Introdução
Numa casa de dois andares, fachada branca, varanda e amplo terraço, cercada por um muro alto, no bairro de Miramar, uma localidade repleta de mansões e hotéis luxuosos em Havana (Cuba), o pesquisador1 e o informante chegam para consultar e solicitar arquivos digitais para assistir séries de grande sucesso como Game of Thrones (A Guerra dos Tronos) ou programas populares de televisão, como The Voice (A Voz). Estes atrativos não são exibidos nos canais da televisão estatal cubana2, mas acabam sendo amplamente assistidos de forma privada através de arquivos digitais (paquetes) baixados em oficinas digitales (o equivalente a lan houses) e comercializados em disquerías (lojas de discos e de DVDs) nas grandes cidades de Cuba (como Havana, Camanguey e Santiago de Cuba) ou através da venda direta por paqueteros que se encarregam de, através da venda porta-a-porta ou se posicionando em locais de grande circulação de pessoas e visibilidade em cidades menores, disponibilizar uma ampla oferta de arquivos digitais com conteúdo de entretenimento. O negócio do paquete digital ou paquete semanal chega a movimentar de 2.000.000$ a 4.000.000$ por ano, segundo relata reportagem da BBC Internacional (San Pedro, 2015), sendo uma das atividades econômicas privadas mais lucrativas desde que o governo cubano ampliou, em 2010, a economia para os negócios particulares - criando assim a figura do cuentapropista (empreendedor por conta própria) que começou abrindo restaurantes e pousadas em casas particulares e agora se estende para o mercado do entretenimento.
Em seu estudo no campo das interseções entre antropologia e economia, Roberto Armengol (2013) destaca que a atividade privada por conta própria sempre esteve presente em Cuba, desde a instauração do regime político e econômico socialista em 1959. Tendo sido regulamentado o cuentapropismo (com esta nomenclatura) a partir da década de 1990, aquando da queda da União Soviética e do bloco socialista, a ilha caribenha precisou de repensar sua vocação econômica centrada nas atividades estatais e passou a incluir atividades privadas particulares. Dados oficiais do Ministério do Trabalho de Cuba de 2016 registravam a existência de 579.415 trabalhadores autônomos em toda a ilha (Agência EFE, 2017), cuja atividade mais procurada, com 61.301 licenças outorgadas, era a categoria de “elaboração e venda de alimentos”, que incluem os chamados “paladares” - restaurantes feitos em casas particulares -, seguida pela categoria “transporte de carga e de passageiros” (57.911 licenças) e “aluguel e arrendamento de casas e espaços” (39.442 licenças). É na categoria “agentes de telecomunicações” (24.736 licenças expedidas) que se localizam os paqueteros digitales, uma vez que é concedido ao empreendedor o direito de vender em suas casas bônus de recargas para celulares, para conexão de internet e cobrar contas telefônicas. O contato direto com a Empresa de Telecomunicaciones de Cuba (Etecsa) permite aos empreendedores cubanos o entendimento dos funcionamentos das redes de telefonia do país e seus ditames legais.
Jared Genova (2012) atesta que entre os impactos sócio-econômicos das atividades privadas em Cuba está a formação de uma classe média com acesso a capital, bens duráveis e capacidade de consumo. Embora não reconheça mudanças profundas na economia de base socialista, o autor indica em seu estudo que o cuentapropismo resulta num processo de legalização das atividades econômicas “informais” na ilha com vista ao pagamento de taxas e impostos ao Estado. O mercado dos paquetes digitales traz com o adensamento deste debate o fato de, mesmo na legalização das atividades, emergirem outras práticas econômicas não-previstas e que demandam um olhar específico à sua regulamentação. Com a pesquisa de campo e os inúmeros questionamentos sobre a idoneidade e a lisura dos paqueteros, aparece também uma dimensão moral das atividades privadas em Cuba, na medida em que a figura do comerciante de paquetes digitales também está associada a privilégios e à formação de normas informais de controle e estratégias de mercado que funcionam à revelia do Estado.
Durante os 2 anos de vigência do projeto “Música pop em Cuba: Enfrentamentos políticos e midiáticos”, que debateu as dinâmicas de consumo de atrativos da cultura pop na ilha de Cuba, definiram-se diferentes estágios de compreensão das dinâmicas do fenômeno dos paquetes digitales, na medida em que todos os fenômenos pesquisados traziam à tona a dinâmica do consumo dos paquetes.
Na primeira investigação (Soares, 2016c), a partir da relação de uma drag queen cubana fã da cantora Lady Gaga com o contexto tanto da cena gay de Havana quanto com as dinâmicas de gênero presentes na política de gênero e sexualidade do Centro Nacional de Educación Sexual, os paquetes digitales apareceram como meio através do qual tanto a drag queen em questão, como os fãs de música pop anglófona em Cuba e também os DJs das boates e casas de espetáculo têm contato com músicas norte-americanas, latinas e o cancioneiro presente nas paradas de sucesso de todo o mundo. Álbuns, videoclipes e performances ao vivo não só de Lady Gaga, mas de outros artistas da música pop são ofertados e consultados através dos paquetes digitales.
Numa segunda investida (Soares & Lima, 2018), percebeu-se, em contrapartida, também a resistência que alguns fãs de música pop têm aos paquetes. Através de três entrevistas em profundidade com o principal fã da cantora estadunidense Madonna na ilha, responsável pela página no Facebook “Madonna Cuba”, debate-se que o aspecto geracional modula as relações de consumo dos paquetes. Se para os jovens fãs cubanos de Lady Gaga, com idade entre 15 e 22 anos, não havia menção ou crítica à qualidade do material disponibilizado, no caso dos fãs de Madonna (mais velhos, na faixa entre 30 e 40 anos), os paquetes eram rechaçados em função da baixa definição de alguns arquivos (sobretudo de vídeo) e pelo fato de não trazerem a ordem e as lógicas dos álbuns, mas sim, coletâneas de sucessos dos artistas, de forma “solta” e sem a coerência que o artista havia determinado. A qualidade dos paquetes é destacada como um elemento de distinção de paqueteros e do processo de fidelização a eles, conforme se constatou ao investigar o consumo de séries e filmes blockbusters no contexto cubano (Soares, 2016b) provocando redes de recomendação que geram diferenciações significativas tanto nos paqueteros quanto para aqueles que levam os paquetes porta-a-porta.
Não é somente ao consumo e circulação de produtos estadunidenses ou de amplo sucesso na cultura pop que os paquetes digitales atendem. O reguetón, gênero musical bastante controverso no contexto de Cuba em função de sua glorificação ao consumo, carros de luxo, mulheres e vida com valores capitalistas, também passa a ser central no sucesso dos paquetes. Um episódio envolvendo a censura a um videoclipe de reguetón pelo Instituto Cubano de Rádio y Televisión (ICRT) na televisão aberta em Cuba e a sua ampla circulação nos paquetes digitales (Pereira & Soares, 2017) evidencia que o cancioneiro cubano fora dos padrões consagrados pelo Estado também apresenta dificuldades de circulação nos sistemas midiáticos oficiais e ganha um importante lugar na disseminação pelos paquetes.
Até quando os artistas fazem shows em Cuba (no caso dos espetáculos que celebraram a retomada das relações entre Cuba e Estados Unidos e a visita do então Presidente Barack Obama à ilha socialista em 2016, como os shows do Major Lazer e dos Rolling Stones) é nos paquetes digitales que os produtores disponibilizam os álbuns e canções do artista com a finalidade de popularizar os artistas entre os mais jovens, conforme se destaca no artigo sobre a popularização do grupo Major Lazer na ocasião do show que eles realizaram em março de 2016 na Tribuna Antiimperialista, em Havana, diante da Embaixada dos Estados Unidos então recém-reaberta (Soares, 2016a).
Deste conjunto de postulações sobre as dinâmicas dos paquetes digitales, emerge a premissa de que diante de um sistema midiático amparado pelo Estado, cidadãos cubanos vivenciam restrições a produtos da cultura pop internacional desenvolvendo modos alternativos de consumo de mídia. Os paquetes, conjuntos de arquivos baixados da internet e vendidos através de oficinas digitales em Havana e distribuídos por toda a ilha, se configuram como o principal dispositivo de dois tipos de enfrentamentos midiáticos, entendendo estes “enfrentamentos” a partir da proposta de Braga (2006) que debate os usos, incorporações, atribuições e alternativas de atores sociais diante das ofertas de mídias em momentos sócio-históricos. Enfrentamentos midiáticos em contextos de assimetrias de poder e de desigualdades sociais seriam gestos que apontam para alternativas de consumo das mídias. É nesta direção que considera-se os paquetes como gambiarras midiáticas, uma vez que a gambiarra faz referência a construções improvisadas, desviantes, com fins inclusive ilícitos. O debate sobre as gambiarras de mídia incide sobre o reconhecimento da precariedade e do improviso como características desse enquadramento e “podem ser tomados como vetores conceituais capazes de potencializar a capacidade de entendimento dos fenômenos técnicos e suas repercussões políticas e estéticas” (Messias & Mussa, 2020, p. 174). A gambiarra teria portanto “o potencial de expressar as derivações e contingências tanto das tecnologias sofisticadas quanto das mais precárias; ou, mais precisamente, mostrar o quão precárias e contingenciais são as conexões ou vínculos (Sodré, 2014) que agregam essas tecnologias” (Messias & Mussa, 2020, p. 175).
Entendendo o paquete semanal como uma gambiarra midiática, aponta-se não somente seus usos no consumo interno da ilha de Cuba. A dinâmica de produção e circulação dos paquetes revela uma rede que passa pela relação entre migrantes cubanos em Miami (Estados Unidos da América) e residentes em Havana (Cuba), negócios particulares na ilha e modelos de negócio que evidenciam as formas transversais com que a publicidade se insere no contexto socialista de Cuba.
Paqueteros Entre o Fascínio e a Desconfiança
O debate sobre paquetes digitales em artigos acadêmicos dentro do projeto “Música pop em Cuba: Enfrentamentos políticos e midiáticos”, sempre se deu a partir de relatos de experiências de entrevistados ou de personagens se referindo ao modo como adquiriam seus produtos de cultura pop através da consulta a paqueteros. Na visita de campo a Havana, realizada em maio de 2017, o procedimento metodológico utilizado foi a observação participante do pesquisador na ida e consulta com a finalidade de adquirir um paquete e realizar uma entrevista com o proprietário da oficina digital. A observação participante se apresenta como método apropriado para a investigação sobre os paquetes na medida em que o tema não é abertamente narrado por sujeitos que praticam a atividade, incidindo também sobre aspectos ligados a clandestinidade e debates éticos dos sujeitos.
Num primeiro momento da investigação, especulou-se sobre a utilização de entrevistas em profundidade com paqueteros da cidade de Havana, no entanto, a entrevista daria conta de um conjunto de afirmações e práticas que poderiam ocultar a dimensão de clandestinidade existente nas atividades cotidianas. Portanto, adota-se um primeiro movimento que é o de formação de redes de informantes cubanos para chegar a um paquetero. Em todas as investigações realizadas ao longo de 2 anos de pesquisa, os informantes cubanos foram fundamentais para compor quadros complexos sobre relações de consumo de produtos culturais na ilha socialista.
Através da rede de informantes gerada na investigação anterior sobre consumo de música pop, em 2016, chega-se a D. P.3, frequentador de boates e casas noturnas, que foi adicionado como “amigo” na rede social Facebook. Entre as duas idas a Havana, passam-se cerca de 10 meses de interação de integrantes da pesquisa no Brasil e o informante - que era, na ocasião, estudante de jornalismo da Universidade de Habana. Foi por sua indicação que se chegou até uma das maiores e mais famosas oficinas digitales do bairro de Miramar e que atende também o bairro de Playa, em Havana: P. A. Trata-se de uma residência com dois andares, em que na sala de estar, o paquetero F., 23 anos, atende os clientes que chegam das redondezas ou se comunicam por celular ou telefone fixo. Através de uma janela gradeada em que se lê “por favor revisem o que foi copiado porque aqui não aceitamos nem devoluções nem cópias”, é feita a solicitação a F., que conta com o suporte de outro “funcionário”, seu irmão P., de 16 anos. Ambos trabalham numa mesa ao lado de uma janela gradeada, uma espécie de escritório improvisado na sala de estar de sua casa. Abaixo da janela, do lado esquerdo, está uma pequena mesa de apoio com quatro pastas dispostas. Nestas pastas, encontram-se todos os títulos separados por gêneros, disponíveis para serem adquiridos. O conteúdo dos paquetes é tão extenso e diverso que ele já foi chamado de “YouTube cubano”4.
Na experiência de adquirir o paquete, desenvolve-se um elo entre cliente e paquetero capaz de estabelecer as redes de recomendações. Este tipo de relação foi perceptível quando o paquetero F. ao ver D. o avisou que haviam chegado todos os episódios de La Voz Kids ou The Voice Kids - Brasil. F. estranhou a presença de um amigo de D., até então desconhecido, perguntou quem era e disse que, caso ele se tornasse cliente fiel, lhe iria dar gratuitamente episódios da série The Walking Dead. Percebeu-se então um sistema de recomendação boca-a-boca e fidelização de clientes de maneira informal, mas D. limitou-se a dizer que se tratava de pesquisadores brasileiros que estariam por Havana por apenas 1 mês, realizando pesquisas sobre justamente os paquetes.
A figura de D. foi fundamental na mediação das relações estabelecidas com o grupo de paqueteros. Era a partir da confiança do paquetero nele que se transferia acesso, dados e diálogos sobre as práticas. A presença do pesquisador no ambiente gerou tanto curiosidade quanto desconfiança. Não se detalhou sobre o que era a pesquisa. Apenas se limitou a dizer que a investigação queria assistir a produtos da cultura pop “como os cubanos assistem”. Esta fala tinha por princípio colocar o pesquisador fora do grupo investigado - ao mesmo tempo interessado nas dinâmicas de consumo encenadas.
F. interessou-se em saber o que iria se falar sobre os paquetes, já que o governo cubano, segundo ele, “criminaliza a atividade”. O paquetero disse que precisava receber dinheiro para aparecer na pesquisa, mas foi explicado que não se dispunha de verba para isso e também que não era o propósito da pesquisa. Detalhou-se a importância de se entender as formas como os cubanos se conectavam com produtos da cultura pop global, suas dinâmicas de consumo e implicações estéticas e políticas.
A escolha de P. A. como foco de pesquisa de campo sobre os paquetes em Havana se deu em função de sua centralidade numa área considerada de “pessoas ricas” na capital cubana. Ao contrário do imaginário senso comum e conforme já relatou Genova (2012), há classes sociais em Cuba, bairros formados por funcionários do governo, cuentapropistas (empreendedores locais), moradores da ilha que recebem divisas (dinheiro) de parentes residentes no exterior. Em conversas informais com vários entrevistados, F. sempre foi mencionado como um importante paquetero, pelo amplo catálogo de produtos e também por ser um paquete chique. Percebeu-se que o “chique” se referia à sua casa, de fato, uma residência bastante imponente para os padrões mesmo mais abastados de um bairro como Miramar. A aparência de F. também era destacada: tratava-se de um homem bonito, que se veste bem e muito educado. Ao mesmo tempo que gera elogios, F. também é alvo de desconfianças, sobretudo em função de como o seu negócio chegou ao amplo espectro de atuação.
Em 2017, F. atendia em média 30 encomendas de paquetes por dia, gerando uma renda de 150€ por dia e um total de aproximadamente 4.500€ por mês5. Trata-se de um volume de dinheiro alto para qualquer país europeu, ainda mais se tratando de Cuba, cujos serviços como educação e saúde são gratuitos e inclusivos e as atividades privadas precisam ser chanceladas pelo Estado. Deste valor, há pagamentos de comissões para paqueteros que fazem a atividade porta-a-porta e também de seguranças que precisam, segundo o informante, de “guardar o território” - ele se refere à prática de manter sua zona de atuação livre de outros concorrentes. Seguranças e “olheiros” denunciam atividades de outros paqueteros, abrindo precedentes para a formação de redes sócio-técnicas baseadas em quadros informais de controle, lealdade, fidelização, mercado, fazendo emergir micropolíticas que regulam ações pontuais de grupos detentores de capital na cidade de Havana.
É a atuação em rede e vigilante de paqueteros como F. em bairros de Havana que levantam hipóteses e desconfianças de moradores e de consumidores dos paquetes sobre os procedimentos e as origens dos materiais6. A materialidade das redes, e suas conexões, aciona fluxos comunicacionais que se desdobram em:
a forma como paqueteros têm acesso à internet em Cuba, um país que sofre com o duplo embargo (econômico e também com implicações digitais), a partir da lógica da pirataria das redes e da reconfiguração das materialidades de mídia gerando as “gambiarras midiáticas”, artefatos improvisados para consumo e circulação de mídia;
as redes online e offline estabelecidas entre paqueteros extremamente populares e reconhecidos de Havana com negócios midiáticos de migrantes em Miami, formando um sistema que reproduz a lógica de agenciamento dos Estados Unidos nas disposições midiáticas da América Latina e colocando em evidência a recorrência e até o incentivo de atividades midiáticas que ferem a soberania de Cuba.
As articulações entre paquetes, paqueteros e o consumo de produtos culturais contemporâneos por moradores de Cuba, a partir das relações com migrantes cubanos nos Estados Unidos, incide sobre as particularidades e acentos que a noção de transnacionalismo recebe no contexto da América Latina. Por transnacionalismo entende-se o envolvimento de migrantes, suas redes de relações sociais constituídas em território ou por entre fluxos comunicacionais na internet e as instituições locais e internacionais que suportem essas relações desenvolvidas para além das fronteiras de cidades ou estados (Portes et al., 1999; Schiller et al., 1992; Vertovec, 2009). O transnacionalismo compreende ações que vão desde remessas de dinheiro entre países, em que as trocas comunicacionais via tecnologias de informação e comunicação (TIC) dão suporte para o fluxo tanto de dinheiro quanto de informação, aos deslocamentos de bens e pessoas necessários para empreender essas trocas. O transnacionalismo compreende consequentemente o fluxo de bens culturais que inevitavelmente circulam por entre essas redes, cujo intuito é o de subverter as limitações impostas pelas precárias condições de vida e combinar estratégias que possibilitem o trânsito e o consumo cultural implicado.
Para Portes et al. (1999), o estudo da malha de transações empreendidas nos fluxos transnacionais deve começar pela apreensão das histórias e das atividades dos indivíduos, assim, da coleta de dados a entrevistas individuais. Essa ação torna possível delinear as redes que viabilizam a migração transnacional, assim como identificar os elementos que as constituem, como as formas elegidas de comunicação, se via internet ou telefone, as formas de trocas de bens ou de remessas, bem como os percursos e os deslocamentos envolvidos. Ressaltando-se que por percursos transnacionais entende-se uma constante troca de informações e experiências entre o país de origem e o novo lugar no qual o migrante passa a viver. Essa troca se dá por meio das TIC, que, por sua vez, possibilitam uma experiência duplamente local: do cotidiano daqueles que ficaram com a vivência daqueles que permanecem em trânsito (Zanforlin, 2015).
Se, para Castells (1996), as novas tecnologias são o epicentro das redes transnacionais contemporâneas, os paquetes podem ser observados como artefactos que realizam o desejo de pertencimento à lógica global capitalista, materializado pelo consumo de produtos culturais produzidos por uma indústria que tanto é barrada como também reforça a exclusão de Cuba dessa mesma lógica capitalista. Nesse sentido, Appadurai (1996/2004) entende que migrações e diásporas, somadas às tecnologias de comunicação, representam os diacríticos essenciais da contemporaneidade, sendo a experiência do consumo de cultura globalizada um sinalizador das mudanças que se situam no marco sobre identidade e espacialidade. Para o autor, a complexidade dos fluxos culturais globais pode ser melhor entendida se utilizarmos a noção pelo autor desenvolvida de scapes, ou de paisagens, das quais a de mediapaisagem é a que mais se aproxima da experiência dos paqueteros e paquetes em Cuba. Nesta perspectiva, as mediapaisagens configuram uma experiência de consumo cultural para além da localidade ou do Estado-Nação, confirmando, por sua vez, que a experiência de diáspora dos paqueteros pode ser percebida a partir do paradigma transnacional, que conflui informação, mobilidade humana e consumo cultural a partir dos fluxos culturais ampliados pela globalização.
Por outro lado, em uma tentativa de revisão crítica do conceito de transnacionalismo, Feldman-Bianco e Glick Schiller (2011) apontam a necessidade de estar atento à contínua reestruturação do capital e seu núcleo como matriz de relações sociais em curso e em disputa. Ou seja, faz-se necessário situar os estudos sobre transnacionalismo a partir do ponto de vista do mundo conectado por múltiplas redes de poder desigual, com enlaces institucionais estatais junto à superposição de interesses das elites nacionais, as instituições financeiras mundiais e as potências imperiais com atores das condições econômicas, políticas e sociais que perfilam a migração, sua radicalização e a conexão transnacional. No âmbito dos estudos sobre transnacionalismo, uma reaproximação entre a economia política e as relações sociais é urgente para marcar uma direção oposta aos estudos que celebram “viagens, turismo, consumo e movimentos de capitais, pessoas e signos em um mundo sem fronteiras” (Feldman-Bianco & Schiller, 2011, p. 36). As autoras apontam que os diferentes estudos de caso revelam que os campos sociais transnacionais dos migrantes tomam forma e fazem parte da reestruturação, da conexão e do reposicionamento mundial dos lugares particulares e de instituições entre eles, o que incluiria retomar o uso do termo “imperialismo”. Dito isso, apontamos a estruturação de fluxos de migrantes e bens culturais entre os Estados Unidos e Cuba como sinalizadora para perceber formas de uma presença difusa, mas potente, de afetos, modos de vida, de estilos de consumo, como articuladora da relação entre consumo cultural, migrações e enfrentamentos da soberania entre Estados nacionais. Logo, as autoras avaliam que a ideia de pensar os migrantes como desarraigados de seus estados de origem é equivocada, e que, na verdade, no contexto atual de reestruturação capitalista, através das conexões transnacionais os migrantes passam a ser agentes ativos das transformações contemporâneas em escala local, nacional e mundial.
A seguir, a proposta é desdobrar os fluxos comunicacionais (interno e externo) com o intuito de traçar apontamentos sobre disputas estéticas e políticas entre cubanos residentes e exilados na circulação de produtos midiáticos na ilha socialista.
Acesso à Internet e Pirateamento de Redes
Embora o foco de investigação do ponto de vista experiencial tenha sido o paquete F., em Miramar, nesta pesquisa foram visitados 16 ambientes de comercialização de paquetes digitales na cidade de Havana, sendo seis em Vedado, quatro em Havana Vieja; quatro em Miramar/Playa e dois em Centro Havana. Em todos eles, o pesquisador foi apresentado pelo mediador e fez perguntas aos proprietários ou a funcionários encarregados pelo funcionamento dos locais, principalmente tentando esclarecer o principal ponto de dúvida sobre os procedimentos para baixar os arquivos dos paquetes uma vez que a internet em toda a ilha de Cuba apresenta-se instável e cara, dificultando o download de arquivos digitais maiores. Ficou perceptível em todos os entrevistados um certo constrangimento em discorrer sobre este assunto. No entanto, dois paqueteros decidiram, mantendo o anonimato, revelar como conseguem internet em alta velocidade na cidade de Havana, burlando o sistema público de acesso à internet regulado pela Etecsa.
Segundo um deles, desde 2001, cubanos aficcionados por tecnologia montam redes offline que se estendem por toda Havana. Através da combinação de antenas Wi-Fi e cabos escondidos em cima de casas e prédios, conectam-se cerca de 9.000 computadores somente na capital de Cuba (Payão, 2015). O resultado dessas antenas e cabos são uma rede chamada “Snet” (“streetnet”). A principal motivação para a construção desta rede é a troca de informações, compartilhamento de arquivos (sobretudo aqueles existentes nos paquetes) e jogar online. Há regras de comportamento e etiqueta na Snet: pornografia é terminantemente proibida assim como a circulação de conteúdo político contra o governo.
Paralela à formação de redes offline, há desde 2015, a oferta de Wi-Fi pública em toda ilha de Cuba, que contava, em setembro de 2017, com 317 pontos de conexão nas principais cidades. A chegada da internet em cidades menores, como em Gaspar, com 7.500 habitantes, a leste do país, fez com que engenheiros e jovens criassem uma rede interna, como uma espécie de Facebook local chamado “Gaspar Social”, com fins inclusive educativos (Agência France Press, 2017). Desde 2015, com o aumento significativo do número de aparelhos celulares na ilha, outro sistema de redes móveis se tornou extremamente popular entre jovens cubanos no compartilhamento de conteúdos de entretenimento: o bluetooth (Marreiro, 2013). Com o alto custo para se conectar, é através de sistemas offline que cubanos compartilham seus principais conteúdos de entretenimento. É, portanto, a partir de redes offline como a Snet e também a conexão via bluetooth que circulam informações e conteúdos que formam os paquetes.
O serviço domiciliar (nas casas) de internet em Cuba é reservado a cientistas, militares, médicos e jornalistas, consideradas áreas estratégicas pelo governo cubano. Há pirateamento de redes nestes setores para uso privado principalmente para download de material dos principais paqueteros cubanos. Os dois paqueteros entrevistados e que concordaram em explicar o funcionamento de seus negócios possuíam conexões de alta velocidade oriundas do compartilhamento de internet vindas de sujeitos pertencentes aos grupos privilegiados de acesso à internet na ilha.
A coleção de vídeos, músicas, fotos e arquivos de texto é montada pelos paqueteros e circula pela ilha de pessoa para pessoa, percorrendo rapidamente de Havana até os lugares mais distantes em menos de uma semana, “constituindo o que seria conhecido na linguagem de tecnologia como um sneakernet: uma rede que transmite dados através de borracha de sapato, ônibus, cavalo ou qualquer outra forma de transporte de conteúdo” (Martínez, 2017, para. 14).
Há um amplo debate em Cuba sobre a “vista grossa” que setores do governo fazem no tocante a práticas digitais da juventude - com um duplo endereçamento. Por um lado, sustenta-se a tese de que o acesso à internet é limitado na ilha principalmente por causo do embargo econômico feito pelos Estados Unidos, cujas restrições tornam a compra de equipamentos eletrônicos extremamente cara. Dessa forma, jovens cubanos seguem “sentindo” o embargo nos seus prazeres culturais e de entretenimento quando não possuem acesso à internet. Por outro lado, permite-se que práticas juvenis digitais realizadas sem fins políticos acomodem o ímpeto de parte dos jovens cubanos que desejam sair da ilha. Permitir que estas práticas se realizem sem ferir normas mais amplas da regulação de mídia no país é uma maneira de criar um ambiente favorável a que parte da juventude cubana se identifique com o governo socialista. É preciso pontuar também que, de fato, a questão do acesso à internet em Cuba encontra dificuldades sobretudo políticas em sua ampliação. Como as principais empresas ligadas aos setores da cultura digital, como Facebook e Google, por exemplo, são norte-americanas, há entraves de ordem política nas formas de construir ambientes digitais na ilha.
Seja proveniente de um imprudente programa da agência americana de cooperação internacional, a USAid, que visava enfraquecer o regime de Fidel Castro por meio do serviço ZunZuneo - espécie de “Twitter cubano” que usava mensagens de texto contrarrevolucionárias -, seja por uma percepção mais abrangente de mídias sociais como uma ferramenta de dissidentes, as autoridades tradicionalmente têm sido cautelosas em relação à internet. (Grant, 2017, para. 30)
Em 2017, o Google chegou a um acordo com a Etecsa sobre o armazenamento de conteúdo online de sites como YouTube e Gmail em servidores dentro de Cuba para melhorar o acesso local. No entanto, ainda existe desconfiança das autoridades cubanas em relação ao acesso sem restrições à internet tanto por empresas dos Estados Unidos quanto por parte dos cidadãos cubanos.
Entre Miami e Havana
F. navega no paquete e vai salvando os arquivos indicados num disco rígido externo made in China. Trata-se do conteúdo do paquete digital daquela semana. Dentro de cada diretório de arquivos, há uma seleção de anúncios de imagem e vídeos ao lado do conteúdo real. Um usuário cubano pode abrir os anúncios acidentalmente enquanto navega. É com a publicidade que o paquete também se rentabiliza. Cada paquetero incorpora em seu conteúdo também anúncios publicitários, cobrando de acordo com o alcance de seu número de clientes. A incorporação de conteúdo publicitário nos paquetes é a conexão mais evidente entre os paqueteros de Havana, como F., e agências de conteúdos digitais localizadas em Miami (Estados Unidos), reduto da maior comunidade de cubanos fora da ilha socialista, grande parte deles com família e conexões com pessoas ainda vivendo em Cuba.
Os conteúdos são baixados através da internet pirateada na ilha e circulam através tanto dos paquetes quanto de redes offline. Segundo inúmeros paqueteros, há clientes interessados tanto nos atrativos do paquete (novelas, filmes, séries) quanto nos anúncios publicitários em formato de classificados (venda de carros, empregos, roupas, animais, eletrônicos), através da venda ou da troca de produtos - algo não publicado nas mídias tradicionais cubanas. Um dos conteúdos publicitários mais famosos nos paquetes é o Revolico (htps://www.revolico.com/), versão cubana do Craigslist7 (“O efeito da lista de Craig”, 2016), um site onde se podem publicar pequenos anúncios para vender ou trocar diferentes tipos de bens e serviços: carros, empregos, roupas, animais, eletrônicos, entre outros. O problema é que as pessoas precisam ter acesso à internet para navegar pelo Revolico, algo que é caro e dificultoso na ilha. Então, uma versão “baixada” do Revolico entrou no paquete como uma lista de anúncios que pode ser consultada offline.
A perspectiva de ter conteúdos gerados em Miami e também de ordens contrarrevolucionárias gerou ainda mais desconfianças sobre o paquete por parte do governo cubano. Além de estar “fora de controle” e promover a cultura americana, o nível artístico e intelectual do paquete é frequentemente atacado como “baixo” já que está repleto de blockbusters americanos e novelas mexicanas. Não existe consenso sobre a legalidade da venda de paquetes avulsos, mas casos de prisões de jovens que comercializam paquetes são constantemente relatados8. Autoridades cubanas tentaram criar um rival direto aos paquetes chamado “maletín” ou “mochila”. Ao invés de blockbusters, você podia encontrar filmes clássicos, música tradicional e materiais educativos. Apelidado de “anti-paquete” é consensual que tratou-se de um fracasso, já que este tipo de conteúdo já era amplamente distribuído na televisão cubana.
Considerações Finais
A partir das práticas de consumo cultural de produtos da cultura pop por sujeitos cubanos propomos reconhecer a existência de gambiarras midiáticas. Ou seja, o próprio ato de constituir uma solução improvisada de mídia que, a partir do aparato da cultura material, tem uma intervenção alternativa que também pode ser definida como uma “técnica” ou “reapropriação de material”, adaptando-se num contexto de restrição. As gambiarras midiáticas são sintomas de ajustes possíveis para acesso às mídias a partir de adequações propostas dentro de horizontes técnicos. Boufleur (2006) compreende tal atitude como um raciocínio projetivo imediato, determinado pela circunstância momentânea. Como processo, a gambiarra pode ser considerada uma forma alternativa de design e de relação política com os contextos restritivos.
Nesse caminho, o conceito de transnacionalismo realça que as práticas migrantes podem ser observadas tanto como potenciais de resistência como de reafirmação imperialista (Feldman-Bianco & Schiller, 2011), a partir da investigação das vinculações dos grupos com múltiplas conexões econômicas, culturais, políticas e familiares, e das disputas dos imaginários nacionais em curso. Em um contexto de disputa real e simbólica como no caso em tela, entre Cuba e Estados Unidos, as práticas transnacionais materializadas nos paquetes podem ser vistas como formas mais sutis de exercer influência a partir da mobilização de afetos e imaginários via consumo cultural de estilos de vida que celebram o consumo e o capitalismo. Os migrantes e os paquetes podem ser percebidos como intermediários já que, em uma relação de ambiguidade, de um lado, permitem que os cubanos possam compartilhar da experiência global de consumo de cultura pop, de outro, também confrontam a realidade do embargo e das limitações de circulação impostas por Cuba. Além de se identificar a prática transnacional de consumo cultural, invoca-se ideais do “everyday cosmopolitanism” ou “tactical cosmopolitanism” (Vertovec, 2009, p. 32), para pensar modos de atuação e de ser cosmopolita no contexto apresentado, isto é, a noção de competência cultural adquirida pelo migrante transnacional na maneira de burlar limitações e transitar por meio delas. A noção de competência cultural está ligada ao capital social que o migrante reforça a partir das redes de contatos reelaboradas na sua própria experiência migratória e das possibilidades que esta experiência re-significa na sua relação com a cultural local. Assim, F. representaria, portanto, o migrante retornado que a partir das relações construídas na sua experiência migratória em Miami, amplia a sua atuação no “mercado cultural” local cubano sustentadas por uma vivência transnacional. A associação com o conceito de cosmopolitismo surge então não a partir da sua definição clássica de “uma abertura para a diferença e alteridade” (Zanforlin, 2018, p. 34), mas como uma competência cultural adquirida, uma habilidade de manejar um sistema particular de significados com outro e habilitá-lo para o gerenciamento do consumo de bens culturais “importados”, no caso analisado.
Postula-se, dessa forma, que as gambiarras midiáticas possuem uma história no contexto cubano. Das antenas parabólicas dispostas em residências com a finalidade de captar sinais de rádio e TV oriundos da Flórida (Estados Unidos), passando pelo compartilhamento dos sinais de TV também captados pelas parabólicas, as formas alternativas de consumo de produtos da cultura pop em Cuba passam pela relação dos cidadãos e migrantes cubanos com as gambiarras midiáticas. Na era da cultura digital, novas gambiarras midiáticas são criadas: do pirateamento de redes digitais, passando pelo compartilhamento de sinais, entende-se que o paquete semanal é a forma mais consagrada de gambiarra midiática em Cuba, na medida em que enfrenta forte rechaço por parte do governo e de setores mais intelectualizados da sociedade cubana, no entanto, segue como principal forma de consumo e de entretenimento no País.