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Comunicação e Sociedade
versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575
Comunicação e Sociedade vol.38 Braga dez. 2020
https://doi.org/10.17231/comsoc.38(2020).2588
ARTIGOS TEMÁTICOS
Barbarus ad portas: a agressividade verbal em comentários na rede social Facebook
Barbarus ad portas: the verbal aggression in comments on the social network Facebook
Isabel Roboredo Seara*
https://orcid.org/0000-0003-2117-5320
Ana Lúcia Tinoco Cabral**
https://orcid.org/0000-0001-6417-2766
*Universidade Aberta, Portugal / Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa, Portugal / Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, Portugal
**Instituto de Pesquisa Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Universidade de São Paulo, Brasil
RESUMO
O presente artigo discute a problemática da representação de migrantes refugiados na Europa, Portugal, e na América Latina, Brasil. Focalizando a violência verbal na web, neste estudo pretende-se analisar comentários de usuários do Facebook, destacando o argumento ad hominem como estratégia para macular a imagem dos migrantes refugiados, o trabalho observa duas formas de materialização desse argumento: o ataque pessoal direto e o ataque pessoal indireto. São analisadas as estratégias verbais que permitem desqualificar migrantes refugiados e representá-los negativamente. O quadro teórico é tributário da análise do discurso em diálogo com a retórica, representada pelas pesquisas de Amossy (1999, 2014b), entre outros, complementando-se em estudos sobre interações em redes sociais (Castells, 2013), e sobre violência verbal (Culpeper, 2008; Bousfield, 2008), em particular a violência verbal na internet e nas redes sociais (Castells, 2013; Rodeghiero, 2012). A análise discursiva-pragmática foi efetuada num corpus de mensagens no Facebook, recolhidas entre julho e agosto de 2017, sobre a crise migratória na Europa, e recolhidas em agosto de 2018, sobre a imigração de venezuelanos para o Brasil. O estudo permite-nos comprovar que, numa era em que as redes sociais disseminam e contagiam, através da palavra escrita, as opiniões livres de todos os que anteriormente não tinham acesso à expressão pública da sua opinião, as estratégias desvalorizadoras e agressivas dominam os comentários nas redes sociais e veiculam posicionamentos que visam excluir o migrante, considerado como perturbador de uma ordem estabelecida.
Palavras-chave: violência verbal; argumento ad hominem; redes sociais; Facebook; migrantes; refugiados
ABSTRACT
The paper discusses the problematic of the representation of refugee migrants in Europe, Portugal, and in Latin America, Brazil. Focusing on verbal violence on the web, the work analyzes comments from Facebook users, highlighting the ad hominem argument as a strategy to denigrate the image of the refugees, the paper notes two forms of materialization of this argument: personal direct attack and indirect personal attack. The verbal strategies that allow disqualify refugee migrants and represent them negatively. The theoretical framework is a tributary of discourse analysis in dialogue whith rhetoric represented by Amossy (1999, 2014b) among others, complemented by studies on interaction in social networks (Castells, 2013), and verbal violence (Culpeper, 2008; Bousfield, 2008), in particular verbal violence in internet and social networks (Castells, 2013; Rodeghiero, 2012). The discursive-pragmatic analysis was carried out in a corpus of messages on Facebook, collected between July and August 2017, about the migratory crisis in Europe, and collected in August 2018, about the immigration of Venezuelans to Brazi. The study allows us to prove that, in a era when social networks dissiminate and spread, thtough the written word, the freee opinions of those who previously did not have achievement to the public expression of tehir opinion, devaluing and agressive strategies dominate comments on social networks and transmit positions that aim to exclude the migran, considered as disturbing an established order.
Keywords: verbal violence; ad hominem argument; social networks; Facebook; migrants; refugees
Introdução
In memoriam Professor Lésmer Montecino (1956-2017), Professor da Pontifícia Universidade de Santiago do Chile
Os que avançam de frente para o mar
E nele enterram como uma aguda faca
A proa negra dos seus barcos
Vivem de pouco pão e de luar
Sophia de Mello Breyner (2015, p. 406)
O ritmo desmedido das mudanças decorrentes das inovações tecnológicas, nomeadamente no âmbito da comunicação eletrônica, configura um fenômeno de tão elevada repercussão e amplitude, que importa proceder a questionamentos ontológicos e reflexivos sobre a adequação e a eficácia dos diferentes meios e repensar e redefinir o papel e o estatuto que podem assumir na reflexão sobre problemas sociais emergentes.
As redes sociais, como o Facebook, enfatizam a interação em rede, a sociabilidade, tendo os utilizadores um contexto aberto e livre para a construção das relações interpessoais, através de espaços de exposição discursiva (Develotte, 2006) e de produção discursiva, que possibilitam a expressão contínua de comentários avulsos, inclusive a expressão de opiniões que geram polêmica, através de manifestações e de atos de violência verbal.
Partiremos de um corpus de mensagens no Facebook, recolhidas entre julho e agosto de 2017, sobre a crise migratória na Europa, e recolhidas em agosto de 2018, sobre a imigração de venezuelanos para o Brasil, para procedermos a uma análise discursivo-pragmática das estratégias desvalorizadoras e agressivas recenseadas em comentários.
Na Europa, a crise migratória agravou-se enormemente a partir de 2015. O número de refugiados e migrantes cresceu de maneira exponencial, devido aos conflitos no Médio Oriente e em África, à guerra civil na Síria, bem como à frágil e débil qualidade de vida de alguns países não europeus, o que tem suscitado inúmeras discussões, nomeadamente em contextos mediáticos. Igualmente, no Brasil, o fluxo migratório de venezuelanos advindos da grave crise pela qual passa o país cresceu de maneira descontrolada em 2018, suscitando uma grande diversidade de posicionamentos diante da questão. Dito isso, o foco de nossas análises são os comentários que circulam no Facebook tendo como tema os movimentos migratórios citados. Nossas análises orientam-se pela seguintes perguntas:
- quais são as estratégias discursivas que operam a exclusão social?
- tratar-se-á de um discurso ideologicamente marcado ou preferencialmente estamos em presença de um discurso piedoso, ensaiando criar uma atmosfera de compaixão, convocando recorrentemente as emoções através de perífrases de cunho dramático?
- como se processa a polarização e em que bases se sustenta?
O trabalho tem por objetivo refletir sobre a agressividade verbal em comentários na rede social Facebook. Para tanto, procuraremos identificar as estratégias discursivas que desvalorizam e maculam a imagem dos refugiados/migrantes; descrever a polarização na opinião pública e as razões que subjazem às diferentes tomadas de posição; analisar se as características da rede social – distanciamento, assincronia, máscaras sociais e outros condicionam a construção de um ethos depreciativo, contencioso, belicoso, violento.
Neste sentido, a nossa fundamentação teórica será tributária da análise do discurso representada pelas pesquisas de Maingueneau (2002), Amossy (1999, 2014b), entre outros; complementarmente, o estudo ancorar-se-á nos estudos sobre interações em redes sociais (Castells, 2013), e ainda na panóplia de reflexões sobre cortesia e violência verbal (Culpeper, 2008; Boufield, 2008), entre os quais destacamos os que se debruçam sobre violência verbal na internet e nas redes sociais, sob diferentes perspectivas teóricas (Castells, 2013; Rodeghiero, 2012).
Igualmente, nossas análises focalizarão o discurso como prática social, como forma e ação que está em estreita relação com a estrutura social, corroborando, assim, os pressupostos de van Dijk (2008), que sublinha que o meio social constrói o discurso e é simultaneamente construído por ele, numa relação de reciprocidade entre as situações de caráter social e o conjunto de discursos que são enunciados, visando invariavelmente a conquista de visibilidade, de dominação, de manipulação e mais poder.
Migrar: realidade e estranhamento
No reino animal, todos os seres migram quando as condições ficam adversas, quando veem sua sobrevivência ameaçada seja porque o clima é desfavorável, não chove ou chove em demasia, seja porque falta comida, seja porque são expulsos por outros seres, porque são vítimas de abuso de poder. O facto é que sempre que os animais veem sua sobrevivência e a continuidade da espécie em risco, buscam lugares alternativos para viver. O ser humano não escapa a essa característica e, desde os primórdios da história da humanidade, ocorreram movimentos migratórios. Se é verdade que os homens mudam para outros lugares, em busca de melhores condições de vida, é também verdade que o estrangeiro é sempre recebido com desconfiança por aqueles que estão em suas terras e podem sentir-se ameaçados pela chegada do desconhecido. Assim tem sido.
Como oportunamente é recordado por Paulo Sande (s.d.), com o grito Barbarus ad portas, os romanos assinalavam a iminente chegada a Roma dos povos bárbaros, por eles considerados como povos não civilizados. E a civilização romana estiolou em parte por ter sido incapaz de encarar aqueles a quem chamava “bárbaros” e que até viviam dentro das fronteiras do Império romano como de facto cidadãos de Roma.
Ora, a história é, como se testemunha, antiga e repete-se em pleno século XXI, quando assistimos ao sobressalto desse processo migratório, agravado sobretudo pela tragédia síria e pela crise venezuelana, o que espelha que os refugiados desses países são, aos olhos de muitos europeus e de brasileiros, acicatados por movimentos mais ou menos xenófobos, em tudo similares aos bárbaros, pois ostracizam pela linguagem e pelos atos, inventam e exageram os riscos do acolhimento destes povos, criam falsos mitos, sem perceberem que temos a obrigação moral de acolher e de integrar os refugiados ad portas.
Relembramos a alegoria da caverna de Platão que, há mais de dois mil anos, nos mostrava que é com base nas sombras que são projetadas no fundo da caverna que os cidadãos vão construindo a realidade. As ditas sombras de uma realidade que, na verdade, acontece no exterior dessa caverna, mas para a qual os indivíduos vivem de costas voltadas.
Ora, embora o tema “migrantes e refugiados” seja um tema de crescente importância social, política e mediática, frequentemente a construção dos discursos assenta, tal como na alegoria, nas percepções, hoje em dia, difundidas pela hipermediatização. E, neste campo da hipermediatização dos fenômenos, importa sublinhar que absorvemos passivamente determinadas representações, sem que consigamos descortinar a agressividade ou violência subjacentes. No fundo, presidem dois fatores: a banalização e a construção discursiva de imagens que não são necessariamente compatíveis com a sua realidade quotidiana.
Conforme já destacamos, a crise migratória na Europa agravou-se nos anos recentes. O número de refugiados aumentou exponencialmente devido aos conflitos no Médio Oriente, nomeadamente a guerra civil na Síria que impeliu a que muitos procurassem refúgio na Europa. Os refugiados que chegam à Europa representam uma pequena percentagem dos quatro milhões de sírios que fugiram para o Líbano, Jordânia, Turquia e Iraque, transformando a Síria na maior fonte de refugiados em todo o mundo e na pior crise humanitária em mais de quatro décadas.
No Brasil, o fluxo migratório de venezuelanos era praticamente inexpressivo até o ano de 2010, quando, com o crescimento da crise econômica na Venezuela, um número expressivo de venezuelanos começou a procurar asilo no Brasil, movimento que se acentuou no ano de 2018, com o agravamento da crise. Os imigrantes se instalam especialmente em Roraima, estado brasileiro que faz divisa com a Venezuela. O estado de Roraima constitui uma região pobre do país, e os venezuelanos chegam também em condições bastante precárias. A questão tornou-se crítica, o que motivou o governo brasileiro a criar um grupo para tratar dos refugiados em Roraima. Apesar dessas ações, as reações de brasileiros são, prioritariamente, de repúdio aos vizinhos.
Na próxima seção abordaremos as representações dos migrantes pelos média, procurando evidenciar as diferentes imagens que se constroem desses grupos de sujeitos.
Representações dos migrantes
Uma primeira abordagem centrar-se-á na expressão escolhida para designar a população migrante: refugiados ou migrantes?
A designação “refugiado” remete para uma pessoa que deixou o seu país por razões de segurança ou de sobrevivência, ao passo que a designação “migrante” diz respeito a uma pessoa que participa num processo de migração.
Estas mesmas acepções são corroboradas na plataforma de Apoio aos refugiados em que é explicitado que:
à condição de refugiado está associada inevitavelmente uma situação de vida ou de morte e/ou privação de liberdade e total insegurança. O grau extremo das ameaças promove a fuga das populações dos seus espaços naturais como uma ato de sobrevivência, de fuga de conflitos armados, perseguições étnicas ou políticas que literalmente destroem qualquer perspectiva de vida. Na generalidade dos casos a existência de auxílio urgente e estruturado é a única opção de sobrevivência para estas populações.1
Definição semelhante apresenta a Agência da ONU para refugiados-Brasil:
são pessoas que estão for a do seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados.2
De acordo com a Convenção de Genebra, que remonta já a 1951 e que integra o intitulado Direito internacional humanitário, um refugiado é uma pessoa que, receando com razão de ser perseguida em consequência de atividade exercida no Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana ou em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a determinado grupo social, se encontra fora do país de que é nacional e não possa, ou em virtude daquele receio, não queira pedir proteção desse país ou apátrida que, estando fora do país em que tinha a sua residência habitual, pelas mesmas razões, não possa ou a ele não queira voltar. Encontramos indiferentemente as duas expressões, embora possamos também testemunhar o uso de algumas perífrases “sobreviventes do inferno”, “vítimas do terror”.
Migrante, refugiado, exilados … As diferenças são por vezes subtis e as aceções não se limitam às definições fixadas pelos dicionários ou glossários, assumindo outras significações no decurso das evoluções sociais. Apesar de existir uma grande variedade de aceções na literatura internacional dedicada ao tema dos refugiados e dos migrantes, sob diferentes perspectivas e em campos disciplinares assaz diversos (no âmbito das Ciências Humanas e Sociais, nomeadamente da Sociologia, da Antropologia, mas também das Ciências Políticas, das Relações Internacionais e do Direito), importa precisar a aceção que assumimos neste estudo.
Sabemos que na Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948)3 se enunciaram, pela primeira vez, os direitos fundamentais para todas as pessoas independentemente de sexo, cor, raça, idioma, religião ou opinião, implicando, assim, o compromisso dos Estados de se comprometerem internacionalmente na garantia e no respeito desses direitos. Este processo de elevação dos direitos humanos a um plano internacional implicou a criação do Direito internacional humanitário para regular a proteção da pessoa humana em casos de conflitos bélicos e o Direito internacional dos refugiados. Esta Convenção, a par do Protocolo de Alteração da Convenção de 1967, constitui a principal fonte de direito internacional relativamente aos refugiados.
À luz do artigo 1º da Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951),
são refugiados as pessoas que devido a fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, participação em determinado grupo social ou opiniões políticas, está fora do país de sua nacionalidade, e não pode ou, em razão de tais temores, não queira valer-se da proteção desse país. (ONU, 1951)4
Posteriormente, no ano de 1984, foi elaborada a Declaração de Cartagena contribuindo para a expansão dos direitos dos refugiados, bem como a definição do regime internacional da ONU, ao abranger no conceito de refugiados, pessoas que deixaram seus países porque a sua vida, segurança ou liberdade foram ameaçadas em decorrência da violência generalizada, agressão estrangeira, conflitos internos, violação massiva dos direitos humanos ou outras circunstâncias que perturbaram gravemente a ordem pública (Declaração de Cartagena, 1984)5.
Importa reiterar que o reconhecimento do refugiado está na assumpção de que se trata de um ser humano em situação de vulnerabilidade e é esse o motivo que o motiva a migrar. Como afirmam Chelotti e Cruz (2016, p. 8),
o que o obriga a migrar – e, por conseguinte, abandonar o seu país, sua cultura, seu lar e a sua própria identidade – não é a esperança de uma vida com melhores condições, mas a violação massissa de seus direitos, o fundado temor de perseguição e a urgente necessidade de salvar a sua própria vida e a de seus familares.
Subscrevemos, por isso, a designação de Michel Agier (2002), que defende que um refugiado está longe de ser um migrane, pois contariamente a este, aquele não teve opção, não planeou voluntariamente a sua partida e recomeço da vida em outro lugar. Os seus lugares de pertença e de identidade – individual ou coletiva –, a sua vida quotidiana, foram destruídos, restando apenas a opção da fuga. De resto,
o termo migrante compreende, geralmente, todos os casos em que a decisão de migrar é livremente tomada pelo indivíduo em questão, por razões de “conveniência pessoal” e sem a intervenção de factores externos que o forcem a tal. Em consequência, este termo aplica-se, às pessoas e membros da família que se deslocam para outro país ou região a fim de melhorar as suas condições materiais, sociais e possibilidades e as das suas famílias, sem que na génese existe esta obrigatoriedade de abandono do país.6
A Antropologia Social analisa criticamente este esteréotipo do refugiado como mero recetor de ajuda, reforçando a necessidade de um olhar que integre, não apenas as medidas de assitência, de estratégias de sobrevivência e de vida no país de acolhimento como as possibilidades de inserção no contexto e na soceidade de acolhimento, sem confinar os refugiados ao estatauto de pessoas passivas. Estas práticas de integração, defedidas por Blinder e Jelena (2005), de novas representações e de intervenção humanitária visam esbater o distanciamento entre nós e eles (os refugiados), numa abordagem mais humanista, igualmete subscrita por Agier:
os refugiados cessam de sê-lo, não quando retornam para as suas casas, mas quando lutam como tais pelo seu corpo, saúde, socialização: cessam de ser as vítimas que a cena humanitária implica, para se tornarem os sujeitos de uma cena democrática que eles improvisam nos lugares onde estão. (Agier, 2006, p. 213)
Neste trabalho, embora conscientes de zonas de sobreposição entre os dois termos, apesar de constatarmos que essa distinção está no centro do debate político e sociológico que se pauta por uma necessidade de construção de uma noção mais ampla do conceito de “refugiado” consideraremos, seguindo Fiddian-Qasmiyeh, Loescher, Long e Sigona (2014), assim como Oliveira, Peixoto e Góes (2017) que muitos dos migrantes, aparentemente voluntários e proativos, são forçados a abandonar os seus países devido a situações de carência económica severa, privação extrema ou degradação ambiental crescente, ao paso que muitos refugiados, aparentemente forçados e reativos, desiste voluntariamente no país de origem devido à falta de condições . Como sublinham estes autores (Oliveira et al., 2017, p. 77):
resulta assim, como também realça Triandafyllidou (2017, p. 4), que os conceitos atuais falham por não atenderem à multiplicidade de realidades que existem no terreno e que levam pessoas com necessidades de proteção a não pedir asilo e migrantes económicos a solicitar regularização ao abrigo desse estatuto.
E, ainda, que a distinção entre “migrantes” e “refugiados” é cada vez menos clara, tornando difíceis a análise e regulação destes movimentos (Oliveira et al., 2017, p. 97).
Importa anotar que o exemplo que preside ao nosso título do nosso trabalho, Barbarus ad portas interdita qualquer denegação, dado o seu emprego autónomo, independente da proposição, ou seja, ser uma expressão simples, um qualificativo projetado sobre a face do outro que configura um ato de discurso com uma intenção declaradamente agonal, ao qualificar o intruso como bárbaro que é naturalmente entendido como depreciativo.
Na próxima seção, apresentamos algumas reflexões em torno da rede Facebook e seu estatuto nas polêmicas.
O contexto da rede social Facebook
O ritmo das mudanças decorrentes das inovações tecnológicas, a célere transição dos meios de comunicação eletrônicos, a revolução digital, configuram um fenômeno de tão elevada repercussão e amplitude, que, conforme expusemos na introdução deste trabalho, importa proceder a questionamentos ontológicos e reflexivos sobre a adequação e a eficácia dos diferentes meios e repensar e redefinir o papel e o estatuto que podem assumir no nosso quotidiano social.
À rede Facebook estão subjacentes alguns objetivos: partilhar informação; influenciar semelhantes; manter-se informado; buscar momentos de entretenimento; pronunciar-se sobre questões sociais; participar em movimentos ativistas, para além das questões de marketing e comercialização por demais conhecidas.
Esta rede social contribui para o esbatimento da dicotomia público/privado. Torna-se um palco mediatizado de encenação, um espaço de partilha de opiniões, de revelações e de exposição do quotidiano, que visa a construção de uma identidade mediática onde a visibilidade e a exposição se interpenetram (Carvalheiro, Prior & Morais, 2015, p. 17). Outras especificidades da rede corroboram esta expansão crescente da polémica e da agressividade, dado que há uma perenização da escrita, sendo as mensagens de mais difícil apagamento; por seu turno, há indubitavelmente uma maior visibilidade, dado poderem ser difundidas e lidas por um vasto número de pessoas e a permanência dos conteúdos na web poder agravar e potencializar a agressividade no espaço virtual, contribuindo para a recorrência e banalização do fenômeno.
Conforme observa Amossy (2014a), a sociedade do século XXI é afeita ao espetáculo, a rede Facebook constitui, no dizer da autora, a praça pública da atualidade, onde os indivíduos se mostram uns aos outros, onde as ideias são discutidas e as polémicas se desenvolvem, muitas vezes de forma ácida. Nas redes sociais, conforme Cabral e Lima (2017), as interações se dão mais na ordem do conflito do que da harmonia; com efeito, Amossy (2014a) assevera que as mídias digitais privilegiam a polémica. De fato, no caso dos espaços do Facebook constituídos e exclusivamente dedicados à expressão da opinião pública, de cariz sociopolítico, assiste-se, com frequência, a uma dinamização forte e cerrada, com posts contínuos, veiculando-se a defesa dos valores e dos protagonistas que são subscritos e atacando, com veemência as ideias dos contrários e, sobretudo, ou as pessoas que estão no poder ou as mais frágeis e excluídas, sem direito de resposta.
Com respeito aos posicionamentos assumidos na rede, inclusive os agressivos, cumpre invocar Cabral, Marquesi e Seara (2015). As autoras mostram que os usuários, protegendo-se pela máquina e pela possibilidade de assumir identidades que lhes chancelam o anonimato, acabam por expor de forma mais espontânea seus pontos de vista, permitindo-se ser agressivos muitas vezes. Cabral (2013) observa também que a acessibilidade fácil da rede confere às pessoas uma sensação de proximidade que lhes chancela o emprego de uma linguagem mais descontraída, com menor controle pessoal. O facto é que as pessoas se expõem e expõem os seus pontos de vista no Facebook, e sua agressividade se torna também mais visível. Constatamos, igualmente, que, quando os comentários agressivos e ofensivos circulam na internet, dada a volatilidade da rede, estes são subestimados, dada a banalização crescente que faz com que se atinja um patamar de negligência perante estes fatos sociais. Apesar disso, as manifestações violentas parecem multiplicar-se dado que a violência de um usuário pode estimular outros a serem igualmente violentos.
Mostraremos, pois, a operacionalidade de duas categorias: uma, advogada por Develotte (2006), que foi intitulada de “espaço de exposição discursiva”. Embora a autora a tenha descrito para discorrer sobre o sistema educativo e as interações que nele ocorrem, cremos que ela é operacional para a análise que aqui desenvolvemos. Partimos, pois, da noção de espaço de exposição discursiva, descrito como o conjunto de enunciados ao qual um determinado grupo de pessoas está exposta e que determina e condiciona a posterior produção discursiva.
Com efeito, é em função de um espaço de exposição discursiva determinado que se efetua a produção de um novo discurso por parte de um enunciador, que é evidentemente um sujeito individual, mas sobretudo um ator socialmente enquadrado ou situado. O fato específico da rede social, em que os sujeitos estão expostos e em que há um rol de comentários prévios que constituem o referido espaço discursivo que vão ser tecidos e ajustados os comentários ulteriores potencia este encadeamento discursivo, de constante exposição.
Importa ainda sublinhar que algumas das especificidades das redes sociais corroboram a expansão crescente do fenómeno, pois as mensagens virtuais são mais difíceis de serem apagadas, há maior visibilidade, e podem ser difundidas e lidas por um grupo vasto de pessoas, permanecendo o conteúdo na web, podendo agravar e potencializar a agressividade no espaço virtual, o que confirma a recorrência e a banalização social do fenômeno. Assim, quando autores desvalorizam a imagem dos migrantes, fazem-no para conquistar a audiência, para angariarem pessoas com pensamentos similares que ajudem à construção de uma imagem pejorativa. Em um movimento em cascata, comentários agressivos parecem atrair novas manifestações de agressividade, promovendo a expansão desse tipo de comportamento. Os ditos ciberintimidadores recorrem a uma prática discursiva violenta, não apenas presente nas escolhas lexicais depreciativas, mas sobretudo nos atos diretivos ofensivos.
O ambiente virtual agressivo gera uma violência quase que coletiva, para Rodeghiero (2012, p. 52), mais perigosa que a violência física presencial, como se vê na seguinte afirmação da autora: “é certo que uma arma de grande potência pode, através de um só soldado matar várias pessoas ao mesmo tempo, mas a violência coletiva gera a sensação e projeção de uma violência aumentada”. Enquanto Castells (2013) constata que as redes sociais são utilizadas para instaurar um clima de fraternidade em prol da luta por questões sociais e políticas, em defesa dos direitos do cidadão que exige honestidade e democracia, na qual a violência acontece como instrumento de luta ou de opressão de poderes ditatoriais, em nosso corpus, nas redes sociais, recolhemos expressões denunciadoras de agressividade e violência verbais a partir de estratégias discursivas que apresentam negativamente a imagem dos migrantes, conforme evidenciaremos em nossas análises.
Enquadramento teórico
Inscrevemos o nosso trabalho no campo dos Estudos da Retórica, da análise interacional do discurso, de inspiração etnometodológica e, ainda, da Pragmática Linguística, partindo de dois pressupostos: a conceção da linguagem é radicalmente dialógica e socio-histórica; o conceito de ethos discursivo, tal como é definido por Maingueneau (2002), Charaudeau (1996, 2005), Amossy (1999, 2014b).
No espaço rede social, as apóstrofes estão naturalmente associadas a um objetivo argumentativo, na medida em que se, por um lado, participam da construção da imagem negativa do alocutário que o locutor deseja construir no seu próprio discurso, por outro, visam igualmente a adesão do auditório e simultaneamente a desqualificação do adversário, através de duas estratégias opostas: a primeira de persuasão e a segunda de estigmatização do adversário. Nesse contexto, conforme Cabral e Lima (2017, p. 89), “a violência verbal assume então um papel importante como estratégia do discurso polêmico, pois, ao agredir o adversário, nós o estamos, de alguma forma, o desqualificando”.
Bousfield (2008, p. 132) define que a agressividade verbal constitui um face threatening act (FTA), um ato ameaçador da face intencional, gratuito e conflituoso que foi produzido de forma propositada. Por sua vez, Culpeper (2008, p. 36) sublinha a intenção de causar um dano à face. De facto, quando a intenção é desqualificar o interlocutor, a violência parece mostrar-se uma estratégia eficaz e como tal, conforme expuseram Cabral e Lima (2017), precisa estar linguisticamente marcada, por exemplo, com o emprego de um qualificador de caráter pejorativo.
Terkourafi (2008, p. 70) todavia subscreve que a descortesia e a agressividade verbais ocorrem quando a expressão utilizada não é convencional relativamente ao contexto em que ocorre; ela agride a face do destinatário, mas nenhuma intenção de agressão à face é atribuída ao falante pelo ouvinte.
Os conceitos a que anteriormente aludimos permitem-nos reforçar que os sujeitos podem cometer atos ameaçadores de maneira intencional ou não, e colocam o contexto de interação e negociação e quadro enunciativo no centro como parâmetros importantes para a análise dos atos injuriosos.
No caso dos insultos, estes pressupõem naturalmente uma situação de interlocução, dominada por posicionamentos agonais, visando instaurar um clima interacional disfórico, pelo que estamos perante indícios explícitos de saturação referencial do destinatário, cuja especificidade consiste em ser portador de uma intenção crítica e depreciativa.
O insulto, conforme o dicionário, constitui “palavra, atitude ou gesto que tem o poder de atingir a dignidade ou a honra de alguém” (Houaiss & Villar, 2001, p. 1629). Fica claro, pela definição, que o insulto se materializa pela linguagem, é, pois um ato verbal. É preciso, no entanto, considerar que, para além de agredir a face do alocutário, conforme Cabral e Albert (2017, p. 278), “esse ato resvala para o domínio social”. As autoras recorrem ao dicionário para justificar o seu raciocínio, afirmando que o insulto deixa transparecer “aversão ou menosprezo pelos valores, pela capacidade, inteligência ou direito dos demais” (Houaiss & Villar, 2001, p. 1629). Por isso é que Kerbrat-Orecchini (2014, p. 47) afirma que a “polidez nunca possui um lugar nas guerras, onde se trata, antes de tudo de atacar o adversário para vencê-la, e assim também acontece nas guerras metafóricas que são os debates”.
Não se pode ignorar que os insultos têm subjacente uma intenção argumentativa que é sustentada pelo dispositivo de estigmatização do alocutário que, por sua vez, tem na sua gênese dois modelos: a conivência com os seus e a desvalorização do(s) outro(s). A interpelação do outro através de enunciados axiológicos pejorativos consiste em bloquear a etapa “X é um Y”, em que X representa o alocutário e Y a predicação efetuada sobre ele, uma estrutura predicativa que permite a refutação (do tipo estrutura negativa “X não é um Y”). As expressões injuriosas veiculam a existência concreta, a inquestionável referenciação e a coenunciação que se constrói impede qualquer discussão, na medida em que atualiza simultaneamente a avaliação e a sua confirmação ou ratificação.
Segundo Rosier e Ernotte (2000, p. 12), trata-se de uma estratégia argumentativa (mépris énonciatif) que visa, por um lado, estigmatizar o interlocutor, posicioná-lo como um outro ideologicamente distante, instaurando concomitantemente a conivência grupal com os seus. Em confluência com esse pensamento, van Dijk (1998, p. 43) postula que as boas ações são geralmente atribuídas a nós próprios e aos nossos aliados e as más ações aos outros (ou aos correligionários), ou numa simples inversão desta tese: as nossas más ações são atenuadas e minimizadas, ao passo que as boas são exaltadas. Van Dijk (1998) designa esta situação pelo quadrado ideológico em que o “nós” corresponde ao enunciador da mensagem e “eles”, os “outros”, são os que se posicionam ideologicamente de forma contrária. Essa estratégia argumentativa, que consiste em descrever positivamente o endogrupo (enunciador, também referido teoricamente como “nós”) e negativamente o exogrupo (objeto ou ator social representado no discurso, ou “eles”) – é denominada por van Dijk (2005, p. 195) “quadrado ideológico”.
Tradicionalmente, estamos em presença de um argumentum ad hominem, no seu sentido restrito, que implica a adoção temporária pelo locutor de uma doxa que ele percebe como incompatível com a doxa do auditório universal, auditório virtual e idealmente recetivo à argumentação racional.
O problema é que o uso quotidiano do ad hominem remete para um ataque ao outro e não a uma adaptação às crenças específicas do alocutário. No argumentum ad hominem não se discutem os méritos intrínsecos de ponto de vista ou da dúvida do oponente, mas desqualifica-se liminarmente o adversário. No fundo, esta estratégia dirige-se à audiência (no caso da rede social é importante esta noção de auditório, dada a sua rápida repercussão) e não ao oponente. A desqualificação do outro, no Facebook, frequentemente faz parte de um jogo retórico para o auditório, ou seja, os demais usuários com os quais se partilha um ponto de vista a ser reforçado. Conforme Amossy (2014a), a desqualificação do outro na sua pessoa, o deslegitima, por conduzi-lo ao descrédito.
Os argumentos ad hominem apresentam duas variantes:
- ataque pessoal direto: dirige-se a qualquer aspeto da pessoa: sua competência, sua honorabilidade, seu caráter. Pretende-se atingir a ética do oponente, considerando-o desonesto, não íntegro e não digno de confiança. Mostra-se que alguém incapaz ou mentiroso não pode sustentar posições corretas ou credíveis. Realçam-se sempre as características negativas do outro;
- ataque pessoal indireto: é aquele em que se coloca sob suspeita a imparcialidade do argumentador. Apresenta-se uma característica do oponente: filiação política, crença religiosa, étnica, alianças políticas de qualquer natureza. Ao ressaltar esse atributo pretende-se mostrar alguém tendencioso, que tem motivações pessoais obscuras, preconceituosas e visões parciais. Um ataque pessoal indireto é, por exemplo, deixar implícito que o outro não tem nada a dizer sobre um determinado assunto, porque não teve experiência pessoal na área.
Nossas análises focalizarão essas duas categorias de estratégias, conforme exporemos na próxima seção.
Ataque aos migrantes no Facebook
Embora todos saibamos que a liberdade de expressão é um direito de cidadania, por vezes, quedamo-nos perplexos com os inúmeros procedimentos injuriosos, de difamação, de ataque ad hominem a que assistimos, sobretudo, numa era em que as redes sociais disseminam e contagiam, através da palavra escrita, as opiniões livres de todos os que anteriormente não tinham acesso à expressão pública da sua opinião.
Escolhemos a rede social Facebook dado que esta se afigura como um campo relevante para investigação em diversas áreas, sob diversos olhares e pode revelar muitas particularidades das percepções e comportamentos dos indivíduos, quanto a eles próprios e em suas relações sociais. Dabrowska sublinha que o Facebook traz inúmeras vantagens para investigação:
a rede social, e especificamente o Facebook, compartilha uma série de vantagens com os registros eletrónicos, notadamente as de grandes quantidades de dados facilmente acessíveis, um grau considerável de informalidade na linguagem, a possibilidade de manipular os assuntos para explorar vários aspectos do uso da linguagem e (…) acesso a informações sociais sobre autores de postagens por meio de seus dados de perfil. (Dabrowska, 2013, p. 142)
Recolhemos no Facebook um conjunto de comentários de usuários portugueses e brasileiros versando sobre migrantes. O corpus brasileiro foi coletado em grupo público do Facebook7 que conta com 139.166 participantes. Por sua vez, o corpus português foi coletado igualmente na rede social Facebook8, que congrega 87.123 participantes. Considerando as questões que presidiram o desenvolvimento da pesquisa, foram consultadas 196 páginas ao longo dos meses indicados e foram selecionados, recolhidos e anonimizados posts e comentários, cujas estratégias discursivas manifestavam polarização, agressividade e exclusão social.
Partindo da definição de insulto que expusemos na seçao anterior e dos postulados de de Rosier e Ernotte (2000, p. 3), consideramos que o insulto se realiza verbalmente como forma tipicamente linguística que coloca nominalmente em causa o outro, pressupondo uma configuração discursiva e uma situação de enunciação específica que visa a conspurcar dignidade ou a honra do insultado. Nesta perspetiva, e dado que o insulto é manifestamente um ato ameçador da face do outro (FTA), defendemos que o insulto, enquanto estratégia verbal, faz uso da violência verbal (Auger, Fracchiola, Moïse & Schutz-Romain, 2008, p. 639), tal como sublinham:
o insulto é um ato de fala interlocutivo; carrega uma força emocional, mesmo instintiva, e vê o outro no desejo de diminuí-lo e negá-lo. Desempenha um papel eminentemente perlocucionário (“porque eu te chamo de bacon gordo, você vai se sentir assim”). Esse funcionamento decorre de estratégias linguístico-discursivas.
Podemos afirmar, com as autoras citadas, que o insulto implica um destinatário, tendo, pois uma função pragmática e interacional importante, correspondente à forma de tratamento, voltada para o outro, a quem se atribui um julgamento de valor negativo, linguisticamente expresso por termos axiológicos pejorativos. Os insultos e as demais marcas de agressividade na análise que aqui desenvolvemos não acontecem em contextos presenciais nem dialogais, mas numa situação específica de enunciação, que é comummente designada por delocução: são proferidos ou escritos e dirigidos a um outro ausente, o que como anteriormente mostramos, se reveste de maior complexidade e de acrescida agressividade, pois possivelmente face-a-face tais enunciados não seriam pronunciados.
Acrescente-se a importância do público que, no caso das redes sociais, é de grande alcance, reveste-se de enorme importância, dado que o sentido pragmático decorre da relação enunciativa; nesse contexto, a presença de outros(s) na identificação do ato de discurso subjacente suscita frequentemente mais interlocutores, como ocorre em casos de atos como a difamação, a provocação, a humilhação visam a estigmatização e a exclusão do outro.
Constata-se que, se por um lado, se comenta discursivamente a população migrante como estranha, numerosa e causadora de perturbação social (“ilegal, intrusa, terrorista, bárbara”), sendo construída uma acusação a partir de uma imagem depreciativa, por outro, em contraposição, exalta-se quem acolhe, proliferando um discurso inclusivo, marcadamente humanista.
Passemos então à análise de alguns dos comentários na rede social Facebook sobre os migrantes. Conforme ficou definido na seção anterior, nossas categorias de análise são: ataque pessoal direto e ataque pessoal indireto. Designaremos CP e CB quando nos referimos ao corpus português e ao corpus brasileiro, ambos recolhidos de páginas do Facebook, nas datas indicadas entre parêntesis no final (itálico acrescentado).
CP1 – Eu acho que não devemos acolhê-los. Eles vêm para cá e não respeitam as nossas regras!CP2 – Eles só querem ir para os países ricos!
CP3 – Eu não sou racista, mas… os muçulmanos são todos terroristas, são animais nos quais não podemos confiar!
CP4 – Os países árabes que fiquem com eles!
CP5 – Porque estou a cagar-me para o sofrimento deles!
CP6 – Não queremos parasitas aqui
CP7 – Fora os intrusos!
CP8 – Além do mais, são todos terroristas!
CP9 – Fora esses ilegais, criminosos, voltem para os seus países.
CP10 – Não queremos viver na selva.
CP11 – Eu não sou racista, mas… os muçulmanos são todos terroristas, são animais nos quais não podemos confiar! Os países árabes que fiquem com eles! Porque estou a cagar-me para o sofrimento deles!
CP12 – Infelizmente o portugués contenta-se com futebol e passeios das câmaras, enquanto esta gente se aproveita para rapar tudo o que mexe!
(22 de agosto de 2017)
CB1 – Aqui já tem muitos problemas, ainda vem esse povo de fora trazer mais problemas o governo deve mesmo proibir a entrada desse povo aqui.
CB2 – Sem falar em doenças erradicas ha anos aqui, estao ai todas de volta”
CB3 – Não nos bastam os nossos próprios problemas, temos que arcar com os dos vizinhos que são escravos de ditadores, não temos culpa se em seus países, não existem homens de caráter ilibado, como Sérgio Moro e seus companheiros de batalha.
CB4 – Já passou da hora de colocar moral nesse país. A maioria dessa gente que está chegando é para votar nesses comunistas de merda que estão se apresentando por aqui. Estão todos recebendo título de eleitor. Pra que votar nessas merdas.
CB5 – Manda esse bandido para o país deles que o Brasil está cheio de bandidos BRASIL
CB6 – A gente acolhe e eles vem aqui fazer baderna. tá certo os brasileiros, expulsem mesmo. e quem não gostar, acolhem esses baderneiros estrangeiros em suas próprias casas
CB7 – Essa súcia de baderneiros venezuelanos, pensam que aqui é país sem lei? Mandem essa gentalha de volta pra Venezuela, porque aqui não é terra de malboroo! Fechem a fronteira urgentemente! É a única solução!
CB8 – Eles dizem que estão passando necessidades no seu país, mas nós estamos de que jeito aqui no nosso? E ainda começaram à cometer crimes? Aqui nós não temos problemas de mais? Eles que fiquem por lá mesmo.
CB9 – Tem que mandar este Povo de volta pra Venezuela! Quem mandou votar em Comunista?
CB10 – Claro estão assaltando os brasileiros, aqui já tem muito ladrão, não precisamos importar mais!
(18 de agosto de 2018)
Como podemos atestar nos exemplos apresentados, há esta evidente construção da dicotomia: nós/eles, quer explícita quer no uso dos pronomes, quer implícita na construção verbal.
Constrói-se discursivamente a imagem da população migrante que chega à Europa ou ao país vizinho, no caso do Brasil, como estranha, numerosa e causadora de perturbação social, de problemas (“vem esse povo de fora trazer mais problemas”), sendo construída, por um lado, uma imagem depreciativa, e, por outro, uma imagem de vitimização, em contraposição, pois depreende-se a não aceitação do outro por medo, por intolerância. Para esse fim, recorre-se ao uso de léxico do campo da agressividade, sobretudo a adjetivação violenta, exarcebada, de ostracização do outro (“ilegais, parasitas; terroristas, criminosos, bandidos, baderneiros, gentalha, escravos de ditadores”) e ao uso reiterado da negação acusatória de eliminação do outro (“não queremos parasitas, não temos culpa, não precisamos importar mais”); ou de marcadores de exclusão (“fora os intrusos; mandem essa gentalha de volta para Venezuela; eles que fiquem por lá mesmo”) que demarcam um território pessoal e geográfico que não permite invasão.
O uso de palavras e expressões de baixo calão reforça toda a carga negativa de que as várias mensagens estão imbuídas (“estou a cagar-me, nesses comunistas de merda”) e reforça simultaneamente essa hostilidade.
A expressão “a gente”, que no português europeu assume, em alguns contextos, um traço depreciativo, no exemplo CP12, atesta o desprezo que é veiculado no enunciado, em que, para além de se criticar a inatividade do povo que acolhe, se acusa o outro de roubar (“rapar”).
A depreciação, que configura um ataque direto, em delocução, denuncia uma posição intransigente, veiculada, sem filtro, pelo uso do termo “animais”, bem como pelo recurso a metáforas do domínio animal para descrever o outro que não é bem-vindo. Outra metáfora reporta-se à “selva”, termo que é usado para descrever os acampamentos sobrelotados, sem condições, em que os migrantes se amontoam. No caso brasileiro, o migrante é associado ora ao campo semântico do crime (“bandido, estão assaltando, ladrão”), ora ao campo da saúde, como aqueles que trazem as doenças e, portanto, representam uma ameaça à população local (“doenças erradicadas há anos aqui, estao aí todas de volta”). São, pois, argumentos ad hominem, no sentido de Amossy (2014b), uma vez que as imagens projetadas servem para desqualificar liminarmente o outro, o que reforça o afirmado por Seara e Manole:
as classificações negativas, o acompanhamento e a repetição que potencializam a crítica, evidenciam uma agressividade verbal que, ao invés de fortalecer laços, degradam o outro marcando e destruindo a sua imagem, aumentando a ruptura e estimulando a não construção de laços sociais.(Seara & Manole, 2016, p. 316)
De facto, esta estratégia, a serviço da construção de um ethos xenófobo e intolerante, dirige-se à audiência. Destaque-se que, no caso da rede social, é importante esta noção de auditório, dada a sua rápida repercussão. O argumento ad hominem não visa aí o oponente numa querela, mas o próprio alvo da discussão, ou o seu tema, isto é, os migrantes. O usuário que posta o comentário o faz, na maioria das vezes para seus pares, com o intuito de reforçar um ethos coletivo, ou, conforme Terkourafi (2008), a própria imagem. Pode-se, pois, afirmar que se trata de uma estratégia retórica que visa a reforçar a imagem de si perante o grupo a que pertence, uma vez que, no Facebook, de acordo com Cabral e Lima (2017), as pessoas se relacionam por interesses comuns, por compartilharem pontos de vista. Assim, agride-se o migrante para reforçar o ethos coletivo, a imagem identificada no grupo, que, no caso de nossas análises, é xenófobo e intolerante.
Menos recorrentes, mas também agressivamente eficazes, são as críticas expressas por ataques indiretos, na medida em que, em vez de se dirigirem impropérios aos migrantes, responsabiliza-se a classe política, quer pela sua inatividade, quer pelos seus ideais de acolhimento e inclusão. Nos exemplos que se seguem, é notória essa denúncia que é expressa quer através da crítica direta (CP15, CB11, CB12), quer através da ironia (CP16, CB12), quer, através da pergunta retórica (CP16 e CP17), sempre de ameaça à face do outro, mesmo encontrando-se numa posição hierarquicamente superior, o que espelha o registo provocatório, de instigação e afronta.
CP15 – O aproveitamento da chamada “crise dos refugiados” suscita, na nossa classe política governante, doses substanciais de hipocrisia e de uma falta de respeito tremenda para com os Portugueses. Adormecem o povo com as suas falinhas-mansas, falam dos valores europeus e da solidariedade, ao mesmo tempo que atiram os Portugueses numa miséria profunda. Mas para lá da “crise dos refugiados”, existe uma agenda bem delineada dos governos europeus, da qual, Portugal faz parte. Trata-se de uma agenda própria da época, com objectivos pouco claros para a sociedade, em que o debate é tabu, sob pena de sermos acusados de islamofobia.(18 de junho de 2017)
CP16 – Esta é a mentalidade da nossa classe política governante. Repovoar Portugal com os imigrantes muçulmanos…, mas porque é que não se dá a mesma oportunidade aos Portugueses!? Não seria bem mais lógico!?
(26 de julho, PNR Partido Nacional Renovador)
CP17 – Onde tá aquela gente burra idiota de bem vindos refugiados? Ó estúpido do português! SÓ VAO ABRIR OS OLHOS QUANDO ESTOIRAR UMA BOMBA
(12 de julho de 2017)
CB11 – Já que o governo deixou as pernas abertas temos que tomar as rédeas da situação
CB12 – Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil, estamos ajudando só que vem aqui fazer a casa da mãe Joana temos que por ordem ou sofreremos as consequências desse governo que deixou as pernas abertas.
CB13 – Desgoverno dá nisso. Parabéns povo brasileiro.
(18 de agosto de 2018)
Evidenciando uma posição intransigente e de superioridade, expressam-se através de atos diretivos, dando ordens aos governantes e insultando-os (CP18, CB14, CB15, CB16):
CP18 – Deixem de ser burros, acolher refugiados é acolher Terroristas…..Abram os olhos…..são mesmo burros……CB14 – Tem que fechar mesmo! Vao lutar la no paiz deles nao puseram o cara lá
CB15 – Não pode deixar esse povo entrar aqui não.
CB16 – Passou da hora de proibir entrada de mais pessoas para ficar desempregado no país.
(26 de agosto 2017)
Retomando o fio condutor proposto, ab initio, podemos concluir que as estratégias discursivas que operam a exclusão social são semelhantes nos corpora recolhidos, no português e no brasileiro.
Há uma polarização de opiniões, em que os enunciadores nas redes sociais expressam, de forma veemente, a sua contestação e a não aceitação da entrada de migrantes, invocando-se razões de ordem social, religiosa, étnica e política. As posições irredutíveis realizam-se, como ficou demonstrado, maioritariamente, por ataques diretos, insultuosos e agressivos, com recurso a léxico violento e à reiteração de negativas de interdição e de bloqueio, predominando a ironia, a desqualificação, o descrédito, as expressões pejorativas e vexatórias, os atos de repúdio, o que evidencia um discurso ideologicamente marcado.
Esta análise permite-nos igualmente comprovar que, numa era em que as redes sociais disseminam e contagiam, através da palavra escrita, as opiniões livres de todos os que anteriormente não tinham acesso à expressão pública da sua opinião, assiste-se à produção de opiniões realizadas de forma mais direta e agressiva, às quais subjaz a intenção de excluir o outro, o migrante que vem perturbar a ordem estabelecida. Estas estratégias assumem uma finalidade argumentativa que consiste na rejeição do outro, porque diferente, mas visam igualmente influenciar um vasto número de leitores da rede social e reafirmar o pertencimento a determinado grupo ideológico.
Considerações finais
Conforme destacamos em nossas análises, as mensagens nas páginas Facebook que analisámos neste estudo configuram um trabalho de manipulação, predominando as expressões vexatórias, os atos de repúdio e insulto e, concomitantemente, o apelo constante à expulsão dos migrantes, expressos através de duas estratégias de argumentum ad hominem. Às mensagens de Facebook subjaz intencionalmente o propósito de macular a imagem dos migrantes a partir de estratégias que assumem uma finalidade argumentativa que consiste, por um lado, em influenciar um vasto número de leitores da rede social e em mostrar a pertença a determinado grupo, alinhando-se com o ethos ideológico coletivo do mesmo, e por outro, construir juízos de valor negativo a respeito dos migrantes e daqueles que os defendem, cuja face é ameaçada por atos descorteses e mesmo insultuosos.
As estratégias argumentativas que agridem a face estão imbuídas de um cunho polêmico, reforçando uma imagem que não é digna de respeito, construindo, de forma mais alargada, o descrédito das pessoas já por si, em situação de debilidade e, inclusivamente dando lugar a uma culpabilização política dos responsáveis.
Ao fim deste trabalho, retomamos os dizeres de Montecino, que inspirou o estudo apresentado: “o investigador coloca-se diante de seu objeto de estudo como um estudioso que busca o saber e como um sujeito ideológico que busca dar sentido a esse saber” (Montecino, 2010, p. 250).
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Notas biográficas
Isabel Roboredo Seara é Professora Auxiliar do Departamento de Humanidades e coordenadora do Mestrado em Estudos de Língua Portuguesa, na Universidade Aberta, Lisboa, e coordenadora do Doutoramento em Didática das Línguas. Multilinguismo e Educação para a Cidadania Global (Universidade Nova e Universidade Aberta). É membro do Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa e do Grupo de Investigação Pragmática. Discurso. Cognição (PraDiC) do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho. Colabora em projetos de investigação no Laboratório de Educação a Distância e e-learning (LeaD). É doutorada em Linguística Portuguesa e desenvolve trabalho de investigação no âmbito dos estudos de pragmática, análise do discurso, retórica, epistolografia, privilegiando igualmente os estudos de comunicação mediada por computador, nomeadamente os efeitos sociais e linguísticos das tecnologias digitais.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2117-5320
Email: irseara@gmail.com
Morada: Universidade Aberta Palácio Ceia Rua da Escola Politécnica, 147
1269-001 Lisboa Portugal
Ana Lúcia Tinoco Cabral é Professora Colaboradora do Mestrado Profissional Profletras da Universidade de São Paulo e pesquisadora colaboradora do Instituto de Pesquisa da PUCSP. É coordenadora do Grupo de Trabalho Linguística de Texto e Análise da Conversação (ANPOLL – biênio 2018-2010). Doutora em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) (2005), Brasil. O quadro teórico que dá suporte às suas pesquisas insere-se na área da Linguística Textual, na linha teórica da Semântica Argumentativa e da Linguística da Enunciação, linguagem argumentativa, interação verbal escrita, linguagem jurídica, (im)polidez linguística e uso da linguagem em contextos digitais, incluindo práticas educativas a distância.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6417-2766
Email: altinococabral@gmail.com
Morada: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Rua do Lago, 717, Butantã, São Paulo-SP, Brasil
Submetido: 13/04/2020
Aceite: 01/07/2020
NOTAS
1 Retirado de https://www.refugiados.pt/
2 Retirado de http://www.acnur.org/portugues/quem-ajudamos/refugiados/
3 Disponível em https://www.cig.gov.pt/wp-content/uploads/2018/01/Declaracao-Universal-dos-Direitos-Humanos.pdf
4 Disponível em: http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf
5 Disponível em http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/BD_Legal/Instrumentos_Internacionais/Declaracao_de_Cartagena.pdf?view
6 Retirado de Glossário sobre Migração - Organização Internacional para as Migrações, disponível em https://www.acm.gov.pt/documents/10181/65144/Gloss%C3%A1rio.pdf/b66532b2-8eb6-497d-b24d-6a92dadfee7b
7 Disponível em https://www.facebook.com/groups/388027014733332/about/
8 Disponível em https://facebook.com/groups/23145777899645/about