O volume 39 da revista Comunicação e Sociedade apresenta uma série de estudos sobre diferentes abordagens de utilização das plataformas digitais. Se por um lado, são interpretadas como um importante meio de consumo e espaço para o surgimento de práticas sociais colaborativas, por outro lado, também podem ser analisadas como novos mecanismos de vigilância e de produção de discursos performáticos numa economia cada vez mais conectada.
O contexto da crise causado pela pandemia da covid-19 conduziu ao uso de plataformas da chamada “economia da partilha” para diferentes lugares. Serviços e trabalhadores ligados ao ramo do turismo experimentaram grandes perdas financeiras, enquanto plataformas da área do transporte e de entregas passaram a ter um destaque nunca antes visto.
A obrigatoriedade do isolamento social e as medidas de segurança sanitária para consumo e circulação de bens colocaram as aplicações digitais que promovem a gestão destes serviços como principais coadjuvantes de manutenção de alguns setores da economia, como o da restauração e da entrega de refeições (Buheji, 2020). Também evidenciaram uma grande adesão por parte de diversas empresas, consumidores e principalmente de trabalhadores que viram nas plataformas digitais uma oportunidade de superar a recessão económica e a falta de oportunidades no mercado convencional do trabalho em países como Portugal e Brasil. Com esse crescimento inesperado ficou também mais evidente a crise laboral e os dilemas éticos que a dinâmica dessa economia da partilha tentava esconder (Chen et al., 2021).
A pandemia trouxe ainda consigo a evidência de quanto a internet e as suas diferentes plataformas se tornaram elementos fundamentais de várias dimensões da nossa vida, seja na sua relação como instrumento de trabalho e de ganhos financeiros, ou ainda na sua dimensão mais social como lugar de presença, espaço de consumo e meio de comunicação. Podemos arriscar dizer que nunca antes havíamos experimentado tal intensidade de utilização dos meios digitais como assim o fazemos devido às diversas restrições a que fomos submetidos (Ricarte, 2020), principalmente para quem precisava de ficar em casa devido aos lockdowns e para quem trabalha em serviços essenciais, como médicos, cuidadores e trabalhadores na área do transporte. Para ambos os grupos, as plataformas digitais tornaram-se indispensáveis e sem precedentes, tanto em casa como no mundo.
Com a pandemia aprendemos como este quadro de dependência digital pode ainda transformar-se num cenário de vigilância e de comportamentos de riscos. Quase de forma natural, transportamos para estes espaços não apenas uma necessidade premente de consumir e de trabalhar, mas também levamos para lá tanto o que há de bom em nós como o que há de nocivo. Assim, a internet tem-se transformado, cada vez mais, não num reflexo da nossa vida offline, mas numa continuidade da vida em si. Como apontou Hossain (2020), essa intensa forma de vida digital trouxe também consigo efeitos diretos na saúde mental de muitas pessoas que tinham nas plataformas digitais da economia da partilha o seu principal meio de sustento.
Para compreender algumas facetas dos usos que fazemos das diversas plataformas digitais que integram a internet, este volume apresenta importantes estudos que procuram compreender as variadas interfaces dessa economia e os seus impactos que vão desde a repercussão no campo da comunicação, passando por formas de consumo, discriminações sociais, relações laborais até aos perigos da mercantilização cada vez mais intensa dos nossos afetos através do big data (Saturnino, 2020).
As contribuições que apresentamos neste volume revelam o quanto os meios digitais têm transformado a economia e o mundo do trabalho de um modo fulcral, mostrando também como estas transformações têm afetado diretamente os nossos estilos de vida e a nossa forma de imaginar como produzir instrumentos de regulação desses setores a fim de estabelecer um futuro mais equilibrado no exercício de convívio com estas novas realidades.
Na primeira parte deste volume, quatro artigos dedicam-se a estudar, por diferentes ângulos analíticos, a utilização de aplicações de transporte e de entrega no Brasil e em Portugal. No primeiro artigo do volume, Rafael Grohmann, Cláudia Nonato, Ana Flávia Marques e Camila Acosta Camargo demonstram, em “As Estratégias de Comunicação das Plataformas de Trabalho: Circulação de Sentidos nas Mídias Sociais das Empresas no Brasil”, como as plataformas digitais de transporte e de entrega utilizam uma ética própria através da comunicação para tentar controlar os sentidos sobre o serviço que oferecem, colocando em risco históricas lutas de classes. Valendo-se do contexto pandémico, os autores utilizam o caso da greve de trabalhadores que utilizam aplicações de transporte e de entrega para descrever os conflitos entre os interesses das grandes empresas e as necessidades destes trabalhadores.
No mesmo contexto, mas com uma abordagem orientada para as estratégias organizacionais adotadas por empresas da economia da partilha diante da pandemia, o artigo “Economia da Partilha e Práticas de Comunicação Organizacional em Tempos de Covid-19: Social Brands no Brasil e em Portugal”, de João Francisco Raposo e Carolina Frazon Terra dá-nos a compreender como estas empresas utilizam o conceito de social brand para estabelecer o que denominam ser um “ativismo de marca”. Nesta relação, a responsabilidade social e as boas práticas de comunicação tornam-se elementos fundamentais para empresas interessadas em manter-se com uma reputação positiva diante dos seus consumidores. Os autores apontam ainda os desafios que essas marcas têm à sua frente num cenário social em que cada vez mais se exige das empresas posicionamentos éticos e políticos sobre os temas da atualidade.
No terceiro artigo desta secção, os autores Victor Piaia, Eurico Matos, Sabrina Almeida, Dalby Dienstbach e Polyana Barboza escrevem, no texto o “‘Breque dos Apps’: Uma Análise Temporal de Comunidades e Influenciadores no Debate Público Online no Twitter”, sobre a ação coletiva de protestos de trabalhadores que utilizam aplicações de entrega no Brasil realizada contra o regime e as condições de trabalho durante o período da pandemia. Ao analisarem o intenso debate que se formou através do Twitter sobre as condições precarizadas de trabalho através de aplicativos como iFood, Rappi, Uber Eats e Loggi, o artigo demonstra como a mobilização social em ambientes digitais surte efeito quando as interações entre os grupos envolvidos numa causa são mediados por grupos sociais e influenciadores digitais.
Ainda no campo dos estudos das plataformas de transporte, Naiara Evangelo e Fátima Cristina Regis Martins de Oliveira, analisam, no artigo “A Experiência Negra de Ranqueamento Social na Uber: Uma Reflexão Racializada da Vigilância Contemporânea”, os impactos dos rankings de trabalhadores e sua relação com questões raciais. As autoras propõem um olhar amplificado sobre o modo de funcionamento da Uber no que diz respeito à construção de uma reputação dos motoristas e passageiros, demonstrando como esse sistema se tem transformado numa ferramenta de vigilância constante.
No artigo “Análise de Sentimentos: Da Psicométrica à Psicopolítica”, de Felipe Melhado e Jean-Martin Rabot, os autores apresentam a questão da mercadorização dos afetos através das plataformas digitais. A partir dos estudos sobre a criação de grandes conjuntos de dados (big data) e a sua relação com a vigilância contemporânea, demonstram como estas estratégias servem de instrumento psicopolítico para a monotorização e a produção de afetos como forma de controlo subjetivo.
Já numa perspetiva internacional, as autoras María Soledad Segura e Ana Bizberge discutem, no artigo “Direitos Digitais Durante a Pandemia de Covid-19 na América Latina”, como o governo, o setor privado e a sociedade civil da Argentina, do Brasil e do México responderam aos desafios de governança das novas tecnologias da comunicação no contexto pandémico e como as suas respostas tiveram impacto nos direitos humanos nas áreas da liberdade de expressão, acesso e privacidade.
Na área dos estudos de consumo, o volume apresenta dois artigos com o olhar voltado para questões relacionadas com as práticas de consumo através de plataformas digitais na Espanha e em Cuba. O artigo “Preferências e Práticas dos Pré-adolescentes no YouTube: Resultados de um Estudo Realizado na Catalunha”, de autoria de Maddalena Fedele, Sue Aran-Ramspott e Jaume Suau, revela como a plataforma mais famosa de vídeos na internet desempenha um papel central na vida mediática de adolescentes e pré-adolescentes espanhóis, tornando-se uma das principais fontes de consumo de entretenimento para este grupo de pessoas.
Ainda sobre práticas de consumo, o artigo “Paquetes Como Gambiarras Midiáticas: Transnacionalismo e Consumo Cultural no Contexto Havana-Miami”, escrito por Thiago Soares e Sofia Zanforlin, analisa as formas alternativas de acesso a bens informativos num país em que as formas capitalistas de consumo ainda são contraditórias. A partir de um estudo de inspiração etnográfica, os autores revelam como os consumidores cubanos elaboram estratégias de consumo da cultura norte-americana não comercializada em Cuba através da distribuição alternativa de pacotes de conteúdos através de redes online e offline.
Essas práticas alternativas dentro da internet são alvo também do artigo de Lina Moscoso Teixeira e Ana Jorge, “Plataformas de Financiamento Coletivo na Economia Política dos Média Alternativos”, em que as mesmas examinam como veículos alternativos de comunicação de Portugal, Espanha e Brasil se articulam para manter o independente jornalismo que exercem através do financiamento coletivo. As autoras demonstram como a economia política destes meios utiliza estratégias de presença nas redes sociais a fim de criar um envolvimento do público de forma a aumentar a sua adesão não como leitores, mas também como financiadores.
O artigo seguinte trata de um interessante debate a respeito do acesso aberto à produção científica. Os autores Tiago Lima Quintanilha e Natalia Trishchenko analisam, em “Acesso Aberto e Conhecimento Científico: Entre a Res Publica e o Modelo de Negócio. Uma Revisão da Literatura”, as polaridades que emergem da relação entre o acesso aberto e o conhecimento científico. Destacam, por exemplo, como esta medida se pode tornar um potente meio de difusão do conhecimento, tornando-o não só mais visível como também acessível ao considerarmos como este conhecimento poderia circular a partir das plataformas digitais. No entanto, os autores não deixam escapar os pontos negativos ao mencionarem uma latente incapacidade de combater uma economia da ciência paralela, ou seja, aquela que tira proveito do acesso aberto e das lógicas da produção académica a partir da instituição de dinâmicas capitalistas a partir da cobrança financeira para publicação de resultados científicos. Segundo Tiago Lima Quintanilha e Natalia Trishchenko, esta forma de gestão da ciência atenta contra os princípios de um conhecimento aberto favorecendo, assim, o surgimento de desigualdades de oportunidades dentro da comunidade científica.
No artigo que encerra a secção temática deste volume, “Construindo Confiança em Plataformas Digitais para Partilhar Estilos de Vida Colaborativos em Contextos Sustentáveis”, Raissa Karen Leitinho Sales, Ana Carla Amaro e Vania Baldi analisam um conjunto de diretrizes de plataformas digitais que promovem experiências em projetos de educação em zonas rurais do país para compreender como estas associações sem fins lucrativos elaboram estratégias discursivas em contextos sustentáveis para promover a construção da confiança e da reciprocidade entre os seus utilizadores. No texto, as autoras concluem que tais diretrizes funcionam como manual ético das plataformas na tentativa de criar um guião digital para boas práticas da partilha de estilo de vida entre os utilizadores.
Na secção “Varia”, o volume inclui ainda três textos que, embora desalinhados do tema central, constituem entre si um dossiê dedicado à análise da situação do campo do jornalismo no contexto da pandemia. Os autores destes três contributos apresentam em diferentes ângulos os resultados de um estudo realizado em maio e junho de 2020, que inquiriu 890 jornalistas, para compreender os efeitos do primeiro estado de emergência no jornalismo em Portugal no quadro da crise pandémica.
O primeiro deles, “Jornalismo em Contexto de Crise Sanitária: Representações da Profissão e Expectativas dos Jornalistas”, de Carlos Camponez e Madalena Oliveira, discute como a profissão de jornalista tem sofrido efeitos ao longo do tempo até se deparar com um cenário inesperado causado pela pandemia. O texto tem enfoque particular na análise das expectativas dos profissionais do jornalismo em relação ao imaginário coletivo sobre a profissão e no choque com que tais trabalhadores se deparam perante as dificuldades laborais que este setor enfrenta, nomeadamente no que diz respeito à precarização do trabalho. Camponez e Oliveira descrevem como o sentimento de insatisfação a respeito da profissão foi agravado no contexto da pandemia da covid-19 e descrevem os motivos que mantêm ainda muitos profissionais deste setor agarrados a uma certa ideia de realização profissional.
No artigo “Jornalismo em Estado de Emergência: Uma Análise dos Efeitos da Pandemia da Covid-19 nas Relações de Emprego dos Jornalistas”, de José Luís Garcia, José Nuno Matos e Pedro Alcântara da Silva, apresenta-se como a condição socioprofissional dos jornalistas tem passado por mudanças influenciadas pelo processo de liberalização e digitalização da atividade. Os autores analisam algumas implicações das políticas sobre o trabalho jornalístico antes e durante a pandemia a fim de perceber se esta nova realidade representa uma reversão da lógica de precarização ou, pelo contrário, a sua aceleração.
Ainda sobre o tema, João Miranda, Joaquim Fidalgo e Paulo Martins apresentam o artigo “Jornalistas em Tempo de Pandemia: Novas Rotinas Profissionais, Novos Desafios Éticos”, em que propõem um mapeamento dos efeitos da pandemia nas práticas e rotinas dos profissionais da comunicação. Os autores revelam, por exemplo, a existência, no plano das práticas jornalísticas, de algumas marcas de despersonalização da atividade devido às obrigatoriedades do isolamento social dos jornalistas. Estas situações acarretam, por consequência, dilemas deontológicos que trazem à tona a relação entre a prática jornalística na pandemia e os aspetos relacionados com o rigor e os processos de apuração das notícias.
Finalmente, o volume apresenta duas recensões: a do livro Advanced Introduction to Platform Economics (Introdução Avançada à Economia de Plataforma) por Elsa Costa e Silva e a do livro The Platform Economy: How Japan Transformed the Consumer Internet (A Economia da Plataforma: Como o Japão Transformou o Consumidor de Internet) feita por Jack Linchuan Qiu.
Sejam veículos institucionais de comunicação ou plataformas de média sociais, sejam economias digitais para entretenimento despreocupado, atividades de subsistência quotidianas ou lutas coletivas por dignidade e democracia - as questões em jogo neste volume da revista Comunicação e Sociedade são importantes, dinâmicas e multifacetadas. No entanto, de uma forma ou de outra, todos estes setores lidam com os discursos fundamentais, formais ou informais, que sustentam as plataformas digitais de hoje e que, por isso, devem ser expostos e examinados. Os artigos aqui apresentados documentam e questionam os mecanismos de controlo que limitam as práticas de agência não apenas por meio de códigos de computador, mas também através de códigos legais e normas sociais. As economias de plataforma digital são ferramentas do capitalismo tardio projetadas para remodelar as pessoas em pouco mais do que consumidores atomizados, um processo agora acelerado pela pandemia da covid-19.
No entanto, como demonstram os artigos deste volume, o desdobramento da crise de saúde pública - agora a desencadear uma cascata devastadora de crises económicas, políticas, sociais e culturais em todo o mundo - também é uma oportunidade para inovações progressivas e colaboração de base, tanto dentro da torre de marfim como além dela. Afinal, as economias de plataforma são uma economia conectada que podem e devem ser repensadas por meio da renovação dos nossos modelos de colaboração e espírito coletivo. É nesta linha de “pessimismo do intelecto” e “otimismo da vontade” que elaboramos este volume na esperança de mais colaboração nas economias de solidariedade académica na criação de plataformas mais efetivas para um mundo melhor.