Introdução
A recolha de informação sobre as perceções dos jornalistas portugueses acerca dos média e da sua profissão constituía um dos objetivos do “Estudo Sobre os Efeitos do Estado de Emergência no Jornalismo no Contexto da Pandemia Covid-19”, realizado através de um inquérito a detentores de título profissional. Sabendo-se que a alteração de rotinas é suscetível de se repercutir no plano ético-deontológico, o inquérito não podia deixar de proceder à avaliação destes dois domínios. Por um lado, tratou-se de perceber se ocorreram mudanças nos hábitos e atitudes de trabalho dos jornalistas, induzidas pelo novo ambiente produtivo. Por outro, de recolher opiniões quanto aos seus efeitos no exercício profissional, especificamente na esfera da deontologia.
A secção do inquérito dedicada às rotinas profissionais reuniu questões destinadas a comparar o cenário antes e durante o período de confinamento, sobretudo em vertentes diretamente ligadas aos padrões habituais de funcionamento. Foi ainda incluída uma pergunta acerca do peso relativo das temáticas relacionadas com a covid-19 no conjunto de matérias desenvolvidas após a declaração do estado de emergência (DEE), a 19 de março de 2020.
No sentido de apurar se se confirmava a tendência para um aumento do recurso ao teletrabalho, patente noutras profissões, formularam-se questões relacionadas com o principal local de trabalho na atividade jornalística. Os inquiridos foram convidados a revelar com que frequência contactavam presencialmente com outros/as jornalistas do seu meio de comunicação, bem como a pronunciar-se acerca da eventual adoção, no período de estado de emergência, de novos recursos tecnológicos para a execução do seu trabalho. Em particular, foi solicitada a perceção sobre o impacto desse tipo de recursos, quer no futuro do jornalismo, quer nos valores ético-deontológicos da profissão.
O campo da deontologia incidiu em três vertentes. Além de uma pergunta de resposta simples sobre se o contexto resultante da DEE colocou questões deontológicas particulares no exercício do jornalismo, foi colocada outra, de resposta múltipla: que princípios, valores e procedimentos mais foram postos em causa na cobertura jornalística do estado de emergência? Os inquiridos podiam selecionar até cinco dimensões, de uma lista de 10: rigor; independência; fontes de informação; contacto com fontes ou testemunhas; retificação de informações; faltas profissionais; não discriminação; meios de recolha de informação; identificação de protagonistas de peças noticiosas; e privacidade. O inquérito contemplava mais duas perguntas neste âmbito, destinadas a saber se durante a DEE os editores ou diretores pediram aos respondentes trabalhos que podem configurar os chamados “conteúdos patrocinados” (pagos por entidades externas à empresa) e se esse tipo de pedidos constituiu uma novidade ou já acontecia antes.
O presente artigo apresenta um enquadramento teórico das problemáticas associadas às rotinas profissionais e à deontologia, concentrando-se, num segundo momento, nos resultados do inquérito, discutidos em ordem a fundamentar conclusões.
Sinais de Intensificação da Crise
O respeito por um conjunto de princípios e valores éticos, concretizados em normas deontológicas, foi desde sempre um alicerce essencial do jornalismo, razão primeira da sua legitimação enquanto atividade de interesse público, livre e responsável (Camponez, 2011; Fidalgo, 2009; McBride & Rosenstiel, 2014; Meyers, 2010; Plaisance, 2009; Ward, 2013; Wilkins & Christians, 2009). É à ética que se volta sempre que tudo parece mudar na paisagem mediática global e nas condições concretas de exercício do jornalismo: uma espécie de back to basics, recordando o que é marca diferenciadora face a outros domínios da comunicação no espaço público. E a sua importância cruza-se, de resto, com a própria afirmação identitária dos jornalistas, pois, como recorda Singer (2014), os princípios éticos “são usados não só para sugerir como é que os jornalistas devem comportar-se, mas também para definir o que é que eles são” (p. 49).
Embora os grandes princípios éticos que orientam o jornalismo sejam basicamente os mesmos desde sempre, isso não significa que eles não devam ser interpretados à luz das condições concretas, espacial e temporalmente circunscritas, em que se desenvolve a atividade. Ora, em décadas recentes, marcadas pelas grandes mudanças tecnológicas que abriram caminho à era digital, acelerou-se fortemente o debate sobre novos desafios éticos e deontológicos que se colocam aos jornalistas, com apelos crescentes à “necessidade de uma nova ética para um novo ecossistema mediático e de uma nova deontologia para um jornalismo que enfrenta novos desafios” (Camponez & Christofoletti, 2019, p. 5). Os contextos em que hoje se faz jornalismo e em que trabalham as empresas mediáticas não são meros acidentes de percurso; pelo contrário, eles introduziram modificações e modos de fazer que questionam alguns dos pressupostos com que nos habituáramos a encarar esta atividade, sendo certo que hoje já “é difícil imaginar um jornalismo exclusivamente offline” (Siapera & Veglis, 2012, p. 1).
Três grandes vertentes podem ser consideradas neste novo cenário, qualquer uma delas com implicações na reflexão ética sobre os princípios e as práticas do jornalismo: (a) a presença crescente das tecnologias digitais em todos os processos de pesquisa, elaboração, edição e difusão de informação pública sobre a atualidade, com a ubiquidade da internet e a instantaneidade dos fluxos noticiosos; (b) o fim do tendencial monopólio dos jornalistas no processo informativo (Fenton, 2010; Ryfe, 2019), com a entrada em cena (facilitada pela profusão de instrumentos de autoedição e de disseminação à escala universal) de novos atores e novas redes de comunicação - algo que, de resto, estimula uma cultura de participação que esbate fronteiras entre emissores e recetores, e entre profissionais e leigos (Carlson, 2016; Carlson & Lewis, 2015); e (c) uma severa crise económica que decorre do esgotamento do antigo modelo de negócio em que prosperaram os meios de comunicação de massas, com repercussões dramáticas na angariação de receitas por parte dos média e, consequentemente, nas possibilidades de exercício da atividade jornalística em condições de independência, autonomia e orientação pelo interesse público.
(a) Embora seja perigoso (e enganador) avaliar o jornalismo atual apenas através do conjunto de tecnologias digitais que o enformam (Zelizer, 2019), acreditando que elas podem, por si só, superar as crises e recuperar um tempo perdido (Lewis & Westlund, 2016), o certo é que o novo contexto digital acarreta novos desafios, tanto no plano das rotinas profissionais como no plano da ética (White, 2014). Diversos estudos têm sido feitos para identificar os problemas ou dilemas éticos que especificamente se colocam ao jornalismo online, num ambiente de convergência de meios, técnicas, suportes e formatos (Deuze, 2010), sendo certo que, nos dias que correm, todo o jornalismo se desenvolve num ambiente digital (Friend & Singer, 2007). Parece haver algum consenso sobre os problemas suscitados pelo novo contexto mediático (Riordan, 2014) e que nem sempre encontram resposta nos códigos de ética tradicionais: as pressões da velocidade a que corre a informação, com prejuízo para o rigor e a necessidade de verificação (Fenton, 2010; Martins, 2019); a prevalência do anonimato (ou a facilidade de criação de identidades falsas) a múltiplos níveis, afetando o princípio da transparência; o risco de desresponsabilização do jornalista no domínio do hipertexto, instrumento típico do universo digital; o esbatimento de fronteiras entre o que é público e o que é privado (com destaque para as redes sociais), abrindo campo a confusões e abusos; a crescente porosidade entre as áreas editorial e comercial, fazendo perigar a frágil credibilidade do jornalismo face aos ditames do mercado (Pickard, 2019); a presença constante das métricas e do feedback imediato dos públicos (likes, page-views, comentários, retweets…), condicionando crescentemente a autonomia de decisão editorial.
(b) Tudo isto ocorre, como se disse atrás, no campo da informação pública sobre a atualidade que não é já monopólio dos jornalistas. Também aqui, as inovações tecnológicas, temperadas por mudanças nos planos social, cultural e económico no sentido de uma maior participação dos públicos nos processos informativos, tornaram acessível a todos o que antes estava reservado só a alguns. A proliferação de instrumentos de autoedição baratos e tecnicamente acessíveis, somada à difusão explosiva da internet e do seu usufruto através de singelos smartphones (com o que tal significou em termos de omnipresença das redes sociais), alterou profundamente o contexto mediático das nossas sociedades, esbatendo-se também aqui as fronteiras entre profissionais e amadores, entre produtores e consumidores de notícias, entre informação certificada e sucedâneos da mais diversa ordem (Christofoletti, 2014). Esta mudança profunda, nem sempre bem digerida pelos profissionais (Singer, 2014), acarretou mesmo alguns desafios ao nível da identidade dos jornalistas (Donsbach, 2010). No seguimento, autores como Ward (2016, 2018) vêm sugerindo que a uma ética jornalística para profissionais, que ele considera pré-digital, deve seguir-se agora uma ética que se possa aplicar a toda a gente de algum modo implicada nos processos noticiosos. Outros autores, como Friend e Singer (2007), insistem em que continua a dever esperar-se dos jornalistas uma exigência ética específica que seria, afinal, a marca diferenciadora da sua produção profissional: a
distinção entre jornalismo e outras formas de publicação assenta primariamente na ética - tal como, em última instância, a própria sobrevivência profissional do jornalista. O modo como o(a) jornalista faz o seu trabalho será fundamental para perceber se esse trabalho continua a acrescentar algum valor, ou simplesmente a existir, num mundo em que qualquer pessoa pode ser um “publicador” - mas não necessariamente um jornalista. (p. 23)
(c) Como pano de fundo de toda esta agitação, temos uma envolvente económica e empresarial que não cessa de se agravar e que condiciona, em múltiplos planos, o exercício do jornalismo e o seu respeito pelas boas práticas profissionais e pelos princípios éticos. A proliferação dos conteúdos informativos gratuitos online, somada à entrada em cena das grandes empresas tecnológicas globais (Google, Facebook, YouTube) que absorvem o grosso da publicidade antes orientada para os média, agravou as hipóteses de rentabilização de grande parte das empresas jornalísticas. No seguimento, a diminuição severa de jornalistas nas redações, a concorrência fortíssima entre meios e a pressão económica para permitir uma maior flexibilidade na mistura entre escolhas editoriais e propostas comerciais - de que são exemplo os tão difundidos “conteúdos patrocinados” (Cardoso et al., 2020; Fidalgo, 2016; Ikonen et al., 2017) - acabaram por obrigar, em muitos casos, a baixar a exigência ética, com isso afetando também a qualidade e a credibilidade do jornalismo. De facto, o apego aos valores éticos e o respeito pelas normas deontológicas de uma profissão não são independentes das condições concretas, estruturais e conjunturais, em que se faz jornalismo (Mathisen, 2019).
É neste cenário que se deve inscrever o que sucedeu aos média e ao jornalismo no contexto da luta contra a pandemia do novo coronavírus, seja no que toca às novas rotinas de trabalho, seja no que respeita aos desafios éticos com que se confrontou.
Ambiente Profissional em Transformação
Os estudos sobre jornalismo vêm enfatizando o impacto do surgimento de novos recursos digitais e comunicacionais na reformatação dos modos de trabalho dos profissionais da informação (Tong, 2017). Um dos exemplos mais patentes desta transformação das rotinas laborais ocorre ao nível do relacionamento com as fontes e com os eventos das notícias, onde a emergência de novas possibilidades comunicativas viabilizou o emprego de fórmulas remotas e mais despersonalizadas de contacto (Berkowitz, 2019). No entanto, o progresso tecnológico que marcou a realidade mais recente das redações portuguesas não se converteu necessariamente numa agilização ou benefício do trabalho dos jornalistas - não sendo, por exemplo, evidentes sinais de deslocalização dos espaços de produção ou de diminuição do seu nível de trabalho (Pacheco & Freitas, 2014). Pelo contrário, poder-se-á argumentar que estas novas formas de produção, alimentadas em grande medida pelas transformações operadas na indústria dos média, contribuíram para linhas de sobre-exploração ou burocratização do trabalho jornalístico (Cohen, 2019; Miranda, 2019).
Em diferentes pontos do globo, o contexto introduzido pela pandemia e, em particular, pelos diferentes processos de confinamento conduziu a uma disrupção do quotidiano dos jornalistas, pautada, desde logo, pela domiciliação dos ambientes tradicionais de trabalho (Bernadas & Ilagan, 2020; Le Cam et al., 2020; Stănescu, 2020). Neste âmbito, a generalização forçada do teletrabalho entre os jornalistas terá acentuado a dependência de instrumentos de comunicação à distância, contribuindo para a despersonalização dos contactos com fontes, para um maior recurso à informação que circula na internet (seja em websites, seja nas redes sociais) e para a ausência física dos cenários onde ocorrem os eventos reais, obrigando a cada vez mais trabalho jornalístico “sentado” e “em segunda mão” (Mateus, 2019).
Outro efeito manifesto do isolamento diz respeito à diminuição das possibilidades de participação coletiva e de interação no espaço de debate que é uma redação. Considerando o papel que a confraternização profissional assume na socialização de normas e preocupações comuns (Cotter, 2010), esta é uma consequência significativa no trabalho dos jornalistas, porquanto pressupõe menores oportunidades de confronto de opiniões e prestação de contas entre pares.
Uma terceira repercussão do trabalho remoto e da flexibilidade das novas soluções laborais concerne ao possível conflito entre as responsabilidades profissionais e as responsabilidades familiares dos jornalistas, o qual se poderá repercutir num aumento da carga do trabalho reprodutivo (Power, 2020) e num reforço das assimetrias e das representações tradicionais de género (Arntz et al., 2020). Neste sentido, assume-se que este fenómeno manifestará particular incidência entre as mulheres e os profissionais com filhos ou outros dependentes (Ibarra et al., 2020; International Federation of Journalists, 2020).
Por seu lado, o fortíssimo impacto da pandemia nas vidas quotidianas predispôs as audiências a absorverem tudo o que de mais impactante dizia respeito ao tema. Como neste tempo também se tornou mais difícil manter as rotinas de verificação de informação entre os jornalistas (por força das novas condições de trabalho), os exemplos de desinformação e manipulação proliferaram no espaço público - seja através das redes sociais e de “produtores de conteúdos” que nada têm a ver com jornalismo, seja através dos média tradicionais, mais pressionados pela rapidez, pela concorrência e pela vontade de ganhar visibilidade. E os danos na essencial relação de confiança dos cidadãos com a informação que circula no espaço público, já a passar por tempos difíceis (Fenton, 2019; Fink, 2019; Hanitzsch et al., 2017; Usher, 2018), acabaram por se agravar. Além de se combater a pandemia, tornou-se necessário combater uma “infodemia”1, como diz a Organização Mundial de Saúde (World Health Organisation, 2020) ou “desinfodemia”, como prefere a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco, 2020), explicando: “os impactos da desinformação relacionada à covid-19 são mais mortais do que a desinformação sobre outros assuntos, como política e democracia” (para. 3).
Tudo isto se desenvolve num cenário de maior fragilização dos jornalistas, muitos deles com trabalho e salário diminuídos (por via do lay-off), muitos outros despedidos e todos em alguma medida receosos sobre o seu próximo futuro (Camponez & Oliveira, 2021; Garcia et al., 2021). A precarização das condições laborais é, consabidamente, um fator muito sensível para o desenvolvimento da atividade jornalística respeitadora dos mais elevados padrões profissionais e princípios éticos, num pressuposto de independência e autonomia (Waisbord, 2019), pelo que este tempo trouxe acrescidas dificuldades a um domínio já enfraquecido e marcado por sentimentos de crescente desilusão profissional (Nölleke et al., 2020). Este elemento é tão mais relevante quando se sugere serem particularmente as franjas mais precárias e mais jovens da profissão as mais expostas a situações de burnout e de sobretrabalho, acentuando sentimentos de insatisfação, desilusão ou cinismo relativamente à atividade (Christians et al., 2020; Reinardy, 2011).
Os problemas, dúvidas e desafios com que os jornalistas se confrontaram no contexto da pandemia levaram, um pouco por todo o mundo, à rápida elaboração de documentos orientadores e guias de conduta para o seu trabalho, da responsabilidade de associações profissionais e sindicais, de observatórios, de entidades ligadas ao ensino e à investigação e dos próprios média2. Também na cobertura informativa da pandemia se criou uma espécie de “estado de emergência”, pela compreensão de como eram melindrosos muitos destes temas, de como os rumores e as mentiras se misturavam com as notícias e de como, portanto, a falta de uma adequada disciplina de verificação (Kovach & Rosenstiel, 2014) fazia perigar o próprio sentido de responsabilidade dos média. E as expectativas de que, neste contexto particular, os jornalistas mostrassem “maior cuidado, maior sensibilidade e maior apego aos valores éticos fundamentais”, como referido por Aidan White (Abidi, 2020, para. 5), foi certamente elevada. O empenho de muitos profissionais em fazer face a estes desafios permite, entretanto, acalentar esperanças sobre a recuperação da confiança das pessoas na genuína informação jornalística (Coddington & Lewis, 2020), embora seja claro que muito do que aqui está em causa não depende só dos jornalistas e até há quem entenda, como Örnebring (2019), que o essencial das mudanças desejadas terá de vir de fora do jornalismo - da escola, por exemplo.
O certo é que, como diz o fundador da Ethical Journalism Network, Aidan White, o coronavírus foi também um tema que “trouxe as pessoas de volta ao jornalismo”, levando-as a perceber “em que medida a informação fiável e rigorosa é uma parte essencial da sua existência” (Abidi, 2020, para. 3). E todos os indicadores mostram como, nestes meses, a procura de informação certificada (sobretudo nas televisões e nos suportes online dos meios tradicionais) subiu a níveis que já pareciam esquecidos. O que significa que parece haver aqui também alguma oportunidade para tentar melhorar tanto a situação dos média como a sua relação com os públicos (Parks, 2019). E conhecer o que pensaram e viveram os jornalistas portugueses neste tempo difícil, como a seguir mostramos, ajuda certamente a este esforço comum.
Jornalistas Mais Longe das Redações
A pandemia e o confinamento repercutiram-se nas diferentes dimensões da organização social. Neste contexto, parece evidente que também a atividade dos jornalistas portugueses foi objeto de transformações, não apenas no âmbito das rotinas como ao nível do seu quotidiano temático. Com efeito, as respostas ao inquérito realizado no âmbito do “Estudo Sobre os Efeitos do Estado de Emergência no Jornalismo no Contexto da Pandemia Covid-19” indiciam uma forte presença da problemática da pandemia na agenda mediática. Do total de inquiridos que desempenhavam atividade jornalística no momento da DEE (799), 39,3% referiram que os temas relacionados com a covid-19 ocuparam cerca de três quartos do trabalho que produziram após a DEE e 29% admitiram que as questões relacionadas com a pandemia dominaram o total das matérias desenvolvidas. Esta perceção é mais patente entre os respondentes que habitualmente trabalham assuntos internacionais ou toda a atualidade: respetivamente 90% e 75% destes conjuntos mencionaram que os conteúdos concernentes ao novo coronavírus ocuparam mais de três quartos da sua produção após a DEE. Por seu lado, nos grupos de jornalistas de desporto e de cultura, apenas 48,5% e 50,9% mencionaram ter dedicado tanto espaço às temáticas subjacentes à covid-19. Já entre os 21 inquiridos que por norma lidam com as questões da saúde, 15 referiram que os temas relacionados com a pandemia assumiram um peso de 75%, ou mais, do total dos conteúdos produzidos após a DEE.
Embora, em condições habituais, a redação seja o ambiente de trabalho regular da maioria dos inquiridos, este paradigma está longe de constituir um padrão (Tabela 1). Com efeito, do total de respondentes que desenvolviam atividade jornalística em março de 2020, 65,5% apontaram a redação como principal local de trabalho antes da DEE, enquanto 19,9% referiram que desenvolviam a sua atividade sobretudo a partir de casa. Ao contrário do que sucede com as restantes relações de trabalho, a maioria dos inquiridos que prestava serviço (por avença ou com recibo verde) aquando da DEE (64,1% destes) mencionou que desenvolvia a sua atividade a partir de casa, escritórios ou espaços de co-working. No entanto, 23,4% destes trabalhavam a partir da redação. A hipótese de condições atípicas de inserção das franjas mais precárias na atividade poderá ser consubstanciada numa maior percentagem relativa dos que assumem ser freelancers em termos formais, mas com condições típicas de trabalhador por conta de outrem, que produziam a partir da redação: 47,5%.
Com o início da situação de confinamento, verifica-se uma reconfiguração do contexto laboral do jornalismo português, pautada pela migração dos diferentes espaços de trabalho para a habitação pessoal dos jornalistas. Se, por um lado, se verifica uma diminuição do número de profissionais que indicaram as redações, escritórios pessoais, espaços de co-working ou outros locais como principal local de trabalho após a DEE, por outro lado, aumenta substancialmente a margem de inquiridos que nesta fase trabalhou a partir de casa (533). O cruzamento entre o novo espaço de trabalho e os tipos de relação laboral detidos pelos inquiridos no momento da DEE permite constatar que foi sobretudo entre os contratados a termo incerto (86%) e os contratados no âmbito de estágios (80%) que mais se verificou o recurso à habitação pessoal como espaço de produção após a DEE. Por seu lado, é entre os respondentes com contrato sem termo (25,4%) ou com contrato a termo certo (21,4%) que mais se identificam situações de trabalho a partir da redação. No quadro da categoria profissional, a grande maioria dos inquiridos que, no momento da DEE, assumia a condição de estagiário (82,4%) fez da sua casa a zona de trabalho, e 24,8% dos editores/coordenadores de secção e 32,6% dos chefes/subchefes de redação desenvolveram atividade a partir das estruturas dos meios de comunicação. No que concerne à relação entre os diferentes tipos de média e o local de produção jornalística após a DEE, o trabalho a partir de casa foi mais generalizado entre os inquiridos ligados predominantemente a agências noticiosas (88%), meios exclusivamente online (85,7%) e imprensa (77,6%), e menos preponderante entre os respondentes da rádio (48%) e da televisão (27,5%).
Esta reconfiguração do contexto laboral, subjacente aos processos de confinamento, poderá participar numa outra mudança significativa do quadro das rotinas profissionais dos inquiridos, que se refere às saídas em reportagem. Ainda que o indicador mais expressivo diga respeito à variação percentual entre o número de respondentes que admitiu que não saía em reportagem antes da DEE e o número de inquiridos que referiu não o fazer no período após a DEE (11,5% versus 33,5%), esta alteração está também refletida numa diminuição, em toda a linha, do recurso a diferentes meios de transporte, públicos ou privados (de 83,9% para 44%).
A mudança do ambiente de trabalho não poderá também ser desligada da oscilação entre a quantidade de inquiridos que admitiu que, antes da DEE, contactava todos os dias ou quase todos os dias com outros jornalistas do seu meio de comunicação (590; 66,3% da amostra total) e o número de respondentes que admitiu fazê-lo depois da DEE (219; 24,6% da amostra total).
Próximo das tendências identificadas em estudos precedentes, a mediana das horas de trabalho, antes da DEE, indicadas pelos inquiridos (771) situa-se nas 40 horas semanais (IIQ = 45-30). Já a mediana do número de conteúdos produzidos semanalmente, antes da DEE, apontado pelos respondentes (697) é de 10 conteúdos (IIQ = 20-5). O paradigma introduzido pela pandemia não alterou substancialmente esta situação, mantendo-se a mediana do tempo despendido em trabalho indicado pelos inquiridos (769) nas 40 horas semanais (IIQ = 45-15) e a mediana do resultado do seu trabalho (703) nos 10 conteúdos por semana (IIQ = 25-4).
Cerca de um terço da amostra (273) admitiu que, durante a DEE, as responsabilidades domésticas prejudicaram o normal exercício da profissão. Esta perceção é mais clara entre as respondentes do sexo feminino (34,4% das mulheres inquiridas concordaram com esta ideia) do que entre os jornalistas do sexo masculino (28,6%). Do mesmo modo, a noção de conflito entre os encargos domésticos e a atividade profissional é mais evidente entre os inquiridos que referiram possuir um ou mais dependentes a seu cargo (42,8%) do que entre os respondentes sem dependentes (18,2%).
Um outro efeito manifesto do confinamento resulta numa alteração das práticas e formas de contacto com as fontes e os locais dos eventos (Tabela 2). Quando solicitado aos inquiridos que hierarquizassem métodos de contacto com as fontes, antes e depois da DEE, observa-se uma substituição de fórmulas mais diretas e presenciais por modelos de contacto à distância, síncronos ou assíncronos. Contudo, foi minoritário o número de respondentes (274; 34,3% dos que desenvolviam atividade no momento da DEE) que admitiram ter, durante o período de confinamento, adotado novos recursos tecnológicos para o desenvolvimento do seu trabalho. O otimismo deste grupo de jornalistas sobre os potenciais efeitos dessas novas ferramentas no futuro do jornalismo contrasta com a sua opinião relativamente às possíveis consequências para a dimensão ético-profissional da atividade. Enquanto 67,1% destes inquiridos admitiram um impacto benéfico ou muito benéfico desses recursos no futuro do jornalismo, apenas 26,2% consentiram um impacto semelhante nos valores deontológicos do jornalismo. A sua opinião manifesta sobretudo alguma indefinição relativamente aos potenciais efeitos dessas soluções nos princípios, apontando 54% destes inquiridos um impacto nem benéfico nem prejudicial.
Estas diferentes linhas de descontinuação e de alteração das práticas e modos de produção não podem, evidentemente, ser desligadas do seu impacto na capacidade de os jornalistas responderem às exigências ético-profissionais da atividade. Neste campo, observa-se que a maioria dos inquiridos revelou uma opinião crítica sobre as implicações deontológicas do trabalho realizado durante a DEE. Com efeito, questionados sobre se o contexto resultante do estado de emergência colocou questões deontológicas particulares no exercício do jornalismo, 56,7% dos respondentes afirmaram que “sim” (505). Os “não” representaram 40,7% (362).
Em todas as faixas etárias, a percentagem de respostas positivas ultrapassou os 50%. Todavia, a perceção do fenómeno atinge valores particularmente elevados no grupo dos mais jovens, correspondendo a cerca de dois terços: 65,9% dos que ainda não chegaram aos 30 anos; 65,2% dos estagiários e 65% dos que exercem a profissão há menos tempo - até 2 anos. Também se afastam da média os inquiridos que auferem vencimentos mais elevados: 63,9% dos jornalistas cujo salário é superior a 2.500€ mensais, evidentemente minoritários no universo analisado, responderam “sim” a esta questão, o mesmo tendo feito 61,6% dos que ganham entre 2.001€ e 2.500€, assim como 65,1% dos que ganham entre 1.000€ e 1.500€.
Cruzando as respostas a esta pergunta com os diferentes tipos de relação laboral dos inquiridos, conclui-se que os detentores de “contrato sem termo” revelam maior sensibilidade à emergência de questões deontológicas particulares no contexto da pandemia: 59,5% optaram pelo “sim”. Curiosamente, também a maioria (58,7%) dos que trabalham a recibo verde - típica situação de precariedade - deram a mesma resposta.
As preocupações com esta problemática são igualmente detetáveis entre os inquiridos com formação escolar mais elevada: o “sim” é comum a 65,9% dos que se situam na faixa com ensino superior incompleto e a 65,3% dos que concluíram mestrados ou doutoramentos. Em sentido contrário, quase metade (49,4%) dos pertencentes ao grupo de jornalistas que apenas atingiu o ensino básico, profissional ou secundário não vislumbra quaisquer efeitos da DEE a nível profissional, em termos ético-deontológicos - é, aliás, menor (47,5%) a percentagem dos que admitiram terem sido suscitadas questões nessa esfera. Na mesma linha se manifestaram apenas quatro em cada 10 detentores de cartão de equiparado a jornalista e 36% dos portadores de cartão de colaborador.
Rigor no Topo das Preocupações Éticas
Entre os princípios, valores e procedimentos que mais foram postos em causa na cobertura jornalística do estado de emergência (Tabela 3 3), o “rigor” emergiu claramente como o mais indicado, reunindo 80% dos inquiridos que consideraram que a DEE colocou questões deontológicas ao exercício do jornalismo. A referência ao “rigor” cobria um conjunto de vertentes, enunciadas no inquérito. A saber: rejeição do sensacionalismo; distinção entre factos e opinião; repúdio da censura; denúncia de condutas que atentem contra a liberdade de expressão e o direito de informar. Daí o particular significado de uma leitura mais fina dos resultados: mencionaram o “rigor” 94,7% dos inquiridos com mais de 70 anos; 86,2% dos que têm até 30 anos; 89,1% dos jornalistas de rádio e 88,1% dos que auferem até 634€.
Com uma percentagem global bem menos expressiva (46,7%), segue-se o tema “fontes de informação”, que assumiu um lugar de destaque entre os inquiridos que fazem do jornalismo a sua principal atividade (47,2%). Esta vertente remetia para questões como a luta contra restrições ao acesso à informação; a audição de partes com interesses atendíveis; a identificação como regra; a atribuição de opiniões e o respeito pelo sigilo profissional. Neste núcleo de profissionais, menos de um em cada 10 (9,8%) indicou “meios de recolha de informação”. Esta dimensão, globalmente a menos assinalada (por apenas 12,1%), englobava a inibição de uso de meios ilegais ou não autorizados, salvo nos casos atendíveis; a não dissimulação da condição profissional ou a encenação de situações para abusar da boa-fé das pessoas.
A partir das respostas obtidas neste domínio, é detetável uma particularidade, respeitante aos jornalistas de agências noticiosas. No inquérito, são os únicos em que o “rigor” não surge destacado em relação a outros valores deontológicos. Nesta categoria, foram identificadas em percentagens iguais (70,4%) o “rigor” e as “fontes de informação” como matérias sensíveis da cobertura jornalística durante a DEE.
De destacar, também, o facto de metade dos jornalistas cuja atividade se desenvolve exclusivamente em plataformas online ter indicado o “contacto com fontes e testemunhas” como a segunda dimensão ético-deontológica que mais terá sido posta em causa na cobertura dos acontecimentos. Esta componente, referida por 43% dos respondentes, remetia para os problemas suscitados pela abordagem de cidadãos: evitar causar humilhação, perturbação da dor ou exploração da vulnerabilidade psicológica, emocional ou física e garantir condições de serenidade, liberdade e responsabilidade das pessoas tomadas como fontes ou testemunhas.
A questão da “privacidade” - associada ao respeito por esse direito, salvo em caso de contradição entre a conduta do indivíduo e os valores e princípios que publicamente defende; à avaliação da natureza do caso e da condição da pessoa; à preservação da reserva da intimidade e à fundamentação de exceções em interesse público - foi referida por pouco mais de um quarto dos respondentes (27,5%). Resulta evidente que a uma formação mais avançada corresponde maior atenção à problemática da privacidade na atividade jornalística, uma vez que no grupo daqueles cujo percurso escolar chegou, no máximo, ao ensino secundário só 21,3% a apontaram como um dos valores mais postos em causa na cobertura do estado de emergência, enquanto entre os detentores de mestrado ou doutoramento e de pós-graduações as percentagens sobem para 29,8% e 32,8%, respetivamente.
O eventual aumento de produção, por parte dos jornalistas, dos chamados “conteúdos patrocinados” foi objeto de uma pergunta no inquérito, especificando que incidia nos que são pagos por entidades externas à empresa à qual o profissional está ligado. A esmagadora maioria (90,4%) dos respondentes que desenvolviam atividade no momento da DEE negou que os seus editores ou diretores lhes tenham solicitado, na fase de estado de emergência, a execução de trabalhos dessa natureza, produtos híbridos que têm sido desenvolvidos pelos meios de comunicação, como forma de contrabalançarem a diminuição de receitas provenientes de publicidade tradicional.
Em contrapartida, 5,3% admitiram que tais pedidos lhes foram feitos por superiores hierárquicos e apenas 2,4% reconheceram que tal aconteceu sem prévia informação acerca do que se tratava. Somando as duas parcelas, constata-se que 7,7% dos inquiridos (61) confirmaram ter sido instados a produzir “conteúdos patrocinados”. Os jovens apresentaram-se como especialmente afetados. De facto, mais de um terço (exatamente 35,5%) dos que exercem a profissão há menos de 5 anos, cerca de um quinto (20,5%) dos que se encontravam em período de estágio e 17,2% dos que têm até 30 anos optaram por uma destas respostas - em qualquer dos casos, muito acima da média.
A leitura das respostas em função dos escalões de remuneração mensal conduz a conclusões do mesmo teor: quem mais afirmou ter recebido pedidos de elaboração de “conteúdos patrocinados” foram os jornalistas que ganham entre 635€ e 900€ mensais (10,9%, a que podemos somar os 3% que receberam pedidos sem prévia informação). Pelo contrário, entre todos os jornalistas com vencimentos mensais acima dos 1.500€, este tipo de solicitações ocorreu em muito menor percentagem - de 1,1% a 2,8%.
Uma última questão visava apurar se este tipo de pedidos, para produção de “conteúdos patrocinados”, constituiu uma novidade ou já acontecia antes da DEE. Dos 42 respondentes que referiram tê-los recebido, 37 (88,1% do total) revelaram que tal prática era anterior. De onde se depreende que a iniciativa não seria uma consequência direta da situação de emergência declarada no país.
Conclusão
Os resultados do inquérito aos jornalistas portugueses, mais do que revelarem novos problemas, indiciam que as questões decorrentes da pandemia e do confinamento tenderam a acentuar desafios e dilemas que vêm de trás.
No que respeita às rotinas profissionais, os dados recolhidos sugerem que, não obstante a inovação tecnológica e a emergência de novas dinâmicas de produção informativa (Deuze & Witschge, 2020), a redação continua a ser o ambiente de trabalho regular dos jornalistas. Se o conjunto de respondentes que trabalha fora da redação pode ser explicado por perfis profissionais mais específicos (como correspondentes, colaboradores ou jornalistas desportivos/parlamentares), por seu lado, a fatia de prestadores de serviço que encontram na redação o seu principal local de trabalho pressupõe circunstâncias particulares, como o “falso freelance” (Bibby, 2014), - isto é, profissionais com modelos de vínculo formais de um independente assumem postos de trabalho permanentes, com tarefas e horários definidos.
Um dos efeitos mais significativos do confinamento nas rotinas dos jornalistas portugueses exprime-se numa tendência relativamente abrangente de domiciliação da sua atividade, que se assume enquanto fator matricial de outras mudanças no quotidiano dos profissionais - sintomatizando linhas de isolamento, sedentarismo e burocratização dos jornalistas e do seu trabalho.
A substituição de modos mais presenciais de interação com as fontes e os eventos das notícias por formas remotas de contacto (também refletida nos resultados deste estudo) não é um fenómeno inédito ou efémero. Pelo contrário, sugere-se responder a tendências de reorganização do trabalho, subjacentes à reorganização tecnológica e económica da indústria dos média. Pelo que representam em termos de observância das práticas profissionais relacionadas com a confrontação e validação da informação, importa, contudo, sublinhar a fronteira entre fórmulas mais síncronas e diretas de contacto (como o telefone ou as plataformas de videoconferência), e modos de comunicação menos interativos e simultâneos (como o email ou as redes sociais). Esta distinção afigura-se tão mais relevante quando o impacto do confinamento nas rotinas dos inquiridos provocou não apenas marcas de despersonalização dos modos de interação com as fontes, como também um aumento do recurso a fórmulas assíncronas de contacto, acentuando potenciais cenários de “taylorização” do trabalho jornalístico, de “jornalismo sentado” e de reciclagem de informação veiculada no ambiente online.
Considerando a confrontação entre as medianas referentes ao número de horas dedicadas à atividade profissional e ao número de conteúdos produzidos, antes e depois da DEE, poder-se-á concluir que estes processos de domiciliação não se traduziram, de modo genérico, numa alteração do volume e do ritmo da produção jornalística. Desta ilação não se deve, porém, deduzir que o impacto do confinamento na intensidade de trabalho dos jornalistas portugueses foi nulo, atendendo a que um terço da amostra referiu que, durante a DEE, as responsabilidades domésticas interferiram no normal exercício da profissão. Se as razões para uma maior evidência desta perceção entre os inquiridos com dependentes poderão ser autoexplicativas, o facto de ser mais patente entre as respondentes do sexo feminino é passível de exigir reflexão mais aprofundada, por eventualmente revelar um conflito entre perpetuação dos papéis tradicionais de género e atividade.
A par das alterações nas rotinas produtivas dos inquiridos, o processo de confinamento implicou ainda um isolamento social dos jornalistas, o qual tenderá a repercutir-se no seu afastamento ou alienação da comunidade profissional. Neste contexto, é significativa a oscilação que se identifica entre os hábitos de contacto com outros jornalistas, antes e depois da DEE, porquanto representa uma contração das oportunidades de participação profissional, de partilha de preocupações comuns ou, mesmo, de prestação de contas entre pares.
No que respeita ao domínio da ética, conclui-se que mais de metade dos inquiridos concorda que o contexto resultante do estado de emergência colocou questões deontológicas particulares ao exercício do jornalismo. Ainda assim, há ligeiras diferenças entre os diferentes subgrupos, verificando-se que foram os jovens jornalistas que exprimiram maiores preocupações quanto aos efeitos negativos experimentados no trabalho jornalístico, neste período. Com efeito, a percentagem dos que aludiram à emergência de problemas deontológicos particulares é, aqui, superior a 65%, seja quando se leva em conta a idade dos inquiridos, seja quando se considera o mais reduzido tempo de profissão ou a condição de estagiário. Em contrapartida, os equiparados a jornalistas e os colaboradores figuram entre as categorias que menos afirmaram ter identificado problemas novos neste âmbito. Este aspeto não pode ser desligado do facto de se tratar, em ambos os casos, de pessoas cujo contacto efetivo - dir-se-ia, quotidiano - com a profissão é menos assíduo.
Tentando dar conteúdo mais concreto aos desafios que se colocaram no plano ético-deontológico, destaca-se a preocupação com o “rigor” da informação - de longe o mais referido entre os 10 que se propunham no inquérito, e de modo bastante transversal a todas as categorias profissionais, escalões etários ou níveis de remuneração. A este enfoque particular no rigor não será indiferente a profusão de exemplos de desinformação e manipulação a que se foi assistindo na cobertura noticiosa da pandemia, com os efeitos negativos conhecidos.
Quanto ao tema, bastante atual, dos “conteúdos patrocinados”, que se situam a meio caminho entre o jornalismo e a publicidade, conclui-se que parece não ter tido particular incidência no período estudado, apesar da forte quebra de receitas dos média. Ainda assim, os dados do inquérito convergem num mesmo sentido: em termos genéricos, são novamente os jornalistas mais jovens, com menos tempo de profissão, com mais baixos salários e com títulos profissionais mais frágeis que tendem a receber mais pedidos de produção de “conteúdos” deste tipo.
Em síntese, os jornalistas portugueses viram o seu trabalho afetado por um conjunto de condicionantes, nem todas muito novas, mas decerto mais prementes, que colocam em cima da mesa a urgência do debate coletivo e da busca de soluções que melhorem as condições laborais e a capacidade de resposta às exigências éticas da profissão.