visita a um museu, a prática de uma modalidade desportiva, ver televisão, marcar presença no espaço online, entre outras possibilidades.
Por outro, uma abordagem política sobre participação encara o conceito como uma forma de partilhar o poder. Esta perspetiva baseia-se na teoria democrática, um sistema político que sempre se definiu na tensão entre representação (ou delegação do poder) e a participação (ou o exercício do poder) (Held, 1996). No entanto, estas linhas de pensamento não significam que a participação seja apenas um desiderato da política institucionalmente concebida. O trabalho de Arnstein (1969), "A ladder of citizen participation", surge como um destes exemplos concretos, na medida em que enquadra a participação dos cidadãos no planeamento urbano, uma área com evidentes conotações políticas, mas que o artigo procura transcender. Por isso, no artigo, reflete-se sobre a forma como os residentes de um determinado local enfrentam as estratégias de poder e das elites que lhes reduzem as capacidades de intervir. Ainda assim, Arnstein estabelece um percurso a escada da participação que vai desde a não participação ao tokenismo, como uma forma própria de definir este conceito. Outros exemplos que seguem esta perspetiva podem incluir outras dimensões que não se relacionam com a política institucionalizada, através do estudo sobre a participação nos meios de comunicação comunitários (Carpentier, 2017; Howley, 2005), da participação como um processo de transformação e mudança social (Dekker & Uslaner, 2003; Tufte, 2017), da participação no campo das ONG (Oliveira, Duarte Melo & Gonçalves 2016), a intervenção do cidadão na medicina (Guadagnoli & Ward, 1998), dos estudantes na educação (Taylor & Robinson, 2009), dos trabalhadores em contexto laboral em articulação com o patronato (Pateman, 1970), a participação no quotidiano (Bakardjieva, 2003, 2012), no consumo (Hyman & Tohill, 2017), na publicidade (Duarte Melo & Duque, 2018) e na produção artística (De Bruyne & Gielen, 2011), entre tantos outros exemplos possíveis.
Esta perspetiva política sugere imediatamente a distinção entre participação e interação social, onde a participação se torna numa forma de tornar as relações de poder equitativas, num contexto de decisões formais e informais, em distintos aspetos da sociedade, incluindo os média (e.g., Wasko & Mosco, 1992). A interação (e o acesso) continuam a ser essenciais à procura deste equilíbrio do poder, mas nunca poderão ser as características definidoras da participação. Tanto o acesso como a interação são necessários e desempenham um papel significativo nos processos de participação, mas não constituem por si só condições suficientes para que a participação se concretize, já que esta requer uma efetiva redistribuição do poder. Este entendimento teórico não implica, de modo algum, que a interação seja socialmente irrelevante, pelo contrário. A interação é uma dimensão vital importante na sociedade, na medida em que é responsável por promover a coesão social (Dekker & Uslaner, 2003; Tufte, 2017). Em todo o caso, deve reconhecer-se que a interação social nem sempre é positiva ou benevolente. Afinal de contas, até a guerra é uma forma de interação social.
Os limites da participação
Enquanto a perspetiva sociológica aponta praticamente a participação como um conceito sem limites, a abordagem política impõe barreiras concretas. A discussão sobre estes limites poderá ser útil para compreender melhor os problemas relacionados com a participação negativa/obscura. Este tipo de argumento enquadra-se preferencialmente na perspetiva política da participação, uma vez que é a partir desta inspiração teórica que se define a natureza daquilo que se inclui ou exclui neste conceito. Neste sentido, discute-se a prática democrática da participação e a retórica não-democrática da participação.
Este primeiro limite leva-nos a uma reflexão antiga sobre a natureza da participação e aquilo que as várias definições têm vindo a excluir neste âmbito. Por exemplo, Arnstein (1969, p. 216) relacionou a participação explicitamente com o poder, referindo que "a participação é a categoria que define o poder atribuído aos próprios cidadãos". Na mesma página, a autora explica, com mais detalhe, a sua perspetiva:
consiste na redistribuição do poder que permite a integração futura dos cidadãos excluídos dos processos políticos e económicos. A participação é uma estratégia em que estes indivíduos excluídos se juntam na partilha de informação, da procura por objetivos, da definição de políticas, dos recursos e impostos a alocar, dos programas a desenvolver e dos benefícios relacionados com a contratualização das condições laborais entre funcionários e o patronato. (Arnstein, 1969, p. 216)
A escada da participação, proposta por Arnstein, organiza-se em torno de três categorias principais (poder, tokenismo e não-participação), oito níveis e apenas o primeiro (poder) se considera como participação. Em teoria, a escada de Arnstein dirige-se essencialmente ao território excluído pelo conceito de participação, longe de considerações de senso comum e da retórica política sobre participação. Esta argumentação torna-se bastante evidente quando a autora define a categoria da não-participação, composta por dois níveis: a manipulação e a terapia. Deste modo, o objetivo destas práticas participativas consiste em, aparentemente, "promover a atribuição de poder aos participantes para que possam ser "educados"ou "convertidos", em vez de lhes atribuir responsabilidades no planeamento ou condução de programas"(Arnstein, 1969, p. 217). Este argumento repete-se na segunda categoria, o tokenismo, composto por três níveis: informação, consulta e conciliação. Tomando a consulta como exemplo: baseia-se no convite que se faz aos indivíduos para dizerem o que pensam, no entanto, para Arnstein, este nível "é ainda uma espécie de engodo, uma vez que não oferece garantias absolutas de que as preocupações e os anseios dos participantes serão levados em conta (1969, p. 219). Mesmo se concordássemos que a escada de Arnstein permite uma divisão clara entre participação e não-participação (veja-se Carpentier, 2016, para uma crítica), deveríamos assumir igualmente que o trabalho da autora ensaia aquilo que pode ser descrito como participação "negativa"e "oculta", dimensões estas que estão longe daquilo que pode ser definido como participação.
Este argumento será desenvolvido mais tarde quando se abordar o elemento central da definição de participação (na perspetiva política), nomeadamente na "redistribuição de poder"(Arnstein, 1969, p. 216) e na "equalização de relações de poder"(Carpentier, 2011, p. 354). Em primeiro lugar, estas definições apresentam a ideia de poder pelo menos numa perspetiva foucauldiana como uma realidade que transgride a categorização entre "positivo"e "negativo", entre "transformador"e "restritivo". Para Foucault, o poder é produtivo. Seguindo as próprias palavras do autor:
devemos, de uma vez por todas, eliminar a descrição negativa dos efeitos do poder: porque exclui, reprime, censura, ignora, disfarça ou se apropria. De facto, aquilo que o poder faz é produzir; produz uma realidade; produz territórios para os objetos e rituais de verdade. (Foucault, 1991, p. 194)
No entanto, esta é apenas uma parte do argumento, uma vez que a natureza produtiva do poder não ignora necessariamente o potencial transformador e/ou restritivo do poder.
Esta ideia leva-nos à teoria democrática, bem como à conceção da democracia com a sua redistribuição do poder , como uma posição normativa e particular de que a redistribuição do poder deve ser ética e equilibrada. Assim, recordamos um dos ensaios clássicos de Dewey (1888), The ethics of democracy, onde o autor defende: "numa palavra, a democracia é social, isto é, uma conceção ética na qual se baseia o seu significado governativo. A democracia é uma forma de governo simplesmente porque é uma associação moral e espiritual"(Dewey, 1888, p. 18).
Aparentemente, a posição normativa da democracia sugere que a centralização de comportamentos radicais de grupos particulares (elites) assume uma vertente pouco ética, ao contrário da descentralização, manifestamente ética. Paralelamente a este argumento, podemos encontrar alguns discursos sobre o Período das Luzes, que se focam na equidade e fraternidade (e irmandade), responsáveis por eliminarem relações de poder desequilibradas. Numa formulação mais otimista, as relações de poder equilibradas podem ser consideradas éticas, porque permitem aos indivíduos a obtenção e manutenção do controlo até certo ponto sobre as suas vidas quotidianas, de acordo com modos autónomos de partilha do espaço comum.
Deste modo, não deverá ser ignorado o facto de que o estabelecimento e manutenção da democracia foi objeto de lutas políticas intensas. Como Perry (1973, p. 87) descreveu: "durante muitos séculos a democracia, enquanto conceito e ideal, esteve bastante mal reputada, porque as experiências negativas convenceram os intelectuais de que o regime democrático era um sonho fraudulento, prestes a ser conduzido ao desastre". Este conflito político foi parte da consolidação do conceito de democracia, sustentado entre as ideias de representação e participação e sujeito a um escrutínio contínuo (e legítimo) da atividade político-democrática. Na verdade, no campo das ideologias democráticas podemos encontrar modelos que pretendem calibrar a dimensão participativa (e.g., a democracia participativa), enquanto outros entendimentos sugerem o inverso (e.g., a democracia representativa). Assim, "uma democracia competente apela a um combate vibrante entre diferentes posições políticas democráticas"(Mouffe, 2000, p. 104), ainda que, ao mesmo tempo, se exija um reforço do estabelecimento da hegemonia democrática ou, por outras palavras, da hegemonização da ideia de democracia como intrinsecamente ética.
Esta articulação entre a democracia e a ética também influencia a componente participativa, uma vez que se garante, neste ponto, a defesa da normatividade e propagação da democracia. Mesmo se forem contestados os diferentes graus e intensidades da participação, a ideia de participação em contexto democrático é profundamente ética. E, neste sentido, os conceitos de participação "negativa"ou "oculta"são manifestamente contraditórios. Por isso, o argumento pode (e deve) focar-se na existência de diferentes intensidades participativas que são objeto de luta político-democrática legítima, mas num ambiente onde a democracia é o regime hegemónico, a ideia de participação é, ela mesma, profundamente ética desde uma participação minimalista à maximalista (Carpentier, 2011), ou da participação frágil à robusta [baseada na distinção de Barber (1984) entre democracia frágil e robusta].
O segundo limite do conceito de participação refere-se a duas distinções cruciais. Primeiramente, a distinção entre acesso, interação e participação, ensaiada anteriormente neste artigo. Se a participação é entendida como a tentativa de equilibrar relações de poder, sobra um espaço considerável entre acesso e interação, por um lado, e participação, por outro. Esta dicotomia não torna menos legítimos o acesso e a interação, apenas os define como condições necessárias mas insuficientes para a concretização da participação. O acesso é vital para a prática participatória, enquanto a interação requer a presença de diferentes atores (participantes) no processo, através da mediação de espaços e objetos. A interação refere-se igualmente ao estabelecimento de relações sociais e comunicativas. A interação é francamente necessária neste quadro participativo, na medida em que os cidadãos necessitam de espaços e objetos para interagirem entre si. No entanto, existem diversas formas de interação possíveis e nem todas são participativas. Para resumir a ideia, dir-se-ia que um conflito violento é bastante interativo, porque consiste na tentativa de atingir outros indivíduos, num determinado campo de batalha ou através de um míssil balístico. Mas não é participativo.
Existe também uma segunda distinção particularmente relevante neste contexto, que se relaciona com as diferenças entre a participação e os resultados da participação. A participação consiste, num ponto de vista formal ou informal, num processo de tomada de decisão, envolvendo diversos atores em diversas constelações de poder que procura equilibrar e corrigir uma redistribuição adequada do poder. Para ilustrar esta perspetiva, poder-se-ia recorrer a um exemplo de um projeto de investigação sobre a participação dos jovens e o potencial transformador dos conflitos (Yüksek & Carpentier, 2018): a participação dos jovens relaciona-se com a inclusão dos mais novos nos processos de tomada de decisão com o objetivo de corrigir o poder debilitado que este grupo tem na sociedade muitas vezes pela lógica inerente ao idadismo, que leva a atribuir um poder privilegiado aos adultos. Com a promoção da participação dos jovens neste quadro, pretende-se ajustar estes desequilíbrios entre os diversos poderes. No entanto, há que distinguir entre os resultados e os próprios processos, necessariamente diferentes num nível normativo.
Por outras palavras, os resultados dos processos participativos não são naturalmente benéficos ou benevolentes, independentemente da ética positiva inerente à descentralização das relações de poder. Mesmo que possamos atribuir à participação uma dimensão ética, à partida, isso não significa que os resultados dessa ação sejam naturalmente éticos. Ainda que grande parte da investigação e da teoria que rodeiam o conceito de participação admitam essa possibilidade, os resultados dos processos participativos dependem, forçosamente, da autoestima pessoal, da confiança, dos conhecimentos, das aptidões, do status, do envolvimento social, dos níveis de felicidade ou de justiça, como sugeriu o trabalho de Huesca (2008). Assim depreende-se que os benefícios da participação não podem ser garantidos a priori, uma vez que os resultados da participação podem ser frustrados ou resultar em conflitos pessoais, derivados de decisões pouco esclarecidas ou do caos generalizado a nível social. Uma análise detalhada às diferentes circunstâncias que influenciam os resultados da participação extravasa as ambições deste artigo. No entanto, os últimos exemplos ilustram uma lista de possibilidades concretas de uma participação que pode não apresentar qualquer dimensão ética. Mesmo se o processo de participação envolver resultados negativos, não significa que não tenha havido preocupações éticas na sua definição e constituição.
O terceiro limite é o mais difícil e contestado, porque sugere uma discussão altamente relevante no contexto da participação negativa/obscura. Ao analisarmos a participação através da lente democrática, também a democracia impõe um limite a este conceito, uma vez que a participação apenas decorre dentro do espírito deste campo político. Embora a democracia não esteja restrita à política institucionalizada, pode desempenhar um papel importante em diversos ambientes sociais. Uma forma de ilustrar este ponto tal como fizeram Jenkins e Carpentier (2019b) passa por criar uma situação hipotética: imaginemos um processo de decisão perfeitamente descentralizado, que se destina a decidir sobre a forma como se irá cometer o homicídio de uma determinada pessoa. Numa formulação mais provocativa: pode um massacre ou um linchamento público ser considerado participativo? Parece difícil reconhecer uma natureza participativa nestes comportamentos, o que levantará naturalmente outras questões ou dúvidas.
Não se debate apenas o resultado do processo, o que retoma considerações sobre o segundo limite apresentado. O problema refere-se ao objeto da decisão, que se situa fora do ambiente democrático, em articulação (mas não restrito) à prática participativa que a envolve. A teoria democrática lida com a duas formas de entender este regime político: a democracia processual e a democracia substantiva (veja-se Shapiro, 1996, p. 123). No primeiro caso, o processo é considerado democrático enquanto decorre um determinado procedimento. O dilema da deportação evidencia uma limitação importante nesta argumentação, porque os processos democráticos podem ser utilizados para decidir sobre a deportação de uma minoria. Por isso é que se entende que a democracia substantiva poderá servir de complemento a este primeiro modelo, na medida em que se caracteriza pelo respeito de uma série de valores, especialmente de Direitos Humanos. Esta argumentação também pode ser útil à participação, legitimando a necessidade de conjugar aspetos processuais e substantivos. O conflito agonista (Mouffe, 2013a) enquadra-se perfeitamente nesta perspetiva de participação, embora o conflito antagónico/violento se torne irreconciliável com a participação. Esta linha de pensamento traz-nos à discussão sobre a participação negativa/obscura, como um dos vários problemas sociais associados à captura deste tipo de comportamentos, que são considerados participativos mas que não serão mais do que formas antagónicas (e simbólicas) de violência.
Uma perspetiva positiva: a importância da participação
Mesmo se a participação negativa/obscura assumir uma certa problemática conceptual, existe ainda o risco de se considerar estes conceitos como realidades que respiram por si próprias, o que produz efeitos negativos na democracia. Este argumento não representa uma crítica em si mesmo, mas procura favorecer a promoção de uma crítica que possa ser teórica e conceptualmente bem fundamentada. Anteriormente defendeu-se que a participação assume intrinsecamente uma vertente ética, numa perspetiva democrática, e que as perversões sobre este conceito são apenas isso mesmo: perversões.
Do mesmo modo, parece ser interessante refletir sobre as razões pelas quais a participação negativa/obscura tem vindo a ganhar protagonismo. Uma das razões plausíveis prende-se com a insuficiente capacidade da teoria da participação, que ainda não conseguiu sustentar a importância sociopolítica da participação. Este volume da revista Comunicação e Sociedade toma como inspiração este preceito, de colocar a tónica numa possível remediação do problema, oferecendo uma perspetiva mais positiva sobre a participação, que não se foque nos limites deste termo, mas que apresente explicitamente por que razão a participação importa.
Esta linha de pensamento inspira-se igualmente na proposta desenvolvida por Glynos e Howarth (2007), onde se distinguem três lógicas: a política, social e a lógica fantasmagórica (ver Tabela 1). As origens da teoria do discurso e do pós-estruturalismo orientam este modelo, por isso talvez seja conveniente explicar estes três níveis. De acordo com Glynos e Howarth, a política é o habitáculo do conflito, da contestação e das lutas de poder, porque o mundo em que vivemos é fértil em diferenças radicais. O social é o lugar onde a política temporária respira e sedimenta práticas estabilizadas, mas que podem ser sempre reforçadas pela esfera política. Finalmente, a lógica fantasmagórica "oferece meios para entender as justificações pelas quais certos assuntos e práticas surgem com muita intensidade no espaço público"(Glynos & Howarth, 2007, p. 145). É aqui que reside o mundo das fantasias e derivações.
A lógica política permite-nos pensar na relevância da participação a partir das lutas de poder entre elites e os restantes cidadãos. Um dos argumentos recorrentes a favor da participação relaciona-se com a chamada proteção do sistema democrático [ver a discussão de Held (1996, p. 45) sobre o republicanismo], onde a relevância da participação se justifica pela necessidade de proteger o cidadão comum das elites poderosas e opressoras. Como a concentração do poder é vista como pouco ética, indesejável ou perigosa porque não consegue representar a diversidade social, os interesses e tendencialmente serve os interesses das elites a participação torna-se necessária para proteger as pessoas. Strauss sistematiza assim este argumento:
uma sociedade política cumpre a sua função através do poder político, capaz de ameaçar a segurança daquilo que está consolidado e estabilizado. Para evitar este perigo, a maioria deve partilhar e medir a sua capacidade relativamente ao poder público. (Strauss, 1978, p. 278)
Neste volume da revista Comunicação e Sociedade, vários artigos utilizam, indiretamente, este mesmo argumento. Rose Marie Santini e Hanna Carvalho refletem sobre a responsabilidade que as práticas participativas operam na sociedade, como mecanismos capazes de proteger a cidadania. Também o artigo de Sofia Lindström Sol, em que se aborda a participação do cidadão no contexto cultural, ilustra o argumento anteriormente apresentado, na medida em que a autora apresenta uma análise sobre a necessidade de uma maior autonomia no campo das artes, bem como da transparência (financeira) das políticas públicas para esta área. Este trabalho apela, a partir de um estudo de caso, a que a participação do público na arte possa ser uma realidade mais consistente.
Existem ainda mais duas contribuições que reforçam esta perspetiva (tradicional) e protetiva, não limitada à proteção da cidadania contra um Estado potencialmente tirano. O artigo de Maria Fernandes-Jesus, Eunice Castro Seixas e Anabela Carvalho apresenta a primeira variação deste argumento, com uma suposta crise da democracia representativa, pelo que as autoras argumentam que as práticas participativas reforçam a capacidade protetiva da democracia, de cidadãos perante forças políticas que os podem enfraquecer. Neste trabalho refere-se, mais especificamente, que "as questões de acesso, legitimidade, e influência podem contribuir para a revitalização da democracia, se forem baseadas na confiança, abertura, transparência e em noções de justiça"(p. 76). O artigo de Miren Gutierrez apresenta a "datificação de tudo"para colocar os diversos problemas e desafios que se colocam à sociedade, originando múltiplos comportamentos e atores, não apenas da responsabilidade do Estado. "A participação dos cidadãos na infraestrutura de dados"(p. 49) é, segundo este trabalho, suportada por uma "agência cognitiva e literacia de dados como pontos de entrada"(p. 50). De acordo com a tipologia anteriormente apresentada, este é claramente um argumento protetivo da participação.
O argumento agonista apresenta uma variação relativamente ao protetivo, na medida em que vê a participação como uma ferramenta para dinamização de uma maior variedade de vozes no espaço público, o que pode facilitar a confrontação (não violenta) de oportunidades para o diálogo e o debate. Uma das principais ideias, sublinhe-se, reside no ambiente democrático que deverá nortear o conflito. Citando Mouffe (2013b, p. 185), "a especificidade da democracia moderna requer o reconhecimento e a legitimação do conflito; nas sociedades democráticas o conflito nunca poderá e deverá ser erradicado". Ao mesmo tempo, "as políticas democráticas requerem"o agonismo, que implica "que outros não sejam vistos como inimigos a destruir, mas adversários cujas ideias devem ser discutidas e rebatidas, mesmo que ferozmente, sem que o direito a defender uma determinada posição seja sequer questionado"(Mouffe, 2013b, p. 185).
O artigo de Rodrigo Lacerda apresenta uma abordagem original do argumento agonista ao focar-se no ativismo de certos grupos étnicos relativamente à defesa do património histórico, em São Miguel (Brasil). Como o próprio autor descreve, o artigo é centrado na "a ontologia e a cosmologia Guarani, originando um fórum híbrido' (Harrison, 2013) em que humanos, não humanos e coisas participaram de modo a constituir uma democracia mais dialógica que tem em consideração diferentes modos de construir o mundo"(p. 160). É num sentido idêntico que surge o trabalho de Kurniawan Adi Saputro e Bari Paramarta Islam, ao demonstrar a capacidade de comunidades particulares para a comunicação de identidades e histórias, através do recurso a vídeos que incluíram toda a comunidade. Os autores evidenciam, deste modo, como as intensidades participativas podem decorrer num ambiente cultural e comunitário, seguindo diferentes formas e géneros comunicativos.
O artigo de Anna Zaluczkowska aproxima-se de um entendimento explícito do agonismo como um argumento diverso, uma vez que são descritas as formas pelas quais as diferentes vozes do público podem integrar uma narrativa, que a autora define como "narrativa negociada", que "reconhece as formas em que as narrativas podem ser desviadas para promover determinado ponto de vista e sugere que a tomada de decisão discursiva enquanto elemento central da criação participativa da história reduz a probabilidade de tal acontecer"(p. 203).
Por fim, um último argumento, no quadro de uma lógica política, onde se articula a participação com um dos Direitos Humanos. A participação no campo da política institucionalizada tem vindo a ser incluída em diversos documentos fundamentais, especialmente na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, e do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP), de 1966. Por exemplo, no artigo 21º da DUDH pode ler-se que "toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direção dos negócios públicos do seu país, quer diretamente, quer por intermédio de representantes livremente escolhidos", seguindo-se o ponto 3 que refere que "a vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos". O artigo 25º do PIDCP apresenta uma perspetiva idêntica (veja-se Fox, 1992, Peter, 2013, Steiner, 1988, para uma reflexão). A ideia subjacente à articulação da participação (política) como um direito humano assenta na perspetiva de que "direitos morais que as pessoas possuem são salientados pela sua humanidade"(Peter, 2013, p. 2). Contudo, esta aproximação aos Direitos Humanos requer uma abordagem a uma lógica política, na medida em que estes não estão imunes à crítica, bem como a discussão sobre as intensidades participativas ou os degraus da redistribuição do poder. Como refere Peter (2013, p. 11) ver também Steiner (1988, p. 86) : "a cláusula da participação enquanto tomar parte é demasiado vaga num determinado sistema político e deve ser solucionada pelo direito de participar nos processos políticos deliberativos". Para além disso, as discussões sobre os direitos de comunicação mostram (ver Carpentier, 2011, p. 88, para uma perspetiva) que existe igualmente uma luta política sobre a extensão dos direitos participativos noutros campos sociais.
A lógica social representa dois tipos de argumentação que evidenciam a importância da participação. Em primeiro lugar, o argumento educacional ou de desenvolvimento, que retoma considerações de Rosseau ou Wollstonecraft e, depois, de Marx e Engels, ainda que Held (1996, p. 45) tenha igualmente apontado que os filósofos da Grécia Antiga já se preocupavam com estas questões, como demonstra o trabalho de Marsílio de Pádua. Este argumento sublinha que os cidadãos apenas se tornam efetivamente como tal através da concretização da participação. Isto surge na obra de Pateman (1970, p. 25), quando se refere ao trabalho de Rousseau e cruza com Plamenatz, que escreveu: "[Rousseau] muda as nossas ideias (…) ao considerar que a ordem social afeta a estrutura da personalidade humana"(Plamenatz, 1963, p. 440). Pateman prossegue nesta linha sinalizando o modelo democrático de Rousseau, que propõe o desenvolvimento individual e político através do processo participativo, onde "o indivíduo aprende que a palavra outro' deve ser igualmente aplicada a ele próprio (…) ele aprende a ser um cidadão com responsabilidades públicas, mas também privadas"(Pateman, 1970, p. 25).
A participação importa, portanto, porque produz cidadãos que estão ativamente envolvidos na sociedade, contribuindo para a felicidade das circunstâncias sociais (Oreg et al., 2011, p. 491).
A participação também se torna relevante em ambientes institucionais, constituindo-se numa forma de consolidar e estabilizar a sociedade. Este argumento relativo a uma ideia de integração parte do pressuposto que os processos participativos criam zonas de contacto (Allport, 1954; Pratt, 1991) que permitem o desenvolvimento da compreensão mútua entre grupos privilegiados e menos privilegiados na sociedade. A participação potencia a confiança e o sentimento de pertença (Oreg et al., 2011, p. 491). Os processos participativos incluem igualmente momentos de reconhecimento dos grupos mais desfavorecidos, cujas vozes tendem a ser integradas para equilibrar as relações de poder. Em certo sentido, estes processos participativos podem ser vistos como um antídoto à ideia de Spivak (1988), que defendia que os subalternos não podem falar (ou ser ouvidos). A participação resgata os subalternos de uma existência invisível, promovendo a sua própria identidade.
O artigo de Vitor Tomé, Paula Lopes, Bruno Reis e Carlos Pedro Dias desenvolve uma argumentação tanto educacional como integradora. Os autores defendem que a participação dos alunos na produção de conteúdo mediático aumenta o envolvimento entre estudantes e reforça as identidades de um grupo:
a participação social das crianças aumentou, dentro e fora da escola, em articulação com docentes, famílias e comunidade. (…) Tendo em atenção as perceções das professoras, a interação entre os contextos formal, não-formal e informal contribuiu para moldar as práticas de cidadania das crianças.
O terceiro argumento favorável à ideia de participação, a lógica fantasmagórica, enfatiza a importância da participação pela satisfação que esta produz. O argumento da fruição reveste-se, portanto, desta ideia bastante simples, de que a participação e o envolvimento normalmente provocam uma agradabilidade junto de quem a promove e dinamiza. Naturalmente que esta agradabilidade não está isenta de problemas, sobretudo se for objeto de uma nova apropriação das elites. Não se trata apenas do "campo da ordem de significação, mas do grande Outro", que é "invadido por uma corrente pré-simbólica de fruição (real)", mas que entretanto "se torna envolvido na rede de significação (…) [e] o corpo submete-se à castração", como referiu Žižek (1989, p. 136). Existe igualmente uma ideia de participação associada à excecionalidade, quando outras elites tentam repor a sua autoridade. Por isso surgem situações onde a participação maximalista revela lugares utópicos (ou melhor, "lugares jamais habitados"), que se tornam inalcançáveis e vazios, mas que se aproximam a uma ideia da fruição do envolvimento participativo.
O segundo argumento inserido na lógica fantasmagórica, o argumento da condução, não se foca na satisfação que a participação promove. Este entendimento pode ser interpretado como uma versão positiva da proposta de Nietzsche sobre a vontade do poder. Como o próprio (1968, p. 404) admitiu, a vontade de dominar desempenha uma função essencial na condução da sociedade, embora esteja conotada com a dominação e o controlo: "não existe escolha: o poder está no topo ou fica remetido aos que estão no fundo, como vermes, desprezados e aniquilados. Para se ser tirano, há que defrontar os tiranos, i.e., livremente". A teoria da participação partilha a ideia de que o poder é fundamental para a condução da sociedade, ainda que (obviamente) articulada com a predisposição para tal, na medida em que a vontade para o exercício do poder não pode ser dominada ou controlada, tal como sucede com a redistribuição do poder. Se o conceito de participação assumir a necessidade do desejo de uma autonomia contextualizada, o desempenho participativo será mais frutífero. O mesmo sucede inversamente: a frustração na redistribuição do poder como exercício de uma autonomia contextualizada gera riscos perversos, desde a apatia à revolta.
Neste volume da revista, no artigo "A participação enquanto talismã: uma reflexão metafórica e teórica sobre a conceptualização da participação", de Ignacio Bergillo, apresenta-se a definição de participação como um talismã, o que revela um fascínio fantasmagórico sobre este conceito. Neste sentido, este trabalho demonstra o tipo de argumentação que favorece o conceito de Lacan sobre a fantasia, bem como os de ritualização e atração estética subjacentes à participação. O autor conclui que
se entendermos a participação como um talismã, podemos protegê-la, resgatá-la, ao reforçarmos a crença no seu potencial. Ao recuperarmos a fé no seu poder, iremos ficar mais bem preparados para a democracia emocional e sentimental (Arias Maldonado, 2016; Wahl-Jorgensen, 2018) em que vivemos hoje. (p. 218)
Uma breve conclusão
Este artigo expressa uma preocupação profunda sobre a necessidade de uma maior teorização sobre participação. Na verdade, este conceito lida com a dificuldade de abordagens simplistas sobre o termo, do senso comum, algo que até poderá ser tentador, mas não será certamente o mais adequado quando se pretende abordar com mais detalhe em que consistem as práticas participativas. Uma das formas de potenciar a reflexão sobre este conceito passa por distingui-lo de interação e envolvimento, com o objetivo de tornar mais sofisticada a teorização. Todos estes conceitos podem apontar na mesma direção, mas isso não será necessariamente profícuo, uma vez que muitas destas realidades podem ajudar a compreender melhor a conjuntura atual.
Embora não se pretenda diminuir a importância de uma abordagem sociológica sobre participação, este artigo privilegia a abordagem política, que está intrinsecamente relacionada com a teoria democrática, que oferece uma dimensão teórica e conceptual mais robusta ao termo. Esta opção teórica resulta em que a relação entre participação e democracia esteja mais exposta, sujeita a uma dimensão ética que versa igualmente sobre uma participação negativa/obscura. Esta será eventualmente uma perversão da participação que não poderá deixar de estar inscrita na definição deste conceito.
Estas reflexões sobre a natureza intrinsecamente ética também levantam a questão importante sobre os limites conceptuais da participação. Se a participação é assim tão importante, como é que podemos defendê-la? De que forma os cidadãos devem ser motivados a participar? Como é que atribuímos relevância à participação? Inúmeras publicações sobre a participação destacam frequentes argumentos favoráveis a uma sociedade mais participativa, ao mesmo tempo que alguns autores advogam o contrário. As duas posições revelam idênticos problemas. A primeira porque integra suposições que funcionam contra a ideia e as práticas de participação. A natureza ética da participação precisa de ser argumentada, o que será um bom exercício académico e democrático. Este artigo trabalha na modesta esperança de contribuir para esta legitimação e clarificação. A segunda, ao argumentar que a participação, por vezes, está envolta numa aura negra, também é problemática, não só porque assenta em conceções frágeis sobre participação, mas também porque corre o risco de se tornar um forte aliado daquelas vozes que procuram favorecer a centralização das relações do poder, promovendo inadvertidamente forças que atacam a natureza própria da democracia. Talvez seja precisamente aqui, neste ponto, onde se aniquila a verdadeira essência da participação.
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Nota biográfica
Nico Carpentier é Professor Extraordinário na Charles University, em Praga, e colabora como Professor Associado, a tempo parcial, com a VUB Universidade Livre de Bruxelas, e como Investigador Sénior na Universidade de Uppsala, na Suécia. Desenvolve investigação na Universidade de Tecnologia do Chipre e na Universidade de Loughborough, no Reino Unido. Nico Carpentier foi Tesoureiro da ECREA (2005-2012), Vice-Presidente (2008-2012) e Tesoureiro da IAMCR (2012-2016). Atualmente é o responsável pela "Secção de Investigação em Comunicação Participativa"da IAMCR.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8996-4636
Email: nico.carpentier@fsv.cuni.cz
Morada: Charles University, Institute of Communication Studies and Journalism, Smetanovo nábreží 6, 110 01 Praha 1, República Checa
Ana Duarte Melo (PhD) é Professora Auxiliar na Universidade do Minho, onde leciona publicidade, comunicação estratégica e territorial, criatividade e guionismo. A sua investigação no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) combina participação, publicidade, comunicação estratégica e territorial. Vice-chair da "Secção de Investigação em Comunicação Participativa"da IAMCR International Association for Media and Communication Research (desde 2016), tem estado ativamente envolvida em diversos outros fóruns e publicações científicas.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4598-7174
Email: anamelo@ics.uminho.pt
Morada: Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho, Campus de Gualtar, 4710 - 057 Braga, Portugal
Fábio Ribeiro (PhD) é Professor Auxiliar na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), em Vila Real (Portugal). Ensina nas áreas do Jornalismo (Imprensa, Rádio e Televisão) e sobre Sociologia da Comunicação. Membro integrado do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, desenvolve investigação sobre média, participação, comunicação de ciência e estudos radiofónicos. Desde 2017, é vice-coordenador da secção "Rádio e Meios Sonoros"da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação (Sopcom).
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8071-6145
Email: fabior@utad.pt
Morada: Escola de Ciências Humanas e Sociais, Departamento de Letras, Artes e Comunicação, Quinta de Prados, 5000-801 Vila Real, Portugal
* Submissão: 31/07/2019
* Aceitação: 26/09/2019
Tradução: Fábio Ribeiro e Ana Duarte Melo