Introdução
As pesquisas sobre trabalho em plataformas digitais têm emergido nos últimos anos (Casilli, 2019; van Doorn, 2017). Porém, a comunicação ainda é um elemento sub-representado na área. Por um lado, há investigações, como a de Mosco (2009) e a de Figaro (2018), que apontam como trabalho e comunicação estão interconectados, mas sem se referirem exclusivamente às plataformas digitais. Por outro, há pesquisas sobre trabalho em plataformas que pontuam o papel das mídias sociais na organização dos trabalhadores (Cant, 2019; Lazar et al., 2020) e a retórica por trás da chamada “economia do compartilhamento” (Codagnone et al., 2016). Contudo, não há uma organização sistemática sobre a centralidade da comunicação para o trabalho em plataformas.
Argumentamos que a comunicação cumpre um papel central na plataformização do trabalho (Casilli & Posada, 2019), como um fazer - no sentido de Sodré (2019) - tanto para controle, vigilância e gerenciamento dos trabalhadores quanto para organização de trabalhadores e construção de plataformas autogeridas. A comunicação atua em todo o circuito do trabalho das plataformas (Qiu et al., 2014), desde as suas infraestruturas e materialidades até às práticas de consumo.
As plataformas, além de infraestruturas digitais abastecidas por dados e automatizadas por algoritmos (Srnicek, 2016; van Dijck et al., 2018), atuam como meios de produção e de comunicação (Williams, 2005), que engendram lógicas de trabalho e interação. As suas materialidades providenciam as bases técnicas para a organização do trabalho (Plantin et. al, 2018; Woodcock & Graham, 2019) e são desenhadas para algumas interações em detrimento de outras (Costanza-Chock, 2020; Wajcman, 2019). A partir de suas affordances, há políticas que procuram desarticular a comunicação entre trabalhadores e facilitar a relação trabalhador-consumidor (Popescu et al., 2018; Wood & Monahan, 2019).
Os mecanismos de vigilância, coleta e extração de dados dos trabalhadores, assim como a gestão algorítmica, se dão a partir das dinâmicas das plataformas (Couldry & Mejias, 2019), efetivando-se no próprio consumo (como processo comunicacional) das plataformas, seja como “cliente” - nomenclatura comumente usada pelas empresas - ou “trabalhador”. Isto é, as políticas de dados e as mediações algorítmicas atuam a partir de processos comunicacionais.
A comunicação também é central na organização dos trabalhadores das plataformas, seja em sindicatos e associações, em coletividades e solidariedades emergentes ou na construção de plataformas dos próprios trabalhadores (Scholz, 2016; Soriano & Cabañes, 2020; Wood et al., 2018), como elementos da circulação das lutas dos trabalhadores (Dyer-Witheford et al., 2019; Englert et al., 2020). Isso evidencia que os trabalhadores não aceitam passivamente os contextos produtivos e comunicacionais das plataformas, mas criam estratégias e táticas para o cotidiano de trabalho (Cant, 2019; Sun, 2019).
Assim, podemos resumir o lugar da comunicação no trabalho em plataformas a partir dos seguintes pontos: (a) desenhos e materialidades das plataformas; (b) organização e gerenciamento do trabalho por parte das plataformas; (c) organização dos trabalhadores, enquanto espaços formais e informais; (d) políticas e regimes de dados e algoritmos; (e) consumo das plataformas; e (f) estratégias de comunicação das plataformas.
A partir destes elementos, este artigo foca nas estratégias de comunicação das plataformas como uma das dimensões do papel da comunicação no trabalho em plataformas. O argumento de fundo é que há uma disputa pelo controle dos sentidos sobre o que significam as plataformas - incluindo o trabalho e os trabalhadores. Essa luta por sentidos ocorre no âmbito da comunicação em todo o circuito do trabalho (Qiu at al., 2014), mas encontra, nos discursos das plataformas, um lugar privilegiado de análise.
Utilizamos a noção de “circulação de sentidos” em Silverstone (1999) para investigar, de forma específica, como as plataformas constroem mundos comunicacionais (portanto, sociais e discursivos) sobre si mesmas. O ethos é uma expressão dessa circulação de sentidos (Maingueneau, 2001). Por exemplo, as plataformas utilizam estratégias como campanhas publicitárias e de relações públicas para fazer circular os sentidos das marcas pelos distintos campos sociais. Mais do que isso, elas pretendem controlar os significados do debate público a respeito das plataformas de trabalho. Os seus discursos circulam com alguns valores e significados em detrimento de outros, como expressões sígnicas da luta de classes (Grohmann, 2018). Este enquadramento teórico permite compreender os embates ideológicos e as disputas em torno dos sentidos (Baccega, 1995; Voloshinov, 1973) construídos no mundo do trabalho (Figaro, 2018), ao contrário de perspectivas teóricas que partem do lugar da empresa ou da marca como neutro.
Além disso, a circulação de sentidos é a base de sustentação econômica dessas empresas. Ou seja, os signos circulam como forma de capital (Goux, 1973; Marazzi, 2011; Rossi-Landi, 1973). Com isso, a circulação dos discursos é indício do papel da comunicação na financeirização (Sodré, 2019) e nos mecanismos do rentismo (Sadowski, 2020).
Então, as estratégias de comunicação das plataformas funcionam como formas de justificação, sedimentação e cristalização de sentidos positivos das plataformas, construindo imaginários em linha com uma racionalidade neoliberal e empreendedora (Dardot & Laval, 2013) e com a ideologia do Vale do Silício (Liu, 2020; Schradie, 2015). Com isso, pretendem persuadir trabalhadores e consumidores de que são empresas inovadoras, disruptivas e responsáveis socialmente. Expressões como “gig economy” e “economia do compartilhamento” também são parte dessa circulação de sentidos e são rastros de um capitalismo de plataforma corporativo (Frenken & Schor, 2017; Pasquale, 2016; Scholz, 2016; Srnicek, 2016). Essas narrativas dominantes também afirmam que as plataformas não têm vínculos com os trabalhadores e que são apenas mediadoras e ajudam os trabalhadores - conforme a literatura sobre o tema (Dubal, 2019; Gibbings & Taylor, 2019; Karatzogianni & Matthews, 2020; Rosenblat, 2018). A literatura sobre as estratégias de comunicação das plataformas no chamado “sul global”, em especial a América Latina, ainda é sub-representada. Isso não significa, contudo, que essas estratégias sejam únicas, pois estão conectadas a uma geopolítica das plataformas (Graham & Anwar, 2019) e subsumidas à ideologia do Vale do Silício, que apresenta traços coloniais (Atanasoski & Vora, 2019; Couldry & Mejias, 2019; Liu, 2020).
Este artigo tem o objetivo de analisar como as plataformas de entrega e transporte no Brasil construíram seu ethos nas mídias sociais, enquanto estratégias de comunicação, no contexto da primeira greve dos trabalhadores dessas empresas dentro do cenário da pandemia de coronavírus. Compreendemos a construção do ethos das plataformas - e suas maneiras de produzir e circular sentidos - como um elemento sígnico da luta de classes e, ao mesmo tempo, uma dimensão do papel da comunicação na plataformização do trabalho (Grohmann, 2018; Silverstone, 1999).
Conduzimos uma análise do conteúdo veiculado em mídias sociais (Instagram, Facebook, Twitter e YouTube) - enquanto locus privilegiado de circulação de sentidos - de duas plataformas de entrega (iFood e Rappi) e duas de transporte (Uber e 99), as principais do país. Nossa hipótese considerou que a comunicação realizada por estas empresas prioriza setores mais amplos da sociedade (especialmente os consumidores), ao passo que o diálogo entre a empresa e os seus trabalhadores são rarefeitos, a não ser para positivar o valor da própria plataforma.
As categorias de análise ilustram o caminho da pesquisa: “pandemia e saúde” (dimensão contextual em relação à crise sanitária); “cidadania e diversidade” (dimensão recorrente no discurso produzido pelas plataformas, em linha com a literatura da área), “relações com marcas e influenciadores” (trabalho de visibilidade das plataformas com públicos interessados específicos) e “representações dos trabalhadores” (como elemento central da dimensão sígnica da luta de classes). Em linhas gerais, as estratégias de comunicação das plataformas, focadas nos consumidores, apresentam sentidos de caridade, filantropia, cidadania e diversidade, dizendo-se abertas às demandas dos trabalhadores. Os resultados mostram como a comunicação das plataformas nas mídias sociais jogam um papel central nas contradições de classes enquanto sua dimensão sígnica no contexto da plataformização do trabalho.
Contexto e Metodologia
As condições de trabalho de motoristas e entregadores das plataformas digitais apresentam características semelhantes em várias partes do mundo, conforme evidenciam as pesquisas do projeto “Fairwork” (2019). Contudo, países do norte global apresentam especificidades, pois tiveram historicamente a mínima consolidação de um estado de bem-estar social e do emprego regular (Huws, 2020). O chamado “sul global” não é o desvio do padrão, mas é, ele próprio, o que se configura como standard e norma nas economias globais (Alacovska & Gill, 2019; Chen & Qiu, 2019; Graham, 2019; Sun, 2019; Wood et al., 2018). Isso significa localizar e contextualizar historicamente tanto os países do norte quanto os do sul - que também apresentam muitas heterogeneidades entre si. O que, de alguma forma, o trabalho em plataformas apresenta em comum no sul global é o legado da economia informal e as contradições em torno da condição pós-colonial, com seus potenciais revolucionários e suas armadilhas regressivas (Grohmann & Qiu, 2020).
Nesses termos, a plataformização do trabalho apresenta: (a) uma generalização do trabalho típico das periferias do mundo para o norte global, com uma subordinação aos oligopólios das plataformas (Abílio et al., 2020); (b) para o sul global, o novo não é o gig ou a precariedade do trabalho, pois eles são historicamente a norma, como modo permanente de vida da classe trabalhadora. A novidade é justamente a dependência de plataformas para garantir a sobrevivência (Grohmann & Qiu, 2020).
A América Latina também apresenta heterogeneidades em relação às plataformas mais utilizadas e às questões regulatórias (Cordero & Daza, 2020). O Brasil é um exemplo deste cenário de plataformização do trabalho, apresentando cerca de 23% dos usuários mundiais da Uber, que chegou ao país em 2014 (Amorim & Moda, 2020). Em 2019, aproximadamente 4.000.000 de brasileiros trabalham para as principais plataformas do país - Uber, 99, iFood e Rappi (Amorim & Moda, 2020).
Os entregadores, em geral, ganham menos de 200$ por mês e são, tipicamente, brasileiros, negros e jovens (Aliança Bike, 2019) evidenciando as intersecções entre classe e raça que são históricas no país. A pandemia acelerou o processo de plataformização, com a crescente dependência das plataformas para conseguir subsistência. Em março de 2020, o número de pedidos em plataformas de entrega cresceu 77% no país, mas os entregadores estão trabalhando mais e ganhando menos, com mais concorrência (Abílio et al., 2020). De algum modo, a pandemia contribuiu com a visibilização destes trabalhadores, pois estes garantem a entrega de bens essenciais às pessoas que estão em isolamento social.
Neste cenário, entregadores e motoristas que trabalham para as plataformas digitais estão mais expostos aos riscos de serem contaminados por covid-19. Em análise sobre as políticas de 123 plataformas em 22 países durante a pandemia, o relatório do projeto “Fairwork” (2020) aponta uma contradição entre as visões das empresas e dos trabalhadores. As empresas afirmam que estão comunicando todas as medidas aos trabalhadores, como a distribuição de equipamentos de proteção individual. Contudo, na visão dos trabalhadores, as promessas não se efetivaram. Muitos tiveram que pagar por produtos de proteção pessoal e tiveram negados os pedidos de auxílio por doença (Howson et al., 2020). Os pesquisadores do “Fairwork” (2020) apontam que, na melhor das hipóteses, as plataformas são lentas na adoção de medidas emergenciais e, na pior, estão mais preocupadas com as estratégias de relações públicas e com os consumidores do que com os trabalhadores.
No Brasil, as condições de trabalho ainda mais precarizadas, somadas à exposição dos riscos e à visibilização destes trabalhadores como essenciais durante a pandemia, contribuíram para que os entregadores organizassem duas greves nacionais durante o mês de julho (1 e 25 de julho). Foram as maiores greves trabalhistas no país da última década, com auto-organização dos trabalhadores principalmente por mídias sociais, em um país de dimensões continentais. As principais reivindicações eram: aumento nas remunerações, o fim de bloqueios injustos e do sistema de pontuação, além do fornecimento adequado de equipamentos de proteção individual sem que os trabalhadores precisassem pagar por eles. Os entregadores apelaram, ainda, à solidariedade dos consumidores, pedindo que não solicitassem nada por aplicativos nos dias das greves (Abílio et al., 2021).
Este é o pano de fundo para a análise que conduzimos sobre as estratégias de comunicação de quatro plataformas de transporte e entrega no Brasil. O contexto de pandemia e greve de trabalhadores colocou as empresas de plataformas sob escrutínio público e sentindo-se obrigadas a intensificar suas estratégias de comunicação, enquanto dimensão sígnica da luta de classes. Conforme Abílio et al. (2021), houve uma mudança na cobertura jornalística entre a primeira e a segunda greve dos entregadores. A mídia tradicional passou a ouvir cada vez mais os dados e as visões das empresas em detrimento da perspectiva dos trabalhadores. O contexto do trabalho em plataformas no Brasil contrasta, de um lado, o ponto de vista dos trabalhadores, conforme o cenário descrito acima, e, de outro, o ponto de vista das plataformas, que buscam controlar o discurso público a partir dos sentidos que circulam sobre si mesmas.
A partir disso, conduzimos uma análise de conteúdo da comunicação de quatro plataformas (Uber, 99, iFood e Rappi) a partir das contas brasileiras1 nas seguintes mídias sociais - Instagram, Facebook, Twitter e YouTube - entre os dias 15 de junho e 15 de agosto de 2020, período justificado pelo contexto de greve e pandemia. As contas nas mídias sociais foram escolhidas por terem se tornado espaços por excelência de visibilidade e circulação de sentidos em contexto de plataformização (Leaver et al., 2020; Poell et al., 2019). Isto é, as mídias sociais apresentam centralidade para as estratégias de comunicação das plataformas, no sentido de promover e fazer circular positivamente as suas marcas (Scolere et al., 2018), isto é, seu ethos. Para além das materialidades específicas de cada plataforma (Bucher & Helmond, 2018), argumentámos que o ethos - e as estratégias de comunicação das plataformas - circula seus sentidos por meio das diferentes mídias sociais, que são um locus privilegiado da circulação de sentidos. Também ressaltamos que as estratégias de comunicação das empresas não se esgotam nas mídias sociais e que há outras possibilidades não analisadas por esta pesquisa, como textos jornalísticos e páginas oficiais, por exemplo. O corpus analisado encontra-se na Tabela 1.
De início, observamos irregularidades entre as diferentes plataformas e seus usos das mídias sociais. De todas as plataformas, a iFood é a que utilizou mais intensamente as mídias sociais. Enquanto Uber, iFood e Rappi fizeram mais postagens no Twitter, a 99 utilizou principalmente o Instagram. Essa irregularidade também acontece temporalmente em cada plataforma. A iFood, por exemplo, maior alvo das greves dos entregadores, intensificou suas publicações no mês de julho, mas depois da primeira semana de agosto, passou semanas sem nenhum post. A Rappi não postava desde agosto no Instagram e a Uber não atualizava sua página de Facebook desde junho de 2020.
Das quatro empresas, apenas a Uber pode ser considerada, desde o início, como uma plataforma global. Com sede em San Francisco, está presente em 69 países e chegou ao Brasil em 2014. A 99 foi criada em 2012 por três empresários brasileiros e, inicialmente, destinava-se a apenas intermediar o contato entre taxistas e passageiros. Depois, tornou-se uma concorrente da Uber. Em 2018, a empresa foi vendida para a chinesa DiDi (Chen & Qiu, 2019), líder mundial no segmento. Do setor de entregas, a iFood é líder no Brasil, onde foi fundada em 2011. Atualmente, tem presença em outros países da América Latina, como México, Argentina e Colômbia. Já a Rappi foi fundada em 2015 na Colômbia e chegou ao Brasil em 2017. Esta promete entregar não só alimentos, mas qualquer coisa que o consumidor pedir, inclusive documentos. São as principais plataformas nos setores de entrega e transporte no Brasil, o que revela uma origem principalmente do sul global, especificamente da América Latina. Contudo, isso não significa que as estratégias de comunicação dessas plataformas sejam muito diferentes das baseadas no norte, pois elas são moldadas por ideologias coloniais e ligadas às plataformas nos Estados Unidos (Atanasoski & Vora, 2019; Davis & Xiao, 2021).
Apresentação dos Resultados
As estratégias de comunicação das plataformas em determinado período são fios que apresentam historicidades, não sendo objetos virgens (Bakhtin, 1979). A título de exemplo, os sites das empresas - que não estão em nosso corpus - são evidências de como circulam os sentidos das plataformas, apresentando-se como marcas cidadãs, com responsabilidade social e propósito. A Uber (s.d.) destaca a “cidadania global”. Já a 99 (s.d.) apresenta-se como uma empresa guiada por dados e que valoriza a diversidade. A Rappi afirma que seus “parceiros” trabalham “com amor” (https://www.rappi.com.br/). Este atributo também é destacado pela iFood (s.d.): “paixão por alimentação e tecnologia”. Além destes elementos, a comunicação das empresas é geralmente focada no consumidor, por exemplo, a Rappi afirma: “um aplicativo que está revolucionando a maneira que o brasileiro faz as suas compras” (https://www.rappi.com.br/).
Especificamente, o corpus da pesquisa revela que os sentidos das plataformas circulam pelos diferentes meios simultaneamente. Elegemos quatro categorias a partir do corpus, tendo como pano de fundo a circulação de sentidos das plataformas nas mídias sociais. A primeira categoria - “saúde e pandemia” - é contextual e refere-se ao contexto de crise sanitária global. A segunda - “cidadania e diversidade” - é o centro das estratégias das empresas: os valores de cidadania e diversidade, como elementos discursivos de empresas com propósito e para o bem comum, em linha com pesquisas que analisam narrativas e racionalidade empreendedora (Casaqui & Riegel, 2016).
As duas últimas categorias envolvem relações e representações com públicos interessados específicos. Por um lado, os influenciadores e as outras marcas ajudam a circular os valores das plataformas e a circular sentidos de credibilidade, como um trabalho de visibilidade (Abidin, 2016). Por outro, as representações dos trabalhadores pelas plataformas são parte da dimensão sígnica da luta de classes, com regimes de visibilidade e invisibilidade (Hall, 1997), em direção a conquistar a adesão de trabalhadores e da opinião pública.
Saúde e Pandemia
Na primeira categoria, a Uber adotou o slogan “sem máscara, sem viagem”. Esta campanha pode ser encontrada similarmente em outros países, com o mesmo texto em inglês “no mask, no ride”. No Brasil, especificamente, a empresa incorporou a máxima “padrão Uber de segurança” para estimular a associação de um imaginário que assume o “padrão Uber” como sinônimo de padrão de qualidade. Esta amplia tal entendimento para a segurança e proteção que a empresa oferece perante o contexto de pandemia. Em lettering de vídeo publicado no Twitter no dia 8 de julho de 2020, a empresa afirma estar “investindo mais de R$250.000.000 para fornecer máscaras, produtos de limpeza e higienização dos carros dos motoristas parceiros ao redor do mundo”.
A 99 e a iFood também afirmaram estar reunindo todos os esforços para proteger os trabalhadores dos riscos em relação à covid-19. Isso incluiu a divulgação de que distribuíram máscaras e álcool gel, além da doação de corridas para profissionais de saúde. A 99 também anunciou ações de higienização dos automóveis em estratégias de comunicação focadas no consumidor: “mais do que nunca, proteger você é prioridade para nós. O resultado? 1,5 milhão de corridas mais seguras sem nenhum custo a mais para você! Conte com a gente sempre que precisar se sentir ainda mais seguro”. Já a Rappi não se pronunciou sobre a pandemia entre junho e agosto de 2020 em suas contas em mídias sociais.
Em geral, o trabalhador não tem voz na comunicação sobre questões de pandemia e saúde, em que as empresas priorizam números e medidas tomadas. O relatório do “Fairwork” (2020) sobre covid-19 mostra que as estratégias de comunicação sobre a pandemia são muito semelhantes ao redor do mundo, assim como as reivindicações dos trabalhadores em relação aos equipamentos de proteção individualizado, um dos pontos centrais da greve dos entregadores no Brasil (Howson et al., 2020).
Cidadania e Diversidade
Durante o período de análise, as plataformas celebraram o dia do orgulho LGBTQIA+. A Uber apresentou sentidos contra o preconceito, resgatando preceitos que já tinham sido destacados no carnaval brasileiro do mesmo ano, quando uma campanha de reforço ao respeito foi lançada pela Uber e, segundo informações do newsroom oficial da plataforma (Uber, 2020), teve como objetivo divulgar seu código de conduta. A Rappi fez uma campanha em parceria com uma marca de cerveja em que os pedidos iam com uma bandeira da causa LGBTQIA+ de presente. Os valores eram doados para uma organização não governamental. O slogan da campanha era: “celebre a diversidade onde estiver. Enfeite a sua janela e desfile o orgulho”.
As doações também estiveram presentes nas estratégias de comunicação da 99: “doamos R$4 milhões em corridas para que os governos de todo o Brasil possam utilizar no transporte de quem não pode parar na pandemia. Nossos motoristas parceiros recebem 100% do valor dessas corridas”. Neste caso, o contexto da pandemia é utilizado para reafirmação de sentidos de cidadania, em contexto de políticas de austeridade (Brown, 2016).
Este cenário também faz parte do ethos construído pela Uber, que patrocinou a iniciativa “Ciclofaixa de Lazer” na cidade de São Paulo. Em postagem no Twitter no dia 18 de julho, há uma fotografia de uma pessoa andando de bicicleta e vestindo uma máscara. Ela carrega a seguinte mensagem “quer voltar a pedalar em São Paulo? A Uber leva você”. Para a diretora da empresa no Brasil, “o chamado novo normal é uma oportunidade para todos nós, que moramos em São Paulo, repensemos o nosso relacionamento com o automóvel e como ele afeta a nossa cidade”. Desta maneira, a comunicação da empresa apresenta sentidos de sustentabilidade ambiental e saúde. Isso está em linha com um modelo de cidade neoliberal em que as plataformas buscam intervir nos espaços urbanos a partir de uma perspectiva empresarial (Morozov & Bria, 2018).
Outro exemplo dessa reapropriação privada da cidadania e do bem público é a iFood, que se pronunciou por meio de seu diretor de políticas dias antes da greve dos entregadores no Brasil: “aplicativos de delivery, poder público e entregadores devem ser corresponsáveis e cocriadores da nova ordem. O iFood está à disposição”. A empresa promove-se como benfeitora para a sociedade como um todo, produzindo sentidos de responsabilidade social.
Em relação à diversidade, a plataforma 99 esforçou-se para incluir diferentes perfis raciais, étnicos, de gênero e de classe nos anúncios de suas contas em mídias sociais. Uma postagem, publicada no dia 17 de junho pela filósofa Djamila Ribeiro, causou polêmica por conta de um publipost feito para a 99. Ela é conhecida pela militância em torno da defesa das mulheres negras, tem 1.000.000 de seguidores no Instagram e foi considerada pela BBC uma das 100 mulheres mais influentes do mundo. No vídeo, a filósofa narra a sua experiência na utilização da plataforma e destaca “os pacotes de proteção” que a empresa adotou durante a pandemia e também a “responsabilidade social”, ao oferecer a desinfecção gratuita dos carros aos motoristas.
A postagem patrocinada causou surpresa e indignação entre os seus seguidores e entre militantes de movimentos sociais e raciais porque foi feita em um momento em que os trabalhadores das plataformas - a maioria negra (Abílio et al., 2020) - estavam se organizando publicamente e reivindicando melhores condições de trabalho. Além disso, era o contexto dos protestos raciais nos Estados Unidos por conta da morte de George Floyd, brutalmente assassinado por policiais.
Durante o vídeo, a filósofa adota as mesmas expressões utilizadas pela empresa para se dirigir aos motoristas, nomeando-os de “motoristas parceiros” e “colaboradores”, estratégia usada pelas plataformas em seus processos de comunicação como evidência da dimensão sígnica da luta de classes (Grohmann, 2018). Ao nomear os motoristas como “parceiros” e destacar o “papel social da empresa”, há uma tentativa de proximidade que esconde práticas de informalidade e precariedade do trabalho em plataformas, especialmente em um país como o Brasil (Abílio et al., 2020). A presença de uma figura reconhecida publicamente por estar do lado das minorias, como Djamila Ribeiro, reforça a idoneidade e a credibilidade como valores em circulação das plataformas. A 99 quis fortalecer a imagem de empresa socialmente responsável, utilizando na publicidade uma representante respeitada pela comunidade negra. Contudo, ela não reconhece o vínculo de trabalho com os entregadores (Abílio et al., 2020).
O combate ao racismo, verbalizado pela 99 com a presença de Djamila Ribeiro, também foi utilizado pela Rappi. Após um caso de racismo de um cliente com um entregador, ocorrido no dia 7 de agosto, a plataforma citou as suas concorrentes, como iFood, no Twitter:
acredito que devem ter acompanhado o caso do entregador Matheus, que sofreu um crime de racismo. Averiguamos e ele não está cadastrado em nossa plataforma. Conseguem nos ajudar a encontrá-lo para darmos apoio e tomar as providências quanto ao usuário?
Com isso, a plataforma reforça os sentidos de plataforma direcionada ao bem comum.
Os sentidos de cidadania e diversidade relacionam-se ao de união, como afirma a diretora de marketing da iFood: “esse movimento da diversidade é muito pontuado pelo contexto que estamos agora. Como marca, temos a obrigação de trazer essa mensagem de união e não de polarização. Quando olhamos mais para o consumidor isso ia acabar sendo natural”. Esse enunciado reforça que as estratégias de comunicação são direcionadas ao consumidor e circulam sentidos de diversidade. A “união”, atrelada à responsabilidade social, é colocada como oposição à “polarização”, no sentido do contexto político brasileiro. Desta maneira, a plataforma naturaliza a luta de classes e vê-se como portadora da união na sociedade.
Relações com Marcas e Influenciadores
As parcerias das plataformas com marcas e influenciadores reforçam o lugar da enunciação direcionada aos consumidores. As empresas apostaram em parcerias com outras marcas e influenciadores digitais para reforçar os vínculos com os consumidores. Todos os enunciados da Rappi, por exemplo, sobre diversidade são em parcerias com outras marcas. Já a 99 investiu em postagens de influenciadores com perfis jovens, oriundos de diversas capitais brasileiras, e de variados gêneros, que mantêm entre 50 e 150.000 seguidores em suas páginas, para divulgar novos produtos, como o 99 Entrega e campanhas, como a #99 Mobiliza. As postagens geralmente se repetem nas diversas mídias sociais, mas a preferência está no Instagram. A frase mais constante nas páginas da plataforma é: “o ponto de partida da 99 são as pessoas”. E esse lema se traduz nas postagens, que geralmente são direcionadas aos consumidores, tratados diretamente por “você”.
Os enunciados da 99 reforçam os sentidos de empreendedorismo como melhor saída para a crise financeira ou o desemprego, em linha com a racionalidade neoliberal (Dardot & Laval, 2013) e com as pesquisas sobre retórica na economia das plataformas (Codagnone et al., 2016). Um exemplo é a postagem sobre a motorista Mary Stela publicada simultaneamente no Instagram e no Twitter:
quando a Mary Stela se deu conta, era hora de recomeçar. Ela alugou um carro e seguiu rumo a dias melhores como motorista parceira 99. E não é que a coisa deu tão certo que ela virou destaque no ranking nacional dos motoras?!
O discurso reforça o cruzamento do discurso do empreendedorismo com os sentidos de superação e auto-ajuda, algo que já era comum em estratégias de comunicação de empresas fora da plataformização do trabalho, como evidenciam Illouz (2007) e Castellano (2018).
O que a 99 apresenta como diferente é que a autonomia e a flexibilidade apenas podem acontecer com “ajuda” da plataforma, como uma relação de confiança: “ela conquistou mais que isso: independência financeira, flexibilidade para curtir a família e mais confiança para trabalhar com os suportes que a 99 tem oferecido nos últimos meses”. Ou seja, o incentivo ao empreendedorismo está relacionado à mudança social a partir do trabalho em plataformas, como na frase “ser parceiro 99 é a oportunidade que pode mudar a sua vida”.
Se, nas categorias anteriores, sobre “saúde”, “diversidade e cidadania”, as estratégias de comunicação das plataformas reforçam os sentidos de responsabilidade social, as postagens com marcas e influenciadores revelam a tônica no discurso do empreendedorismo como saída individual e rumo à flexibilidade e autonomia. Há um entrecruzamento entre as categorias, pois o discurso empreendedor relaciona-se à mudança social e à confiança nas plataformas.
Entre as plataformas analisadas, a Rappi é a que apresenta menos postagens sobre cidadania, saúde e segurança dos trabalhadores. A empresa não fez nenhuma postagem sobre a pandemia nem menções à greve dos entregadores. Seu foco é estritamente o mercado consumidor e é a empresa com mais postagens em parcerias com marcas, como um grande “shopping plataformizado”: “agora você compra num clique e recebe em minutos. Você encontra várias marcas de roupas, eletrônicos, beleza, brinquedos, e muito mais”. Um dos destaques são os vídeos com maquiagens com os seguintes enunciados: “ficar sem o rímel na hora da make não dá né?”. O Twitter da plataforma ainda apresenta vários memes em circulação na cultura digital brasileira.
Representação de Trabalhadores
As estratégias da comunicação da Rappi em relação aos trabalhadores são prioritariamente no canal do YouTube, Rappi Entregador. O canal representa o trabalhador ou como alguém endividado ou como alvo de ações de cidadania e responsabilidade social, sem lugar para reivindicações. As questões trabalhistas permanecem invisíveis e os sentidos dominantes são próximos ao que Wendy Brown (2016) chama de “cidadania sacrificial”. Alguns enunciados são: “como pagar suas dívidas e como abrir uma solicitação caso não reconheça a dívida”, “olá entregador parceiro! Você já sabe como quitar suas dívidas com a Rappi?”. Desta forma, o trabalhador é aprisionado em um circuito de extensas jornadas de trabalho e dívidas como um trabalhador-consumidor da plataforma (Huws, 2014). Estes mecanismos ocorrem no Brasil desde antes da plataformização do trabalho, como mostra Abílio (2015) no setor de cosméticos.
Na Uber, as representações do trabalhador são complexas e contraditórias. Primeiramente, ele é posicionado como um usuário dos serviços da plataforma, em uma relação entre empresa e consumidor, tal qual a lógica do trabalho do consumidor enunciada acima. Nesta retórica, de um lado os motoristas, como trabalhador-consumidor, se beneficiam de um dos produtos da plataforma, significando a possibilidade de geração de renda. Por outro lado, o consumidor da plataforma se beneficia do serviço de facilitação da mobilidade nos espaços urbanos. No canal do YouTube, um vídeo para apresentar o “padrão Uber de segurança”, lista as novas regras e recomendações que tanto motoristas quanto passageiros devem seguir, dialogando com ambos os públicos indistintamente, como meros usuários dos serviços digitais ofertados.
Uma segunda imagem posiciona o motorista como um prestador de serviços, o que revela mais claramente a ambiguidade da relação de trabalho instituída na relação com a plataforma. Em postagem no Twitter no dia 24 de julho, a página celebra o Dia do Motorista e apresenta a campanha #EstrelaExtra que elege motoristas de destaque e apresenta seus relatos pessoais acompanhados de nome e fotografia: “amanhã é Dia do Motorista [emoji de coração vermelho] Os motoristas parceiros, além de levar passageiros para os seus destinos, também são protagonistas de atitudes que melhoram a vida de outras pessoas. Essas histórias merecem ser compartilhadas: #EstrelaExtra #DiaDoMotorista”.
A racionalidade neoliberal é encarnada em estrelas como forma de ranqueamento e classificação dos trabalhadores (Dardot & Laval, 2013). A vigilância sobre os trabalhadores é, então, traduzida como um sentido de benfeitoria da empresa. O motorista, vítima dos impactos da crise sanitária e econômica, é representado como um favorecido de iniciativas de caridade. Além disso, a plataforma passa a estimular a gorjeta como maneira do consumidor realizar sua benfeitoria social individual. Desta forma, as plataformas circulam sentidos de cidadania sacrificial (Brown, 2016).
O iFood, por sua vez, representa-se como marca aberta aos trabalhadores e suas demandas, sendo a empresa mais atuante durante a greve dos entregadores. O diretor de políticas públicas da plataforma afirmou que os trabalhadores ganham mais e se sentem mais felizes no trabalho do que dizem as pesquisas acadêmicas. Ele disse ainda que “manifestar é um direito de todos, inclusive dos parceiros”, e que, por isso, não houve a desativação dos entregadores partícipes da greve. O texto foi publicado em um jornal de circulação nacional no Brasil e no Twitter da plataforma.
Outra iniciativa da iFood foi o lançamento do vídeo “faça o seu pedido no App iFood” publicado na página do YouTube. A partir do texto “você já reparou como uma entrega leva à outra”, a empresa buscou dividir a responsabilidade com os consumidores em relação às demandas dos entregadores. Na peça publicitária, a empresa trata com centralidade os números e evidencia os 25.000.000 que destinou para medidas de prevenção e que dobrou cada valor pago pelo cliente em gorjeta. Como em outros enunciados, a gorjeta é um elemento indicial da cidadania sacrificial, como um substituto para as melhores condições de trabalho dos entregadores.
Outro projeto do iFood é o “Abrindo a Cozinha”. Esta expressão é usada como sinônimo de transparência e é parte do vocabulário dos restaurantes que mostram todo o processo de preparação dos alimentos. Este projeto foi utilizado pela plataforma como defesa da empresa em meio às greves dos entregadores no Brasil. Há, inclusive, uma seção com perguntas frequentes sobre a greve. Alguns temas fazem parte do acordo entre a empresa e os trabalhadores, por exemplo, “como os entregadores operam via iFood” ou “como é calculado o valor de entrega”. Em uma postagem no Instagram, a empresa afirma: “não desativamos nem bloqueamos o entregador por participar de manifestações. Entendemos como um direito dos nossos parceiros. Bloqueio injusto, não!”. Este enunciado apresenta interdiscursividade com as reivindicações dos trabalhadores contra bloqueios injustos. A estratégia de comunicação das plataformas apresenta-se como se estivesse do mesmo lado do trabalhador. O enunciado “bloqueio injusto, não”, inclusive, apresenta similaridades com discursos de protestos e movimentos sociais. Deste modo, a plataforma apresenta-se como sensível às demandas dos trabalhadores.
Após as greves, a plataforma publicou uma nova campanha chamada #ViverÉUmaEntrega. O uso da hashtag indica que a campanha publicitária foi produzida para circular nas mídias sociais e a palavra “entrega” é o elemento de continuidade de outras campanhas da companhia que chegou a usar #NossaEntrega. Os sentidos da palavra “entrega” descolam-se da figura do trabalhador para a vida, em consonância com as narrativas sobre propósito e autoajuda (Castellano, 2018).
A campanha é constituída de seis peças de audiovisual com temas diferentes. São eles: amor, doçura, família, amizade, garra e responsabilidade. No vídeo com o tema “amizade”, diferentemente das campanhas anteriores, não há imagem dos consumidores recebendo comida com agilidade e comodidade. A peça publicitária apresenta dois homens, um deles negro, que interpretam os papeis de entregador e dono de restaurante. Na conversa em tom sentimental, eles descrevem uma cena de entrega de comida em que um reconhece o outro. Eles eram amigos de escola que se reencontravam naquele momento. O homem negro era o dono do restaurante. O outro era o entregador.
Além de humanizar a empresa, representando-a como uma comunidade de amigos, a peça trata a questão racial justamente no momento em que aconteciam manifestações contra o genocídio da população negra em diversos países. Isso está em linha com a campanha analisada anteriormente da 99 com a filósofa Djamila Ribeiro. Isto é, há a reapropriação de sentidos raciais e dos trabalhadores em prol das plataformas, que representam a si mesmas como cidadãs.
Com o mesmo tom sentimental, outra peça publicitária retrata uma mãe entregadora e seu filho orgulhoso por vê-la sair para trabalhar todos os dias para trabalhar “não só para garantir o pão de cada dia, mas para entregar comida para outras famílias”. O vídeo encerra enaltecendo as qualidades da mulher: “a vida de uma mulher é nunca desistir e a vida de uma mãe é sempre se entregar”. Os valores exaltados são de agradecimento, pois a personagem estava desempregada e começou a trabalhar como entregador para conseguir pagar o financiamento de sua moto e a sua faculdade. Isto é, os sentidos dominantes são os de agradecimento à empresa por promover o bem social e o de satisfação individual de que o entregador tem uma missão nobre em relação à sociedade como um todo, devendo agradecer por isso. Desta forma, há a ressemantização de um trabalhador em busca dos direitos para um cidadão que deve se sacrificar em prol do bem comum - o que, neste caso, significa a perspectiva discursiva das plataformas.
Portanto, as representações dos trabalhadores variam entre alguém invisível, endividado, agradecido pela oportunidade e que deve se sacrificar em prol da sociedade. Mesmo quando o trabalhador é o centro das estratégias de comunicação, a sua voz aparece apenas para manutenção do ponto de vista das plataformas e suas estratégias comerciais. As reivindicações por melhores condições de trabalho são representadas como polarização e as plataformas simbolizam a união, deslocando a palavra “entrega” do trabalhador para algo abstrato.
Conclusões
As estratégias de comunicação das plataformas em suas contas nas mídias sociais são somente um dos aspectos da comunicação destas empresas - dentre outras possibilidades de circulação de sentidos. E essa dimensão discursiva é apenas um papel da comunicação no trabalho em plataformas, desde o design até o consumo, em um circuito do trabalho. Os discursos das plataformas apresentam historicidades e vão além do período escolhido para este corpus. As contas nas mídias sociais representam uma síntese de como circulam os sentidos sobre as plataformas, de modo a ressemantizar e cristalizar significados sobre a economia digital, os consumidores e os trabalhadores.
Os resultados evidenciam que, se por um lado, as plataformas apresentam especificidades em seus desenhos, perfis de trabalhadores e condições de trabalho, conforme Schor et al. (2020), suas estratégias de comunicação atravessam os distintos setores, com narrativas e discursos semelhantes entre si. A escolha por duas áreas, transporte e entrega, resultou em mais similaridades que diferenças entre os posicionamentos discursivos das plataformas. Isso ocorre também por causa da circulação ideológica das plataformas em vários países do mundo, em linha com valores coloniais e ligados ao Vale do Silício. Desta maneira, podemos dizer, a partir da pesquisa apresentada, que as estratégias de comunicação das plataformas podem encontrar especificidades locais, mas seus sentidos tendem a circular internacionalmente.
As categorias de análise - “saúde e pandemia”, “cidadania e diversidade”, “relações com marcas e influenciadores” e “representações dos trabalhadores” - mostraram-se menos excludentes que complementares entre si. As plataformas têm como principal estratégia de comunicação se posicionarem como empresas cidadãs, ligadas à diversidade, ao bem comum, ao propósito do bem social, em prol da união e não da polarização, com responsabilidade social. Isso acontece em distintas dimensões. Os imaginários promovidos pelos seus discursos - de cidadania, diversidade e responsabilidade social - colocam as plataformas como agentes centrais de todo o bem-estar da sociedade. A ideia de que trabalhar é, por si só, uma oportunidade está em linha com muitos discursos de trabalhadores no sul global (Wood et al., 2019). Estes sentidos podem ser um indício a ser pesquisado nos discursos de outras plataformas no sul global, com potencial de generalização, dada à força de sua circulação.
Os discursos sobre saúde e pandemia são o contexto da circulação dos sentidos das plataformas - mostrando que estão fazendo companhas e iniciativas para mitigar os efeitos da covid-19 na sociedade. Já as relações com marcas e influenciadores, por sua vez, apontam para os modos como as plataformas direcionam seus discursos para os consumidores. A partir das parcerias, mostram-se como empresas versáteis e preocupadas com a praticidade dos consumidores. É neste contexto em que pautas sociais e de protestos começam a ser ressignificadas e ressemantizadas pelas plataformas, no sentido de neutralizar as lutas sociais e mostrar-se como portadoras de uma universalidade discursiva.
Na categoria de “representação dos trabalhadores”, as reivindicações coletivas são ressignificadas a partir de um olhar de cidadania sacrificial, autoajuda, empreendedorismo e superação. Em determinado momento, inclusive, podem simular estar ao lado dos trabalhadores, como no enunciado “bloqueio injusto, não”. Discursos como os de um diretor de políticas públicas - posição alinhada à racionalidade neoliberal e sua aplicação nos espaços urbanos - sobre a plataforma estar aberta às demandas dos trabalhadores são comuns com o propósito de mostrarem-se como empresas confiáveis perante os consumidores.
Os trabalhadores são invisibilizados, representados como endividados, pessoas com sonhos, mas não como trabalhadores e, principalmente, como classe trabalhadora. Isto é, a partir da perspectiva da composição de classes (Cant, 2019), as plataformas procuram neutralizar a composição política da classe trabalhadora a partir de suas estratégias da comunicação, construir os imaginários de como seriam trabalhadores e consumidores ideais, em um circuito do trabalho em plataformas. Isso reforça o nosso argumento de que as estratégias de comunicação das plataformas são uma dimensão sígnica da luta de classes. Se o trabalho em plataformas é laboratório da luta de classes, as estratégias de comunicação estão no cerne desta luta.