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Comunicação e Sociedade
versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575
Comunicação e Sociedade vol.38 Braga dez. 2020
https://doi.org/10.17231/comsoc.38(2020).2451
VARIA
Imagens e poder: encenação, rasura e pintura
Images and power: scenario, erasure and painting
Eduardo Paz Barroso*
https://orcid.org/0000-0002-3788-8459
Rui Estrada**
https://orcid.org/0000-0002-8076-6692
Teresa Toldy***
https://orcid.org/0000-0002-2299-3504
*LabCom, Universidade da Beira Interior, Portugal / Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Fernando Pessoa, Portugal
**Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Portugal / Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Fernando Pessoa, Portugal
***Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Portugal / Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Fernando Pessoa, Portugal
RESUMO
Este artigo procura abordar o poder da presença da imagem em três períodos históricos do século XX, algo que se tornou omnipresente nestas épocas históricas, mas que não é exclusivo das mesmas: veja-se a referência ao impacto da visão de parte do corpo descoberto de Frine, levada a julgamento no século IV a.C. A imagem, em dois dos casos aqui apresentados (o nazismo e o estalinismo), constituiu um instrumento ao serviço do poder, com o objetivo de encenar simultaneamente a “heroicidade” e uma normalidade em contraste radical com uma brutalidade que marcou decisivamente a história e constituiu um dos principais momentos de trevas vividos no século XX. Por seu turno, sob Estaline, a imagem é manipulada, tornando o processo de rasura de personagens uma alegoria macabra da sua aniquilação real. A eficácia da reconstrução da realidade, através da manipulação da imagem, passa, assim, por uma ilusão de omnipotência: como se os ditadores tivessem o poder de enunciar, construir e destruir a “realidade”. Na terceira parte, partindo da questão da acentuada erosão das imagens na atualidade, a discussão centra-se na resposta que a pintura abre e problematiza. Ao contrário do carácter efémero da fotografia, a pintura sobrevive a tempos sombrios, persiste teimosamente, como se pode ver no caso de Tuymans. A memória não pode ser apagada. E porque não é programática, porque constitui uma tentativa de despoluição da imagem, rasga o espaço para a busca de sentido.
Palavras-chave: fotografia; pintura; poder; nazismo; estalinismo
ABSTRACT
This article addresses the power of images in three periods of 20th century history. The use of images, particularly of photography, during these periods became omnipresent, although there are many other examples of the power of images over the relevance of words: the sight of Phryne’s partially naked body, for instance, had a big impact in her trial in the 4th century. Two of the examples presented in this paper (Nazism and Stalinism) used images as an instrument of power. They aimed to present simultaneously a sense of heroism and of “normalization” in radical contrast to the brutality that left a decisive mark in history as one of the most tragic dark moments of the 20th century. On the other hand, under Stalin, photos and images were manipulated: erasing people in photos can be understood as a macabre allegory of their annihilation in real life. The efficacy in the re-construction of reality through the manipulation of photos seems to result from an illusional omnipotence, as if dictators had the power to enunciate, create and destroy “reality”. The third part of this article discusses the answer open and given by painting to the increasing erosion of images witnessed nowadays. Painting, contrary to the ephemeral nature of photography, survive dark times. It resists in a stubborn way, as we can see, for instance in the example of Tuymans’ paintings. You cannot erase its memory. Painting is not “programmatic”. It is an attempt to depollute images. And by doing this, it tears open a space for the search for meaning.
Keywords: photography; painting; power; nazism; stalinism
Introdução
Neste ensaio, procuramos fazer um percurso acerca do poder das imagens em três períodos históricos diferentes: o nazismo, o estalinismo e a contemporaneidade.
A escolha destes três momentos tem esta explicação: se nos dois primeiros estamos no início da apropriação/manipulação da imagem, sobretudo a fotografia, pelo poder, para desta fazer um uso conveniente e eficaz, a contemporaneidade traz a saturação, a indistinção e, até, a vulgarização das imagens e logo, também, a questão óbvia: como resgatá-las desta banalização?
De facto, no regime nazi, o fotógrafo oficial de Hitler, Heinrich Hoffmann, mitificou o ditador, sempre tendo em atenção as circunstâncias, ou seja, o que o momento exigia. Tanto o apresenta como um guerreiro liberto da prisão e pronto para a luta como um dócil homem em ambiente familiar. Estaline refez a história da época através de um outro expediente: rasurou pelo esquecimento, ou literalmente, pessoas não gratas nas fotografias do regime. O caso de Trotsky, que mandou executar em 1940, é exemplar. Ou, ainda, a transformação de uma fotografia de conjunto em uma pintura icónica de apenas um homem providencial: o próprio Estaline.
Na contemporaneidade, assistimos a uma tentativa de despoluição da imagem, da fotografia, através da pintura. Face à sobre-exposição, já muitas vezes inócua, das primeiras, a pintura, que não é manipulável, embora possa ser destruída, (re)surge como uma hermenêutica crítica da Babel de imagens dos nossos dias. Por outras palavras, nesta secção do ensaio, mais do que uma discussão acerca do uso da imagem nos dias de hoje, interessa-nos, justamente pela incessante volatilização desta, perceber como a pintura aparece, simultaneamente, enquanto resposta e questionamento. E isso permite-nos regressar, embora com propósitos diferentes, ao horror do totalitarismo: Luc Tuymans (1958/2006), por exemplo, evoca nas suas obras os campos de concentração nazis ou a “solução final”.
Em suma, este ensaio, balizado nestes três momentos, procura responder a esta questão: como vemos as imagens e que poder podem ter?
A presença da imagem
A felicidade consiste em dizer a verdade sem magoar ninguém. (Fellini, 1963)
No século IV a.C., a hetaira1Frine foi levada a julgamento acusada de impiedade, o que podia resultar na pena capital: teria profanado os mistérios de Elêusis.
Dotada de uma enorme beleza, Frine, que tinha posado para Praxíteles e Apeles, foi defendida por Hiperides. Num dado momento do julgamento, e sem mais recursos para convencer os juízes, o orador desnudou a hetaira até à cintura:
valeu-lhe, porém, o expediente do advogado Hiperides, sábio e experimentado orador de Atenas que, ao sentir a causa perdida, se abeirou da cliente e lhe rasgou as vestes até à cintura, rogando clemência aos juízes para figura de tão rara beleza. (Junior, 2008, p. 13)
Confrontado com este gesto e com a beleza de Frine, uma discípula de Afrodite, o tribunal absolveu a cortesã: a imagem de parte do corpo descoberto de Frine teve o efeito que as palavras não tinham conseguido alcançar (Dyck, 2001).
Esta passagem do julgamento de Frine não pode, segundo alguns classicistas, ser dada como certa. Craig Cooper, por exemplo, num artigo escrito em 1995, é claro quanto à efabulação deste episódio. Sugerindo que o julgamento decorre mais de uma disputa entre Euthias, o amante despeitado, e Hiperides, o novo admirador, Cooper afirma que apenas uma interpretação desatenta das fontes pode ter levado à ideia de que a cena do desnudamento aconteceu de facto: “a evidência indica que a cena do desnudamento foi inventada por Idomeneu talvez para parodiar e ridicularizar os artifícios forenses dos demagogos de Atenas” (Cooper, 1995, p. 315).
Igualmente Konstantinos Kapparis (2017), numa obra recente intitulada Prostitution in the ancient greek world, defende que não há demonstração que permita verificar com rigor o acontecimento: “não é possível verificar ou negar definitivamente os episódios pitorescos que podem ou não ter garantido a sua absolvição, aliás, o melhor talvez seja relegá-los para a esfera da mitologia popular em torno desta figura lendária” (Kapparis, 2017, p. 384).
Independentemente de ser lendário ou real, este episódio sugere, logo no século IV a.C., o poder da imagem e o efeito que esta pode ter no confronto com a palavra. Se é certo que o objetivo final da retórica é a persuasão, e o objetivo específico de Hiperides, neste caso, era a absolvição de Frine, qualquer recurso é válido para o efeito pretendido. Foi justamente esse efeito que o retórico conseguiu, através da exposição ostensiva da beleza de Frine, alimentando aliás um topos habitual no mundo clássico: o poder da beleza explorado, por exemplo, na famosíssima história de Helena (Curado [2008], mais concretamente o capítulo intitulado “O poder da beleza”; Górgias [1993], “Elogio de Helena”).
Em 20 de Dezembro de 1924, Heinrich Hoffmann, o fotógrafo oficial de Hitler, tirou a fotografia que vemos em baixo. Pretendia justamente anunciar a libertação do futuro ditador, após ter estado preso nove meses, por traição, em Landsberg, na Baviera.
O problema desta foto, que correu a Alemanha e o mundo, como explica Moorhouse (2014), é que assenta numa fraude: impedido por um guarda prisional de fazer a fotografia mesmo à porta da prisão, Hoffmann deslocou Hitler para a entrada gótica da cidade, visto que esse local tinha uma atmosfera semelhante à da fortaleza em que o futuro ditador tinha estado preso. Mas, na verdade, a prisão não tinha aquele portão medieval que vemos na imagem, do qual Hitler parece estar a sair.
Ora, foi justamente assim que a famosa foto publicada e comentada: como se Hitler estivesse, de facto, a sair da prisão. Há até um título de uma notícia da altura que diz mesmo isso: “o portão da fortaleza abriu” (Moorhouse, 2014, p. 7), assumindo que o portão gótico da cidade de Landsberg é literalmente a entrada da prisão.
Como afirma Moorhouse, Hoffmann e Hitler, desde muito cedo, perceberam o poder da imagem e o poder que a imagem tem de curvar a verdade: “ela mostra não só que Hitler e Hoffmann estavam perfeitamente cientes da importância política da imagem, mas também como estavam dispostos a manipular a verdade” (Moorhouse, 2014, p. 7).
No dia 18 de setembro de 1931, Angela “Geli” Maria Raubal, meia-sobrinha de Hitler, que vivia com o tio desde 1929, aparece morta na casa em que ambos habitavam. Há uma enorme especulação acerca da morte de Geli2. Para o que aqui nos interessa, o momento não podia ser pior para Hitler. Além das suspeitas da ligação à morte da sobrinha, este incidente punha em causa toda uma estratégia política do futuro ditador em plena campanha para chegar ao poder.
De todo o ardil planeado para Hitler não sucumbir ao escândalo (Görtemaker, 2012, p. 25), o livro de fotografias de Hoffmann, intitulado Hitler wie ihn keiner kennt (The Hitler no one knows), 1932, é uma peça fundamental.
Como afirma Maiken Umbach, no documentário The rise of the Nazi Party (Kloska, 2014), as fotografias e os postais de Hoffmann tinham o propósito de apresentar Hitler como um homem comum, um homem do povo: Hitler num piquenique, a brincar com o cão, em momentos de lazer, num ambiente familiar e paternal. Sendo um best-seller, o livro de Hoffmann contribuiu naturalmente para restaurar a vida pública e a carreira política do futuro ditador.
O resto da história é genericamente conhecida: usando um avião, o que acontece pela primeira vez, para fazer campanha para as eleições de 1932 (Görtemaker, 2012, p. 27), Hitler, esquecido já o incidente “Geli”, aparece como o salvador que vai devolver à Alemanha o seu prestígio. A coroação acontece a 30 de janeiro de 1933, ano em que o incêndio do Reichstag, a 27 de fevereiro, as eleições de março e a aprovação, também no dia 23 desse mês, pelo parlamento, do estado de emergência, lhe conferem, democrática e paradoxalmente, o poder ditatorial com que veio depois a assombrar o mundo.
Em suma, as fotografias de Hoffmann foram decisivas para uma estética fascista que intuiu (e aproveitou), desde cedo, que a política tinha entrado definitivamente na era da imagem. E que estas, tal como os gregos diziam dos discursos, são um alvo fácil de manipulação. Foi isso que fez Hoffmann: “as fotos de Hoffmann, o fotógrafo oficial de Hitler, foram exploradas amplamente como um registo dos feitos de Hitler e usadas como propaganda, manipulando o poder que a fotografia possuía de criar uma imagem pública do Reich dos Mil Anos e da superioridade da Alemanha” (Brett, 2016, p. 235).
A ausência da imagem
Por vezes, tratar uma fotografia significava voltar ao passado para alterar o registo histórico. (Blackmore, 2019, § 11)
Simon Sebag Montefiore, na sua obra intitulada Estaline. A corte do czar vermelho (2017, p. 25), publica uma foto do ditador com a sua filha, Svetlana, no início da década de 30. O capítulo de enquadramento desta foto na obra de Montefiore menciona o profundo amor que o ditador nutria pela sua filha, sentimento esse referido igualmente, a título de exemplo, por Rosemary Sullivan (2016) na sua biografia de Svetlana.
Particularmente depois da morte da mãe de Svetlana, Nadya, em circunstâncias não completamente esclarecidas, Estaline manifesta um amor autêntico pela filha, a quem, segundo Sullivan (2016, p. 61), chamava “borboletazinha”, “a sua mosquinha”, “o seu pardalinho”. Chamava-lhe também “anfitriã”, dizendo que era ela que mandava na casa, na qual, nas palavras de Montefiore (2017, p. 20), vivia a sua “amantíssima família”, que incluía membros do Politburo, cunhados, figuras como aquela a quem Svetlana chamava o “tio Lara”, com quem brincava e ao colo de quem se sentava – Lavrenti Pavlovitch Béria (Overy, 2016; Milhazes, 2018).
Se o objetivo subjacente às fotografias de Hitler, mencionadas na secção anterior, era criar a ilusão de normalidade, estas fotografias de Estaline “em contexto familiar” parecem indiciar a existência de um mundo paralelo – o mundo da sua dasha, na qual ele trabalha calmamente, enquanto a sua filha brinca com o carrasco do regime, o executor das suas ordens, que passariam, inclusivamente, pela eliminação de elementos da “amantíssima família”. Poderá ser lícito supor que não existe uma encenação deliberada nestas fotos, como existia no caso de Hitler: o objetivo parece não ser encenar uma vida familiar. Contudo, a questão que poderá colocar-se é, quiçá, mais perturbadora: o Estaline que manifesta um amor autêntico pela filha e o Béria que brinca com Svetlana, como fazendo todos parte da mesma família, vivem esta dualidade entre a “normalidade” dos homens comuns e a monstruosidade da eliminação, do apagamento, dos seus opositores reais ou imaginários3.
A paranoia que caracterizava Estaline, e que se traduzia numa constante sensação de ameaça, levava-o ao extermínio de quem quer que fosse, incluindo membros da sua própria família, na sequência daquela que ficou tristemente conhecida como a fase do “terror”. De facto, a maioria das pessoas que posam, em 1934, para uma fotografia de família, tirada no dia do seu aniversário, entre as quais se encontram membros do Politburo, esposas de militares, mas também de cientistas e ainda familiares mais diretos, viriam a ser todas atingidas pela exclusão do mundo familiar de Estaline nos anos 40. Tratando-se de uma fotografia “de família”, a sua presença não é apagada, como acontecerá com outras fotos em contexto oficial, público. Os rostos continuam lá, mas a exclusão já tinha acontecido.
Foi este o destino, nos anos 40, de alguns dos rostos sorridentes desta “foto de família”4, com Estaline ao centro: na fila de cima, à esquerda, encontra-se Ana Redens, presa em 1948 (o seu marido, Stalisnav, que não se encontra na fotografia, fora executado em 1940). Na fila do meio, podemos ver Maria Svanidze (à esquerda), executada em 1942. Embora Sashiko Svanidze (terceira a contar da esquerda) tenha sobrevivido, a sua irmã, Mariko, foi executada em 1942; Polina Molotov (à esquerda de Estaline) foi presa em 1948. Por fim, na fila de baixo, a segunda a partir da esquerda, Zhenya Alliluyeva, foi presa em 1947. Estamos, pois, perante uma foto intacta (tirada em 1934) de um grupo de pessoas que, na década seguinte, seriam erradicadas.
A erradicação real, incluindo das imagens, verificar-se-á crescentemente como um elemento claro de propaganda política, de reconstrução da realidade, aliás, de dissuasão da dissidência, através da “punição” do desaparecimento da memória histórica, estratégia que enuncia igualmente o poder do ditador para refazer a história, eliminando da mesma os seus inimigos. Se no caso das fotografias de Hitler mencionadas na primeira parte, o objetivo é fazer crer que se está perante um homem comum, com uma vida familiar comum – o que acontece, aliás, também, nas fotografias (ainda que não encenadas) de Estaline com a sua filha e com a sua “amantíssima” família – nas fotografias estalinistas das quais os inimigos são literalmente apagados, é clara a intenção de manipulação da história e da memória e, através destas, de reforço de um clima de medo, de subserviência a uma versão que é apresentada como sendo aquela em que “se deve acreditar”, como se a realidade fosse matéria de crença, ditada pelo “grande líder”. Como diz Leah Dickerman (2000, p. 143), “ao tornar explícita a violência da imagem, este registo da ausência recorda a quem a vê o poder omnipotente do sistema”.
Estaline torna-se, assim, omnipotente, ao mesmo tempo que faz desaparecer os seus inimigos. São célebres os casos das fotografias de onde Trotsky, o arqui-inimigo de Estaline, é eliminado5. A propaganda estalinista visa, assim, aniquilar a memória visual, o registo histórico-fotográfico da própria existência de Trotsky e da sua relevância na revolução vermelha, colocando-se na perspetiva de enunciadora da “verdade histórica”: a manipulação substitui os factos, numa mescla de ideologia e de mitologia, como afirma, mais uma vez, Leah Dickerman (2000, p. 141), ao dizer: “uma grande parte da manipulação visa produzir uma ilusão de plausibilidade constante que naturaliza a ideologia como mitologia”.
A reconstrução da história, com recurso à recomposição da imagem, está, pois, associada à exaltação do herói. Esta não passa, contudo, apenas pela supressão imagética de figuras não queridas: passa também pelo apagamento da imagem através da colocação de manchas sobre o retrato de alguém, como foi o caso da foto de Djakhan Abidova, membro do Partido Comunista do Uzbequistão.
A violenta erradicação do rosto de alguém numa fotografia que não é retirada, mas na qual se expõe a sua eliminação vergonhosa, cobrindo a sua cara de negro, corresponde, num crescendo, a um processo que passa por duas operações: a eliminação dos opositores e a exaltação do líder, transformando as imagens do mesmo em pinturas. É o caso de uma fotografia de 1929, em que podemos ver Nikolai Antipov, Stalin, Sergei Kirov e Nikolai Shvernik.
O recurso à eliminação das restantes personagens da fotografia e a transformação da única figura que resta em pintura, porque perdura, tal como os seus “atos de heroísmo”, enfatizam e apelam ao culto da personalidade: já não estamos apenas perante um registo eventualmente efémero. Estamos perante um ícone6.
A imagem contemporânea: banalidade, sacralização e significado
Más testemunhas são, para os homens, os olhos e os ouvidos, que possuem almas bárbaras. (Heraclito citado em Pereira, 1971, p. 124)
Como ensina Heraclito os sentidos enganam. A imagem contemporânea, assente em dispositivos tecnológicos da mais variada índole, atingiu impressionantes velocidades de propagação e o valor que transmite, na sua referencialidade ao real, muda constantemente de estatuto, fenómeno que Benjamin descobriu nos seus escritos célebres sobre a reprodutibilidade técnica e o impacto desta no devir estético e na vida quotidiana (Benjamin, 2006). Ao compreender que “a natureza que fala à câmara é diferente da que fala aos olhos” (Benjamin, 2006, p. 246), o filósofo cria as bases de um entendimento centrado na diferença entre fotografia e pintura, jogando com as dimensões de consciente e inconsciente, das escalas do olhar.
Sensível ao “inconsciente mecânico”, da inovação fotográfica, mas também ao facto da pintura ao ar livre na mesma época conquistar novas perspetivas, graças ao trabalho dos pintores impressionistas, Benjamin questiona-se sobre o conceito de aura que tanto o absorveu: “uma estranha trama de espaço e tempo: o aparecimento único de algo distante, por muito perto que esteja” (Benjamin, 2006, p. 254). Sabemos que a descoberta e a generalização da fotografia, sobretudo a partir de meados do século XIX (Freund, 1995), está associada à rutura modernista e por consequência ao abandono da conceção naturalista e realista da pintura, e ao advento do retrato burguês de índole mais popular7.
O Modernismo determina como sabemos a caducidade das Belas Artes, da conceção harmoniosa da beleza, acabando por a tornar paradoxal e laica. O fim de todos os cânones, instituído no breviário dadaísta que prefere substituir a designação de obra por “coisa” (Duchamp, 1990), vem dar mais força a uma consciência estética do objeto comum. “Creio que a pintura morre, compreende? O quadro morre ao fim de quarenta ou cinquenta anos, porque a frescura desapareceu. A escultura também morre. É uma pequena mania minha que ninguém aceita, mas não tem importância” (Duchamp, 1990, pp. 103-104). À morte da arte sobreveio um mundo de coisas, reinado de imagens feitas coisas, uma apoteose da vulgaridade, amplificada pelos ecrãs e pelas programações televisivas.
Trata-se por isso de organizar uma resposta crítica aos problemas políticos, éticos, sociais e económicos transportados no caudal contemporâneo das imagens, a partir da pintura definida como conceito, e não como técnica. Isso implica uma reorganização do olhar, fundado, ancorado, no processo e no imaginário da pintura, numa plasticidade reinventada. Deleuze, Derrida, Perniola, Foster, Bourdieu, são apenas alguns exemplos de pensadores, – já para não falar da ação teórica de inúmeros artistas – que têm vindo a alimentar esse debate, o qual não exclui o estatuto retórico das imagens, o seu plano mitológico (Barthes, 1976) ou a sua condição espetacular de mercadoria (Debord, 2018), bem como especificidades antropológicas, rituais de memória coletiva. Resposta ainda que nos permite orientar num universo de coisas. Graças a ela é possível arriscar uma inteligibilidade transformada em experiência do significativo, aberta, onde se agregam e declinam infinitas enciclopédias pessoais (Eco, 2004).
As imagens mecânicas podem ser manipuladas, apagadas, refeitas, encenadas, e são, ainda assim, percecionadas e aceites como índices de real. São as herdeiras massificadas de uma história nobilitada que foi sepultada, depois de ser negada e rasurada. Quando Picasso retoma Velasquez e “Las Meninas” (1656), ou Edouard Manet e o seu “Le déjeuner sur l’herbe” (1863), demonstra como as imagens se desdobram e se reinventam a partir da pintura e da sua condição aurática. Mas não foi apenas relativamente a duas obras chave, consagradas na grande tradição clássica, que Picasso reagiu, modificando-as, como quem desafia e em certa medida modifica o passado. El Greco, Goya, Jaques-Louis David, Rembrandt, Ingres, Van Gogh, e outros mestres foram igualmente objeto de revisitação, nunca de “cópia” ou de repetição. Como sublinha Cowling:
mas a noção de colaboração é reveladora não só porque implica um sentido de companheirismo e de igualdade, mas também de irrelevância da história e da cronologia: para Picasso, estes artistas “mortos” de diversas eras ou gerações estavam vivos. Aliás, nunca morreriam. Mais, tinham sido impulsionados fundamentalmente pelos mesmos imperativos que ele próprio. (Cowling, 2009, p. 13)8
A partir desta situação trata-se de tentar perceber como colaboram (agora) as imagens entre si? Questão ampla que apela quer à análise da evolução do cinema, quer ao enquadramento museológico da experiência das imagens em movimento, quer, por outro lado, a uma hermenêutica da pintura num período, compreendido sobretudo entre as duas últimas décadas do século XX e o presente. Este momento histórico é caracterizado por apropriações do cinema e das suas lendas, pela politização que visa denunciar e combater a distopia contemporânea, a partir da reformulação do conceito de instalação, de performance, e de paródia. Richard Prince (1948), que se apropria de anúncios célebres da mitologia cultural americana como a figura do cowboy da marca de cigarros Marlboro, fazendo coabitar no mesmo imaginário essa imagem (e outras da mesma índole) com pinturas de enfermeiras e outros ícones de uma ficção popular, surge neste contexto como um nome essencial.
Se nos detivermos mais exclusivamente sobre a imanência da fotografia (de autor), nomes como Cindy Sherman (1954), Wolfgang Tillmans (1968), Jeff Wall (1946), Douglas Gordon (1966) ou Thomas Struth (1954), são extraordinários exemplos da ascensão da fotografia a um patamar de notoriedade que reforça a sua capacidade de ação estética. Trata-se nas obras destes artistas de substituir e/ou denegar a pintura a óleo ou acrílico na tentativa de proclamar outra autonomia para as imagens. Mas os registos e os métodos de criação artística são hoje os mais diversos. Basta consultar um qualquer livro de divulgação publicado pela Taschen ou percorrer os sites com a programação dos grandes museus de arte contemporânea, isto para não falar da real e efetiva circulação nos meios expositivos, para constatar esta eloquente diversidade, que torna as imagens porosas, enredadas numa contaminação recíproca. Neste ambiente comunicacional, a pintura ressurge e afirma-se com uma vocação interpretativa que decanta o caos de sentidos propagado pela generalidade das outras imagens.
O fotógrafo Thomas Struth (1954) desenvolveu um extenso capítulo do seu trabalho com séries de fotografias realizadas em grandes museus do mundo (Louvre, Paris; o Kunsthistorisches Museum, Viena; a National Gallery, Londres; o Rijksmuseum em Amsterdam e o Art Institute of Chicago) a partir das quais é possível intuir uma espécie de co-protagonismo9. Isto é, um protagonismo partilhado entre a pintura e mundo, mostrada com teatralidade, com a imponência de um gesto ritual, de acordo com um protocolo discursivo que conduz à sacralização da imagem, intemporal, única e exclusiva. Depois, temos o público. Centenas de pessoas, transeuntes em massa a deambular pelas salas e galerias, numa errância perpétua. Os visitantes cedem lugar aos que estão à porta dos museus, nas longas filas, uma massa indiferenciada, como que se vê nos grandes aeroportos, nas gares de caminho de ferro, nas estâncias balneares… Gente à procura de um certificado de presença, de que a Gioconda de Leonardo, no Louvre, é um exemplo absoluto, hoje inevitavelmente selado por uma selfie. Enquanto o retrato em tela, sem verdadeiramente ser visto, e votado a uma admiração compulsiva, ocupa a sala onde permanece com soberana indiferença, os visitantes, esses, parecem querer inverter a lógica da perceção, sem suspeitarem que são eles que são vistos.
Nas mencionadas séries fotográficas de Struth observamos precisamente o olhar dos passeantes devolvido ao olhar da câmara do fotógrafo, que tenta descortinar uma hierarquia impossível, porquanto as telas dos grandes pintores clássicos foram trazidas a uma condição de imagens como as outras, graças a uma centrifugação imaginária, uma espécie de desfiguração ontológica mediante a qual ser, representar e ver se tornam categorias indiscerníveis. Afigura-se então pertinente transpor para este tipo de ambiente sociocultural a figura da multidão urbana como sinónimo do herói moderno, tão bem caracterizada por Baudelaire. Nesta sobreposição de imagens e situações ela acaba por se substituir à heroicidade sagrada da pintura. “Com o flâneur, o prazer de olhar celebra o seu triunfo” (Benjamin, 1995, p. 71).
Neste emaranhado de imagens, de práticas e de possibilidades, a pintura é uma condição de materialidade plástica. Estabelece para todos os efeitos uma relação vinculativa com a memória, mas também com a pintura do passado. Terá sido essa a decisão que inspirou e animou Francis Bacon (1909-1992), autor de uma pintura visceral, sexual, que desconstrói e reedifica noções como a de retrato, autorretrato ou de natureza morta, ou Lucien Freund (1922-2011), criador de poderosas representações de corpos, rostos, enquadramentos de paisagem, aprisionados num realismo visceral e cruel10.
Nestas duas obras a materialidade da pintura, o seu acontecer, como facto estético único, alcança um grande impacto. Por outro lado, o seu fazer exige uma capacidade de manusear a sombra e a luz, a cor e a forma, que se inscrevem no campo do juízo, abrindo espaço a uma crítica das imagens que não poderia ser alcançada por outra via. A pintura tornou-se minoritária, é um facto. O que não a impede de ser percorrida por uma intensidade que a autoriza a julgar e a discutir o valor e o poder das imagens no tempo. Uma tarefa impossível para a fotografia e para o cinema que constroem espaço e tempo, documentam e comentam, confrontam reportagem e poesia. Criam ilusões e alusões, fingimentos e suspeitas, como afinal lhes compete…
As últimas décadas têm sido marcada por uma reapreciação da pintura. O tema tem estado presente em todo o debate crítico, mediático e comunicacional, subsequente às teses defendidas pela Escola de Frankfurt relativas às indústrias da cultura, aos debates implicados no pós-modernismo (Lyotard, Vattimo e outros), ou à perspetiva de Bauman ao defender a fluidez líquida numa época em que as identidades se tornaram instáveis.
Um texto de Zelizer (2010), que trata das relações entre a imagem e a memória cruzando-as com o jornalismo, amplia a reflexão sobre o discurso da crise e o clima de incerteza. A partir da leitura de um diálogo entre Bauman e Carlo Bordoni, em que este último defende que “a modernidade retirou as suas promessas”, e depois a pós-modernidade “subestimou-as”, e chegou o triunfo das aparências em prol da perda de substância (Bauman & Bordoni, 2016, p. 75), salienta que a crise pressupõe o imaginário de uma superação. Refira-se a propósito que Bauman manifesta dúvidas sobre se foram as promessas que foram retiradas; entende antes que foram as estratégias e os “modelos de uma sociedade que fracassaram” (Bauman & Bordoni, 2016, p. 80).
Uma combinação entre risco, contingência, indeterminação e liquidez, graças à qual a autora articula noções chave de Ulrich Beck, Rorty, Eisenstadt e do próprio Bauman, leva Zelizer a concluir que “embora a crise seja um fenómeno com dimensões materiais”, é um fenómeno igualmente “moldado pelo discurso” (Zelizer, 2018, pp. 91,95).
Ora culturalmente a pintura, à semelhança do desemprego, da insegurança, da morte e do medo, da recessão económica, ou até dos impasses do próprio jornalismo, também se inscreve na materialidade das crises. Sobrevivendo à crise que ela própria experimentou, num ato de persistência intelectual e com uma lógica da imagem que lhe é exclusiva, restaura um nexo na questionação do real (e, portanto, no questionamento de todas as imagens mecânicas que o absorvem e com ele agora se confundem). Por isso a advertência de Zelizer (2018, p. 106) adquire neste contexto um tom preocupante: “uma vez que as instituições constituem necessariamente um terreno fértil para a crise, resta saber se a incerteza alguma vez desaparecerá numa paisagem cujos contornos são institucionalmente determinados”. A pintura é assim uma teimosia no panorama da arte contemporânea.
Tuymans (1958), consensualmente um dos mais importantes pintores da atualidade, apresentou em Veneza (no Palazzo Grassi) uma exposição antológica intitulada “La pelle” que reúne obras realizadas entre 1986 e 2019 integrados na coleção Pinault11. Tuymans dedicou-se ao cinema na década de 80 do século XX e a sua pintura posteriormente desenvolvida revela bem a importância do cinema na reflexão que conduz da realidade ao sonho e à ficção. Na sua obra, a pintura parte do cinema e de outras imagens desmaterializadas para explorar a ambiguidade e o inacabamento. Motivos da imprensa, da internet, fotografias espontâneas feitas pelo artista com o seu próprio telemóvel são a matéria-prima de uma pintura capaz de dar significado às imagens12.
Uma das obras principais da exposição intitula-se Schwarzheide (2019), o nome de um campo de trabalhos forçados na Alemanha nazi onde alguns dos prisioneiros fizeram em segredo desenhos que foram dissimulados para evitar a sua confiscação. São esses desenhos e esse campo que o artista torna presentes numa pintura que remete para a bela floresta no meio da qual um lugar terrível e medonho permanecia como que camuflado do olhar dos habitantes que viviam nas redondezas. Só na medida em que o visitante percorre o interior do Palácio Grassi e, imbuído da sua bela arquitetura, sobe ao nível da balaustrada que circunda o átrio onde a pintura foi instalada, é que se vai dar conta desta poderosa metáfora. Como sublinha Caroline Bourgeois, fica provado que a distância e o ponto de observação são essenciais na leitura da obra (Bourgeois, 2019).
A Alemanha e o holocausto não são uma preocupação nova no trabalho de Tuymans. A pintura trabalha a luz e a penumbra, o jogo das ocultações e das evidências, o submerso e o flutuante. “Penumbra” é o título de uma outra exposição deste artista na qual recorre a fotografias de campos de concentração nazis, evoca doenças estranhas, espaços abandonados e fantasmáticos. Essa exposição articulava pinturas, imagens e objetos que lhe deram origem e era tutelada por um projeto caro ao artista que consistia em transpor, usando o tempo (um tempo heideggeriano?), da Villa Wannsee, onde no dia 20 de janeiro de 1942 se discutiu, ao mais alto nível, “a solução final”13.
Para Tuymans (1958/2006, s.p.) a “imagem estática na memória pode ser infinitamente mais forte que a imagem móvel”, a primeira é fixa, mas o seu equivalente mental encontra-se sempre e cada vez mais em movimento”. Somos por isso enquanto espectadores comprometidos levados a desbravar os meandros da representação subjetiva (pictórica), o registo instantâneo (fotográfico) e a projeção (cinematográfica), com as suas ressonâncias freudianas alicerçadas na transferência. Para nos orientarmos em tais meandros, que afinal são os da própria História, temos de recuperar o significado. E este encontra-se, cada vez mais, em perda: “a pergunta sobre se a fotografia, o filme, a televisão ou mesmo a internet são arte não contrabalança de todo a pergunta sobre a qualidade de uma determinada transferência de significado” (Tuymans, 1958/2006, s.p.).
A pintura não é objeto de manipulação nem pode ser apagada. Envelhece, restaura-se, acumula cicatrizes do tempo. Ou então só pode ser destruída, tal como se aniquilam testemunhas. Mas ainda assim deixa um rasto, um sulco de sacralização emocional. E é imprescindível à compreensão crítica de todas as imagens, uma vez que permite ao espectador conviver com a incerteza, eventualmente suportá-la. A sua presença material e sua metafísica exigem que ele lave o olhar. O cineasta Mizoguchi (1898-1956) afirmou: devem lavar-se os olhos entre cada olhar. Citação que um historiador do cinema convoca a propósito de John Ford, realizador de uma evidente clareza visual. Uma clareza desde logo técnica que, no caso de Ford (homem de westerns, duelos e rivalidades movido por um sentido bíblico de justiça na fidelidade às suas raízes irlandesas), o alicerçava no pragmatismo industrial do sistema de Hollywood14.
Já nessa outra tela de que se fazem os quadros, qual pele coberta de tintas, a imagem está despoluída da acumulação e da saturação. O imaginário das equivalências entre “verdadeiro” e “falso” no mundo da representação é agora um campo desminado. O espectador pode finalmente isolar-se da barbárie e das subjetividades, para reivindicar, se for essa a sua vontade, a condição de autêntica testemunha.
Conclusão
Graças à reprodutibilidade técnica e à desmultiplicação dos seus efeitos, as imagens ganharam uma velocidade de propagação e um valor de troca que rivaliza com a palavra, sobretudo com a palavra mediatizada. As imagens podem ser utilizadas precisamente para fazer desaparecer palavras ou memórias da própria existência dos proscritos (como é o caso da alteração das imagens sob o regime estalinista). E podem ser manipuladas, encenadas, para substituírem realidades indesejáveis (pensemos na necessidade de normalizar o não-normalizável como é o caso do “álbum de família” de Hitler). Contudo, tanto num como no outro caso, partimos de imagens numa época ainda não sujeita à banalização da fotografia a que assistimos atualmente. Poderemos perguntar-nos, até, se as imagens que aqui aparecem expostas, caso nos fossem contemporâneas, e passassem por um processo de vulgarização resultante da repetição, continuariam a ter o mesmo impacto. É provável que não, se pensarmos em contextos democráticos.
Mas a resposta poderá ser diferente se pensarmos em contextos ditatoriais nos quais a repetição das imagens poderá estar associada à perpetuação de estratégias de terror, como se a própria imagem fosse uma espécie de “olho” vigilante, sempre presente e, eventualmente, uma forma de normalização do medo. Não no sentido de desdramatização do mesmo, mas no sentido da “habituação” a uma existência vigiada. A ser pensável, a extrema generalização da imagem, em cada uma destas situações, teria um mesmo impacto: uma espécie de conformismo do inaceitável. O que levaria à indiferença ou, pelo contrário, à ausência de um horizonte de fuga ao medo. Ora é este horizonte de conformismo, de banalização, de condescendência, determinado por irrelevância ou por medo, que a pintura parece querer resgatar. E chama a si um outro poder: o poder do olhar. Enquanto a fotografia, nos casos aqui analisados, é manipulada por um poder prescritivo do ver, a pintura, e algumas fotografias ou imagens inseridas no espaço (Tuymans no Palazzo Grassi, por exemplo), produzidas e pensadas de acordo com a lógica da pintura, teimam em desafiar a existência de um sentido, de um questionamento do real que não se desvanece: a pintura não pode ser apagada. A pintura inscreve-se no real como testemunha e convoca testemunhas.
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Notas biográficas
Eduardo Barroso é Professor Catedrático de Ciências da Comunicação na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Fernando Pessoa. É investigador do LabCom da Universidade da Beira Interior. Obteve o título de Agregado pela Faculdade de Letras e Artes Universidade da Beira Interior (2009). Doutor em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (2002), licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1986). Programador cultural e artístico em diversas instituições públicas e privadas. Presidiu ao centro de espetáculos Coliseu Porto, nomeado pelo Município do Porto, Ministério da Cultura e Área Metropolitana do Porto (2014-20). Foi o primeiro diretor do Teatro Nacional S. João (1992-95). Foi consultor do SBAL (Serviço de Bibliotecas e Apoio à Leitura) da Fundação Calouste Gulbenkian, foi jornalista profissional e integrou o painel de júris do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA). Autor de uma dezena de livros e mais de uma centena catálogos e artigos no âmbito da estética, artes plásticas, cinema e análise dos média. Comentador do Jornal 2 da RTP.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3788-8459
Email: epb@ufp.edu.pt
Morada: Universidade Fernando Pessoa, Praça 9 de Abril, 349, 4249-004 Porto
Rui Estrada é doutor em Teoria da Literatura pela Faculdade de Letras de Lisboa. Professor catedrático da Universidade Fernando Pessoa. Investigador integrado do CITCEM (Faculdade de Letras da Universidade do Porto). Prémio Pen Club Ensaio 2002. Quatro livros publicados (dois em língua inglesa), seis editados e vários ensaios e capítulos de livros publicados em revistas/obras nacionais e internacionais com arbitragem científica.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8076-6692
Email: restrada@ufp.edu.pt
Morada: Universidade Fernando Pessoa, Praça 9 de Abril, 349, 4249-004 Porto
Teresa Toldy é doutorada em Teologia pela Philosophisch-Theologische Hochschule Sankt Georgen (Frankfurt), Mestre em Teologia pela Universidade Católica Portuguesa, universidade onde se licenciou na mesma área. Possui um pós-doutoramento em Estudos Sociais pela Universidade de Coimbra (Centro de Estudos Sociais). É Professora Associada com Agregação em Estudos Sociais na Universidade Fernando Pessoa (Porto), onde ensina Ética em várias áreas das Ciências Humanas e Sociais. É investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra centrando-se a sua investigação nas questões do género e da religião, áreas nas quais publica. Publica ainda na área da ética.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2299-3504
Email: toldy@ufp.edu.pt
Morada: Universidade Fernando Pessoa, Praça 9 de Abril, 349, 4249-004 Porto
Submetido: 14/01/2020
Aceite: 06/07/2020
NOTAS
1 “A hetaira não era identificada como uma simples prostituta, mas como uma mulher de amores livres. Tinha uma vida muito mais independente do que a da esposa legítima e podia ser objecto de prestígio” (Curado, 2008, p. 380).
2 Há um longo artigo na Revista Vanity Fair do jornalista Ron Rosenbaum (2012), intitulado “Hitler’s doomed angel”, que é um bom ponto de partida para perceber as inúmeras especulações acerca da morte de Geli e da relação que teria com o tio. Apenas algumas hipóteses de que fala o artigo: foi um acidente lamentável, Geli não suportou as parafilias do tio, Geli estava grávida do tio ou de um professor judeu, era uma ameaça para o partido, etc.
3 Para a fase de terror e a perseguição de pessoas individuais ou grupos (como, por ex., médicos) ver as obras já referidas.
4 A mesma fotografia aparece na obra de Sullivan duas vezes: referindo-se à data em que foi tirada e ao destino, nos anos 40, de cada uma das pessoas que se encontram na mesma (Sullivan, 2016, pp. 7-131).
5 Embora a fotografia aqui apresentada seja, eventualmente, a mais conhecida, existem muitas outras imagens nas quais Trotsky é eliminado, assim como outras figuras que deixam de ser consideradas fiéis ao regime, melhor, fiéis a Estaline – a figura que definia o regime e tinha poder sobre a morte e a vida de alguém. Basta pensar, por exemplo, na eliminação de Nikolai Yezhov numa fotografia com Estaline (Gessen, 2018).
6 Para uma análise de uma outra forma de propaganda utilizada durante a ditadura de Estaline (nomeadamente, o cartaz), ver o estudo de Pisch (2016).
7 “A fotografia, originária da cooperação da ciência e de novas necessidades de expressões artísticas, tornou-se logo à nascença objeto de violentos litígios. Saber se a máquina fotográfica era apenas um instrumento técnico, capaz de reproduzir de modo puramente mecânico as aparências, ou se era preciso considerá-la como um verdadeiro meio para exprimir uma sensação artística individual, inflamava os espíritos dos artistas, críticos e fotógrafos”. E a questão alastrou à esfera teológica com a Igreja a defender que nenhuma máquina podia fixar a imagem do Homem criado à imagem e semelhança de Deus (Freund, 1995, p. 79). Esta citação expressa de modo preciso o cerne da questão atual dos usos e das práticas fotográficas, numa época em que sujeitos anónimos utilizando dispositivos massificados criam registos fotográficos e videográficos com pertinência e por vezes interesse estético. São justamente necessidades e acasos individuais de pessoas comuns que as aproximam agora de uma ideia de arte para todos que encontra o seu reverso, ou a sua projeção especular, em práticas de elites intelectuais e artísticas. Estas ocupam os espaços sociais e culturais daquilo a que Danto designa por “O Mundo da Arte” (Danto, 1961). No mesmo sentido move-se a reflexão dos pensadores da estética analítica (Danto, Jerome Stolnitz, Morris Weitz, George Dickie, Nelson Gooddman) ao convidarem a refletir na resposta à questão “quando há arte?”, em vez de dirigirem uma interrogação à essência da arte repercutida na pergunta “o que é arte?”. Ver a propósito, entre outros, a antologia de Carmo d’Orey (2007). Numa época em que tudo se confunde e uma fotografia num iPhone parece igual à de uma Leica disparada por um dos grandes fotógrafos da Magnum, decidir em que situação há arte é determinante. As fotografias da Agência Magnun (Robert Capa, Cartier Bresson, etc…) possuem o estatuto de obras de arte.
8 Entre fevereiro e junho de 2009, The national gallery, de Londres, organiza uma importantíssima exposição “Picasso: challenging the past”. Reúnem-se pela primeira e única vez obras do artista andaluz provenientes de diversas coleções e museus subordinados ao diálogo com peças da autoria de pintores que Picasso admirava particularmente e que o perturbavam criativamente. Para assinalar este acontecimento, o museu britânico publica um catálogo com ensaios de vários especialistas e académicos, entre eles o de Elizabeth Cowling, “Competition and collaboration: Picasso and the old masters”.
9 Ver a propósito a edição Thomas Struth Photographs, 1978-2010 (2010), disponível em http://www.thomasstruth32.com/smallsize/index.html
10 Sobre Bacon foi publicado em 2016 em cinco volumes o catálogo raisonné da sua obra editado por Martin Harrison, edição The Estate of Francis Bacon (2016). O catálogo raisonné de Lucien Freud resulta da colaboração entre David Dawson, diretor do Arquivo Lucien Freud, que trabalhou de forma muito direta com o pintor e foi seu modelo, o crítico Martin Gayford, e o editor Mark Holborn. A obra em dois volumes foi publicada pela Phaidon, Londres.
11 Ver https://www.palazzograssi.it/en/about/collection/
12 Ver a propósito o guia da visita com textos de Caroline Bourgeois disponível em https://www.palazzograssi.it/site/assets/files/7599/guidina_la_pelle_tuymans_fra.pd. Exposição patente ao público entre 24/03/2019 e 06/01/2020, comissariada por Caroline Bourgeois e Marc Donnadieu; o catálogo inclui textos, para além do deste último, de Jarrett Earnest e Patricia Falguières (2019). Ver também entre outras a recensão crítica de Nuno Crespo (2019), “Luc Tuymans: a persistência política da pintura”.
13 Luc Tuymans “Dusk/Penumbra” patente ao público entre 14/07/2006 e 14/10/2006 na Casa de Serralaves, Porto, Portugal, Museu de Arte Contemporânea de Serralves. Ver especificamente o texto de apresentação do então diretor do museu, João Fernandes, que salienta o confronto entre um lugar/espaço cujo significado não se apreende imediatamente e cujo sentido está sempre na iminência de ser traído, na sua representação. A propósito desta situação recorde-se que Tuymans pretendeu levar e expor um conjunto de pinturas suas para o espaço onde a reunião nazi que definiu a “solução final”, presidida por Reinhard Heydrich (chefe das SS), teve lugar na Villa am Grossen Wannsee. Numa das pinturas vê-se uma fotografia de Heydrich proveniente de uma antiga revista de propaganda nazi. Como notava Fernandes, “a intenção original de Tuymans terá sido quebrar a cadeia de significantes e estabelecer um confronto violento das suas pinturas com um dos cenários originais de uma realidade que desafia a representação” (catálogo citado, s. p. Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Porto, 2006). Exposição comissariada por Hans Rudolf Reust que escreve no catálogo aqui referido: “o que resta é o fascínio sem palavras de pinturas singulares, que não deixam ninguém tranquilo, porque o processo do pensamento, com as suas lacunas minuciosamente pintadas, não pode nunca ser encerrado”. O inacabado, a História à qual somos devolvidos, para preencher (outras dolorosas e trágicas) lacunas da memória.
14 Ver catálogo John Ford, direção literária João Bénard da Costa, publicado por ocasião da apresentação pela Cinemateca Portuguesa e pela Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa, Portugal) do ciclo dedicado ao cineasta John Ford, com apoio e alto patrocínio da Embaixada dos Estados Unidos da América em Lisboa, novembro/fevereiro de 1984. A referência a Mizoguchi decorre especificamente do texto de Luís de Pina (1984) “John Ford – a Luz e o Olhar”, que aquele historiador do cinema, crítico e ex-diretor da Cinemateca Portuguesa, escreveu para o efeito.