1. Introdução
O ano de 2020 ficará na história por ter mudado o mundo, a vida dos cidadãos e a agenda mediática. A pandemia de covid-19 que assolou o planeta foi global, democrática e avassaladora. Em janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarava o surto de covid-19 uma emergência de saúde pública de preocupação internacional (World Health Organization, 2020). A declaração de pandemia chegaria em março e o balanço dos meses que se seguiram revelar-se-ia dramático. Até 31 de janeiro de 2021, foram confirmados em todo o mundo mais de 102.000.000 de infetados com covid-19 e cerca de 2.200.000 de mortos (https://covid19.who.int/).
Em Portugal, desde o início da proliferação do coronavírus, várias universidades e centros de investigação mobilizaram-se para apoiar as autoridades de saúde no combate à pandemia. Foi neste contexto que, em abril de 2020, o Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC TEC) avançou, em parceria com o Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) e com as spin-offs Keyruptive e Ubirider, com o desenvolvimento da Stayaway Covid, uma aplicação móvel que pudesse assumir-se como a solução nacional de rastreio digital da covid-19.
O aumento dos contágios na primeira vaga da pandemia e a necessidade de se controlar a doença na fase de desconfinamento, levaram ao desenvolvimento de soluções móveis para o rastreamento digital da doença em várias partes do mundo. Os lançamentos de aplicações aparentemente bem-sucedidas, como foi o caso de Singapura e da Coreia do Sul, encorajaram mais de 40 países a desenvolver e adotar este tipo de soluções (Munzert et al., 2021). De acordo com dados da Comissão Europeia (s.d.), dos 27 países da União Europeia, 19 desenvolveram aplicações de rastreio digital da covid-19.
O debate público suscitado por estas iniciativas encontrou espaço nos media. À semelhança do que aconteceu noutros países, a aplicação portuguesa gerou controvérsia na opinião pública. Desde logo, pelo anúncio de diferentes datas para a disponibilização pública, passando pelo aceso debate público sobre a privacidade e segurança de dados, ou pela polémica intenção de obrigatoriedade anunciada pelo governo, até outras variáveis críticas, como a baixa adesão, a reduzida geração de códigos ou a respetiva inclusão residual pelos utilizadores, com potencial para comprometer a sua eficácia.
Neste estudo, o nosso objeto de análise é a cobertura mediática da Stayaway Covid nos meios imprensa, televisão e rádio durante o ano de 2020 com o objetivo de perceber se a presença de controvérsia influencia o recurso jornalístico às fontes de informação, nomeadamente em termos de número e de estatuto das pessoas que são ouvidas no âmbito do processo noticioso. Em particular, este estudo adota uma perspetiva comparativa entre os diferentes meios estudados e entre a presença, ou não, de controvérsias relacionadas com a privacidade de dados e com a obrigatoriedade da instalação.
2. As Fontes no Processo Noticioso
A relação entre as fontes de informação e os jornalistas é considerada determinante para perceber qual o papel destas no processo noticioso. Numa análise mais funcional e utilitária, Manuel Pinto (2000) afirma que as fontes são sempre interessadas e que comunicam com vista a diferentes objetivos, que podem ir da procura de visibilidade e atenção dos media à marcação da agenda pública ou neutralização de interesses de concorrentes ou adversários. Por sua vez, os jornalistas recorrem às fontes de informação para, por exemplo, obter informação, confirmar ou desmentir informações obtidas noutras fontes ou dissipar dúvidas e desenvolver de matérias.
Esta abordagem parece bastante clara, porém, o autor adverte que poderá ser demasiado simplista se considerarmos que as fontes e os jornalistas são “realidades uniformes, homogéneas, invariáveis” (Pinto, 2000, p. 281). A verdade é que a interação deste binómio observa um nível de complexificação mais elevado. Pinto (2000) evoca estudos de Ericson em 1989 para sublinhar que “fontes diferentes apresentam requisitos diferentes, em termos de exposição e de reserva de conhecimento” (p. 281). Estes requisitos variáveis das fontes podem influenciar o trabalho do jornalista na produção da notícia. Exemplos dessas variáveis imputadas “à vontade” das fontes são a prática do off the record e do embargo, os pseudo-eventos e o recurso cada vez mais frequente ao direto em rádio e televisão (Pinto, 2000).
A integração em diferentes quadros institucionais levanta questões como o ambiente sócio-político (Hivon et al., 2010), o tipo de ligação à entidade empregadora (ex. precariedade), a orientação editorial/política do órgão, ou o grau de ocupação do profissional em cada momento (ex. falta de tempo para consultar mais fontes). Por seu lado, os jornalistas apresentam diferentes idades, géneros e graus de formação, diversos estatutos na profissão e trabalham em quadros institucionais distintos (Pinto, 2000). Todas estas variáveis podem condicionar as práticas jornalísticas, influenciar o modo como os jornalistas se relacionam com as fontes e o que esperam obter em cada notícia que produzem. Apesar de ser correntemente caracterizada como confrontacional, mais frequentemente “a relação fonte-jornalista é simbiótica” (Traquina, 2010, p. 256), já que, se é certo que a fonte necessita do jornalista, não é menos verdade que este também precisa dela.
Vários trabalhos procuraram caracterizar as fontes, estabelecendo taxonomias, como o de Manuel Pinto (2000) - que distingue as fontes por critérios como a sua natureza, origem, duração, atitude face ao jornalista ou estratégia de atuação - ou os de Manuel Chaparro (Lopes, 2016), que classifica as fontes de forma similar, distinguindo-as por exemplo entre organizadas, informais, aliadas, de referência ou bibliográficas. Também Felisbela Lopes (2016) definiu seis variáveis distintas que oferecem uma visão mais completa das fontes de informação: número, composição, identificação, geografia, sexo e estatuto.
A análise das fontes no processo noticioso é frequentemente realizada a partir das fontes citadas nas notícias. Num estudo de Felisbela Lopes et al. (2013), que analisava artigos sobre saúde publicados em três jornais portugueses (Expresso, Público e Jornal de Notícias) durante cerca de 3 anos, concluiu-se que as fontes citadas são em escasso número, mas quase sempre identificadas. Foram raras as notícias que não indicaram fontes, sendo que os diários citaram em média uma ou duas fontes e o semanário quatro ou mais fontes em grande parte das notícias divulgadas. “Este alargamento do número daqueles que falam será, por certo, uma mais-valia para escrutinar a qualidade da informação fornecida por uma determinada fonte”, sendo que a citação de apenas uma fonte, “não contribui para a diversidade de pontos de vista que importa (quase) sempre promover” (Lopes et al., 2013, p. 66).
Relativamente ao estatuto das fontes na cobertura mediática de saúde, há estudos, como o de Olga Magalhães et al. (2020), que evidenciam a primazia das fontes especializadas (como médicos e cientistas) como interlocutores privilegiados, influenciando acentuadamente a prática do jornalismo. “O seu elevado grau de especialização faz com que tenham mais hipóteses de marcar a agenda mediática do que uma fonte proveniente da sociedade em geral, como o cidadão-comum” (Magalhães et al., 2020, p. 122). Isto acontece porque a informação sobre saúde pode assumir uma natureza predominantemente técnica que é necessário “descodificar”, mas também devido à falta de especialização generalizada dos jornalistas nesta área (Magalhães et al., 2020).
O já referido estudo publicado em 2013 sobre a cobertura mediática de saúde na imprensa portuguesa revelou que, entre as fontes especializadas, são as institucionais (fontes do campo da saúde que ocupam cargos) as mais consultadas (Lopes et al., 2013).
Além das fontes especializadas, também as fontes oficiais (políticos, administradores e diretores de saúde) são valorizadas pelos media na cobertura de notícias sobre saúde. A seguir às especializadas institucionais, as fontes oficiais são as que mais espaço ocupam nos órgãos de comunicação social portugueses (Lopes et al., 2013).
Esta grande visibilidade das fontes oficiais e das fontes especializadas institucionais tem subjacente a si uma organização permeável às exigências do trabalho dos jornalistas. Atuando de forma proactiva em relação aos media ou revelando uma assinalável capacidade de resposta face às solicitações que recebem, estas sofisticadas fontes de informação constituem uma espécie de confraria que se perpetua pelos textos noticiosos. (Lopes et al., 2013, p. 70)
3. A Controvérsia no Jornalismo de Saúde
Num artigo sobre a gripe A na imprensa portuguesa, Felisbela Lopes et al. (2010) recordavam que desde 1900 “já assistimos a três pandemias de gripe confirmadas, sendo a Gripe Espanhola a mais devastadora” (p. 140). As autoras referiam ainda que muitos cientistas consideravam provável ocorrer uma pandemia mundial de gripe nos próximos anos. A “profecia” viria a realizar-se e, 10 anos depois, o mundo via-se assolado por uma doença infeciosa causada pelo SARS-CoV-2, que se disseminaria rapidamente a nível mundial.
Num contexto de crise de saúde pública, como a que estávamos a viver em 2020, é fundamental enviar mensagens claras de informação e alerta sobre prevenção, sintomas e tratamento da doença às populações (Lopes et al., 2010). Assistiu-se então à preparação de mensagens públicas destinadas a alertar as populações para as ameaças à sua saúde (Reynolds & Seeger, 2005). Em cenários de crise e emergência, com um elevado nível de ameaça à saúde pública, é importante combinar estratégias de comunicação de risco com comunicação de crise. Se as falhas na comunicação são um fator crítico, pois podem impedir uma proteção adequada da população, pelo contrário, a comunicação eficaz maximiza a capacidade do público para agir como parceiro efetivo, favorece a contenção, diminui resistências e potencia a recuperação (Lopes et al., 2010).
Uma das formas mais eficazes de se comunicar massivamente com a população é precisamente através dos media. A utilização dos meios de comunicação social faz, por isso, parte das recomendações da literatura na comunicação de pandemias (Vaughan & Tinker, 2009). Através dos meios de comunicação, as autoridades de saúde conseguem enviar mensagens importantes e urgentes às populações, como são exemplo as conferências de imprensa da Direção-Geral de Saúde em Portugal desde 2020.
O contraditório acontece quando, por um lado, os media podem ter uma influência positiva nas atitudes e comportamentos públicos relacionados com a saúde (Nagler et al., 2015), mas, por outro, as mensagens que transmitem, na cobertura de notícias controversas e polémicas, podem também fazer aumentar o seu potencial de efeitos adversos. Embora esta área de investigação ainda permaneça pouco explorada, parece existir alguma evidência de que a exposição a conflitos e controvérsias nos media está associada à criação de confusão pública, diminuição da confiança nas recomendações de saúde e menos adoção de comportamentos de prevenção (Nagler et al., 2015). A controvérsia, entendida como a presença de desacordo entre os atores ouvidos na notícia, afeta a perceção pública dos assuntos e parece estar diretamente relacionada com a natureza dos atores envolvidos (Tschötschel et al., 2020).
Num estudo recente, Attila Szabo (2020) testou o efeito de mensagens controversas divulgadas nos media sobre questões de saúde no julgamento de 91 jovens participantes. Os resultados que a investigadora obteve forneceram evidências da mudança imediata no julgamento resultante de informações controversas e demonstraram que essa mudança persistiu por pelo menos uma semana.
Um exemplo de caso mediático que ilustra como informações controversas veiculadas nos media podem ter impacto sobre o julgamento individual foi a polémica sobre a idade a partir da qual as mulheres devem iniciar o rastreio ao cancro da mama através de mamografia. Em 2009, um estudo publicado pela United States Preventive Services Task Force recomendava o rastreio bianual para mulheres entre os 50 e os 74 anos, enfatizando que, para mulheres entre os 40 e os 49 anos, o benefício do rastreio bianual era reduzido. A controvérsia surgiu porque a American Cancer Society recomendava a realização de mamografia anualmente a partir dos 40 anos e havia até estudos realizados no Canadá e na Suécia que comprovavam que o rastreio de mulheres entre os 40 e os 49 anos havia reduzido em 30% a mortalidade (Gaspar, 2016).
Estas recomendações contraditórias atraíram naturalmente a atenção dos media, mas será possível sabermos até que ponto a mediatização da controvérsia afetou as perceções e comportamentos das mulheres na decisão de quando realizar a mamografia? Nagler et al. (2019) analisaram o conteúdo de 364 notícias de televisão com foco nas recomendações da United States Preventive Services Task Force e da American Cancer Society entre 2009 e 2016. Os resultados revelaram a prevalência contínua de informações controversas sobre a idade mais adequada de iniciar o rastreio por mamografia. As autoras concluíram que a exposição cumulativa a essas mensagens pode influenciar a tomada de decisão das mulheres sobre o rastreio e a confiança nas recomendações de prevenção do cancro (Nagler et al., 2019).
Num estudo sobre as características comuns das controvérsias relacionadas com a saúde pública, Patil (2011) compara a erupção das controvérsias de saúde pública a uma fénix. Depois de irromperem repentinamente, “são ferozmente debatidas e morrem abruptamente, seja porque simplesmente são eclipsadas por uma nova controvérsia maior ou porque a passagem de tempo as torna irrelevantes, portanto, são enterradas, mas nunca resolvidas” (Patil, 2011, p. 97).
Além do que já foi referido sobre a controvérsia, a comunicação massiva através dos media não está também isenta de riscos de incorreções, imprecisões ou mal-entendidos. Se o jornalismo de baixa qualidade sobre política ou negócios pode afetar a reputação, na medicina, reportagens ou notícias imprecisas podem gerar falsas esperanças e medos injustificados (Shuchman & Wilkes,1997). Podem ainda ocorrer contradições, resultantes das dificuldades dos temas e do cruzamento de fontes com declarações contrárias (Lopes et al., 2010), ou pelo contrário, o recurso a uma fonte única de informação pode enviesar a mensagem ao impedir a apresentação das várias perspetivas ou visões.
De facto, como realçam Hivon et al. (2010), “os jornalistas são frequentemente acusados de fornecer apenas uma visão parcial, negligenciando os pontos de vista das partes interessadas vulneráveis” (p. 34). Em nome do rigor, pluralismo e ética no jornalismo, seria de esperar que, especialmente em casos de controvérsia em que se registam opiniões e posições distintas, fossem ouvidas e estabelecidas como fontes, as várias partes. “Quando se ouve apenas uma pessoa ou se escreve a partir de um único documento, abre-se somente espaço a uma visão daquilo que se trata” (Lopes, 2013, p. 66). Também do ponto de vista deontológico, se o jornalista tem como direito a “liberdade de acesso às fontes de informação” (Estatuto do Jornalista. Lei n.º 1/99, 1999, Capítulo II, Artigo 6.º), tem igualmente o dever de “procurar a diversificação das suas fontes de informação e ouvir as partes com interesses atendíveis nos casos de que se ocupem” (Estatuto do Jornalista. Lei n.º 1/99, 1999, Capítulo II, Artigo 14º, Ponto 1, Alínea e).
Porém, embora seja recomendável incluir outras categorias de fontes para ajudar a obter um debate mais democrático, será isso suficiente? Hivon et al. (2010) consideram que não e levantam questões porque também no público consumidor de notícias sobre saúde há variáveis a ter em conta. Será que os leitores (o corpus do estudo focava apenas notícias de imprensa) julgam as controvérsias científicas da mesma forma? Será que avaliam de modo similar a credibilidade das fontes? E atribuem o mesmo peso às vozes apresentadas pela imprensa e à validade das suas afirmações?
O que parece ser inquestionável é que os media representam uma importante fonte de informação para o público leigo em questões de ciência e tecnologia. Virando o foco para a aplicação móvel cuja mediatização é o nosso objeto de estudo, é importante recordarmos, como sublinham Hivon et al. (2010), que as tecnologias de saúde “afetam as nossas vidas de muitas formas, pois além de pagarmos pela sua implementação, suportamos os seus custos sociais” (p. 34). Assim, “os cidadãos precisam de estar devidamente informados para poderem participar no debate social e político sobre essas tecnologias e poderem pensar criticamente sobre as decisões que afetam suas vidas” (Hivon et al., 2010, p. 34).
4. Mediatização da Aplicação Stayaway Covid
A Stayaway Covid foi anunciada publicamente pela primeira vez em abril de 2020. Considerando o cenário de pandemia que dominava o mundo, a agenda mediática quase só tinha espaço e tempo para a covid-19, por isso, o desenvolvimento da aplicação despertou desde logo o interesse dos media.
Entre 27 de abril e 1 de setembro, o dia da apresentação pública, a plataforma de clipping subscrita pelo INESC TEC e pelo ISPUP registava já mais de 500 notícias, entre imprensa (46), online (458), rádio (9) e televisão (11), com referência à aplicação portuguesa de rastreio digital da covid-19.
Ainda antes de a aplicação ficar disponível, o debate sobre se esta preservava ou não a privacidade de dados ocupou considerável espaço nos media, com especialistas e opinion makers a manifestarem-se contra ou a favor. A fase da controvérsia da obrigatoriedade iniciou-se mais tarde, quando o governo considerou a possibilidade de ser obrigatório instalar a aplicação, o que causou na opinião pública e nos media uma discussão bastante intensa. Face à polémica instalada, o governo recuou e a utilização da aplicação manteve-se voluntária.
5. Métodos e Dados da Análise
Este estudo tem por propósito averiguar de que forma a presença de controvérsia influencia, ou não, o recurso dos jornalistas às fontes de informação nas notícias sobre saúde. Usando o caso da aplicação Stayaway Covid e considerando diferentes meios de comunicação, esta investigação analisa de que modo a natureza da controvérsia, nomeadamente a questão da privacidade e a intenção da obrigatoriedade, influencia o número e o estatuto das fontes ouvidas no âmbito do processo noticioso. Tendo em conta o quadro traçado na revisão da literatura, foram levantadas as seguintes hipóteses:
H1: A natureza da controvérsia e dos diferentes meios (televisão, rádio e imprensa) está associada a diferentes práticas jornalísticas relativamente às fontes ouvidas nas notícias sobre a Stayaway Covid.
H2: Dada a natureza especializada da aplicação e o contexto de saúde pública, as fontes especializadas assumiram um papel preponderante na cobertura noticiosa.
A fonte dos indicadores recolhidos foi a plataforma noticiosa Cision, subscrita pelo INESC TEC e também pelo ISPUP, que monitoriza as notícias de imprensa, televisão, rádio e online com referência a estas entidades.
Neste estudo foram utilizados dois métodos: análise quantitativa e análise de conteúdo dos dados de modo a recolher evidências para confirmar ou não as nossas hipóteses de trabalho. O espaço temporal considerado foi o ano de 2020. Nesse sentido, o primeiro passo foi extrair da plataforma todas as notícias publicadas em 2020 com referência a “Stayaway Covid” ou “aplicação”, num total de 1.397 notícias.
Foi possível extrair automaticamente as notícias divididas por meios. Face ao elevado número de notícias (mais de 1.000) detetado nos meios online, optámos por analisar apenas as notícias de rádio, televisão e imprensa.
Em todas as fases da análise foram considerados os três meios em separado. Numa primeira triagem, foram retirados os diretos da amostra de notícias de televisão e rádio, e os artigos de opinião e editoriais da amostra de notícias dos meios impressos, o que originou um corpus de 182 notícias (100 nos meios impressos, 47 em televisão e 35 em rádio), que foram objeto de pesquisa.
Em cada um dos meios foi feita uma segunda triagem, com recurso ao método da análise de conteúdo para distinguir as notícias controversas das não controversas. Foram consideradas notícias não controversas todas as que não referiam qualquer polémica (privacidade, obrigatoriedade, ineficácia, financiamento ou outras), ou seja, referiam-se à aplicação sempre num tom avaliado como neutro.
No caso das notícias controversas considerou-se como critério de seleção a referência às vertentes de privacidade ou de obrigatoriedade da aplicação. Na seleção relativa à privacidade foram também consideradas outras palavras-chave de pesquisa como “dados pessoais”, “proteção de dados” e “segurança”. Já para a seleção relativa à obrigatoriedade, foram incluídas na pesquisa expressões como “obrigatória” e “uso obrigatório”.
Numa terceira triagem, o conjunto das notícias controversas foi dividido em três subconjuntos conforme a natureza da controvérsia (privacidade, obrigatoriedade ou ambas) e contabilizada a frequência das notícias em cada subconjunto.
Nos dois grupos (controversas e não controversas) foram analisadas as fontes de informação quanto às seguintes variáveis: presença/ausência de referência às fontes, número e estatuto de fontes citadas. No subgrupo das controversas (privacidade, obrigatoriedade e ambas), a análise incidiu sobre cada um dos conjuntos de notícias.
Esta classificação teve como base o modelo taxonómico de Lopes (2016) com adaptações que nos pareceram adequadas para este caso de estudo e que passamos a explicar. A análise do número de fontes revela-se fulcral neste estudo e constitui um fator determinante para confirmar as nossas hipóteses de trabalho. Se a ausência de fontes pode retirar a credibilidade necessária ao texto jornalístico, a existência e frequência de fontes “permite perceber se o jornalista respeita o princípio do contraditório e procura ouvir várias versões/explicações do assunto em causa ou se, pelo contrário, apresenta um relato minimalista daquilo que acontece, ou seja, se relata os factos de forma parcial” (Lopes, 2016, p. 184). A apresentação de mais do que uma fonte de informação pode ser particularmente crítica sempre que a notícia aborda questões polémicas.
O estatuto das fontes é também uma variável importante para percebermos se, entre as notícias controversas, assumiram maior protagonismo nos media as que focam a vertente da privacidade, com mais fontes com origem na sociedade civil, ou as que focam a vertente da obrigatoriedade, tendo a maior parte das fontes origem no governo ou nos políticos nacionais.
Foram considerados, seguindo o modelo taxonómico de Lopes (2016), quatro grupos de fontes: oficiais, profissionais, não profissionais e cidadãos.
No grupo das fontes oficiais considerámos os “políticos com cargos institucionais” e os “presidentes/diretores de instituições”. Na taxonomia que nos serviu de modelo eram consideradas neste grupo “fontes detentoras de cargos públicos (eleitas ou designadas) que, quando dialogam com os jornalistas, vinculam uma instituição/organismo/empresa pública” (Lopes, 2016, p. 186). Porém, no nosso estudo incluímos também as instituições privadas, como é o caso do INESC TEC que, apesar de privado, tem como associados universidades públicas e constitui-se neste processo noticioso como fonte oficial de informação sobre a aplicação. Assim, diferenciámos “presidentes/diretores de instituições públicas” e “presidentes/diretores de instituições privadas”. Ainda no grupo das fontes oficiais, optámos por considerar o critério geográfico para distinguir “políticos nacionais com cargos institucionais” e “políticos europeus com cargos institucionais”.
No grupo das fontes profissionais, ou seja, “fontes que falam porque exercem determinada profissão que se constitui como o seu trabalho principal, sendo, por isso, remuneradas” (Lopes, 2016, p. 186), distinguimos os peritos e os comentadores, sendo que, uma vez que a nossa amostra incluía também especialistas internacionais, decidimos aqui classificar os peritos quanto à geografia, obtendo então três variáveis neste grupo: “peritos nacionais”, “peritos internacionais” e “comentadores”.
No grupo das fontes não profissionais considerámos “as fontes que exercem determinada atividade, em paralelo com a sua profissão” (Lopes, 2016, p. 186), sendo neste caso a atividade fundamentalmente enquadrada em associações da sociedade civil.
Finalmente, no grupo dos cidadãos estão as “fontes desvinculadas de qualquer cargo, categoria profissional ou grupo, falando em nome individual” (Lopes, 2016, p. 186). Podíamos considerar dois subgrupos, desconhecidos e notáveis, contudo, na nossa amostra só registámos “desconhecidos”.
A Tabela 1 sintetiza o que acabámos de descrever e exemplifica com fontes encontradas nas notícias que constituem o corpus deste estudo.
6. Resultados
A análise de conteúdo às 182 notícias (100 nos meios impressos, 47 em televisão e 35 em rádio), que foram objeto do nosso estudo, teve como primeiro objetivo distinguir as notícias controversas das não controversas.
Foram então consideradas 83 notícias controversas e 96 não controversas, pois deste último grupo foram retiradas três notícias de imprensa que abordavam controvérsias diferentes das do nosso objeto de estudo.
O resultado obtido indicou que há quase um equilíbrio entre as notícias controversas e as não controversas (Figura 1). Dos meios analisados, verifica-se que a rádio é o único com mais notícias controversas (Figura 2), embora a diferença não seja acentuada.
A prática de citação de fontes nas notícias (Figura 3) foi sempre seguida no caso das notícias controversas. Para além de constituírem o grupo onde se verifica que em 16,2% das notícias nenhuma fonte é citada, as notícias não controversas apresentam maioritariamente uma única fonte. Nas notícias onde a controvérsia está presente, mais de metade (61,4%) refere duas ou mais fontes, verificando-se também uma percentagem assinalável (27,7%) de notícias que referem quatro ou mais fontes.
O número de fontes das notícias controversas e não controversas foi também analisado separadamente em cada meio para se perceber se os resultados diferiam de forma assinalável entre si.
Os resultados mostram que os meios partilham genericamente a mesma tendência (Tabela 2). A imprensa foi o meio que apresentou mais notícias consideradas controversas com duas ou mais fontes (69,6%), seguida da rádio (55,6%) e por fim da televisão (47,4%). Nas consideradas não controversas, a televisão lidera as notícias que não citam qualquer fonte (21,4%), seguida da imprensa (14,8%) e da rádio (11,8%). Já o meio que mais cita apenas uma fonte é a rádio (70,6%) e o que mais cita duas ou mais fontes é a televisão (35,7%), seguida da imprensa (24,1%) e da rádio (17,6%).
Relativamente à natureza da controvérsia, a obrigatoriedade foi mais focada nas notícias de rádio e de televisão, enquanto nas notícias de imprensa a privacidade assumiu maior protagonismo (Figura 4).
A natureza da controvérsia parece influenciar o recurso às fontes de informação (Figura 5). Assim, perto de metade (45,2%) das notícias publicadas com foco na privacidade consideraram apenas uma fonte, enquanto nas notícias que destacam a obrigatoriedade a utilização de duas ou mais fontes chega aos 78,2% (contra 54,7% da vertente privacidade).
A análise efetuada aos três meios em separado revela que a tendência de usar mais fontes nas notícias com foco na obrigatoriedade foi transversal, com a rádio a registar a maior percentagem (80%) do recurso a duas ou mais fontes nas notícias que focam a vertente obrigatoriedade, seguida da imprensa (78,5%) e da televisão (75%). Na vertente privacidade o recurso a duas ou mais fontes desce consideravelmente, em particular na rádio (28,6%) e na televisão (42,9%). Já na imprensa a diferença não é tão notória (64,3%).
De acordo com os dados obtidos (Tabela 3), percebe-se que a cobertura noticiosa da aplicação em que não se verifica controvérsia é efetuada sobretudo a partir de três tipos de fontes: dirigentes de instituições privadas (nomeadamente os responsáveis do INESC TEC), políticos em segundo lugar e dirigentes de instituições públicas. Estes três conjuntos reúnem mais de 90% das fontes ouvidas. Assim, as notícias que davam conta do desenvolvimento da aplicação foram relatadas maioritariamente pelos seus “mentores” e comentadas por políticos. Nem uma única vez, por exemplo, se ouviu a voz dos cidadãos.
Este quadro muda completamente de figura quando surge a controvérsia, desde logo pelo alargamento do tipo de fontes ouvidas. A análise dos dados permite ainda perceber que o recurso a diferentes fontes de informação varia em função da natureza da controvérsia. Entre as fontes oficiais, os políticos com cargos institucionais, nacionais e europeus foram chamados a intervir ou citados mais vezes nas notícias controversas relacionadas com a obrigatoriedade, em comparação com a privacidade.
Ainda que no caso dos políticos nacionais, a diferença não seja muito grande, no caso dos políticos europeus com cargos institucionais, verifica-se que estes foram constituídos como fonte cerca de duas vezes mais nas notícias que focavam a obrigatoriedade da aplicação. No que diz respeito aos presidentes/diretores de instituições públicas e privadas, observamos resultados opostos aos das fontes oficiais políticas, uma vez que foram citados como fonte nas notícias relacionadas com a privacidade mais vezes do que nas que realçavam a obrigatoriedade. Os líderes das instituições públicas prestaram declarações sobre a privacidade da aplicação mais do dobro das vezes (14,7%) relativamente à obrigatoriedade (5,6%). A diferença no caso dos líderes das instituições privadas já não é tão acentuada (31,5% na vertente privacidade e 25,2% na vertente obrigatoriedade).
No grupo das fontes profissionais, observamos que os peritos nacionais tiveram uma intervenção mais ativa como fontes nos casos das notícias que focavam a obrigatoriedade (16,8%), porém a diferença não foi acentuada em relação às que realçavam a privacidade (13,7%). Com os peritos internacionais verificou-se o inverso com 5,3% de citações nas notícias relacionadas com a privacidade e apenas 1,9% nas que focavam a obrigatoriedade. Os comentadores mantiveram uma intervenção quase equilibrada, sendo chamados a opinar em 2,1% nas notícias que focavam a privacidade e 3,8% nas notícias que destacavam a obrigatoriedade.
As fontes não profissionais organizadas em associações da sociedade civil foram mais interventivas nas notícias que focavam a privacidade da aplicação (5,3%) em relação à obrigatoriedade (0,9%). Pelo contrário, os cidadãos desconhecidos foram convidados a ter uma voz ativa mais vezes nas notícias que destacavam a obrigatoriedade da aplicação (8,4%) em comparação com as que referiam a privacidade (1,1%).
O recurso a fontes é ainda diferente consoante a natureza dos meios. Os políticos nacionais intervieram mais vezes nas notícias que focavam a vertente privacidade (televisão 44,4% e rádio 25%) do que nas que destacavam a obrigatoriedade (televisão 27,8% e rádio 18,8%). Na imprensa, aconteceu o oposto, com os jornais a citaram mais os políticos na questão da obrigatoriedade (42,1%) do que na privacidade (21,8%). Os peritos nacionais tiveram uma intervenção mais ativa como fontes nos casos das notícias que focavam a obrigatoriedade e, no caso da rádio e televisão, não tiveram qualquer intervenção nas notícias relacionadas com a controvérsia da privacidade.
7. Discussão
Num ano dominado pela pandemia de covid-19, assistiu-se a uma “disrupção no sistema mediático mundial, promovendo em muitos países, nomeadamente em Portugal, condições para um jornalismo de responsabilidade cívica e cidadã” (Cabrera et al., 2020, p. 187). Os media tradicionais, a viver há décadas em crise, ganharam um novo fôlego relativamente à concorrência direta das redes sociais e dos conteúdos gratuitos online (Cabrera et al., 2020) e tornaram-se no meio de informação mais acessível e confiável para o cidadão comum. A análise das fontes de informação, no caso da mediatização da aplicação Stayaway Covid, assume particular importância quando esta tecnologia para a saúde é apresentada pelas fontes oficiais como um importante instrumento para a contenção da pandemia e, ao mesmo tempo, é posta em causa por especialistas e associações da sociedade civil que se constituem como opinion leaders para o cidadão comum, que vai formar uma opinião e tomar (ou não) a decisão de instalar a aplicação.
Os resultados obtidos na análise do nosso corpus confirmam primeira hipótese: a natureza da controvérsia e dos diferentes meios (televisão, rádio e imprensa) está associada a diferentes práticas jornalísticas relativamente às fontes ouvidas nas notícias sobre a Stayaway Covid. Em primeiro lugar, realça dos dados apresentados que a controvérsia nos media está significativamente associada ao recurso a um maior número de fontes. As notícias que abordaram aspetos mais neutros da aplicação foram as únicas em que nenhuma fonte foi citada e que maioritariamente tinham apenas uma fonte de informação. Sempre que a privacidade ou a obrigatoriedade foi tema de notícia, os jornalistas citaram fontes e, em 60% dos casos, ouviram duas ou mais fontes. Os dados obtidos parecem sugerir que a prática de citação de fontes está mais associada ao princípio do contraditório, de ouvir as partes com interesses atendíveis, do que à prática de aprofundar os assuntos, explorando as suas diferentes perspetivas. Estes dados não deixam de ser, até certo ponto, um paradoxo: quando os media cumprem o preceituado (Lopes et al, 2013) para esclarecer a opinião pública (ouvir várias fontes a propósito dos assuntos noticiados), é quando há maior presença de polémica, o que pode afetar a perceção pública dos problemas, gerando maior confusão (Nagler et al., 2015).
Os meios de comunicação apresentaram também coberturas distintas. A televisão apresentou tendencialmente uma cobertura mais neutra, dedicando menos espaço à controvérsia relativamente à aplicação. Foi também o meio que mais noticiou sem referir qualquer fonte de informação. A rádio, o meio que dedicou mais tempo à controvérsia do que a temas neutros relativos à aplicação, foi a que mais significativamente abordou o tema da obrigatoriedade, seguida da televisão. A imprensa, por seu lado, focou mais a questão da privacidade, ouviu em média mais fontes e fez uma abordagem à Stayaway Covid mais sustentada no tempo. Assim, a questão da obrigatoriedade, tendo sido mais política, intensa e circunscrita no tempo (menos de uma semana), acabou por despertar sobretudo a atenção nos meios de rádio e de televisão, que primam pelo imediatismo e instantaneidade, e que, por isso, lhe concederam espaço e tempo. Já as notícias que focaram a privacidade marcaram presença nos media impressos duas vezes mais do que as que as que destacaram a vertente obrigatoriedade. Com uma exposição mais alargada no tempo (cerca de 6 meses), as notícias relacionadas com a vertente privacidade, de teor mais técnico, encontraram mais espaço para contexto e debate nos meios impressos. O papel dos políticos enquanto fontes de informação, associados a uma maior mediatização e impacto da controvérsia (Nisbet et al., 2003; Tschötschel et al., 2020), parece ser mais preponderante nos meios rádio e televisão, meios mais instantâneos e mais focados na atualidade, sobretudo a que é marcada pela agenda política.
Partindo do trabalho de Magalhães et al. (2020), relativamente ao papel dos peritos na cobertura de questões relacionadas com saúde e investigação, a segunda hipótese sugeria que, dada a natureza especializada da aplicação e o contexto de saúde pública, as fontes especializadas assumiram um papel preponderante na cobertura noticiosa. Os dados recolhidos não suportam essa hipótese, já que os políticos nacionais foram os atores mais envolvidos na cobertura noticiosa, sobretudo quando as notícias focavam ambas as controvérsias. Enquanto que nas notícias não controversas, os políticos ficaram atrás dos dirigentes de entidades privadas, na presença de controvérsia, eles ficaram à frente como os intervenientes mais ouvidos. As fontes especializadas ficaram ainda atrás dos presidentes e diretores de instituições públicas em termos de presença nas notícias controversas, fontes também bastante interventivas na cobertura. Estes dados também não estão em linha com outros estudos no campo da saúde, como de Lopes et al. (2013), que apontava as fontes especializadas com as mais consultadas.
Neste caso da Stayaway Covid, parece ter prevalecido a sua vertente mais política, e menos a sua componente de saúde pública. É verdade que o INESC TEC, sendo uma fonte oficial por excelência no seu papel de entidade responsável pelo desenvolvimento da aplicação, também pode ter sido visto pelos media como uma fonte especializada institucional, pois os respetivos porta-vozes, pela sua formação académica e experiência em investigação, constituíam-se também especialistas - especialistas diretamente implicados. E isso terá sido particularmente importante na fase da não controvérsia. Ainda assim, não deixa de ser significativo que os políticos tenham tido uma presença tão marcante sobretudo na cobertura das controvérsias ligadas à aplicação.
Os especialistas nacionais, que se dividiram sobretudo entre profissionais de saúde, peritos em tecnologia e constitucionalistas, registaram uma intervenção mais ativa nas notícias que focavam a obrigatoriedade (16,8%) em relação às que destacavam a privacidade (13,7%), mas sem uma diferença muito acentuada. Já com os peritos internacionais verificou-se o inverso. Os presidentes/diretores de instituições públicas e privadas, foram mais vezes citados como fonte nas notícias relacionadas com a privacidade do que com as que realçavam a obrigatoriedade. Se no caso dos líderes das instituições públicas, a diferença foi relevante pois prestaram declarações sobre a privacidade da aplicação mais do dobro das vezes relativamente à obrigatoriedade, no caso dos dirigentes das instituições privadas essa margem já foi mais ténue. A justificação pode estar no facto de os porta-vozes do INESC TEC, que se incluem nas fontes oficiais de instituições privadas, terem sido chamados a intervir com grande frequência em ambas as controvérsias.
De novo, e em linha com estudos anteriores (Magalhães et al., 2020), os dados deste estudo mostram que os jornalistas continuam a não privilegiar os cidadãos, organizados em associações ou singulares, na cobertura dos assuntos. Eles continuam a ser marginais no processo noticioso e as suas perspetivas são pouco consideradas pelos profissionais dos media. Quando a cobertura não focou qualquer controvérsia, eles estavam completamente ausentes. E, como era expectável, as associações da sociedade civil, como foi o caso da D3 e Deco, foram muito mais interventivas nas notícias que focavam a privacidade da aplicação em relação à obrigatoriedade. Com os cidadãos desconhecidos sucedeu o contrário.
Genericamente, e comparando ambas as controvérsias, podemos caracterizar a cobertura da controvérsia ligada à obrigatoriedade muito circunscrita no tempo e como sendo contada, em rádio e televisão, primariamente a partir da voz dos políticos nacionais e, em menor escala, também europeus, ouvindo mais peritos nacionais e menos fontes especializadas de outros países. Aqui intervieram menos organizações da sociedade civil e mais cidadãos avulsos. Já as questões ligadas à privacidade ocuparam mais as páginas de jornais e durante um período de tempo assinalável. Esta controvérsia foi escrita mais a partir das perspetivas de presidentes de instituições privadas (nomeadamente, o INESC TEC), mas também públicas, e com maior recurso a peritos internacionais. Foi também a propósito da privacidade que as organizações da sociedade civil foram mais chamadas a participar no processo noticioso. Assim, as controvérsias, sendo diferentes na sua origem, foram também alvo de um tratamento jornalístico diferenciado. A controvérsia da obrigatoriedade, criada por uma intenção governamental, recorreu mais a políticos do que a da privacidade. E esta, por sua vez, levantada maioritariamente por preocupações de natureza democrática, acabou por dar mais voz à sociedade civil organizada.
8. Conclusões
Esta análise à cobertura noticiosa da aplicação Stayaway Covid evidencia que a controvérsia dominou grande parte da discussão pública, mediada pelos órgãos de comunicação social, desde o início do seu desenvolvimento até ao final do ano. Foi a primeira vez que Portugal implementou a nível nacional uma aplicação móvel para benefício da saúde pública e, embora seja possível que nem todos compreendam como funciona, a opinião pública, os políticos, os líderes de instituições, os especialistas assumiram posições a favor e contra a utilização da Stayaway Covid. A comunicação mediática foi plural? Pode afirmar-se que sim, na medida em que houve, na maior parte das vezes, preocupação em apresentar diferentes perspetivas. Saber se foi suficientemente esclarecedora está fora do alcance deste estudo, mas a apresentação de diferentes perspetivas, através da presença de diferentes fontes, surge associada primariamente à controvérsia e à polémica. O que, sugere a literatura neste domínio, pode comprometer a perceção pública dos assuntos.
Este estudo confirma também que os diferentes meios de comunicação concorrem de forma diferente para a qualificação do espaço público em matéria de comunicação de saúde. A rádio e a televisão surgem aqui mais dependentes da agenda política e abordaram as polémicas relativas à obrigatoriedade no momento em que o assunto foi suscitado pelos políticos. A imprensa impõe-se mais como um espaço de reflexão alargado no tempo, mais dedicada ao contexto geral da aplicação. É importante mencionar como limitação deste estudo outras controvérsias relacionadas com a aplicação que não tiveram espaço para serem analisadas. Também as notícias online, que constituíram a maior parte das que foram publicadas sobre a aplicação, não foram consideradas e por isso não sabemos se poderiam influenciar os resultados obtidos.
Ainda assim, este trabalho contribui de forma significativa para o conhecimento sobre a cobertura noticiosa de controvérsias em saúde e tecnologia a partir das fontes de informação ouvidas no processo. Para além da já mencionada análise relativamente ao comportamento dos diferentes meios e da reflexão sobre a contribuição da convocação de diferentes fontes para o acentuar da controvérsia, esta investigação realça a natureza dos atores como fator relevante para explicar a dimensão da controvérsia. De facto, e contrariamente ao que acontece em outros assuntos de saúde em que a polémica não é central, os atores políticos surgem neste trabalho como um dos elementos-chave para alimentar a controvérsia.