“Meooo, Isso É Muito Black Mirror”
Jack, nota 3,7; Chester, nota 3,1; Ethan, nota 4,1. Quem são essas pessoas? O que elas têm em comum? Elas são personagens de uma sociedade na qual as interações sociais são mediadas por uma rede social com um sistema de ranqueamento em que os integrantes se avaliam mutuamente com nota que pode variar de uma a cinco estrelas. Nesse contexto, esse trio não está próximo da média 4,5, que os segmentariam como usuários premium, a elite social dessa ambiência. Se você assistiu ao primeiro episódio da terceira temporada da série britânica, Black Mirror1, “Nosedive” (Wright, 2016), talvez nem tenha dado atenção a esses personagens. Eles são os três dos quatro personagens negros que possuem avaliações destacadas. Em tom crítico, eles ocupam posições à margem daquela sociedade, que é tecida ao longo do episódio com ares de distopia e futurísticos.
Para os motoristas e usuários da Uber, essa realidade pode soar de alguma forma familiar. Criada em 2009 por Travis Kalanick e Garret Camp, na California, a empresa de serviços de transporte de carros privados estadunidense começou a se popularizar no Brasil em 2014, sendo o Rio de Janeiro a primeira cidade a receber o serviço, seguida de São Paulo e Belo Horizonte (“Serviço de caronas remuneradas Uber inicia operações no Brasil”, 2014). Atualmente, a Uber está presente em mais de 60 países, somando mais de 900 cidades sendo os Estados Unidos e o Brasil os países com mais cidades atendidas pelo serviço (Ghedin, 2019).
A proposta inicial da empresa era oferecer transporte em carros de luxo, fazendo a mesma função de táxi, e com a mediação do aplicativo de solicitação do serviço ele foi impulsionado e contribuiu para que o projeto se tornasse um dos pioneiros da categoria batizada e-hailing. O e-hailing é a possibilidade de solicitar um serviço por meio de um dispositivo eletrônico, como o celular ou tablet (FutureBridge, 2020). Entre as suas características diferenciais estão a possibilidade de pagamento, também eletrônico, localização em tempo real por meio de ferramenta de geolocalização e o baixo custo do serviço, considerando que a manutenção do mesmo é mais baixa. No contexto da Uber, a plataforma de solicitação de serviço é um aplicativo, no qual ao final da corrida tanto o passageiro quanto o motorista se avaliam mutuamente, com uma nota que varia de uma a cinco estrelas.
“Qual é sua nota na Uber?”. Na semana em que assisti ao episódio “Nosedive”, encontro essa pergunta em uma matéria que circulava na rede social Facebook, em 2017. Aqui se faz necessário o posicionamento em primeira pessoa, para explicar os gatilhos de inspiração dessa pesquisa. Na época, a avaliação dada aos motoristas era destacada no final da corrida, mas a grande parte dos usuários não sabia que também eram avaliados por eles. Para ter acesso à avaliação dos passageiros da Uber era necessário um longo passo a passo dentro do aplicativo da empresa de transporte privado. Ao verificar a minha avaliação fiquei surpresa com a minha nota 4,85 e questionei que critérios os motoristas utilizavam para essa avaliação. Assim, como sugestão do então orientador de mestrado Robson Braga, decidimos estudar os mecanismos de vigilância e punição imediatos dentro de uma lógica de vigilância cotidiana, que resultou em um primeiro mapeamento dessa experiência, sistematizada e descrita no artigo “Meeoo, isso é muito Black Mirror: A nota da Uber como punição do comportamento social na sociedade da vigilância distribuída” (Braga & Evangelo, 2017).
No primeiro trabalho exploratório, a questão racial não apareceu de forma determinante. Porém, como enfatiza Almeida (2018), “a sociedade contemporânea não pode ser compreendida sem os conceitos de raça e de racismo ( … ). O racismo é sempre estrutural, ou seja, de que ele é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade” (p. 15). Diante do interesse de ampliar o olhar para essa experiência, a continuidade dessa pesquisa irá tratar da realidade que os negros brasileiros, na cidade do Rio de Janeiro, experienciam cotidianamente, e que exploraremos a partir da lógica da Uber, a fim de criar uma lupa que pode ser usada para olhar outras vivências negras dentro do contexto atual de vigilância.
Posto isso, o objetivo principal desse estudo é seguir mapeando essa vivência com o intuito de ampliar a análise da vigilância contemporânea a partir de um olhar também racializado sobre a temática. A vivência da Uber com essa perspectiva, que é mediada pelo sistema de avaliação da empresa, pode estimular a refletir sobre os mecanismos contemporâneos de monitoramento e controle social, sobre os modelos de vigilância vigentes e iniciar uma cartografia dessa sociedade ancorada em uma lógica de ranqueamento, lógica que aparece quando é necessário classificar os dados coletados, como iremos explorar ao longo do estudo.
Metodologia: A Cartografia
Como a cartografia apareceu como metodologia frutífera? Entendemos como os pesquisadores Escóssia et al. (2009) que a metodologia em questão se propõe a acompanhar processos e consiste em uma aposta na experimentação. “Eis o sentido da cartografia: acompanhamento de percursos, implicação em processos de produção, conexão de redes ou rizomas” (Escóssia et al., 2009, p. 10). Entre as principais referências para sistematização do método estão os seus fundadores Gilles Deleuze e Félix Guattari, os conceitos como redes e rizomas já apontam as raízes da metodologia. Kastrup (2008) enfatiza que o método foi criado para o estudo da produção de subjetividade, ou seja, fala da sua dimensão processual.
Toda cartografia busca desenhar um certo rizoma, constituído de vetores heterogêneos: econômicos, políticos, sociais, tecnológicos, linguísticos, ecológicos, etc. Segundo Deleuze e Guatarri, a cartografia é um dos princípios de funcionamento do rizoma. O mapa é sempre mapa de um rizoma, que é uma espécie de todo aberto, em constante movimento, composto de múltiplas linhas heterogêneas, cujas conexões podem ser alteradas e rompidas. ( … ) Fazer um mapa é então capturar linhas, movimentos, um plano de forças. (Kastrup, 2008, p. 469)
Vale destacar que estamos diante de um campo inusitado. A experiência de campo analisada ocorre dentro de um transporte privado urbano, é mediada por um aplicativo, envolve uma prática de ranqueamento, entre outras questões, sendo assim, um campo não convencional de ser acessado. Parte da experiência estudada é vivenciada constantemente pelos motoristas e a outra parte é esporádica, no caso dos usuários. Deste modo, experimentar se faz necessário. Ao não propor procedimentos específicos, a cartografia se revela como um método compatível com experiências que fogem de elementos tradicionais de pesquisa. “Diversos procedimentos podem ser adotados no que concerne a técnicas de entrevistas, de análise de dados, estratégias qualitativas ou quantitativas” (Kastrup et al., 2014, p. 9).
Sendo assim, para o presente estudo foram utilizados três procedimentos de produção de dados:
Revisão bibliográfica: focou nos campos teóricos de estudos de relações raciais e de vigilância.
Observação participante em corridas da Uber: conversas com motoristas e observação de vivência pessoal em corridas da Uber.
Questionários para motoristas e usuários negros da Uber, na cidade do Rio de Janeiro: eles foram distribuídos no primeiro semestre de 2020 inicialmente no grupo de Facebook “Uber - Motoristas (APP) RJ”, grupo com mais de 78.000 essoas, que acompanho desde 2017, e inicialmente tratava de questões sobre vivência e experiências com a Uber, mas atualmente se tornou um espaço de classificados, com vendas e ofertas de carros, seguros e locações. A partir desse grupo encontrei um grupo de Whatsapp chamado “A grande família Uber/99”, com 68 motoristas, e também distribui o questionário. Os usuários começaram a ser acionados em redes pessoais e também distribuídos em grupo de Facebook com temáticas raciais, entre eles o “Afrocentricidade” (com 6.400 integrantes em janeiro de 2021), “RAP - Redes de Afro Profissionais” (com 13.500 integrantes em janeiro de 2021) e “Mulheres Negras” (com 12.700 integrantes em janeiro de 2021).
Estamos diante de uma combinação de etapas, que visa olhar para o objeto de pesquisa em diversos ângulos, em sua complexidade e multiplicidade. Nesse estudo, a análise será apresentada junto com a consolidação de dados feita de forma descritiva, que será distribuída ao longo de todo o texto, em diálogo com o arcabouço teórico. O esforço em mesclar dados, análise e arcabouço parte do entendimento que a prática de campo não é feita de forma isolada, há uma interferência mútua entre campo e estudo e, assim, o texto acompanha a fluidez da prática de campo e de estudo.
Os interagentes com os questionários da pesquisa foram denominados colaboradores, considerando o papel de colaboração com o mapeamento da experiência estudada. Colaboradores também é a forma que a Uber denomina os seus motoristas, em uma nova lógica de relação de trabalho. As identidades de todos serão preservadas, sendo apresentados a partir de uma numeração, o papel na experiência, a sua nota e como se autodeclara de acordo com critérios raciais. Aqui destaco que a autodeclaração não foi solicitada no questionário de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a questão foi feita de forma aberta para que o próprio interagente se definisse de acordo com a forma como denomina a sua origem racial. Esta questão permitiu observar também como os colaboradores se relacionam com a discussão racial. Na primeira distribuição de questionário obtivemos 33 respostas, sendo 31 usuários e dois motoristas. As suas experiências serão citadas ao longo do texto de acordo com as identificações a seguir:
Colaboradora 1 (usuária da Uber; nota 4,57; autodeclara-se negra);
Colaborador 2 (usuário da Uber; nota 4,72; autodeclara-se negro);
Colaborador 3 (usuário da Uber; nota 4,79; autodeclara-se pardo);
Colaborador 4 (usuário da Uber, nota 3; autodeclara-se negro);
Colaborador 5 (usuário da Uber; nota 4,75; autodeclara-se negro);
Colaboradora 6 (usuária da Uber; nota 4,77; autodeclara-se preta);
Colaboradora 7 (usuária da Uber; nota 4,92; autodeclara-se preta);
Colaborador 8 (usuária da Uber; nota 4,81; autodeclara-se negro);
Colaboradora 9 (usuária da Uber; nota 4,89; autodeclara-se negra);
Colaboradora 10 (usuária da Uber; nota 4,83; autodeclara-se preta);
Colaboradora 11 (usuária da Uber; nota 4,96, autodeclara-se branca);
Colaboradora 12 (usuária da Uber; nota 4,89; autodeclara-se negra);
Colaboradora 13 (usuária da Uber; nota 4,75; autodeclara-se negra);
Colaboradora 14 (usuária da Uber; 5; autodeclara-se negra);
Colaboradora 15 (usuária da Uber; nota 4,76, autodeclara-se negra);
Colaboradora 16 (usuária da Uber; 4,77; autodeclara-se branca);
Colaborador 17 (usuário da Uber; nota 0; autodeclara-se preto);
Colaboradora 18 (usuária da Uber; nota 4,93, autodeclara-se negra);
Colaboradora 19 (usuária da Uber; nota 4,72, autodeclara-se negra);
Colaboradora 20 (usuária da Uber; nota 4,87; autodeclara-se preta);
Colaborador 21 (usuária da Uber; nota 4; autodeclara-se pardo);
Colaboradora 22 (usuária da Uber; nota 4,97; autodeclara-se negra);
Colaboradora 23 (usuária da Uber; nota 4,92; autodeclara-se negra);
Colaboradora 24 (usuária da Uber; nota 4,87; autodeclara-se preta);
Colaborador 25 (usuário da Uber; nota 4; autodeclara-se preto);
Colaboradora 26 (usuária da Uber; nota 4,9; autodeclara-se negra);
Colaborador 27 (usuário da Uber; nota 4,77; autodeclara-se preto);
Colaborador 28 (usuário da Uber; nota 4,95; autodeclara-se negro);
Colaborador 29 (usuária da Uber; nota desconsiderada; autodeclara-se preta);
Colaborador 30 (usuário da Uber; nota 4,81; autodeclara-se preto);
Colaboradora 31 (usuária da Uber; nota 4,67; autodeclara-se preta);
Colaboradora 32 (motorista da Uber; nota 4,4; autodeclara-se negra);
Colaborador 33 (motorista da Uber; nota 4; autodeclara-se negro).
Origens da Vigilância
Os motoristas muitas vezes olham com indiferença quando veem uma mulher negra esperando Uber, muitas vezes ignoram o fato de ser eu mesma que estou ali esperando o serviço e passam direto mesmo que eu esteja com o celular na mão e tenha mandado mensagem dizendo exatamente a minha localização. (Colaboradora 6)
Estamos experenciando a cada dia a presença mais marcante das tecnologias digitais de comunicação em práticas cotidianas. Nesse cenário, a Uber se consolidou com seu sistema e-hailing no segmento de transporte privado, com o aplicativo de solicitação do serviço e as possibilidades de forma de pagamento via cartão de crédito e/ou sistema de avaliação do serviço. É notável o impacto da empresa na mobilidade urbana nas mais de 900 cidades em que está presente, que, com preços mais acessíveis, tornou mais democrático o uso do serviço de transporte privado feito tradicionalmente pelos táxis. Porém, para grupos historicamente subalternizados, talvez não seja tão democrático assim, como percebemos pelo relato introdutório.
A colaboradora 6 faz parte dos 15 dos 33 usuários e motoristas da Uber (sendo 31 usuários e dois motoristas) que interagiram com o questionário da presente pesquisa e que percebem a influência de sua origem racial na experiência da Uber, no Rio de Janeiro. A partir do seu relato que abre o tópico observamos que a usuária por muitas vezes não foi reconhecida como possível passageira por motoristas da empresa. Ela interpreta as experiências com olhos de opressão de gênero e racial presentes na sociedade. Com o relato observamos também que, para alguns motoristas de Uber, ela é invisível. Esse tipo de situação é uma reprodução clara de racismo, na medida em que a mesma não é reconhecida como possível consumidora do serviço pelas suas características. Porém, de que modo o racismo vem sendo reproduzido em uma experiência de consumo mediada por uma tecnologia de comunicação?
Para pensar sobre a questão é importante mapear a origem dos mecanismos que vamos tratar nesse estudo, como os de ranquear, segmentar, personalizar, punir e até excluir, e que fazem parte da lógica inovadora do serviço e da experiência de motoristas e usuários da Uber. Essas ações podem ser observadas em ambiências digitais baseadas em modelos de vigilância, que operam de acordo com o interesse da instituição que o estrutura, seja ela pública ou privada.
Partimos, assim, da análise sobre as práticas de vigilância feita por Michel Foucault (1975/2014), da sociedade que ele denomina “disciplinar”. Esta sociedade é caracterizada pela contínua passagem das pessoas por meios de confinamento: da família para escola, para fábrica, em casos eventuais hospitais e prisões (Deleuze, 2013). Nesse contexto, o pan-óptico de Bentham aparece como figura arquitetônica simbólica. “O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre ( … ). O dispositivo pan-óptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente” (Foucault, 1975/2014, p. 194). Constata-se que esse modelo de vigilância é de ordem da visibilidade e que tem um poder automático, pois não é possível verificar quem e se está sendo observado. De acordo com o filósofo, o modelo induz um estado consciente de constante visibilidade.
Mas ver para quê? Na sociedade disciplinar, situada nos séculos XVIII e XIX, e que atingiu o apogeu no século XX, imperava a ordem, para tal, uma das suas práticas era a punição, que tem como principal finalidade ser normalizante, nas palavras de Foucault (1975/2014), “traçar o limite que definirá a diferença em relação a todas as diferenças, a fronteira externa do anormal” (p. 179). Nessa lógica, a penalidade disciplinar está direcionada aos desvios das regras sociais pré-estabelecidas. Como exemplos práticos, na escola e no exército as micropenalidades de tempo são corriqueiras, como atrasos e ausências. As punições poderiam ser sutis, como privações ou até humilhações.
Vale destacar que um dos objetos mais importantes de sua análise da sociedade disciplinar é a prisão, a qual em países como Brasil e os Estados Unidos (país de origem da plataforma que compõe o objeto desse estudo) encarcera em massa a população negra2. Estas prisões, que nascem entre o fim do século XVIII e o início do século XIX, marcam a passagem da punição do suplício para o encarceramento.
Em uma revisita a análise foucaultiana, Gilles Deleuze (2013) afirma que as sociedades disciplinares ruíram após a Segunda Guerra Mundial, considerando as crises dos meios de confinamento analisados por Foucault. As sociedades disciplinares foram substituídas pelas sociedades de controle, nas quais os sistemas fechados são superados por formas ultrarrápidas de controle ao ar livre.
Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a empresa, a formação o serviço sendo os metaestáveis e coexistentes de uma mesma modulação. (Deleuze, 2013, p. 226)
É importante assinalar aqui que a análise social foucaultiana do poder disciplinar, a qual consagrou os mecanismos de vigilância e de punição na modernidade, nos leva a revisitá-la de forma não transitória e não superada por completo. Ao observar o mecanismo do sistema de avaliação da empresa Uber, por exemplo, é possível fazer uma analogia clara à docilização da sociedade disciplinar e também à lógica das formas ultrarrápidas de controle ao ar livre da “sociedade de controle”. A nota dos motoristas e dos usuários nada mais é que uma forma de manter constantemente o controle do bom comportamento, caso contrário você pode ser excluído do uso da plataforma, que para os motoristas pode significar a forma de sustento e para os usuários a perda de acesso ao serviço.
A Vigilância de Big Data: A Luz Sob os Aspectos Democráticos
Por enquanto, saiba que todas as fronteiras que você cruza, todas as compras feitas, todas as chamadas feitas, todas as torres de celular que você passa, amigos que você mantém, sites que você visita e assunto digitado está nas mãos de um sistema cujo alcance é ilimitado, mas cujas salvaguardas não são.
Edward Snowden para Laura Poitras, 2013 (Lyon, 2015, p. 1)
Em junho de 2013, o mundo teve acesso às informações detalhadas sobre os mecanismos de vigilância em massa. Existe um consenso entre os pesquisadores contemporâneos que as revelações de Edward Snowden é outro divisor de água para pensar o assunto. Como recorda Bruno (2013), os documentos revelaram o funcionamento do programa PRISM que permitia que a Agência de Segurança Americana tivesse acesso a servidores de grandes empresas de internet, podendo fazer o monitoramento de cidadãos em massa (como histórico de busca, emails, trocas de fotos e vídeos, por exemplo), além de práticas de espionagem do governo americano, do qual o Brasil também foi alvo (Bruno, 2013). Lyon (2015) explica que as revelações de Snowden foram significativas, pois expuseram as condições e o tipo de vigilância específica do século XXI, e também estimularam questionamentos fundamentais sobre qual o limite legal, ético e democrático da vigilância aos cidadãos.
Sob o fluxo visível das trocas e conversações sociais, constitui-se um imenso, distribuído e polivalente sistema de rastreamento e categorização de dados pessoais que, por sua vez, alimenta estratégias de publicidade, segurança desenvolvimento de serviços e aplicativos, dentro e fora destas plataformas. Cruzando este processo, empresas e governos especializam-se em monitorar e coletar rastros, gerados pela navegação de usuários na Internet, construindo bancos de dados e técnicas de composição de perfis que orientam ações comerciais, políticas, securitárias, administrativas. (Bruno, 2013, p. 9)
Estamos, assim, hoje no contexto do big data3. Para Fernando Amaral (2016), a big data não é apenas um tipo de mecanismo que gera um volume gigantesco de dados, mas constitui uma mudança social e cultural, que configura uma nova etapa da revolução industrial. “O tamanho do impacto social, cultural e empresarial ainda é incerto, mas já podemos afirmar que vai mudar o mundo como conhecemos hoje” (Amaral, 2016, p. 9). Shoshana Zuboff (2018) acredita que o big data configura uma nova lógica de acumulação, que ela denomina de “capitalismo de vigilância” (p. 18). Este novo modelo do capitalismo de informação tem como principal característica prever e alterar o comportamento humano com o intuito de produzir receita e controlar o mercado. Lyon (2015), olhando para esse cenário, denomina o momento atual de “vigilância de big data” (p. 76).
E quais são os possíveis interesses de uma empresa de minerar dados de usuários em mais de 66 países, incluindo 900 cidades, como a Uber? Mahmoudi et al. (2016) criaram uma metáfora para explicar o contexto do big data, que nos ajuda a pensar como as empresas seguem a mesma lógica de colonizador e colônia, buscando adquirir recursos por meio de dados com o intuito de gerar valor econômico. Nesse cenário, o big data é mercadoria e há uma relação assimétrica de poder em que as pessoas são despojadas, diariamente, de todos os dados que produzem nas mais diversas plataformas. Os pesquisadores chamam de “colonialismo de dados” (Mahmoudi et al., 2016, p. 4) ao processo de acumulação capitalista por desapropriação e colonização, que transforma em bens a vida cotidiana de uma forma nunca vista antes.
Para Mahmoudi et al. (2016), esse novo modo de geração de dados tem caído na normalidade, em uma assimetria em que as grandes empresas de tecnologias colonizam a vida em troca de uma quantificação do cotidiano de seus usuários, proporcionando experiências agradáveis e tendo suas vidas ordenadas por algoritmos. Os autores citam como exemplo a oferta de restaurantes com base em geolocalização e parceiros sexuais em aplicativos de namoro. O big data assim funciona em uma lógica colonial que, ao invés de abrir mercados, torna-se sujeita a eles (Mahmoudi et al., 2016).
Retomando as revelações do Snowden ao jornal The Guardian, para além do analista mostrar ao mundo que estamos imersos em um cenário de vigilância global de massas, foi possível analisar como a vigilância afeta de forma determinante as minorias (Lyon, 2015). Um exemplo explorado por Lyon (2015), sociólogo canadense, é a história de Faisal Gill, um advogado americano, que serviu a marinha e fez parte do alto escalão do Departamento de Segurança Interna do governo de George W. Bush. A Agência de Segurança Americana monitorava seus emails secretamente dentro da segmentação de terrorista e espião estrangeiro. Por que um patriota americano, republicano, advogado, com filhos em escolas católicas, virou alvo de monitoramento do governo americano? Porque ele era muçulmano, explica Lyon. E essa se tornou a realidade de diversos americanos após os ataques de 11 de setembro, nos Estados Unidos, que perderam o direito à privacidade (Lyon, 2015, p. 91).
Partindo da observação de Lyon (2015) de que as minorias teriam sua vivência cerceada também no contexto da vigilância contemporânea, a pesquisa busca uma análise focada em estudos de relações raciais.
Uma Análise Racializada da Vigilância Contemporânea
As experiências desses grupos localizados socialmente de forma hierarquizada e não humanizada faz com que as produções intelectuais, saberes e vozes sejam tratadas de modo igualmente subalternizado, além das condições sociais os manterem num lugar silenciado estruturalmente. Isso, de forma alguma, significa que esses grupos não criam ferramentas para enfrentar esses silêncios institucionais, ao contrário, existem várias formas de organização políticas, culturais e intelectuais. A questão é que essas condições sociais dificultam a visibilidade e a legitimidade dessas produções. Uma simples pergunta que nos ajuda a refletir é: quantas autoras e autores negros o leitor e a leitora, que cursaram faculdade, leram ou tiveram acesso da graduação? Quantas professoras ou professores negros tiveram? Quantos jornalistas negros, de ambos os sexos, existem nas principais redações do país ou até mesmo nas mídias ditas alternativas? (Ribeiro, 2017, p. 65)
Entre os interagentes do questionário do presente estudo, 54,5% não perceberam influência da origem racial na experiência da Uber e consequentemente afirmam também não ter passado por alguma situação que consideram racista. Nas palavras da colaboradora 12, “você me deixou inculcada. Nunca tinha parado para pensar nessa questão. De algum motorista recusar corrida ou me avaliar em função da minha cor. No geral aparentemente não tive problemas dessa natureza”.
Porém, ao analisar a resposta de outros interagentes da pesquisa, fica claro que é urgente pensar o racismo como estrutura, considerando a normalização de episódios relatados. “Apesar de não ter sofrido com atos racistas, percebo que com negros os motoristas são menos cordiais, e, por isso, eu avalio com duas estrelas ou menos”, afirmou a colaboradora 13. A colaboradora 19 também afirmou nunca ter passado por alguma situação racista, porém, conta: “sempre me perguntam se o meu ponto de desembarque é na favela ou centro”.
Ser tratado com menos cordialidade e ligar as características de alguém a territórios específicos são experiências racistas. Fica clara a necessidade urgente de ampliar o arcabouço teórico para a investigação da experiência negra na Uber, pois enquanto não rompermos com o silenciamento negro as violências simbólicas não serão enfrentadas socialmente. A análise fundadora foucaultiana dos estudos de vigilância não explora a perspectiva racial e, como já foi destacado, ela não pode ser mais ignorada, pois não racializar qualquer experiência social é tornar invisível e/ou imperceptível atos racistas até mesmo para pessoas negras, permitindo a sua normalização.
A raça é uma das matérias-primas com as quais se fabrica a diferença e o excedente, isto é, uma espécie de vida que pode ser desperdiçada ou dispendida sem reservas. Pouco importa que ela não exista enquanto tal, e não só devido à extraordinária homogeneidade genética dos seres humanos. Ela continua a produzir efeitos de mutilação, porque originariamente é e será sempre aquilo em cujo nome se operam censuras no seio da sociedade, se estabelecem relações de tipo bélico, se regulam as relações coloniais, se distribuem e se aprisionam pessoas cuja vida e presença são consideradas sintomas de uma condição-limite e cujo pertencimento é contestado porque elas provêm, nas classificações vigentes, do excedente. (Mbembe, 2013/2018, p. 73)
Essa produção da diferença destacada por Mbembe (2013/2018), herança do período colonial, é a base para o racismo, que, para Kilomba (2008/2019), é a combinação de preconceito e poder. Ela classifica a prática de opressão em três formas de dinâmica: racismo estrutural, racismo institucional e racismo cotidiano. O primeiro é caracterizado pela exclusão de pessoas negras das estruturas sociais e políticas, ou seja, dominantes, privilegiando pessoas brancas. O racismo institucional opera no âmbito de agendas educativas, mercado de trabalho e justiça criminal, onde é claro o tratamento desigual e, por último, o racismo cotidiano, caracterizado com foco no vocabulário, discursos, imagens, gestos, ações e olhares.
O termo “cotidiano” refere-se ao fato de que essas experiências não são pontuais. O racismo cotidiano não é um “ataque único” ou um “evento discreto”, mas sim uma “constelação de experiências de vida”, uma “exposição constante ao perigo”, um “padrão contínuo de abuso” que se repete incessantemente ao longo da biografia de alguém - no ônibus, no supermercado, em uma festa, no jantar, na família. (Kilomba, 2008/2019, p. 80)
No contexto do presente objeto de estudo, é possível perceber a combinação de dinâmicas racistas, que começam em um nível estrutural, passam pela instituição e chegam na ponta da experiência do cotidiano. No site oficial da Uber, a empresa se apresenta na seção “Quem Somos” como “criamos oportunidades ao colocar o mundo em movimento. Quando as pessoas têm mobilidade, tudo é possível. As oportunidades surgem, as portas se abrem e os sonhos se tornam realidade” (Uber, s.d., secção “Criamos Oportunidades ao Colocar”). A colaboradora 19 relatou em questionário que graças ao serviço da empresa conseguiu desenvolver trabalhos de dança, que devido à falta de transporte noturno anteriormente, ela não conseguia fazer. Por sua vez, a colaboradora 7 também faz um balanço positivo do uso do aplicativo:
as minhas experiências foram em geral boas, pois o aplicativo oferece um preço mais barato, e normalmente o motorista é profissional. Enfim, vejo a Uber como uma alternativa de transporte eficiente, mais seguro e barato que um táxi, o que melhora a vida do trabalhador e estudante.
Considerado como inovador na área da mobilidade urbana, o serviço da Uber reduziu o custo do transporte privado, que tinham os táxis como protagonistas, e propõe-se ser mais democrático e plural. “Nosso objetivo é criar um local de trabalho inclusivo e que represente a diversidade das cidades que atendemos. Queremos que as pessoas sejam elas mesmas e que a autenticidade de cada uma seja motivo de orgulho”, segue em sua apresentação (Uber, s.d., secção “Compromisso com a Diversidade”).
Por meio de estudos que cruzam tecnologias e raça, as pesquisadoras Simone Browne (2015) e Ruha Benjamin (2019) ajudam a pensar como a política de diversidade de uma empresa de tecnologia precisa estar conectada com toda uma revisão estrutural da sociedade e da própria empresa e, nesse contexto, como é urgente entender as práticas de vigilância também com uma perspectiva racial.
Após o mapeamento de distintas análises, que consideram e desconsideram o modelo arquitetural clássico do pan-óptico dos estudos de vigilância, Browne (2015) apresenta as raízes do monitoramento e controle de corpos negros, em suas palavras, para demonstrar que vigilância não é algo novo para o grupo e que essa perspectiva foi negligenciada nas análises clássicas. O exemplo notório é o período colonial, em que ela aponta a arquitetura dos navios negreiros como um modelo estrutural de vigilância, em contraponto ao pan-óptico. Neles os corpos negros ficavam amontoados nos porões, com ausência de luz e higiene, sem movimentação, pois estavam presos a correntes. O controle afetava o corpo, ali circulavam doenças, a fome, a sede e a morte. A autora classifica os navios negreiros como antecedentes contemporâneos das tecnologias de vigilância, que têm como caraterística a violência para se regular os corpos negros.
A imagem do navio de tráfico britânico, que se tornou de conhecimento público apenas no século XVIII e que mostrou a desumanidade de como os escravizados eram transportados, é o modelo arquitetural de como a disciplina foi combinada à vigilância racial no sistema escravagista. Nele homens e mulheres eram categorizados e, como podemos perceber, o mecanismo de categorizar parece central na vigilância racial. Homens, mulheres e crianças eram transportados de forma segregada, a disposição do alojamento dos escravizados produzia subjetividades de gênero. Os homens eram presos pelos tornozelos, de dois em dois, com a perna direita de um presa na perna esquerda de outro, e também com as mãos presas da mesma forma. Por sua vez, as mulheres e crianças não eram presas, mas eram transportadas próximas às cabines dos capitães. A forma de transporte demonstrava que as únicas insurreições temidas eram as masculinas.
Ao considerar os dois modelos de vigilância, conseguimos estabelecer a grande diferença quando racializamos o debate a partir da reinterpretação de Browne (2015) sobre o modelo arquitetural da vigilância. Enquanto o pan-óptico foucaultiano analisa como os mecanismos de vigilância criam corpos dóceis através de uma estratégia de constante sensação de visibilidade, a pesquisadora canadense demonstra como os navios negreiros antecedentes às prisões são um símbolo exemplar da vigilância racial e criaram a subjetividade de corpos pretos desumanizados. Com Browne (2015) conseguimos perceber uma vigilância que já cria categorização, ao segregar o que eles consideravam corpos violentos, na figura dos homens negros presos por correntes, e das mulheres próximas aos homens brancos sem uma manutenção de violência física, mas simbólica.
Nesse sentido, a perspectiva dos motoristas interagentes do questionário é central para entender o porquê a experiência estudada se aproxima muito mais do modelo defendido por Browne (2015) do que do foucaultiano. Na experiência da Uber, os dois únicos colaboradores mostram como raça e gênero estão cruzados. O colaborador 33 afirma que muitos usuários escondiam bolsas quando entravam em seu carro e demonstravam preocupação com a chegada ao destino final. Vemos claramente o estereótipo do perigo, em que a cor da pele do motorista homem é criminalizada, a construção do homem negro violento é percebida simbolicamente desde as correntes nos navios negreiros. Assim como o motorista, a experiência também aparece para usuários. O colaborador 21 relatou: “já me senti constrangido algumas vezes quando tive de pegar um Uber a noite e o motorista [começava a] fazer comentários sobre roubos/assaltos assim que eu entrava”.
Por sua vez, a colaboradora 32 enxerga racismo na avaliação e na interação com os homens:
um homem branco achou que por eu ser mulher e negra, motorista...eu podia também fazer programa, e fez várias insinuações durante o trajeto, me constrangendo e me assediando. Não o deixei na estrada porque era uma corrida boa, e eu precisava da grana naquele dia, porque a pista estava muito ruim.
Enquanto o corpo masculino negro é criminalizado, o corpo feminino negro é objetificado. A colaboradora também conta que sua nota abaixa com corridas para pessoas brancas que fazem comentários sobre ela ser uma mulher dirigindo, em que é possível perceber o cruzamento entre machismo e racismo. A este propósito, Akotirene (2019) aponta Kimberlé Crenshaw como a fundadora do termo “interseccionalidade” para falar sobre as consequências da interação de três ou mais eixos de opressão e/ou subordinação, como por exemplo, racismo, patriarcalismo e opressões de classe.
Ruha Benjamin (2019) conta que a sensação de vigilância não é nova na sua vida e sua origem vem muito antes do cenário do big data. Ela relata que, como mulher negra, moradora do subúrbio de Los Angeles, a maioria das suas memórias de infância envolvem a polícia, seja quando voltava da escola e via os polícias a acompanhando e a seus amigos pelo retrovisor, vendo colegas de escola sendo revistados, e até o som dos helicópteros policiais que passavam tão próximos do teto de sua casa, que era impossível ignorar o barulho. Alguns territórios da cidade do Rio de Janeiro, assim como o bairro de Benjamin, estão simbolicamente excluídos para circulação de acordo com alguns relatos de colaboradores. O colaborador 17 da pesquisa compartilhou a experiência de punição máxima do aplicativo. Ele foi expulso do uso da plataforma ao solicitar uma corrida para o Morro do São Carlos, no Estácio. Ele, morador do bairro de Copacabana, conta que no Carnaval se deslocava com a namorada também negra para o destino, e após aproximadamente um minuto de corrida, assim que o motorista viu para onde eles iam, o mesmo o expulsou do carro e disse que a Uber notificaria o motivo daquela situação.
O motorista ao ver meu local de destino e dois pretos no carro parou e mandou a gente descer ali mesmo, sem falar o motivo. Disse que no dia seguinte a Uber iria me informar. Tinha nota 4,8 e fui banido da Uber nesse Carnaval, em uma corrida de 0,5km onde fiquei um minuto dentro do carro. Estava no Largo da Prainha indo para o Morro do São Carlos no Estácio, quando o Uber se atentou ao local de destino parou o carro e nos mandou descer alegando para Uber atividade de natureza sexual em um período de menos de um minuto dentro do carro. No dia seguinte, eu estava com a conta desativada para sempre do aplicativo. Segundo a Uber, teve ato de natureza sexual, isso em uma corrida de 0,5km e duração de um minuto! (Colaborador 17)
A Uber facilmente conseguiria analisar que em um percurso de 0,5 km um ato de natureza sexual seria possível de acontecer ou não. Porém, o colaborador sofreu a punição máxima do aplicativo baseado na análise preconceituosa do motorista da empresa, que aqui cruza território e etnia. O episódio ilustra o conceito de Benjamin (2019), que será essencial para a pesquisa: o new Jim code.
Eu cresci com uma forte sensação de ser vigiada. Família, amigos e vizinhos - todos nós apanhados em uma teia carcerária, na qual a segurança e a liberdade de outras pessoas são baseadas em nosso conteúdo. Agora, na era do Big Data, muitos de nós continuam sendo monitorados e medidos, mas sem o estrondo audível dos helicópteros para os quais podemos apontar. Isso não significa que não sentimos mais como é um problema. Nós sentimos. (Benjamin, 2019, prefácio)
Benjamin (2019) explora, no contexto de atividades cotidianas - por exemplo, procurar um trabalho, a própria origem do nome ou até fazer compras - como as tecnologias, vistas como objetivas e científicas, podem reforçar o racismo e criar outras formas de iniquidade. Por meio do conceito de new Jim code, ela aponta que, na era do big data, a discriminação pode além de tudo aparecer de forma oculta, pois essas tecnologias performam uma falsa neutralidade, o que também acelera e cria discriminações ainda mais profundas. “Eu chamo de new Jim code: o emprego de novas tecnologias que refletem e reproduzem as desigualdades existentes, mas que são promovidas e percebidas como mais objetivas ou progressivas do que o sistema discriminatório de uma era anterior” (Benjamin, 2019, p. 5).
A pesquisadora identifica que a codificação com base na origem racial nasceu como ferramenta de controle social. Ela relata que, em uma auditoria ao banco de dados de gangues da Califórnia, os negros e latinos são 87% dos listados, sendo alguns deles bebês de menos de 1 ano, descritos como alguém possível de compor um gangue. Como um banco de dados pode afirmar o potencial criminoso de um bebê? Benjamin (2019) responde que a preditividade dessas tecnologias está no cruzamento do território e da raça que codifica o nome de alguém que pode oferecer risco social. A autora denuncia que, uma vez o nome incluído em banco de dados similares, a pessoa está exposta a mais vigilância e ao risco de perder mais direitos.
E aqui, com o diálogo entre a reinterpretação de Browne sobre o pan-óptico foucaultiano e a análise de Benjamin, questiona-se novamente: qual a origem racial das pessoas que ocupam as prisões estudadas por Foucault em países como o Brasil e os Estados Unidos? Benjamin (2019) explica que foi inspirada na obra The New Jim Crow (O Novo Jim Crow) de Michele Alexander que ela desenhou o new Jim code. O livro mostra como o sistema carcerário estadunidense produz um sistema de castas, prendendo pessoas por meio de uma “ideologia daltônica”, rotulando grupos estigmatizados como criminosos de forma legalizada pelo estado. As leis Jim Crow, que foram vigentes em alguns estados americanos do sul, ficaram conhecidas por imporem a segregação racial entre o final do século XIX até meados do século XX, e mostram como nos Estados Unidos o racismo foi institucionalizado. Benjamin (2019) é enfática ao afirmar que hoje “criminoso” é o código para a negritude e também para pobres, imigrantes, descartáveis e indesejáveis (p. 9).
Considerações Finais
A partir dos relatos compartilhados pelos interagentes do questionário do presente estudo, é possível perceber que as tecnologias que estão presentes em nosso cotidiano possuem um conceito forjado de neutralidade e mediam ambientes e novos modos de opressão racial, como demonstra o conceito de Benjamin (2019), new Jim code. Deste modo, revisar como as práticas de vigilância emergem no contexto foucaultiano da modernidade, na lógica do pan-óptico, nos fez perceber brechas na perspectiva racial e, portanto, que é preciso ampliar o debate para uma visão social mais democrática.
Nesse sentido, Browne (2015) nos leva para o modelo arquitetural dos navios escravagistas e mostra como a vigilância afeta os corpos negros historicamente, bem como criou subjetividades específicas para os homens e mulheres que foram escravizados no período colonial, nos levando a entender que as opressões se sobrepõem e precisam ser olhadas de forma interseccional e nos levando a buscar contribuições teóricas de pensadores negros, como Djamila Ribeiro, Grada Kilomba, Silvio Almeida, Ruja Benjamin e Simone Browne.
Os resquícios do período colonial brasileiro aparecem até hoje na lógica do racismo cotidiano. Assim, é fundamental buscar construir um olhar crítico para uma experiência do dia a dia recortada pela racialidade no contexto da vigilância contemporânea. Nesse sentido, o estudo evidencia como a mediação social das novas tecnologias criam novos contornos para a experiência da vigilância e também do racismo e a Uber é exemplar para pensar esse cenário, pois ela usa o big data produzido pelos seus usuários e motoristas para criar uma experiência de consumo que hierarquiza, diferencia, segmenta e exclui.
Se as práticas de vigilância foram estruturadas socialmente com o objetivo central de disciplinar, é possível perceber como o capital se apropria da mesma com finalidades comerciais. E, no contexto do capital, as minorias raciais sofrem violências cotidianas e, como vimos, a partir de alguns relatos, elas muitas vezes não são percebidas pelos próprios oprimidos.
Assim, essa análise pretende avançar no sentido de mapear a experiência e levantar a questão: de que forma as empresas podem contribuir para uma experiência antirracista? A partir do caso da experiência da Uber com um recorte racial, é possível problematizar como as tecnologias de comunicação reforçam e criam novas experiências de racismo e assim é possível pensar em estratégias para promoção de vivências democráticas.