1. Publicidade e Sociedade
Poderosa arma do sistema produtivo industrial, a publicidade há muito que deixou de ser um simples instrumento comercial para anunciar produtos. O sistema comunicacional publicitário constituiu-se como uma profunda e complexa instância produtora de normas, valores, estilos de vida, comportamentos sociais que conformam a vida pública e a sociabilidade humana. (Oliveira, 2004. p. 9)
Esta afirmação de Paquete de Oliveira continua perfeitamente atual e demonstra que a publicidade deixou de ser uma simples técnica de comunicação intermediária entre a produção e a procura para se converter num poderoso e influente instrumento persuasivo. O seu desempenho ultrapassou, desde logo, a natureza fundadora da sua missão, uma forma discursiva destinada ao lançamento e à promoção de produtos, serviços, que surgem incluídos, com as devidas regras, nos media, para manifestar uma função económica e comercial. A publicidade afirmou-se como um pilar fulcral na construção de marcas, na criação de inovação, no desenvolvimento de novos produtos e serviços e na estimulação da concorrência. Simultaneamente, tem tido um papel fundador no desenvolvimento e na sustentabilidade dos media e do respetivo mercado.
O poder persuasivo e o estado de omnipresença que a publicidade atingiu conferiram-lhe uma carga ideológica, já que, ao retratar situações sociais e culturais concretas, dentro de determinados limites históricos, esta atividade impõe, de um modo indireto, estruturas discursivas e de significação ao recetor que se reproduzem e ampliam face ao seu poder persuasivo e de difusão massiva (Caro, 2017; Lipovetsky, 2006/2007; Veríssimo, 2008). Como nos diz Fidalgo (2010):
tal como a propaganda se converteu durante a primeira metade do século XX num poderoso instrumento de condução de guerra, assim as indústrias da persuasão, em particular a publicidade, se converteram em vetores fundamentais das atividades económicas, sociais, culturais e políticas. (p. 22)
Apesar deste suposto poder, a publicidade está num processo de mudança e enfrenta grandes desafios, para os quais estão a contribuir as transformações do modelo, das funções e da abrangência do fenómeno publicitário. Esta situação fez-nos recuar aos anos 90 do século passado e recordar o texto “The Death of Advertising” (A Morte da Publicidade), de Roland Rust e Richard Oliver, publicado em 1994, no Journal of Advertising em que os autores antecipavam uma destruição rápida do setor da publicidade, por via do advento das tecnologias à época.
Paradoxalmente, o mercado publicitário não se desmoronou, mas, por via da sua natural flexibilidade (quer do mercado quer dos profissionais), continua a adaptar-se. A história da publicidade tem-se encarregado de nos demonstrar a sua constante adaptação às mudanças tecnológicas, sociais e culturais. E, em todas estas mutações, manteve o seu objetivo de trabalhar em função das marcas, dos anunciantes, dos media e dos consumidores (Baynast & Lendrevie, 2014; Caro, 2017; Dahlen & Rosengren, 2016; Rossiter et al., 2018).
No que concerne às mutações tecnológicas, a internet e os media digitais criaram uma nova ordem na organização e na divulgação de conteúdos. Por via da capacidade oferecida pela tecnologia da web, pelas valências do 3D, da animação e do grafismo digital e pela ação do próprio marketing digital, surgem novos formatos de publicidade online que coexistem entre si e que oferecem múltiplas possibilidades estratégicas (Auladell, 2015) - formatos que vão do tradicional banner às janelas de pop-up e aos vídeos publicitários. Estes últimos deixaram a exclusividade da televisão e passaram a ser produzidos para os canais de vídeo da internet, como o YouTube.
Este tipo de anúncios em vídeo, a que também é possível aceder via telemóvel, está a desempenhar um papel fundamental na publicidade, não só pela criatividade que é aplicada nos seus conteúdos, como pela possibilidade de serem partilhados entre consumidores, particularmente através das redes sociais (Dahlen & Rosengren, 2016). Acrescentam, ainda, Micael Dahlen e Sara Rosengren (2016), professores da Universidade de Estocolmo, num texto intitulado “If Advertising Won’t Die, What Will It Be?” (Se a Publicidade Não Morrer, o Que é Que Ela Será?), que “os consumidores agora controlam não apenas o que recebem, mas também procuram participar ativamente no processo publicitário” (p. 336). Com a emergência das redes sociais, temos vindo a assistir a uma mudança na relação entre os consumidores, a publicidade e os anunciantes: passámos de uma visão unidirecional para uma visão multidirecional, de interação e de diálogo, entre consumidores e anunciantes, em que estes últimos contam, cada vez mais, com as sugestões dos primeiros (Dahlen & Rosengren 2016, p. 336), convidando-os até a cocriar e a participar em vários aspetos da produção da publicidade (Lawrence et al., 2013).
É a época da “publicidade entretenimento”, já sugerida no virar do século passado por Jesus Requena e Amaya Zárate (1999), quando propunham uma perspetiva de conceção da publicidade que convertesse o próprio anúncio e toda a encenação que o envolve em objeto de consumo. Hoje, estimulada pela possibilidade da partilha de filmes publicitários através das redes sociais e do consequente efeito viral, é uma realidade.
Estamos, por esta ordem de ideias, a assistir a mudanças sociais e a alterações ao comportamento do indivíduo/consumidor. Alertava-nos Lipovestky (2007, p. 41), que vivemos na era do “consumo emocional”, que se traduz numa nova relação com os produtos e que estabelece o primado das sensações e das emoções1, em que cada um revela a livre expressão dos seus prazeres e dos seus gostos pessoais. No mesmo tom alinha Moisés de Lemos Martins (2011, p. 189), a propósito da reflexão que faz no texto Crise no Castelo da Cultura. Das Estrelas Para os Ecrãs, sobre a atual condição humana numa sociedade tecnológica em que imperam medos, riscos e ameaças. Ali fala-nos de uma civilização técnica que “tem um pathos dominante, onde sensações, emoções e paixões desativam a centralidade do logos e do ethos” (Martins, 2011, p. 189) e transmite-nos a noção de uma sociedade dominada pelo individualismo, que se combina com o hedonismo. Uma sociedade que deixou cair a “ideia de harmonia em Aristóteles”, para passarmos a uma sociedade dominada pelo pathos, de supremacia das sensações, das emoções e das paixões (Martins, 2011, pp. 188-190).
Vivemos, de facto, numa sociedade centrada no indivíduo, na qual se cruzam os conteúdos mediáticos que apelam à satisfação destas necessidades hedónicas com outros em que o cidadão comum é o protagonista. Basta recordar o sucesso que tiveram e têm programas televisivos como Big Brother e outros dentro do género, que diariamente incluem o cidadão comum como protagonista. Ora, a publicidade, enquanto elemento do sistema de comunicação social e ampliador sociológico que funciona como o retrato de uma cultura (Caro, 2017; D. A. Garcia et al., 2013; Veríssimo 2008), está, também, a refletir estes movimentos nos seus conteúdos.
Na publicidade audiovisual (primeiro na televisão e cada vez mais nos canais de vídeo da internet), os publicitários foram ensaiando a produção de conteúdos transmissores de “relacionamentos relevantes, ou que permitam conexões fortes com seus públicos (Escalada, 2016, p. 48), da qual se destaca o storytelling2. Ao recorrer a encenações que representam o quotidiano, os contextos, as vivências e mesmo as problemáticas da vida real, em que se esbatem as discrepâncias entre a realidade e os tradicionais conteúdos publicitários, esta técnica de comunicação publicitária adquiriu uma nova centralidade nas estratégias publicitárias (D’Amato & Panarese, 2016, como citados em Panarese & Villegas, 2018, p. 65). Os conteúdos emocionais e de “valor humano” e o recurso a “pessoas” reais revelam maior realismo e veracidade e induzem maior proximidade com as audiências3 (Escalas, 2004).
O storytelling é, atualmente, uma abordagem de comunicação publicitária, de entre as várias ações que compõem a estratégia transmedia4 de uma marca, com a capacidade de criar uma “experiência” atraente, consistente com as vivências e os sentimentos dos indivíduos e em sintonia com suas inclinações. Esta técnica é capaz de aliviar as tensões do espectador e fornecer uma orientação para a ação ou para o comportamento (Pallera, 2012, como citado em Panarese & Villegas, 2018, p. 65). Aliás, a premissa de que os indivíduos se lembram melhor das informações quando estas são contadas em forma de “história”, ao invés de serem apresentadas como uma lista de factos, está a contribuir, cada vez mais, para o uso deste tipo de narrativa pelos publicitários (Zubiel-Kasprowicz, 2016).
Ching Chang (2012), professora de publicidade e investigadora na Universidade de Taipei5, resume em três pontos as razões que explicam, na sua opinião, o sucesso das narrativas (storytelling) na publicidade:
Paralelamente à promoção de produtos e serviços, o storytelling comunica experiências aos consumidores, ao mesmo tempo que transmite, de forma mais eficaz, o significado e o sentido simbólico das marcas (por exemplo, sentir-se seguro e acarinhado).
O storytelling pode aumentar o envolvimento e o entretenimento do consumidor. Além disso, o consumidor expressa atitudes mais favoráveis em relação a este tipo de anúncios e revela uma maior memorização da mensagem.
O storytelling encoraja os consumidores a inferirem experiências através dos comportamentos das personagens nas histórias. Além disso, as narrativas sobre um produto funcionam como “enredos genéricos” (Escalas, 1998, p. 283) que definem formas para um consumo futuro, ou seja, funcionam como quadros de referência para experiências de consumo no futuro.
2. Retórica e Publicidade
Partindo do pressuposto de que o sucesso evidenciado pelo storytelling em publicidade se pode explicar a partir dos enfoques distintos que acabámos de referir, mas que se complementam, procuraremos, com base no vídeo publicitário da marca Dove intitulado Dove Real Beauty Sketches6 (Dove US, 2013), evidenciar que o poder persuasivo do storytelling reside na verosimilhança da história, ou seja, na aproximação ao quotidiano e no “realismo” da narrativa (Bal et al., 2011; Tomás et al., 2018; van Laer et al., 2013), o que reforça a capacidade de conferir credibilidade à marca (ethos) e de provocar uma forte relação emocional com os públicos (pathos). Tal faz dela uma poderosa ferramenta para as marcas (Ballester & Sabiote, 2016; Laurence, 2018; Salmon, 2016). Procuraremos, simultaneamente, apontar similitudes com as facetas que compõem o conceito de narratio, plasmado na Retórica a Herénio (1998/2005, Livro 1.12-17)7.
Para esta análise partimos da noção de “coincidência” entre recursos persuasivos e argumentativos presentes na práxis publicitária e na retórica. Isto é, muitas vezes não há um desígnio claro do publicitário no uso das regras da retórica, ou, até, um conhecimento prévio da doutrina retórica, mas as coincidências existem (Durand, 1970; Fernández, 2006; Rey, 2009). Aliás, podem até surgir inconscientemente. Se nos recordarmos dos primórdios da publicidade, um dos primeiros modelos explicativos do processo de conceção de uma mensagem, o básico AIDA (atenção, interesse, desejo, ação), atribuído a Elias St. Elmo Lewis e publicado pela primeira vez em 1925, no texto “Theories of Selling” (Teorias de Venda), de autoria de E. K. Strong (como citado em Martín, 1996), preconizava que um anúncio devia, sucessivamente, chamar a atenção, momento em que se deveria informar o público acerca da existência do produto ou serviço; e suscitar o interesse, ou seja, partilhar uma informação relevante acerca das características, das especificações e dos benefícios desse produto ou serviço. Para tal, a publicidade deveria recorrer a argumentos que tivessem a capacidade de provocar o desejo no consumidor, a fim de desencadear a ação/compra. Ora, este modelo não reproduzia mais do que as funções de docere, delectare e movere, perfilhadas pelos retores latinos (como Cícero), segundo as quais a retórica deveria, respetivamente, ensinar através de argumentos lógicos; agradar e captar a atenção; e servir a componente movere, que no fundo passa por persuadir o auditório através de emoções e sentimentos com o objetivo de o levar à ação (Fernández, 2006).
O vídeo referido anteriormente, e escolhido para ilustrar o nosso texto, exibe algumas mulheres a quem era solicitada uma auto-descrição dos traços fisionómicos mais salientes e de algumas características psicológicas. Portanto, uma análise auto-percetiva. Durante o relato, o ex-artista forense do FBI, Gil Zamora, esboçou esses traços, tal qual se fazem os retratos robots de suspeitos de crimes, assentes nas descrições de testemunhas, mas sem qualquer contacto visual com aquelas mulheres. Posteriormente, o mesmo artista forense retratou as mesmas mulheres com base no depoimento de estranhos. Esses desenhos foram realizados em dias diferentes para que o artista não soubesse exatamente quem estaria a desenhar. Deste modo, os retratos foram criados apenas a partir de descrições sem qualquer interferência visual.
As diferenças entre o que as mulheres descreveram de si e o relato dos estranhos foram notáveis, revelando que a auto-perceção feminina é bem mais negativa do que a opinião/visão descrita por outras pessoas, o que corrobora os resultados de vários estudos científicos efetuados sobre esta temática (Brennan et al., 2010; McCabe & Monteath,1997; Secchi et al., 2009).
Iniciamos este percurso pela análise da disposição (dispositio) dos elementos do discurso8 na sequência da obra de Aristóteles (1998/2005, p. 277) e à semelhança da atualização efetuada por Barthes (1985/1987). Neste sentido, os elementos que o compõem são: o exórdio (ou proémio, na perspetiva aristotélica); a narratio (narração); a confirmatio (confirmação ou prova, na escrita de Aristóteles); e o epílogo (peroração)9. Todavia, neste trabalho seguiremos a estrutura paradigmática da dispositio em três partes, tal qual defende Fonturbel (2009, p. 139), já que a particularidade do discurso publicitário origina uma estruturação espacial (e temporal, no caso de anúncios audiovisuais) com idiossincrasias próprias. Como tal, e por via do seu caráter essencialmente breve, a narratio - exposição do tema e da posição do orador/marca - e a argumentatio - razões que sustentam o tema - surgem unidas numa única parte do discurso. Nesta estrutura tripartida, encontramos:
a parte inicial (oexórdio), formada pelo fundo musical e pela apresentação do artista forense, a qual tem como objetivo captar a atenção e o interesse da audiência;
uma parte média, que concentra anarratio. Se atendermos à noção deste conceito plasmada no texto Retórica a Herénio (1998/2005, Livro 1.12-17), verifica-se a preocupação em:
narrar com brevidade - nesta campanha publicitária é abordado apenas o que é importante;
narrar com clareza - o conteúdo é claro e óbvio, contendo a informação essencial e relevante para quem é dirigida, por forma que a mensagem seja fácil de entender; e seguir a ordem cronológica dos acontecimentos - há um enredo que segue uma ordem para evitar a confusão da exposição, os conteúdos inusitados ou a referência a outros assuntos;
recorrer à verossimilhança, à aproximação ao quotidiano e ao realismo da narrativa10. Para tal, diz-nos esse autor desconhecido (Retórica a Herénio, 1998/2005, Livro 1.16), que o discurso será verossímil se for adequado:
ao “contexto”11 - ora, esta campanha foi lançada num tempo e num espaço que se ajusta às tendências de uma sociedade marcada pela apropriação do corpo, pelo culto e gestão da aparência (Dittmar, 2008; Feiss, 2012; M. Garcia & Cormelles, 2007; Laurence, 2018);
à duração do tempo - o anúncio teve a duração considerada necessária para passar a mensagem, atendendo ao conteúdo e ao meio;
à dignidade das pessoas - as situações descritas pretendem revelar os sentimentos, as emoções e as preocupações do público ao qual se destina a mensagem;
ao motivo das decisões - esta campanha visa “retratar” situações que aparentam a vida real de cada um dos membros do público ao qual se destina a mensagem;
às oportunidades do lugar - há uma adaptação do estilo da narração ao tema e ao público. No fundo, as ações e os factos narrados ajustam-se à opinião e aos sentimentos da maioria das pessoas, o que contribui para a credibilidade da marca (Bal et al., 2011; Ballester & Sabiote, 2016; Laurence, 2018). Ou seja, o discurso será tanto mais verosímil, quanto maior for o realismo do tema tratado e das personagens utilizadas e das encenações.
e, finalmente, em forma de conclusão, o epílogo, que faz um apelo à audiência/público “you are more beautiful than you think (“você é mais bonita do que pensa”) e que resume o conteúdo do discurso numa frase agradável e concisa.
Além das particularidades que caracterizam a narratio, que acabámos de enunciar, o autor desconhecido de Retórica a Herénio (1998/2005, pp. 65-70) refina a sua análise e explica-nos que existem três géneros de narração, a saber:
o primeiro, em que se expõe o que aconteceu (e se capta cada detalhe em proveito próprio, o que inclui a própria causa e a base ou o fundamento da controvérsia);
o segundo, em que o propósito é o de acusar (mas, também, estabelecer uma comparação com o tópico que está a ser discutido e entreter a audiência de uma maneira consistente);
e o terceiro, que se afasta das causas civis, mas com a intenção de agradar (embora sirva também como exercício útil para o falar e o escrever).
Diz-nos, ainda, que esta última tipologia de narração está dividida em duas classes:
a primeira centra-nos nas ações que, por sua vez, se subdivide:
na fábula, em que se narram ações que não são nem verdadeiras, nem verosímeis;
na história, em que se relatam as ações realmente empreendidas, mas em épocas distantes;
no argumentum, em que as ações contadas são falsas, apesar serem plausíveis;
a segunda foca-se nas pessoas/personagens. Este género de narração deve, na opinião do autor, apresentar “festividades nas falas, diferenças de ânimo: gravidade e leveza, esperança e medo, desconfiança e desejo, dissimulação e compaixão; e variedades de situações: mudanças de sorte, incómodos inesperados, alegrias repentinas; e final feliz” (Retórica a Herénio, 1998/2005, p. 65).
Podemos, então, afirmar que o poder desta campanha publicitária reside, precisamente na verosimilhança da história com a realidade e no foco das personagens. Histórias sobre questões que afetam o quotidiano do público. Personagens que apresentam atributos físicos semelhantes, e que expressam os medos, angústias, desconfianças ou desejos manifestados pelo público ao qual se destina a mensagem.
Simultaneamente, esta narrativa foge dos tradicionais cânones da publicidade que comunica ideias de juventude, de riqueza ou fausto, no fundo, temas “inventados”, próximos daquilo que caracteriza a ficção cinematográfica e que se pode assemelhar à ideia do argumentum, proposto naquele texto clássico; como também se afasta de um típico discurso sobre o fantástico (fantasia) e o irreal, o que se pode caracterizar como próximo do conceito de fábula também presente naquele texto.
Ou seja, nesta campanha, a mensagem não é concebida a partir de um imaginário ideal, tal como na maioria da publicidade tradicional, mas de valores e preocupações reais do público. Revela a vida real com argumentos que “sensibilizam” esse mesmo público, e relata os sentimentos e as emoções sentidas pelas personagens que, por sua vez, serão partilhadas pelo público ao qual se destina a mensagem. Tal revela uma faceta “humana” da publicidade, o que contribui para a sua credibilidade.
Para a criação desta narrativa terá havido todo um trabalho prévio (inventio), no qual o emissor “procurou descobrir e conceber os argumentos mais apropriados à tese que pretendeu defender” (Nunes, 2015, p. 10), ou seja, houve uma fase em que se avaliaram as ideias e se escolheram os argumentos atendendo aos objetivos de marketing pretendidos e ao público a que se destina, incluindo uma preocupação particular na escolha das personagens.
Ora, temos aqui outro ponto fundamental do processo persuasivo em publicidade: o impacto que determinadas personagens têm nos públicos. Qual o seu papel persuasivo? Ao longo da história da publicidade, o cuidado com as personagens tem sido matéria inquestionável. Elas funcionam no enredo publicitário como um destinatário virtual, que “interpreta” um “eu” real a quem se dirige o anúncio. Kapferer (1994/2000), na metodologia que desenvolveu para a criação de uma identidade de marca no processo de gestão das marcas, já advertia para o especial cuidado com a seleção da personagem que viesse a protagonizar uma campanha, já que a sua presença visava “a criação de um reflexo, uma imagem ideal do consumidor/utilizador a quem o anúncio se dirige, ( … ) que funciona como um modelo de aspiração” (p. 40). Esta presença tinha como objetivo “convencer” o consumidor a acreditar que aquela poderia ser a imagem de si próprio que iria manifestar perante os outros, caso consumisse aquele produto. Judith Williamson (1994) expressava a mesma opinião ao considerar que a publicidade parecia recorrer ao fenómeno cognitivo da formação de identidade descrito por Lacan como a fase do espelho (p. 60) - algo que acontece quando a criança tem como referência a imagem do adulto e a considera sua. Parece-nos, então, que a psicanálise, ao ter como um dos objetos de estudo a identificação dos públicos com as personagens, algo iniciado ao nível dos processos de receção e compreensão da arte e da literatura, e mais tarde aplicada ao cinema, em que se destacaram autores como Christian Metz (1980), tem, também, ajudado os teóricos da publicidade a compreender este fenómeno.
Existem, também, os modelos que partem da psicologia, que nos ajudam a compreender este processo, como seja o elaboration likelihood model (ELM), de Petty e Cacioppo (1986), um dos marcos de referência na explicação dos processos persuasivos. Ou o narrative transportation, de autoria de Melanie Greene e Timothy Brock (2000), que surge inserido numa estrutura multidisciplinar que integra a psicologia cognitiva e as teorias da comunicação, da cultura e do consumo.
Para Juan Igartua Perosanz (2007, p. 41), este processo de identificação com as personagens é um constructo multidimensional, que compreende vários processos psicológicos. Considera a empatia como uma das dimensões básicas da identificação, permitindo compreender o processo de receção de conteúdos de entretenimento e explicar o agrado provocado pela exposição dos mesmos (Igartua Perosanz, 2007, p. 13). Ou seja, parte da premissa de que o recetor/consumidor experimenta um sentimento de “entrar” mentalmente no mundo evocado pela narrativa, numa “viagem simbólica a outros mundos” por via da empatia que sente pelas personagens da história e pela imaginação que aplica na interpretação do enredo da história.
De acordo com esta visão, o processo de identificação com as personagens e com a própria narrativa inclui três características:
Em primeiro lugar, exige que os recetores processem histórias - os atos de receber e interpretar.
Em segundo lugar, os espectadores são transportados através de dois componentes principais:
empatia, sendo que este fenómeno implica que os recetores da história tentem entender a experiência de uma personagem, isto é, conhecer e sentir o mundo da mesma maneira, o que oferece uma explicação para o estado de distanciamento do mundo de origem e justifica a noção de transporte narrativo;
imagens mentais, tratando-se de um estado em que os recetores geram imagens vívidas do enredo da história, de tal modo que se sentem como se estivessem a experimentar os eventos em si - visão centrada nas investigações de Green e Brock (2002).
Em terceiro lugar, quando transportados, os recetores de histórias perdem a noção da realidade no sentido fisiológico.
Partindo desta ideia, uma narrativa deriva de um processo de atribuição de significado e de interpretação de uma história. Mais recentemente, van Laer et al. (2013), com base na investigação “The Extended Transportation-Imagery Model”, oferecem-nos uma proposta mais abrangente e atualizada do modelo narrative transportation, incluindo a noção de empatia, na esteia de autores como Igartua Perosanz (2007). Resumidamente, van Laer et al. (2013) definem narrative transportation como o processo em que a identificação com as personagens e com a própria narrativa ocorre porque:
o indivíduo simpatiza com as personagens da história;
e o enredo ativa a sua imaginação, o que leva a experimentar a “suspensão” da realidade durante a receção da história.
Os autores concluem que narrative transportation parece ser mais afetivo do que intencionalmente cognitivo e que este modo de processamento conduz a efeitos persuasivos potencialmente crescentes e duradouros (van Laer et al., 2013, p. 800).
Voltando ao anúncio em estudo, podemos afirmar que estamos perante uma campanha que criou uma identificação da audiência com a narrativa, através do fenómeno de empatia com as personagens. Estas, ao desempenharam um papel que as aproximou o mais possível dos ideais do público-alvo, “conduziram” a audiência a processar e a interpretar a história como sendo a sua. Ou seja, através do entendimento e da assimilação da experiência vivida pelas personagens como se fosse ela própria que a vivesse, a audiência é “transportada”, criando, desta forma, um estado de distanciamento relativamente à realidade em que vive, ainda que momentâneo. Simultaneamente, sentir-se-á como se estivesse a experimentar os eventos em si.
Desta forma, não só a audiência simpatiza com as personagens da história, como o enredo da encenação terá a capacidade de ativar a sua imaginação, levando-a a experimentar a “suspensão” da “sua” realidade durante a receção da história, para assimilar, como sua, a experiência vivida pela personagem com a marca publicitada.
Centremo-nos agora no registo da argumentação. Que forças persuasivas são mobilizadas para o interior deste anúncio? Que argumentos são utilizados?
Dizia-nos Aristóteles (1998/2005) que se “persuade pela disposição dos ouvintes, quando estes são levados a sentir emoção por meio do discurso, pois os juízos que emitimos variam conforme sentimos tristeza ou alegria, amor ou ódio” (p. 97).
Apesar de a publicidade ter surgido inicialmente com uma função informacional, há largos anos que observamos uma tendência para o recurso a argumentos simbólicos, na procura do despertar das emoções, dos imaginários, dos desejos e das ambições do público como evidenciado pelas investigações ao nível do comportamento do consumidor (Solomon, 2018), portanto, um domínio do pathos.
Esta campanha é de natureza afetiva e a persuasão faz-se a um nível mais inconsciente do que a publicidade tradicional (Escalas, 2004). A adesão do público à causa enunciada terá ocorrido, porque foi exposto a um discurso que surgiu de forma inesperada, cujos argumentos se centram nos sentimentos e nas emoções e não nas características dos produtos, cada vez mais similares entre si.
Esta campanha provocou uma reação emocional em milhões de pessoas que as inspirou a partilhar com outras pessoas. Além dos milhões de visualizações publicitárias (recorde-se que foi traduzida em 25 idiomas diferentes e visualizada em 110 países), foi a efusão de depoimentos em todo o mundo que a marcou. Este nível de partilhas apenas foi alcançado, porque a narrativa publicitária foi baseada numa história consistente com os valores dos públicos (Panarese & Villegas, 2018).
Podemos, ainda, considerar que o facto de a fonte/o emissor, a marca Dove, ser considerada qualificada, credível e confiável terá corroborado para este efeito de adesão. Diz-nos Serra (2015) que “a credibilidade do orador foi definida, logo, por Aristóteles como um dos principais meios de persuasão, senão mesmo o principal. A razão parece óbvia: é impossível sermos persuadidos por alguém cujo discurso não nos inspira qualquer confiança” (p. 127). Aliás, afirma-nos, ainda, Serra (2015) que uma das características do ethos reside no facto de “ser uma prova necessária, sobretudo, nas coisas de que não há conhecimento exato e que deixam margem para dúvida” (p. 129). E continua considerando que “a interpretação parece óbvia: nas coisas que são incertas ou duvidosas, em que não podemos concluir apenas por nós próprios, precisamos da confiança em alguém para ultrapassar a margem de incerteza e de dúvida que elas nos suscitam” (Serra, 2015, p. 129).
Apesar de Paulo Serra (2015) se referir as questões da política, podemos afirmar que se aplicam, sem dúvida, a matérias de publicidade e de credibilidade nas marcas, como a fonte da informação. De referir, ainda, que desde Aristóteles que o objetivo de qualquer argumentação é o de provocar ou aumentar a adesão do auditório às teses apresentadas. Essa mesma adesão será tanto mais efetiva, quanto maior for a intensidade revelada, por forma a desencadear nos ouvintes uma ação, ou, pelo menos, uma predisposição, cuja ação se possa manifestar numa futura oportunidade.
Constata-se nesta campanha publicitária que a adesão do público às questões enunciadas e aos ideais protagonizados é observada pelas milhares de visualizações, de comentários e de partilhas deste vídeo. Tal terá ocorrido porque criou um limite diferenciador, evidenciou uma personalidade, e estabeleceu relações com os públicos (Baynast & Lendrevie, 2014; Kapferer, 1994/2000; Kotler & Keller, 2015) num universo cultural e social marcado pela preocupação social com o corpo e com a imagem pessoal. A marca Dove procurou mobilizar o público e construir a sua notoriedade a partir de valores universalmente reconhecidos, dando a entender que compreende, por um lado, as necessidades dos consumidores, e por outro, os seus constrangimentos em relação a um aspeto fundamental na vida das mulheres: a imagem pessoal. É na preocupação pela subestimação das mulheres que assenta a persuasão da campanha.
A adequação do discurso ao público é, também, uma das teses fundamentais de Aristóteles e toda a retórica clássica (Serra, 2008). Como tal, a prática retórica supõe um discurso voltado para o auditório, em que “o orador baseia o seu discurso naquilo que o auditório espera dele, respeitando, por isso, os valores, crenças, costumes culturais, experiências, estatuto social ou aspirações” (Mateus, 2018, p. 43). Aliás, no Livro II de Retórica a Herénio (1998/2005), Aristóteles falava-nos dos diferentes tipos de humanos que podem compor uma audiência, bem como as suas características particulares, os jovens, os velhos, os poderosos, os nobres ou os que estão no auge da vida. São, portanto, descrições psicológicas de diferentes personagens humanas.
Deste modo, os publicitários que criaram esta campanha publicitária terão tido uma visão atualizada e precisa quanto aos respetivos perfis psicossociológicos da sua audiência12, quanto ao conhecimento das suas necessidades, motivações e hábitos socioculturais, a fim de conceber e lhe endereçar esta mensagem com valores, temas e tom de comunicação que coincidam com as normas socioculturais dessa audiência/público-alvo.
4. Conclusão
Atendendo a que a publicidade é um poderoso e influente instrumento persuasivo, mas que está num processo de mudança e enfrenta grandes desafios para os quais estão a contribuir as transformações do modelo, funções e abrangência do fenómeno publicitário, e sabendo que há, atualmente, uma apetência ou tendência das marcas em estabelecer relações com os públicos através dos afetos e das emoções, procurámos, neste texto, demonstrar que o storytelling em publicidade poderá ser uma dessas “ferramentas” usadas pelas marcas, e que terá na retórica clássica uma base estrutural da sua edificação.
Em particular, podemos afirmar que se sustenta nos conceitos de história e de narração de pessoas, plasmados em Retórica a Herénio (1998/2005, Livro 1), já que procura narrar factos o mais verosímeis possível, retratando situações da vida real, com recurso a personagens ajustadas ao público, que expõem os próprios sentimentos, preocupações e emoções, com o objetivos de gerar um estado emocional nas audiências (evidência no pathos).
Observamos que a campanha foi lançada por uma marca considerada como credível (relevo do ethos), num tempo e num espaço marcados pela preocupação e apropriação do corpo, pelo crescente amor do humano por si próprio e pelo culto e gestão da aparência, e que ações e os factos narrados ajustam-se à natureza dos participantes, à opinião pública e aos sentimentos da audiência.
Consideramos, ainda, que estamos perante um tipo de publicidade que recusa alguns dos topoi (lugares comuns), na aceção de Moisés de Lemos Martins (1998)13, habitualmente empregues numa encenação publicitária. Trata-se de um tipo de publicidade que não recorre a representações que retratam as famílias felizes que ensaiam uma refeição, ou qualquer outra experiência conjugal, ou de carros que viajam por paisagens fantásticas onde tudo é limpo e belo. Descarta os ambientes de origem sentimental e romântica, assim como recusa as personagens ideais que representam o papel de heróis e nas quais são destacados argumentos como o êxito, sinónimo de felicidade; ou a competência, como apologia do comportamento humano, que caracterizam a publicidade que diariamente nos é oferecida. No fundo, rejeita alguns dos topoi da sociedade moderna, cujo discurso, ao refletir as aspirações sociais, se torna num espelho dos “sonhos” do consumidor.